v. 2 n. 2 (2015): Das Questões 2: DeComer

O maior perigo da existência é que a nutrição humana é composta inteiramente de almas.  Ivaluardjuk, Xamã Inuit    capa: desenho e concepção de Rodrigo Acioli ("Autofagia", 2015)

Das Questões 2: DeComer

Eis aqui o segundo número da revista Das Questões. Ela congrega contribuições sobre a gula, a digestão, a ingestão, o apetite, a devoração, a mastigação ”“ o de comer. A revista, dedicada a morder questões sem hífens, virgulas ou cesuras, se debruça sobre quem e o que alimenta o que e quem. A pergunta pelo jantar ”“ e Helga Müller, em seu Anjo da Fome, descreve a ausência de comida como uma deformação e a fome mesma é uma forma mesmo de olhar para qualquer fundamento com uma falta de sustento ”“ é um chamariz de aflições: não há comida que não seja, ou não tenha sido, outra coisa. O drama da existência de Ivaluardjuk é precisar comer e desconfiar que tudo o que se ingere é engolido em camuflagem. É que servir o alimento ”“ assim como engoli-lo ”“ são formas de tradução ”“ e portanto de um jogo perigoso de perdas e ganhos.

Como se transforma o mundo exterior em alguma coisa comível? Os povos do baixo Amazonas chamados por Philippe Descola de animistas entendem que tudo come e será comido. Nos termos do perspectivismo, que Eduardo Viveiros de Castro e Tania Stolze Lima encontram entre os povos da mesma área, para a comida quem come muitas vezes também é comida. Que ética, ou antes que diplomacia, rege um regime alimentar? Para os Modernos, todo não-humano é recurso alimentar. E eis a fronteira: o humano é aquilo que está protegido da grande bouffe ”“ e, de fato, seu corpo lacrado na terra fica dedicado prioritariamente à microbiota que o deglute, aquela mesma que compartilha de perto as manivelas dos dispositivos que fazem dos humanos humanos. Talvez como consequência de se separarem do fluxo alimentar, os Modernos tiveram que tomar a natureza indiferente a qualquer negociação diplomática.

Este segundo número da Revista ”“ dedicada a sustentar a tonalidade das questões ”“ está focado na deglutição. A conexão entre compreender e deglutir ”“ antropofágica ”“ é explorada de algumas diferentes maneiras. Depois dos fragmentos culinários e etológicos do Coletivo Indigestão e de Lucia Garrido, alguns ensaios abordam a antropofagia (Alexandre Nodari e Filipe Ceppas), a digestão como experiência de um outro (Denise Paiva Agustinho), a comida ritual do candomblé (Wanderson Flor do Nascimento), a pele que cobre a pele (Loraine Oliveira) e os frutos do conhecimento e alguns mistérios destravados pela ingestão transformadora da consciência (Lucas Kaeté). A Revista se encerra com dois manisfestos, de Claudio de Morais Maia e Leonardo Ortegal, que invocam as aporias éticas da trama nutricional: a questão mortal.

Dados da capa: desenho e concepção de Rodrigo Acioli ("Autofagia", 2015)

 

Publicado: 2015-05-29