Saúde mental pela perspectiva das Ciências Sociais
Palabras clave:
Saúde mental, ciências sociaisResumen
É uma grande satisfação apresentar o dossiê que compõe este número da Sociedade e Estado, trazendo ao debate o tema “saúde mental”, tão premente e importante para a nossa sociedade, a partir de artigos teóricos, estudos de caso e pesquisas qualitativas e quantitativas. Hoje alguns dados são alarmantes, tais como os apontados pela Organização Mundial de Saúde (OMS, 2019) e amplamente divulgados pela mídia no ano passado: o Brasil lidera mundialmente a presença de pessoas com transtorno de ansiedade, é o quarto em casos de depressão e registra significativo aumento nas taxas de suicídio. Paralelamente, eleva-se o consumo de antidepressivos e ansiolíticos, juntamente com medicamentos para déficit de atenção, hiperatividade e demais questões ditas de comportamentos disfuncionais. Essa realidade assusta e demanda intervenções e reflexões de cunho interdisciplinar e inovador.
Esse é um tema sobre o qual as ciências sociais pouco se debruçavam ou pronunciavam-se até as últimas décadas. Por diversas razões, que não cabe aprofundá-las nesta apresentação, houve um afastamento de problemáticas desse campo por terem sido apropriadas e evidenciadas a partir de concepções por demais individualistas e organicistas, levando-as a serem quase monopólios de ramos da psiquiatria e da psicologia, menos abertos à s dimensões socioculturais do ser humano. Em paralelo, no terreno das ciências sociais, conceitos tradicionalmente utilizados para tratar do coletivo - por exemplo, classe econômica, identidade social e sindicato - foram por longo tempo considerados distantes da questão contemporânea do sujeito. Grosso modo, ou se falava de grupos sociais ou se falava de processos de subjetivação e experiências do sujeito nos círculos internos das próprias ciências sociais.
Contudo, o tema nada lhes é estranho, pelo contrário. O estudo clássico sobre o suicídio de Émile Durkheim (1897) é um dos pilares fundantes da sociologia, tendo possibilitado ao campo de investigação sociológica se tornar indispensável na contribuição ao entendimento da Modernidade. Dentre vários pontos importantes, que evidenciam a atualidade desta obra, está a problematização sobre as formas de integração social nas sociedades ditas complexas e de trabalho especializado, conjugando-as com a qualidade dos vínculos psicoafetivos entre os indivíduos e contextualizando-as em cenários políticos, econômicos, culturais e históricos específicos.
Karl Marx (1846) também se interessou pelo suicídio e escreveu um ensaio a respeito, tecendo articulações entre a vida privada, as relações perpetuadas do passado e aquelas constituídas na sociedade capitalista: Sobre o suicídio. Em linhas gerais, para Marx, o suicídio aponta para a necessidade de transformação radical de um sistema que oprime em sua totalidade - nas questões da economia e da política, nos costumes, nas instituições e no mal-estar provocado nas pessoas. As contradições do modo de existir capitalista não se apresentariam apenas na exploração entre classes sociais, mas em todos os círculos e configurações de convivência cotidiana, assolando o ser humano por completo.
Desde a fundação da sociologia, portanto, interrogamo-nos sobre as formas de vida e suas possibilidades de readaptação e reinvenção nos agrupamentos sociais modernos; as condições de seus membros sob a pressão da coerção e o jugo da dominação; sob a solidariedade da cooperação e a esperança de melhores dias com a revolução. Como, enfim, pensam, agem e sentem os seres humanos diante dos desafios existenciais nesses cenários sociais, à s vezes sucumbindo-se físico-emocionalmente; à s vezes, superando-se magistralmente em meio à s guerras e ao caos?
Entretanto, não se erigiu a ideia de “saúde mental” das sociedades no campo sociológico, o que equivaleria, abusiva e erroneamente, Ã elaboração de modelos prévios delas e para elas. Assim mesmo, as agendas das sociedades democráticas vêm se empenhando, desde o início do século XX, em negociar acordos e estabelecer metas pactuadas de normas e coações, como parâmetros referenciados ao bem-estar cognitivo e emocional geral e de cada povo.
A partir da década de 1970, com o levante das discussões sobre poder, liberdade, contracultura e lutas sociais, pesquisas reforçaram a relação entre saúde mental e sociedade, mostrando que esta e suas instituições, muitas vezes, mais adoecem seus integrantes que os protegem, além de que transtornos mentais não seriam meramente sintomas de doenças orgânicas cerebrais. A iniciante e efervescente crítica oriunda da antipsiquiatria estabeleceu uma nova área conceitual e teórica. O feminismo crescente denunciou opressões nos espaços públicos e nos sacrossantos lares, oferecendo novas palavras e matrizes interpretativas para designar sofrimentos que sequer tinham visibilidade e eram percebidos. As obras de Ronald David Laing, David G. Cooper, Thomas Szasz, Michel Foucault, Carl Rogers, Gregory Bateson, dentre outros(as), marcaram a abertura do diálogo entre ramos das ciências médicas, sociais e humanas, adensando-o por perspectivas políticas e exigindo práticas diversas de atenção e cuidado com a saúde mental.
Essas mudanças se espraiaram, assinalando dilemas que envolviam o adoecimento psíquico em ambiente laboral, doméstico, estudantil, hospitalar etc., chamando a atenção de pesquisadores(as) das ciências sociais para eles, especialmente após 1980. Afinal, a certeza dos anos anteriores de que as relações de trabalho constituíam a principal referência dos direitos e deveres, dos interesses de classes, dos modelos de família, dos estilos de vida e identidade entrou em crise, trazendo à tona novas categorias de análise e diminuindo o alcance do entendimento do trabalho na estruturação de posições, conflitos e mudanças sociais (Sorj, 2000). Isto é, a categoria considerada como universal na Modernidade - o indivíduo - foi implodida. Esta, referenciada pelo sexo masculino, em idade produtiva no sistema econômico burguês, branco e heterossexual, era generalizada a todos os grupos sociais. No entanto, outras categorias começaram a ser definidas a partir da experiência histórica e social pautadas pelas diferenças sexuais e raciais, por exemplo, estimulando o surgimento de linhas de estudo crítico sobre gênero e raça, especialmente no empenho de se desconstruir contextos patriarcais e racistas e de se mostrar articulações entre diferentes tipos de violência e o sofrimento físico-mental (Küchemann, Bandeira & Almeida, 2015).
Diante da introdução de dinâmicas contemporâneas do capital inseridas na rotina laboral com a automação, a globalização e a maior fragmentação dos processos de produção, montagem, distribuição e consumo de mercadorias e serviços, encontros entre novos saberes e realidades empíricas pouco próximos, até então, foram realizados. Concomitantemente, estudos na direção de se indicar haver a dimensão sociocultural nos fenômenos que parecem espontâneos desvelaram estratégias de poder que consistem em naturalizar as relações sociais, o corpo e as subjetividades no intento de mascarar as relações de dominação e desigualdade nelas subjacentes, o que evidenciou até mesmo ser o conhecimento científico permeado pelo poder (Harding, 1996). Enfim, esse quadro de mudanças proporcionou significativos avanços na produção sociológica, levando-a a maior amplitude temática.
No que toca à sociologia do trabalho e à sociologia clínica, estas ganharam particularidades oriundas das realidades dos países e continentes em que se constituíram, mas se assemelharam, com certa unidade, nas tentativas de oposição à s formas de gestão das empresas globalizantes e neoliberais, que tentaram reduzir o sofrimento psíquico a mais um comando de má administração individual diante da profusão de termos, como “Burnout” e “estafa”, em meio a um excesso de injunções contraditórias de ordem social, econômica e política. Por um lado, passou a ser exigido dos trabalhadores grande disponibilidade e comprometimento com o ofício, tendo de gerar bons resultados com menos recursos, menos tempo e em competição entre eles; por outro lado, lhes impuseram a convivência em equipe e o cultivo de uma boa imagem e uma boa convivência entre pares. O resultado desse cenário de dinâmicas sociais confusas e ambíguas destrói laços sociais e isola as pessoas, que se sentem culpabilizadas por suas ineficiências verificadas sempre de modo individual e aquém das expectativas, sendo limitadas em seus potenciais criativos e sentindo-se desmobilizadas em realizar resistências coletivas (Gaulejac & Hanique, 2015).
O fato é que se tornou cada vez mais difícil pertencer a um grupo ou a uma comunidade para se defender dos ataques do capital e das interpelações contemporâneas. Nas relações entre capital e trabalho, os trabalhadores se encontram em total solidão, desprotegidos pelas leis neoliberais que têm deixado de considerar os direitos gerais das categorias. Um crescimento do individualismo é observado por inúmeros pesquisadores. Sozinhos para melhor brilhar ou sozinhos quando demitidos ao serem substituídos por freelancers, máquinas ou não terem atingido metas - aliás inalcançáveis na maioria das vezes. A racionalidade do mundo do trabalho transbordou à vida cotidiana e desta também se nutre em um ciclo que se retroalimenta todo o tempo. A exigência imperativa de ser belo, ter sucesso e amigos em redes virtuais, onde se deve provar excelente desempenho com elevado número de seguidores e receber “curtidas” positivas, é escancarada e frenética O preço, enfim, é alto para grande parte das pessoas, que vive assombrada por pânico, medo, violência, baixa autoestima, angústia, ansiedade, depressão etc. nas diversas dimensões do viver.
Dentre destacados ensinamentos da sociologia clínica, há uma frase marcante: “os indivíduos são produtos de uma história da qual tentam se tornar sujeitos” (Gaulejac, 1987). Isto é, um sujeito é alguém que possui uma história coletiva, dentro de um contexto, uma realidade material e simbólica comum a muitos e, simultaneamente, possui uma história existencial que o singulariza. A articulação entre esses dois níveis precisa ser feita permanentemente, pois aí se coloca o tênue fio da saúde mental, onde o indivíduo tenta encontrar um frágil equilíbrio: construir -se autônomo e reconhecido em sua unicidade em meio ao peso do fluxo das interações e da solidez das arraigadas estruturas sociais. Logo, a compreensão do que faz adoecer e/ou morrer psiquicamente nos leva a buscar compreender as formas e os estímulos de cooperação, integração, socialização e luta por transformação socioeconômica, equidade e justiça social, assim como a nos empenhar a identificar e desvendar os sofisticados mecanismos de competição, isolamento, fragmentação, opressão e desumanização ora vigentes.
A baixa qualidade ética, sensível e compassiva dos vínculos sociais atuais acaba atingindo o direito básico do sujeito em simplesmente ser, afirmar-se em plenitude e dignidade nas relações e nos ambientes nos quais se insere. Por isso, várias correntes de pensamento mostram o que Eugène Enriquez (1992) analisa como “colonização da subjetividade”. Atualmente, ao invés de se tornar sujeito de sua própria história, a pessoa acaba adotando o ponto de vista dos outros, sendo altamente tutelada, engolindo determinações externas e individualizando mal-estares coletivos. Inseguro, acanhado, projetando-se em sua imagem virtual ou impondo-se agressivamente no cotidiano, deixa de reconhecer e conectar-se com o que sente, pensa e com suas condições concretas de vida, perdendo sua força vital de copresença e coconstrução da realidade.
Essa evidente relação entre saúde mental e pactos, dinâmicas e estruturas sociais é a porta de entrada do presente dossiê, que não se situa na linha de uma “sociologia da saúde”. Por diferentes abordagens epistêmicas, teóricas, metodológicas, conceituais, arranjos interdisciplinares e interinstitucionais, bem como visões macro e micro de fenômenos sociais, os e as renomados(as) autores(as) que o compõem tratam a referida relação a partir do vasto campo das ciências sociais. Isso implica, por um lado, em um esforço de não “sociologizar” ou “culturalizar” os saberes psi e, por outro, não “psicologizar” ou “psiquiatrializar” as ciências sociais. Mas, sim, estabelecer diálogo profícuo nesse entroncamento complexo e considerar sine qua non a gênese sociocultural e política dos problemas psíquicos e afetivos nos diversos panoramas ora apresentados pelos oito artigos. Estes se voltam para os seguintes subtemas no âmbito da saúde mental no Brasil e no exterior, levantando sofisticadas discussões acadêmicas e fazendo proposições originais para a superação de limites práticos, políticos, designativos, institucionais e de pensamentos sobre: juventude, suicídio, esquizofrenia, universidade pública, projetos de intervenção, gênero, raça, pobreza, colonialismo e interculturalismo.
É nessa ótica que o manuscrito em francês do professor Vincent de Gaulejac (professor emérito da Université Paris Diderot/França) e de Diane Laroche (professora da universidade Réseau Québécois pour la Pratique des Histoires de Vie (RQPHV), de Montreal/Canadá, e membro do Réseau International de Sociologie Clinique (Risc/Canadá) se situa: “Sociologie clinique et santé mentale”. Parte de uma pesquisa com intervenção realizada pelo projeto “Recuperação e projeto de vida”, desenvolvido junto a funcionários e residentes da Maison Saint-Dominique (Montréal/Canadá) como alternativa em saúde mental para ambos os grupos e sob orientação da sociologia clínica. A proposta, embasada em consistentes fundamentos teórico-metodológicos e longa experiência dos autores na área, visa mostrar a viabilidade de se realizar uma clínica da complexidade, a qual aposte na reinserção social dos pacientes, quando possível, e no entendimento de que saúde mental é um direito de cidadania, a partir de se garantir ao sujeito a capacidade de lidar com sua história familiar e trajetória social em um conjunto integrado de bem-estar físico e mental.
No outro artigo em língua francesa, “Sociologie clinique et psychanalyse intégrative”, Jean-Michel Fourcade (psicanalista e sociólogo membro do Réseau International de Sociologie Clinique) propõe uma reflexão instigante, na medida em que evidencia por intermédio de sua prática psicanalítica, clientes com perfis psíquicos muito mais próximos a traços borderlines que neuróticos, uma vez que supervalorizariam sua realidade interna e que teriam escassos espaços de troca com outros que representem marcadamente a alteridade. Cada época, com suas formas de socialização e contextos particulares, propiciaria o surgimento de personalidades específicas. Estas devem ser identificadas e analisadas para se avaliar possíveis repertórios de negociações sociais no seu horizonte pessoal de realização. Para tanto, elaborações de uma epistemologia da complexidade, a qual conta com diálogos com a sociologia e a estimula a se renovar, seriam de grande contribuição.
“A desesperança do jovem e o suicídio como solução”, texto de Maria Aparecida Penso (UCB) e Denise Pereira Alves de Sena (UCB), avalia a interdependência entre as complexas e frágeis injunções sociais contemporâneas, a construção identitária e subjetiva da juventude e o suicídio como alternativa a profundas dores emocionais, sendo um forte pedido de socorro dos jovens que necessita ser configurado e tratado enquanto fato social. Na argumentação tecida via perspectiva da sociologia clínica, são utilizados dados de uma rigorosa revisão bibliográfica e dados oficiais da Organização Mundial da Saúde e do Ministério da Saúde do Brasil sobre suicídio, em especial, percebido pelas autoras como um problema de saúde pública. Logo, as considerações finais apontam para que o assunto mereça atenção de políticas públicas mais efetivas e que impliquem no envolvimento da sociedade como um todo (indivíduo, família, comunidades, governo e instituições) no seu enfrentamento e prevenção.
Teresa Cristina Cordeiro Carreteiro (UFF), em “Reflexões sobre adolescências e a complexidade das comunidades de afeto no processo socioeducativo” traz à tona a adolescência brasileira no plural e aponta para sua fragilidade enquanto sujeito de direito, especialmente aqueles e aquelas adolescentes inseridos no sistema socioeducativo da Justiça. Com base teórica advinda da sociologia clínica e da psicossociologia, conforme os três artigos anteriores, defende que as intervenções institucionais judiciárias desenvolvam sensibilidade à escuta para a formulação de suas ações, em uma abordagem de clínica social. Aliada a essa conduta complexa, a Justiça deve ainda contar com as comunidades de afeto, que atuariam sempre em rede e de modo imbricado com a restituição da autonomia responsável aos e à s adolescentes desse sistema.
Ainda com um olhar voltado à juventude, só que deste grupo em relação à universidade, uma equipe interdisciplinar de professoras e pesquisadoras das engenharias, ciências sociais e humanas da Universidade de Brasília e da Université Sorbonne Paris Nord (França) assina o artigo “A passos largos: meninas da periferia rumo à universidade e seus dilemas psicossociais”. Tânia Mara Campos Almeida (UnB), Katia Tarouquella Brasil (UnB), Dianne Magalhães Viana (UnB), Simone Lisniowski (UnB) e Valérie Ganem (Université Sorbonne Paris Nord) discutem o subtema gênero e educação diante do projeto de extensão da UnB, “Meninas velozes”, direcionado a estimular o interesse de garotas da periferia do Distrito Federal pelas ciências exatas. Com o enfoque nas dimensões psicossociais e afetivas de várias de suas ex-integrantes, hoje graduandas da UnB, as autoras reuniram relatos que evidenciaram situações vividas de restrição material, dificuldade com conteúdo, assédios e conflitos externos e pessoais, os quais ameaçam sua permanência e integração ao ambiente universitário, bem como ameaçam diretamente sua integridade mental. Os resultados apresentados, portanto, não só visam conhecer a realidade dessas jovens pioneiras em suas famílias e comunidades no adentrar o ensino superior como também visam contribuir com futuras políticas para a democratização da universidade pública no país.
Soma-se à problematização do tema do dossiê no círculo universitário, o artigo escrito em coautoria entre José Jorge de Carvalho (UnB), Makota Kidoiale (UFMG), Emílio Nolasco de Carvalho (UFF) e Samira Lima da Costa (UFRJ), “Sofrimento psíquico na universidade, psicossociologia e Encontro de saberes”. Destaca-se a originalidade da participação nesse texto de Makota Kidoiale, líder religiosa do Candomblé Angola e representante do quilombo Manzo Nzungo Kaiango (MG), também docente do pioneiro projeto no país, Encontro de saberes, germinado na UnB em 2010, multiplicado em várias universidades e iniciado em 2016 na UFMG, onde Kidoiale atua diretamente. Em diálogo interdisciplinar, interinstitucional e intercultural, os autores discutem o sofrimento mental e a vulnerabilidade ao adoecimento dessa ordem entre os acadêmicos no país, motivados inicialmente por cartas que trocaram a respeito. À medida que tecem seus argumentos, nesse entroncamento de conhecimentos, propõem maior abertura para o próprio Encontro de saberes nas universidades federais, viabilizando a inclusão de mestres e mestras tradicionais na condição de docentes, bem como propondo uma reconfiguração das ciências sociais enquanto área transdisciplinar e pluristêmica capaz, portanto, de dialogar com os sistemas terapêuticos desses saberes, ampliando suas matrizes de compreensão dos fenômenos socioculturais e, dentre eles, do crescente adoecimento mental.
Em sequência ao interesse pelo campo epistêmico do artigo anterior, apresentamos “O mal-estar na representação: autoidentidade, esquizofrenia e a teatralidade do mundo social”, uma sofisticada elaboração teórico-conceitual de Gabriel Peters (UFPE), que integra um alargado programa investigativo, “heurística da insanidade”. Em linhas gerais, mostra resultados de seu estudo sobre a capacidade analítica de ferramentas sociológicas na compreensão da esquizofrenia e, simultaneamente, revela ganhos à teoria social, em especial no que se refere à s concepções de agência, experiência e subjetividade. Nesse percurso, o autor revisita a sociologia dramatúrgica sobre a relação self-sociedade, servindo-se também da literatura psiquiátrica acerca de perturbações “esquizoides” na ordem da autoidentidade, do senso de si e do vínculo entre sujeito e mundo. As considerações finais levam o(a) leitor(a) a questionar como as visões dramatúrgicas da subjetividade criticam o pressuposto de que haveria um “eu” estável e distinto dos papéis sociais cotidianos, o que engessaria o potencial criativo e livre do sujeito, enquanto as vivências esquizofrênicas concretizam existencialmente essa dissolução do “eu”, sendo consideradas formas de adoecimento mental e inviabilizando o sujeito nas suas interações consigo mesmo e com o outro.
Por fim e em perspectiva macroanalítica, “Suicídio e violência estrutural. Revisão sistemática de uma correlação marcada pelo colonialismo”, dos três autores da Universidade de Coimbra (Portugal), Isabel Weber, Cristiano Gianolla e Luciana Sotero, empenha-se em definir um marco teórico para o estudo do suicídio enquanto fenômeno social que reflete a imposição colonialista e que permite nomeá-lo como “patologia do poder”. Ao seguir a metodologia Prisma e a extensa revisão bibliográfica ora realizada, o trabalho discute comparativamente os dados quantitativos sobre mortalidade disponibilizados pelo Institute for Health Metrics and Evaluation (IHME), o que leva à interessante conclusão: os grupos sociais que apresentam maior risco de casos de morte intencional são aqueles mais diretamente afetados pela assimetria de poder oriunda de relações estabelecidas pelo colonialismo, mesmo em países com alta renda.
Esperamos que este conjunto de artigos seja bem aproveitado pelo público leitor, no país e no exterior, e que contribua para futuros estudos, reflexões e ações a respeito de questões afeitas à saúde mental. Em particular, esperamos que siga o avanço do campo das ciências sociais enquanto importante referência consolidada para diálogos e revisões em diversas direções e com diversos saberes, como esta pequena amostra revela.
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Citas
GAULEJAC, Vincent de; et HANIQUE, Fabienne. Le capitalisme paradoxant. Paris: Les Éditions du Seuil, 2015. [ Links ]
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