Dossiê | Pesquisa narrativa no fazer ordinário da docência: múltiplas perspectivas
A trama narrativa urdida no cotidiano da docência
La trama narrativa tejida en la rutina docente
The narrative plot woven in the teaching routine
Maria Helena Menna Barreto Abrahão, Maria Amália de Almeida Cunha
Apresentação
Este Dossiê busca refletir acerca da presença da pesquisa narrativa na vivência do ordinário da docência, tendo em vista justamente entendermos que, ao trabalharmos com formação de professores, operamos com narrativas reflexionadas de si, na dimensão pessoal estendida ao social do fazer docente. Nossas lembranças, nossa memória, nossa capacidade de relatabilidade do mundo vivido transformam-se em disposições no espaço da docência, voltadas para a transmutabilidade da palavra, da ação, da escrita, do gesto. A palavra, a ação, a escrita, o gesto expressam-se em narrativas de si, construtoras do sujeito da docência, o sujeito que, ao se narrar reflexivamente, narra-se para outrem, dele diferente. Esse é, pois, um movimento que se dá na alteridade exigente de um eu e um outro, em diálogo. Assim, é mediante a trama narrativa produzida em alteridade que se constrói uma identidade narrativa gestada na dialética do si mesmo, constitutivo da identidade pessoal e o outro, instituinte da alteridade do si. Essa trama entrelaça, em uma intriga discursiva, elementos concordantes/discordantes que dão sentido ao vivido, para o narrador e para o outro, ao urdir os fatos e relacioná-los ao contexto sociopolítico, cultural e profissional vivenciado. Essa trama também emerge mediante um constructo tridimensional, em que passado, presente e futuro se vinculam, no sentido de que o caráter temporal da experiência do sujeito, tanto na perspectiva pessoal, quanto social, igualmente articula-se pela narrativa autobiográfica. Com esse entendimento, este Dossiê busca refletir sobre a polissemia da trama narrativa tecida no cotidiano da docência, urdida pelos sujeitos no tempo quando, por meio de recordações-referências, pensam sua vida mediante um rito de passagem, e sobre memoriais de formação e acadêmicos, para aqueles sujeitos que concebem e planejam suas práticas profissionais mobilizando as diferentes formas de relatar e narrar o mundo que os habita.
É nessa moldura que os artigos se encontram configurados, de tal modo que leitores e leitoras encontrarão nesses textos diferenciadas possibilidades de compreensão da narratividade autobiográfica gestada por meio de práticas da docência – na qualidade de professores-formadores e na situação de alunos desses professores – em momentos de aprendizagens compartilhadas de si e do outro. Assim, os textos apresentam possibilidades diferenciadas de formação no âmbito da docência que operam com variados veios da pesquisa-formação – construção de memoriais pessoais, memoriais acadêmicos, memoriais de formação, histórias de vida, narrativas de vida, autobiografias – operados, igualmente, por diferentes veios do Método (Auto)biográfico, trabalhados com metodologias como História de Vida, Seminário de Pesquisa-Formação, Oficinas Biográficas, Ateliês Biográficos de Projeto, Pesquisa-Narrativa. Essas possibilidades, teóricas e práticas, podem ser observadas pela epistemologia teórico-metodológica que os diferentes artigos resumidos apresentam. Esses resumos auxiliarão o leitor a escolher a ordem e o momento para lerem os artigos que compõem o Dossiê.
Cunha (2023) toma como objeto heurístico a análise de um memorial acadêmico para fins de progressão na carreira, uma vez que o memorial pode ser considerado um gênero narrativo que se materializa em uma escrita autobiográfica. A autora mobiliza a Sociologia para compreender esse gênero de escrita ao operacionalizar categorias como rito de passagem e ritos de consagração.
Segue-se o texto de Abrahão (2023), no qual a autora tematiza constructos como biografização e heterobiografização voltados à elaboração memorialística entendida como movimento construtor de uma personagem auto(hetero)biográfica. Esse processo narrativo é exigente de reflexão do narrador e do ouvinte em razão de que a intriga narrativa não ocorre, de parte do narrador, sem a intencionalidade de narrar de si para si e para o outro, diferente de si – ouvinte ou leitor –, movimento que se dá, em alteridade, no âmbito do circuito narrativo, no seio da formação docente.
A seguir, Breton (2023) apresenta um estudo no qual teorias da narrativa e práticas associadas são interrogadas por meio de uma perspectiva fenomenológica e hermenêutica e, posteriormente, situadas como uma corrente contemporânea na formação de adultos.
Na sequência, Bernard (2023) explora, em seu artigo, exemplos do uso de formas de trabalho com histórias de vida na Pedagogia com o objetivo de compartilhar práticas e contribuir para o conhecimento construído mediante uma dessas ferramentas na formação em ambiente universitário. Inicialmente, apresenta uma visão geral do que caracteriza as histórias de vida na Educação e, mais particularmente, na formação ou na pesquisa-ação-formação. Segue-se a descrição de três atividades educativas mobilizadas em uma universidade de Quebec, no Canadá, a partir de formas de histórias: histórias de autoapresentação, histórias de carreira e histórias de experiência.
Passeggi (2023) nos traz a contribuição dos estudos sobre os memoriais de formação, situados nas abordagens (auto)biográficas e caracterizados por estabelecerem a diferença entre dois níveis lógicos dos processos das escritas de si nessa modalidade de dispositivo pedagógico: narrar a experiência vivida e (re)trabalhar a experiência narrada, processos configurativos e reconfigurativos da narratividade de si.
Lechner (2023) debruça-se sobre oficinas biográficas como espaços e momentos de formação experiencial com relevância coletiva. A pesquisadora se baseia em experiência de dinamização de oficinas com grupos diversos em contextos de pesquisa e de formação, nas quais os participantes produzem textos autobiográficos sobre temas específicos a serem partilhados, em linha com a corrente das histórias de vida em formação e no horizonte de uma análise social crítica consciente da relevância cívica e política das experiências privadas de pessoas comuns em grupos de trabalho colaborativo e individualmente.
O texto a seguir, Santos e Souza (2023), trata dos memoriais na qualidade de escritas de si, do vivido e do experienciado, elaborados por diferentes profissionais, em processo de formação inicial ou continuada. Os princípios teórico-metodológicos que assentam essa escrita estão ancorados na pesquisa (auto)biográfica, a partir do dispositivo do memorial acadêmico como fonte de investigação sobre ser e tornar-se professor e pesquisador universitário.
Seguindo, Bragança (2023) reflete sobre a importância dos memoriais de formação como dispositivos teórico-metodológicos, em abordagens narrativas e (auto)biográficas de formação docente e de pesquisa em Educação. Toma, como fonte, registros autobiográficos da autora sobre a aproximação da escrita narrativa, bem como memoriais escritos por pesquisadoras e pesquisadores do Grupo Interinstitucional de Pesquisaformação-Polifonia. Em um diálogo hermenêutico, discute atravessamentos entre tempo e narrativa, conforme constituintes da escrita memorialística, a partir de fragmentos de memoriais escritos pelo grupo.
O texto que encerra o Dossiê foi escrito por Peres et al. (2023) e tratou da reflexão sobre a experiência de ser docente no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas (IFAM, Campus Coari), considerando o significado de ser docente e pesquisador no ensino técnico e tecnológico no complexo contexto do interior do Amazonas. Perseguindo princípios da Pesquisa Narrativa, no diálogo com a Pesquisa (Auto)Biográfica, os autores buscam, nos textos de campo, imagens e diários para identificar as principais dimensões que ampliam a reconhecida necessidade de “ser muitos”, o que possibilitou evidenciar as diferentes nuances do Desenvolvimento Profissional Docente.
Como as leitoras e os leitores deste Dossiê poderão perceber, a atual publicação só pôde vir à luz devido a um esforço conjunto das organizadoras com colegas que produziram os textos que narram suas pesquisas e os entendimentos elaborados mediante as diferentes discussões, análises e compreensões do valor heurístico e formativo da pesquisa (auto)biográfica, mais especificamente a voltada para a formação docente, seja de professores-pesquisadores, seja de alunos em formação, razão pela qual agradecemos a autores e autoras que desejaram se unir a nós nessa caminhada.
Recebido: 05.09.2023
Aceito: 27.09.2023
Publicado: 04.10.2023
DOI: https://doi.org/10.26512/lc29202350699
Referências
Abrahão, M. H. M. B. (2023). Biografização/heterobiografização: elaboração memorialística de uma personagem auto(hetero)biográfica em formação docente. Linhas Críticas, 29, e47664. https://doi.org/10.26512/lc29202347664
Bernard, M. C. (2023). Narrativas nas práticas pedagógicas no ambiente universitário. Linhas Críticas, 29, e48109. https://doi.org/10.26512/lc29202348109
Bragança, I. F. de S. (2023). Memoriais em contextos de formação e pesquisa: abordagens narrativas e (auto)biográficas. Linhas Críticas, 29, e47919. https://doi.org/10.26512/lc29202347919
Breton, H. (2023). História de vida, fatos temporais vividos e educação de adultos (Cunha, M. A. de A., tradutora). Linhas Críticas, 29, e47892. https://doi.org/10.26512/lc29202347892
Cunha, M. A. de A. (2023). A escrita do memorial acadêmico: ritual de passagem ou rito de consagração? Linhas Críticas, 29, e48012. https://doi.org/10.26512/lc29202348012
Lechner, E. (2023). Dimensões coletivas do trabalho biográfico como pesquisa-formação: oficinas biográficas em foco. Linhas Críticas, 29, e47346. https://doi.org/10.26512/lc29202347346
Passeggi, M. da C. (2023). Transformações das figuras de si e do outro na mediação biográfica. Linhas Críticas, 29, e48135. https://doi.org/10.26512/lc29202348135
Peres, C. A., Monteiro, F. M. de A., González-Monteagudo, J. (2023). Docência no Instituto Federal do Amazonas – aprendendo com as experiências. Linhas Críticas, 29, e47920. https://doi.org/10.26512/lc29202347920
Santos, S. R., & Souza, E. C. (2023). Geo(bio)travessias de professoras universitárias de contextos rurais: memoriais acadêmicos em diálogos. Linhas Críticas, 29, e47828. https://doi.org/10.26512/lc29202347828
Maria Helena Menna Barreto Abrahão
Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, RS, Brasil
https://orcid.org/0000-0002-1278-4098
Doutora em Ciências Humanas-Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1989). Pesquisadora Senior do CNPq. Integra o Quadro Docente Permanente do Programa de Pós-Graduação em Educação, da Universidade Federal de Pelotas. Líder do Grupo de Pesquisa “Profissionalização Docente e Identidade: narrativas singulares/plurais”. E-mail: abrahaomhmb@gmail.com
Maria Amália de Almeida Cunha
Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil
https://orcid.org/0000-0002-0233-3883
Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (2002). Professora titular da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais. Membro dos grupos de pesquisa Observatório Sociológico Família-Escola (OSFE) e Laboratório de Pesquisa em Experiências de Formação e Narrativas de Si (LAPENsi). E-mail: amalia.fae@gmail.com
Contribuição na elaboração do texto: as autoras contribuíram igualmente na elaboração do manuscrito.
Linhas Críticas | Periódico científico da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília, BrasilISSN eletrônico: 1981-0431 | ISSN: 1516-4896
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Referência completa (APA): Abrahão, M. H. M. B., & Cunha, M. A. de A. (2023). A trama narrativa urdida no cotidiano da docência. Linhas Críticas, 29, e51732. https://doi.org/10.26512/lc29202350699
Referência completa (ABNT): ABRAHÃO, M. H. M. B.; CUNHA, M. A. de A. A trama narrativa urdida no cotidiano da docência. Linhas Críticas, 29, e51732, 2023. DOI: https://doi.org/10.26512/lc29202350699
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