Dossiê | Escuta e participação nas pesquisas com (sobre) crianças
Os cotidianos familiar e escolar sob a perspectiva das crianças
La vida cotidiana familiar y escolar desde la perspectiva infantil
Family and school daily life from the perspective of children
Mayrhon José Abrantes Farias, Marciel Barcelos, Rodrigo Lema Del Rio Martins
Destaques
O ambiente familiar está atrelado às afetividades construídas por meio das interações e das brincadeiras.
Há uma noção de cotidiano escolar como conjunto de prescrições que normatizam a vida das crianças.
As crianças correlacionam as rotinas de casa e da escola como partes indissociáveis do cotidiano.
Resumo
A pesquisa compreende os sentidos atribuídos por 34 crianças de uma escola de Brasília aos seus cotidianos familiar e escolar, com aportes teórico-metodológicos da Sociologia do Cotidiano, da Sociologia da Infância e dos Estudos com o Cotidiano. A partir da observação participante, dos desenhos e das falas das crianças, foram produzidas e analisadas as categorias: cotidiano familiar, cotidiano escolar e interseção entre cotidianos familiar e escolar. Os resultados indicam que as interpretações infantis são concebidas dentro e fora da escola e transitam entre o mundo real e o imaginário, revelando afetos, tensões e idiossincrasias sobre as suas rotinas diárias.
Palavras-chave
Infâncias. Família. Educação. Cotidianos.
Recebido: 24.08.2023
Aceito: 19.10.2023
Publicado: 10.11.2023
DOI: https://doi.org/10.26512/lc29202350572
Introdução
Estudar o cotidiano, seja ele o familiar ou o escolar, exige refletir sobre as noções de espaço e de lugar, por serem contextos onde a vida infantil transita predominantemente. Para Pais (2003), espaço é uma categoria fundamental na análise da vida humana, levando em consideração que ele é transformado a partir das práticas de seus atores. Portanto, o espaço é permeado por diversas formas de interação e de construção de identidades, ensejos nos quais também são produzidas as culturas infantis (Pais, 2003). Nas culturas infantis, as crianças exercem com frequência uma capacidade de transver os espaços-tempos, modificando os lugares em que estão inseridas em espaços praticados, frutos das suas intencionalidades e da produção de sentidos atribuídos (Nunes et al., 2022).
Certeau (1994) discute os conceitos de lugar e de espaço, distinguindo-os. Lugar é uma rua, uma praça, um pátio. Já espaço está ligado aos usos e às apropriações que se fazem dos ambientes construídos, de modo a receber significado próprio pelo sujeito que habita, que transita, que vivencia tais lugares. Há um processo de simbolização do lugar, transformando-o em espaços.
Localizamos, na Sociologia da Infância (Corsaro, 2011; Sarmento, 2013) e na Sociologia do Cotidiano (Pais, 2003), caminhos potentes para refletir sobre o modo peculiar com que as crianças conferem sentidos e significados aos contextos de interação que costumam transitar, notadamente, os ambientes familiar e escolar. Identificamos, nos Estudos com o Cotidiano (Certeau, 1994), uma teoria complementar às citadas para analisar as relações que as crianças estabelecem com o mundo.
O principal desafio da Sociologia do Cotidiano, segundo Pais (2003, p. 31), é “[...] revelar a vida social na textura da ‘aparente’ rotina de todos os dias, como imagem latente de uma película fotográfica”. Para o autor, o cotidiano é mais do que a rotina, é “[...] o que no dia a dia se passa quando nada se parece passar” (Pais, 2003, p. 28).
Sobre o cotidiano familiar, parte-se da premissa de que os conceitos atribuídos à família ao longo do tempo decorreram de processos políticos, econômicos e culturais, não sendo compreendidos por postulados biológicos (Müller, 2014). Por esse ângulo, ressalta-se que as crianças constroem suas diferentes representações sobre o mundo com referências obtidas no seio familiar, sobretudo em bases patriarcais (Müller, 2014).
A Sociologia da Infância tem se configurado como um campo de conhecimento que problematiza a relação das crianças em diferentes contextos, como no seio familiar e escolar. A concepção que guia essas problematizações defende um olhar sensível às produções das crianças e às suas formas singulares de comunicação, valorizando as suas capacidades inventivas, autorais e simbólicas e suas práticas culturais, no sentido de superar o habitual olhar adultocêntrico, que concebem esses sujeitos como incapazes, subalternos e, portanto, coadjuvantes nos processos de socialização (Sarmento, 2013, Rosemberg, 1976).
Alinhamo-nos a esses postulados provenientes da Sociologia da Infância, da Sociologia do Cotidiano e dos Estudos com o Cotidiano, entendendo os contextos familiar e escolar como lócus de aprendizagens de práticas e saberes, mas, também, como um campo de confrontações, que, nas culturas infantis, em certa medida, decorrem das relações estabelecidas em espaços-tempos institucionais dos adultos. Nesse sentido, é imperativo entender que as crianças não precisam ser compreendidas tão somente nos rastros das culturas dos adultos, uma vez que dispõem de particularidades decorrentes de interações e dos compartilhamentos da cultura de pares (Corsaro, 2011)1.
Com base nisso, o presente artigo tem como objetivo compreender os sentidos atribuídos por crianças de uma unidade de ensino no Distrito Federal aos seus cotidianos escolar e familiar, a partir de produções imagéticas e discursivas delas próprias.
Delineamentos metodológicos
A pesquisa possui natureza qualitativa, alicerçada por um trabalho de campo realizado em um Centro de Atenção Integral à Criança e ao Adolescente (CAIC) de Sobradinho II, região administrativa do Distrito Federal.
Foram utilizadas como técnicas de pesquisa: a observação participante sistematizada em um diário de campo, a produção de desenhos temáticos e conversas com as crianças. Neste artigo, as narrativas orais e imagéticas produzidas foram organizadas em formato de episódios recortados da realidade para evidenciar os diálogos e as imagens produzidas pelas crianças.
O estudo é ancorado por perspectivas teórico-metodológicas que valorizam a percepção dos sujeitos e de suas impressões acerca do mundo, realizando uma espécie de escavação da vida cotidiana, própria da Sociologia do Cotidiano (Pais, 2003). Para tanto, apoiamo-nos em recortes pormenorizados do cotidiano (Snapshots), baseados na ideia de pequenos retratos ou excertos da vida social (Pais, 2003). Considerou-se, também, a Sociologia da Infância (Corsaro, 2011; Sarmento, 2013) e os Estudos com o Cotidiano (Certeau, 1994), pelo reconhecimento das produções socioculturais e das interpretações das crianças na busca dos significados sob o ponto de vista infantil atribuídos ao cotidiano.
Os procedimentos de escavação do cotidiano foram realizados com 34 crianças2 do 4º ano da referida escola, sendo 19 meninas e 15 meninos, com a faixa-etária entre 9 e 12 anos3. A escolha do respectivo grupo ocorreu em uma etapa preliminar da pesquisa, de caráter exploratório, em que observamos as rotinas das crianças nos diversos tempos-espaços escolares e identificamos particularidades das interações entre elas.
Considerando suas relações sociais, que emergem dos diferentes espaços vivenciados pelas crianças, tais como escola, família e religião (Santos et al., 2017), as receptividades por parte das crianças nessa imersão preliminar no campo foram decisivas para a delimitação dos participantes do estudo.
Como forma de preservar as identidades das crianças, pedimos a elas que escolhessem um nome fictício para que fossem identificadas nos registros de campo. Na maioria dos casos, os nomes designados se inspiraram em personagens da TV, internet, artistas, atletas etc. Esse processo, por si só, já apresentou ricas informações acerca das leituras das crianças sobre o cotidiano.
A produção imagética ocorreu a partir do tema gerador: “Meu cotidiano é assim...”. Seguindo orientações de Gobbi (2014), após a produção dos desenhos, as crianças foram convidadas para uma conversa individualizada. Com isso, notamos uma maior liberdade nas falas de apresentação de cada uma, situação que, em grupo, poderia não ocorrer por conta de eventuais constrangimentos. Os desenhos e as falas a respeito das produções colaboraram decisivamente no amadurecimento das categorias analíticas, uma vez que endossaram particularidades e, em algumas situações, similaridades dos cotidianos familiar e escolar representados.
Compreendemos os relatos orais e os desenhos na qualidade de narrativas, como registros articulados dos fios das memorias das crianças, não nos restringindo à fala, aos traços, às formas e às cores isoladamente. As narrativas configuram uma complexa rede de sentidos produzidos e atribuídos aos seus cotidianos, que, por meio da imagem produzida e dialogada, ganham contornos narrativos de suas histórias e percepções (Gobbi, 2014).
A interpretação dos dados entrecruzou as informações obtidas no campo com a literatura proposta. Dessa maneira, foi possível produzir a posteriori três categorias de análise: o cotidiano familiar (narrativas em que o cotidiano apresenta como sentido de ser aquilo que ocorre nos bairros, nas casas e nos espaços de convivência das crianças); cotidiano escolar (narrativas que dão visibilidade às vivências na instituição formal de ensino que frequentam, relacionando-as como cotidiano); e as interseções entre o cotidiano familiar e escolar (narrativas que evidenciam como os sentidos atribuídos ao cotidiano estão alocados entre o convívio familiar e escolar).
O cotidiano familiar
No processo de exame dos dados, percebemos que parte das narrativas delineou o cotidiano familiar das crianças. Identificamos quinze registros no total sobre essa categoria. Em uma delas, Lucas (10 anos) destaca:
Desenhei minha casa e minha rua [...]. Lá acontece briga, mentira, brincadeira. A gente fica brincando de bola... Tem muita violência [...]. Tem uma menina lá que é chata, porque joga futebol pra cacete, mas não quer jogar. Ela diz que nós somos chatos, porque, quando a gente chega, os outros xingam ela.
Lucas narra acontecimentos que extrapolam o ambiente domiciliar e que dispõem de roteiros de conflito, abrangendo interações com seus colegas da rua, brigas, xingamentos e mentiras, tendo como lente de exposição a brincadeira, em que o garoto modula parte de suas relações sociais.
Como exemplo, ele citou os episódios dos jogos de futebol na sua rua, em que uma menina chata se destaca pelo talento com a bola nos pés. O fato de ser boa no futebol fez com que a garota transgredisse os limites sociais de ser menina, reconhecidos e compartilhados pelos meninos na rua, causando-lhes desconfortos que, aparentemente, geram os insultos à garota.
O fato de a garota chata se recusar a jogar futebol com Lucas e seus amigos revela que, diferentemente do ambiente escolar, em que há uma predominância da vontade do adulto sobre as crianças, determinando como, onde, quando e com quem brincar, no contexto familiar (neste caso representado pela vivência na rua de seu bairro), a expressão do desejo infantil se manifesta de forma mais livre, já que as crianças possuem seus próprios critérios para escolherem do que e com quem brincar (Finco, 2004).
Identificamos, nessa produção articulada entre oralidade e imagem, que há uma apropriação de Lucas sobre o lugar denominado rua, no qual parece refletir aquilo que, na sua compreensão, representa ser o seu cotidiano. A rua passa a ser compreendida como espaço de um tipo de interação com os pares (Corsaro, 2011), que nem sempre se estabelece de forma harmoniosa, refletindo, em certa medida, traços de comportamentos violentos praticados por adultos do bairro em que reside. Podemos dizer que há uma espécie de reprodução interpretativa do mundo adulto em sua forma de conceber o cotidiano (Corsaro, 2011).
Na esteira das discussões acerca das tensões e dos conflitos que cercam o cotidiano infantil, apresentam-se as narrativas de Messi (12 anos):
[...] Meu cotidiano é tá com minha família no meu barraco, na minha rua [...]. De bom tem o futebol, pipa e mais várias coisas. De ruim tem ladrão, cara metendo bala lá perto. Lá tem tráfico de drogas. É muito violento. Um dia que eu tava com meu pai no mercado e do nada rolou uns tiros e o cara correndo lá com a arma [...] a gente se esconde em casa.
Figura 1
Desenho de Messi (12 anos), tema “O meu cotidiano é assim...”
Fonte: dados da pesquisa.
Messi ressalta aquilo que marca o seu cotidiano, no caso a violência urbana e as brincadeiras populares. Sarmento (2013) afirma que as crianças não estão alheias às culturas societadas do mundo adulto, mas as experimentam de forma diferente, por dentro de sua cultura, estruturando formas e conteúdos próprios em comparação aqueles praticados pelos adultos. O registro imagético reforça esse entendimento ao destacar a brincadeira (pipa) na encruzilhada com a violência urbana, ambas coexistindo e ressignificando o lugar (Certeau, 1994) onde Messi vive.
Sublinhamos outras narrativas que mobilizam os processos do brincar no ambiente familiar. Paolo (9 anos) destaca que: “Sobre o meu cotidiano, desenhei eu soltando pipa em casa. [...] Desenhei porque é o que acontece no meu cotidiano. Eu brinco lá no terreno atrás da minha casa, porque meu avô não gosta de me ver na rua”.
Fábio (10 anos), associando também seu cotidiano ao brincar de pipa, compartilhou: “Meu cotidiano é colocar a pipa no ar com meu irmão e os ‘menor’ lá da rua. [...] Só empino com linha pura, porque com chilena4 minha mãe não deixa, porque corta pescoço [...]”.
Mc W. M. (10 anos), por sua vez, informou:
Meu cotidiano é brincar lá em casa, [...] levanto pipa direto. [...] Fico lá de boa em casa só cortando os patos e bem longe dos vagabundos [...] o bom de brincar em casa é que a gente fica protegido. Lá na rua tem muito tráfico e eu gosto de brincar de boa [...].
As impressões apresentadas por essas crianças revelam partes de um quebra-cabeça que são os cotidianos que cercam seus lares. São fragmentos de realidade que sugerem enquadramentos da vida social (Pais, 2003) presentes nas comunidades, que são marcadas por problemas comuns de periferias de todo Brasil, dentre os quais o da violência. Nesse sentido, o movimento de apropriação das brincadeiras é atravessado pela violência urbana, como observa-se na narrativa de Mc W. M.: “[...] só empino com linha pura, porque com chilena minha mãe não deixa, porque corta pescoço”.
Percebemos como o cotidiano familiar, materializado pela relação direta com o brincar na rua, é um espaço de reinvenção das culturas de pares (Corsaro, 2011), que são influenciadas não só pelas tensões existentes nos lugares que as crianças transitam/habitam, mas também pela racionalidade construída pela família, que vai ajudando a configurar as práticas dos infantis e o entendimento das consequências de suas decisões.
Cabe sublinhar que o cotidiano familiar também é representado nas produções como proteção ao meio externo, um acalanto para os problemas que ocorrem fora do lar. Nessa direção e incorporando outras questões, Dani Martinez (9 anos) enfatizou a importância do refúgio familiar e realçou os compartimentos e as principais características de sua casa, como percebe-se nas narrativas a seguir:
Fiz minha casa, o cantinho meu e da minha família [...] eles são tudo pra mim [...] me sinto protegida quando tô lá [...]. Aqui tem meu quarto, o banheiro lá de casa, o quarto dos meus irmãos e o quarto da minha mãe, a sala de casa, foi que eu tentei representar... ah! a cozinha e o fogão onde minha mãe faz comidinhas gostosas... hum!
Figura 2
Desenho de Dani Martinez (9 anos), tema “O meu cotidiano é assim...”
Fonte: dados da pesquisa.
Segundo Sarti (2004, p. 17), a família “[...] é o filtro através do qual se começa a ver e a significar o mundo. Esse processo que se inicia ao nascer e estende-se ao longo de toda a vida, a partir dos diferentes lugares que se ocupa na família”. Desse modo, o sentido atribuído à noção de lar é relacionado com cada membro de sua família, suas características e afetos. Ademais, Dani Martinez expôs outros aspectos: “Eu desenhei minha casa porque eu quis, sabe?! É o lugar que eu vivo, mas eu acho cotidiano uma coisa maior [...] tipo uma cidade, cheia de carros, ponte, essas coisas”. Indo ao encontro das considerações de Dani acerca do cotidiano como uma “cidade”, identificaram-se os registros de Ivete (10 anos), Helena (10 anos) e Emanuele (10 anos).
Ivete narrou a sua compreensão assim:
Desenhei um prédio, uma casa que é a minha e um mercado, porque eu acho que é uma cidade [...]. Imagino que cotidiano seja um monte casas, ruas. O lugar que a gente faz tudo e tem muito movimento e a gente vive com nossa família.
Helena, por sua vez, comentou:
Eu desenhei uma cidade, com prédios, mercados, carros, é assim onde eu moro [...]. Moro em um prédio, no último andar, com minha mãe e minha tia, e dá pra ver todo o movimento de cima. [...]. Acho o cotidiano uma cidade porque onde lá em casa fica no meio da cidade [...]. Lá tem prédios, tem árvores, tem mercados, alegria e um monte de gente [...].
Sob uma perspectiva parecida com a de Helena, Emanuele (9 anos) considerou o cotidiano como: “[...] uma cidade. Tem casas, prédios, ônibus, matos [...]”, conforme observa-se na figura a seguir:
Figura 3
Desenho de Emanuele (9 anos), tema “O meu cotidiano é assim...”
Fonte: dados da pesquisa.
Além da descrição do desenho, Emanuele expôs: “Eu acho que cidade tem muito trânsito, loucura, gente atrasada, correria [...]. Às vezes eu acho que aqui nem é cidade, porque aqui é pequeno [...], meio pobrezinho, sei lá!”.
As crianças apresentaram uma visão parcial do que seja cidade, influenciadas pelo fato de vivenciarem tais espaços de forma fragmentada, sendo a família a principal instituição responsável pelas oportunidades de conhecimento e de experiências que geram tais impressões. Araújo (2018) problematiza a relação das crianças com a noção de cidade, destacando que essa é uma construção lastreada pela referência que elas têm a partir das permissões dos adultos. Essas permissões, por sua vez, levam em consideração a responsabilidade dos adultos em garantir aos filhos proteção.
Sob um outro ponto de vista, ressaltando impressões contemplativas à natureza e às paisagens dos ambientes familiares, encontramos as produções de Mohana (9 anos) e Estefany (9 anos). Mohana relatou:
Fiz eu na minha casa [...]. Aqui atrás são as montanhas de Sobradinho, cotidiano pra mim é isso, o que vivo todo dia. Minha casa, a paisagem [...]. Tais compreensões convergem com a fala de Estefany, que comentou: Desenhei eu lá na casa do meu vô [...], eu moro pertinho da casa dele. Lá é uma chácara [...], quando a gente acorda é muito lindo [...]. Se dependesse de mim, a gente nunca saía a de lá. Lá tem os animais que ele cria... galinha, cachorro e gato [...].
Com um ponto de vista que destoa das impressões de Mohana e Estefany, Mariana (10 anos) também narrou suas experiências na chácara de seu avô. Diferentemente das colegas, a garota não demonstrou tanto prazer em conviver no cenário apresentado em seu desenho, ilustrado na figura a seguir:
Fiz aqui a chácara do meu avô. Lá só tem esse passarinho que esqueci o nome e a rede e todas as frutas menos duas que são horríveis. Toda vez que eu vou na casa dele, é muito chato [...]. Em seguida, completou: Desenhei a chácara, mas eu odeio lá [...].
Figura 4
Desenho de Mariana (10 anos), tema “O meu cotidiano é assim...”
Fonte: dados da pesquisa.
No entrelaçamento das narrativas orais e imagéticas das crianças sobre os seus cotidianos associados ao contexto familiar, percebemos que estão representados a partir da noção de espaço urbano e/ou rural, valorando positiva ou negativamente as vivências que lá empreendem. Os sentidos atribuídos ao cotidiano familiar destacam as diferentes experiências e contextos familiares e seu impacto na representação social individual delas (Pais, 2003).
As narrativas em tela sublinham formas específicas de compreender o cotidiano a partir dos lugares em que se vive, destacando o universo de formas de expressão do seu pensamento (Santos et al., 2017). As vivências tecidas no cotidiano vão sendo ressignificadas e transformadas em espaços, de maneira que o cenário (ruas, casas, montanhas, paisagens e natureza) e outros sujeitos que fazem parte da vida (mãe, avô, galinha, cachorro e gato) impactam nos modos peculiares de conviver e de praticar esses espaços (Certeau, 1994).
Concluindo essa categoria de análise, trazemos as narrativas de Ana Beatriz (9 anos) e de Silmara (10 anos), que apresentaram sentidos distintos das outras crianças em relação ao que consideram como cotidiano.
Eu gosto de ficar em cima da árvore da minha casa brincando, porque dá pra ver a minha rua toda. Pra mim, cotidiano é ficar em cima da árvore [...]. Se fico em casa, minha mãe manda eu trabalhar e eu não gosto. Prefiro ficar de boa lá [...].
Figura 5
Desenho de Ana Beatriz (9 anos), tema “O meu cotidiano é assim...”
Fonte: dados da pesquisa.
Já Silmara informa que:
Cotidiano é meu dia a dia. Brincar, estudar e fazer as coisas em casa. Lavo louça, limpo a casa [...]. Desenhei brincar com minha irmã, porque é o que eu gosto, as outras coisas não gosto não. Brincando eu fico feliz [...].
O olhar estruturalista da Sociologia da Infância pontua que as crianças, na modernidade, deixaram de contribuir no orçamento familiar, passando a gerar despesas, sendo que isso, de certo modo, interferiu na legitimidade da vida social (Qvortrup, 2001). As atividades domésticas, nesse contexto, podem ser consideradas como subproduto dos procedimentos civilizatórios aos quais as crianças foram submetidas no decorrer da história da humanidade (Qvortrup, 2001).
A narrativa de Silmara evidencia um processo de reconhecimento das tarefas cotidianas da casa na contraposição com o oficio de criança (Sirota, 2001). A diferenciação atribuída entre crianças e adultos produziu níveis hierárquicos no núcleo familiar, bem como posições de autoridade. Tais mudanças repercutiram na designação de funções a serem desempenhadas pelas crianças e na sua relação com o tempo.
Por outro lado, Müller (2014) destaca que as crianças transformam os espaços criados pelos adultos para elas em lugares delas. A autora assinalou que: “Não há dúvidas de que as crianças entendem as suas casas a partir da combinação de aspectos físicos e de experiências com as pessoas com quem as compartilham” (Müller, 2014, p. 170-171).
Nesta categoria, percebemos que a compreensão do ambiente familiar por parte dos sujeitos está atrelada sobretudo às afetividades construídas por meio das interações e das brincadeiras, que não estão livres de tensões e de conflitos produzidos nos cotidianos vivenciados pelas crianças, como é o caso da violência na comunidade e da incumbência de tarefas domésticas como parte das rotinas. Há uma reprodução interpretativa (Corsaro, 2011) do mundo adulto no cotidiano experienciado pelas crianças.
O cotidiano escolar
Nesta categoria, examinamos as narrativas orais e imagéticas que retratam o cotidiano escolar. Começamos com as produções de Mc Lan (11 anos) sobre seu cotidiano na unidade de ensino lócus da pesquisa:
Fiz eu fazendo o dever. Eu tava fazendo um texto sobre a paz. Por isso que tem uma pomba. Todo meu cotidiano não é isso aqui, mas é quase. Eu faço muito dever na sala, não sei explicar, mas eu passo o dia quase todo fazendo dever [...]. Solto pipa, jogo bola só quando dá, porque o tempo é todo é só fazendo dever.
Figura 6
Desenho de Mc Lan (11 anos), tema “O meu cotidiano é assim...”
Fonte: dados da pesquisa.
As narrativas de Mc Lan apontam uma concepção de escola como espaço formal de exigências que se opõem ao ato de brincar. De maneira semelhante, Jack Chan (10 anos) acrescenta uma lógica desse espaço-tempo como sendo de preparação e de garantia para o sucesso no futuro:
Cotidiano é as coisas mais importantes. Estudar, comer, beber água [...]. Pra mim, estudar é o mais importante, porque se eu não estudasse quando crescer, não conseguiria arrumar emprego e me sustentar... ia ser nada.
Em seu desenho, Jack Chan apresenta sua sala de aula, organizada no formato de U:
Figura 7
Desenho de Jack Chan (10 anos), tema “O meu cotidiano é assim...”
Fonte: dados da pesquisa.
As narrativas de Mc Lan e Jack Chan se reportam a um conjunto de normativas e obrigações que regram as suas vidas dentro e fora da escola, entendidas por Sarmento (2013) como uma administração simbólica da infância. Tal perspectiva corrobora com Buckingham (2002, p. 19) quando aponta a escola como “[...] uma instituição social que constrói e define de forma eficaz o que significa ser criança [...]”, assim como administra boa parte do tempo da infância, modulando as culturas infantis.
Essa força que a escolarização assume na percepção das crianças como sendo o espaço de transformações social e que, para tanto, precisa ser permeada pelo ensinamento de textos, de conceitos, de fórmulas, de cálculos etc., em detrimento da vivência lúdica da corporeidade, está assentada na lógica adultocêntrica, que enxerga as crianças como um vir-a-ser e não com um ser que é (Sarmento, 2013).
As crianças são tomadas como futuros sujeitos e não como sujeitos do tempo presente. Depositam-se nelas expectativas do que um dia poderão ser, sob a ótica capitalista, desconsiderando as demandas típicas da categoria social e do tipo geracional a que pertencem: a infância (Sarmento, 2013). Confunde-se o ofício de aluno e o ofício de criança (Sirota, 2001), pelo qual primeiro as crianças estudam – cumprem sua tarefa institucional empenhada – e brincam no tempo que restar (Quinteiro, 2009).
Percebemos que a leitura também se configura como ação que traduz o entendimento do que é cotidiano escolar. Emily (9 anos) ressalta esse movimento em suas narrativas, conforme demonstrado a seguir: “Desenhei meu cotidiano. Eu lendo no banquinho do recreio do lado do parquinho. Eu adoro ler! Ler é a melhor parte do meu cotidiano [...]. Eu adorava ler com a minha amiga que foi embora”.
Figura 8
Desenho de Emily (9 anos), tema “O meu cotidiano é assim...”
Fonte: dados da pesquisa.
Já Dulce Maria reflete:
No meu desenho, fiz meu cotidiano, que é ler com minhas amigas na escola. Eu adoro ler e viajar pra outro lugar, pensar várias coisas que me tiram do lugar que eu tô, entende?! [...] Eu gosto de estar com minhas amigas, porque estar com elas deixa tudo na escola menos chato.
Ao contrário dos colegas mencionados nas narrativas anteriores, Emily e Dulce Maria não atribuíram sentido ao seu cotidiano escolar como obrigações, resguardando a escola como espaço de interações, de tensões e de transgressão das normatividades (Finco, 2004). Assim, destacamos que, por mais que as crianças sejam sujeitas a uma cultura hegemônica, elas dialogam com o mundo de forma atuante, em que a escola, como um lugar de transmissão da cultura adulta produzida historicamente, é transformada em espaço praticado por meio de um consumo produtivo dos bens culturais aos quais os infantis têm acesso, produzindo o seu cotidiano (Certeau, 1994).
Observamos, nas narrativas de Açucena (10 anos) e de Sub-zero (10 anos), a valorização das práticas corporais lúdicas como uma espécie de sinônimo de cotidiano:
Coloquei no desenho um menino e uma menina brincando juntos de bola. Coloquei coraçõezinhos, porque eles são melhores amigos. Pra mim, cotidiano é brincar na escola. Brinco com minhas amigas, converso com as professoras. É muito legal... não sei [...]. O cotidiano ia ser muito chato se a gente não pudesse se mexer, abraçar, conversar, brincar, sorrir [...]. (Açucena, 10 anos)
[...] Eu gosto de soltar pipa. É mó massa [...]. Fico ali na sala olhando as pipas lá no alto [...]. A tia tá falando lá um monte de coisa e eu doido pra chegar o recreio e brincar com meus amigos e ficar falando de pipa. A janela é grandona lá da sala e dá pra ver os ‘patin’ sendo cortados [...], às vezes dá até pra saber quando é amigo meu lá da rua subindo, pela cor da pipa. (Sub-Zero, 10 anos)
Turner (2014) ressalva que a sociologia que se preocupa com o corpo precisa se atentar para os afetos componentes da ação social. Com base nisso, compreende-se que, ao brincar, as crianças interagem lançando mão de emoções e de sentimentos que perpassam o corpo, embasando as vivências cotidianas.
A potência empregada nas relações sociais produzidas no contexto escolar e mediadas pelo corpo e pela ludicidade – portanto, pelo oficio de criança (Sirota, 2001) – são marcas que tensionam os sentidos atribuídos à escola e ao seu papel social. Se em narrativas anteriores a escola era o cotidiano e as crianças evidenciavam sua preocupação em ser alguém, as narrativas acima não indicam preocupações com o futuro, mas sim em atender suas demandas de crianças. Essa ação encontra convergência nas narrativas de Coringa (11 anos):
[...] eu bolado com a vida dentro da escola, com minha pipa esperando pra subir [...]. Gosto de brincar de pipa, porque eu me sinto livre. Aqui a gente fica preso, não preso de bandidagem, preso de não poder fazer o que quer [...]. O jeito é ficar, né? Se não ficar, a tia me dedura pra minha avó [...]. A escola é um lugar chato da gota serena [...], única coisa que presta é a aula de Educação Física quando tem bola [...].
Figura 9
Desenho de Coringa (11 anos), tema “O meu cotidiano é assim...”
Fonte: dados da pesquisa.
Sobre o imaginário que cerca a brincadeira de pipa e que se engendra na rotina escolar das crianças, identificou-se que são mobilizados significados que transitam entre a rotina cansativa da escola e a liberdade de levantar voo, proporcionando o prazer da brincadeira. Um fato curioso é que o apelo corporal de brincar de pipa revela traços da história pessoal dos brincantes, as parcerias, que, de certo modo, reverberam em suas leituras de cotidiano (Pais, 2003).
Para além disso, a relação estabelecida com o brincar e o fato do cotidiano escolar o afastar de sua demanda particular, conforme representado nas narrativas imagética e oral, coloca a Educação Física, componente curricular responsável pelo compartilhamento desse capital cultural imaterial da humanidade, como única aula que presta, aliada ao seu condicionante quando tem bola.
Muralha (10 anos) também se insere nesse movimento ao desenhar e narrar:
No desenho, coloquei o parquinho, o pátio aberto, o campo e a gente da turma tendo aula com o tio [de Educação Física]. A melhor parte do cotidiano é quando a gente brinca, corre, joga bola [...].
Figura 10
Desenho de Muralha (10 anos), tema “O meu cotidiano é assim...”
Fonte: dados da pesquisa.
Essas narrativas de Açucena, Sub-zero, Coringa e Muralha denotam a tensão que há entra a racionalidade escolar e o papel da Educação Física no currículo. Encontramos, nos escritos de Mello et al. (2014, p. 475), uma reflexão interessante acerca dessa relação:
A escola é o lugar da palavra, ou de outras formas de simbolização do mundo, do texto, dos saberes sistematizados, cujo modo de existência é a linguagem. Entretanto, a Educação Física privilegia o saber de domínio, que é encarnado a partir das experiências com as práticas sociocorporais, como a brincadeira e o jogo. Portanto, as crianças aprendem também quando se expressam corporalmente, uma vez que o movimento se relaciona com questões culturais, afetivas e sociais.
Chamamos a atenção para o fato de a compreensão de brincadeira por esses sujeitos estar associada quase que exclusivamente à alegria e ao prazer. Contudo, esse ponto precisa ser melhor problematizado nas aulas de Educação Física, pois não deixam de existir no ato de brincar processos de exclusões, de poder, de diferenças sociais, étnicas e de gênero. Sacristán (2005, p. 14) assinala que “[...] a infância construiu em parte o aluno, e este construiu parcialmente a infância”. Portanto, ao assumir a figura de aluno na escola, as crianças trazem a reboque uma série de condutas e de funções subjacentes advindas da sociedade em que vivem e que são marcadas por preconceitos que precisam ser superados.
Analisando de forma geral as impressões das crianças acerca dos seus cotidianos escolares, entende-se que os comportamentos desempenhados na escola por elas são produzidos, aprendidos e transformados nas culturas de pares (Corsaro, 2011) e, em alguma medida, por meio de intervenções da instituição. Por outro lado, percebemos que também há uma noção de cotidiano escolar como o conjunto de prescrições que normatizam a vida das crianças, produzindo a institucionalização da infância (Sarmento, 2013). Essa materialização do cotidiano escolar está assentada no ofício do aluno, pelo qual se deposita nas crianças uma série de expectativas sociais futuras, bem como limites e vias de transgressão.
Interseções entre o cotidiano familiar e escolar
Das produções analisadas, nove apresentaram suas compreensões acerca do cotidiano a partir de interseções entre o cotidiano familiar e escolar, abrangendo atividades de rotina, muitas vezes de maneira cronológica, como dormir, descansar, alimentar-se, ir à escola, estudar, ajudar nos serviços domésticos etc.
Algumas narrativas sinalizam a organização do tempo e das rotinas do dia/semana como sinônimo de seus cotidianos. Lady Pink (10 anos) relata: “Eu desenhei o que acontece no meu dia a dia, coisas que gosto e que eu não gosto [...]. Não gosto de ir pra escola e ficar lá com aquele povo chato [...]”.
A produção oral e imagética de Beyoncé (10 anos) está alinhada a essa compreensão:
Faço as coisas de casa, vou pra escola [...]. O que eu faço e o que eu gosto de fazer [...]. Eu também não gosto de tudo e odeio ter que ficar estudando, mas tenho que cuidar da mente igual eu cuido da minha pele [...]. Quando chego da escola, fico vendo coisas de beleza no Youtube [...]. Sempre me passo creme, eu sou vaidosa! Adoro mexer no celular, brincar [...]. Eu faço tudo: como, durmo, estudo, passo maquiagem.
Figura 11
Desenho de Beyoncé, tema “O meu cotidiano é assim...”
Fonte: dados da pesquisa.
Essas narrativas apresentam pontos em comum, dentre eles, a organização sistematizada dos afazeres diários e a relação tensa com o espaço escolar. Por outra vertente, destacamos um aspecto interessante acerca dos procedimentos estéticos e cuidados com o corpo enfatizados por Beyoncé. Essa narrativa, especificamente, trouxe à tona a discussão de fabricação do corpo na infância, que perpassa aspectos que vão desde a forma do corpo em si até comportamentos, gestos e atitudes. Reparamos que o nome fictício escolhido por essa criança já se constitui como uma pista sobre a sua relação com a estética e a preocupação com a aparência, tendo em vista ser a cantora Beyoncé, uma mulher reconhecida pela sua beleza e forma de se vestir peculiar, que acaba por influenciar muitos que admiram seu trabalho artístico. A cultura atua em padrões de comportamento das crianças desde seu nascimento e, por meio dos valores e dos costumes, vai inserindo um conjunto de significados no seu ambiente social (Almeida & Suassuna, 2010).
A partir das ideias de Almeida e Suassuna (2010), destacamos que o ambiente social – em nosso caso específico, o escolar e o familiar – é atravessado pelas influências oriundas da segunda década do século XXI, em que o aparato midiático ganhou novos contornos. Esse movimento é percebido também na narrativa de Mabel (10 anos):
No meu desenho, eu fiz o símbolo do Youtube, porque eu adoro internet [...]. Meu cotidiano é estudar na escola, brincar no celular em casa, só isso. Pra mim, cotidiano é o que a gente vive, nossa rotina chata [...]. Por isso adoro ficar no meu celular que minha mãe me deu com muita luta [...]. Mexo escondido no meio da aula [...].
Mabel evidencia o uso do aparelho celular e da internet como parte e como uma espécie de escape dos cotidianos escolar e familiar, os quais considera chato. Nesse bojo, as discussões em torno das mídias têm papel exponencial na compreensão da chamada infância midiatizada. Esse modelo de infância coloca as crianças como alvos da indústria de consumo, oferecendo subsídios para a problematização das formas de ser criança a partir das mídias, tal como em sua percepção e uso do tempo (Buckingham, 2002).
Embora haja diferentes estudos que provocam docentes sobre a necessidade de se apropriar do smartphone para potencializar os processos pedagógicos (Muller & Fantin, 2022) e, de maneira inversa, pesquisas que destacam as preocupações com o uso excessivo do celular (Amra et al., 2017), percebemos que, nesta categoria de análise, a sua mobilização pelas crianças assume como intenção promover a conexão entre os cotidianos escolar e familiar.
As narrativas de outras crianças, como as de Everton Ribeiro (10 anos), de Sofia (10 anos) e de Neymar (9 anos), caminham na mesma direção de valorização do uso de aparelhos tecnológicos (TV, smartphone, tablet e etc.) como representação de seus cotidianos familiar e escolar. Entretanto, eles fizeram questão de pontuar suas preferências em brincarem no ambiente residencial e terem momentos de lazer com os seus familiares.
Outras compreensões acerca dos cotidianos entre a família e a escola surgiram nas narrativas. A garota Bob Esponja (10 anos) produziu e comentou um desenho da seguinte maneira:
Desenhei sobre um bocado de coisa [...]. Cotidiano é tipo cumprir as obrigações, uma forma de obedecer à minha mãe, a tia na escola [...]. Eu faço tudo me mandam. Quer dizer... quase tudo.
Aqui, estou acordando de manhã, aí depois tomo café da manhã, depois estudo, assisto televisão, limpo a casa, vou pra escola, faço as coisas, vou pra casa e vou dormir. Quase tudo isso aqui faço mandada.
Figura 12
Desenho de Bob esponja (10 anos), tema “O meu cotidiano é assim...”
Fonte: dados da pesquisa.
Sobre essa relação unilateral na qual a mãe e a professora mandam, James e James (2008) salientam que faz parte da experiência de socialização das crianças respeitar a ordem hierárquica entre gerações. Aliás, é a partir dessa estrutura social adulta e de suas imperatividades que se dá contorno aos arranjos espaciais e temporais, bem como o planejamento dos cotidianos infantis (Ferreira, 2004). A noção de rotina desenhada é atravessada pela concepção adultocêntrica de cumprimento de tarefas. O cotidiano, por sua vez, é desvelado nas frestas entre o que se quer e o que se faz, conforme defende Finco (2004, p. 89) ao assegurar que as crianças, “[...] ao encontrarem espaço para a transgressão, vão além dos limites do que é pré-determinado” pelos adultos de sua convivência.
É importante ressaltar que, em algumas produções, as crianças retrataram cenas distintas no mesmo desenho para expressarem recortes específicos dentro dos cotidianos familiar e escolar. Esse movimento é percebido na subdivisão da folha do desenho em duas ou mais partes, permitindo que as crianças apresentassem mais de um sentido a partir da pergunta geradora desta pesquisa.
A narrativa de Johnny Cage (10 anos) divide em três partes a sua compreensão de cotidiano, nomeando-as como estudar, viver e passear com meu pai, de acordo com a Figura 13:
Não sei o que é cotidiano, mas eu acho que é isso. Eu gosto de estudar, caso contrário eu não ia ter um futuro melhor. Sem viver, eu não poderia estudar, não poderia ter educação. Acho que é isso né?
Eu gosto de passear com meu pai, porque eu me sinto livre quando fico na janela [...]. Ele me deixa ajudar ele no trabalho dele, descarregar o caminhão [...]. Meu pai tá na justiça, aí pode dar problemas, porque ele não dá as coisas pra mim.
Minha mãe é tudo pra mim. Ela que me ensina quase tudo [...]. Sem ela, nem teria cotidiano, eu acho.
Figura 13
Desenho de Johnny Cage (10 anos), tema “O meu cotidiano é assim...”
Fonte: dados da pesquisa.
As narrativas de Johnny Cage acerca do cotidiano sugerem uma discussão em torno dos processos identitários da infância contemporânea, em que a figura da criança é compartimentada em “[...] ser que brinca, aluno, filho, infantil, menor, consumidor” (Müller, 2014, p. 167).
Percebeu-se, no cotidiano retratado por Johnny Cage, que a divisão de laços dentro da sua família reverbera na sua compreensão sobre o tempo-espaço, fazendo com que ele observe sua vida de forma segmentada. Esse rompimento no cotidiano expõe uma fresta no modelo familiar nuclear, cada vez mais recorrente nos dias atuais.
Segundo Ariès (1986), as formações das cidades foram responsáveis pela associação da figura das crianças à família e à escola, tendo seus processos de educação designados às mães e às professoras. Johhny Cage confirma isso ao citar a sua mãe como a pessoa com quem aprende quase tudo e a escola como a instituição em que se adquire educação e um futuro.
O imaginário de Johnny acerca do tempo cotidiano é o que Pais (2003) denominou de paradoxo do futuro presente, haja vista que o garoto vive o presente apegado ao que pode estar por vir. Ele mobiliza expressões como aprender e futuro, colocando-se em uma posição de vir-a-ser (Sarmento, 2013) e atribuindo às cenas retratadas no desenho pontos aglutinadores daquilo que ele está se tornando. Por mais que no início da conversa ele tenha dito não entender o que seria o cotidiano, ele trouxe elementos de sua história de vida, permeados de rupturas, transitando entre o viver/morrer, liberdade/prisão e o futuro/presente.
Nesta categoria, observamos que as crianças correlacionam as rotinas de casa e da escola como partes indissociáveis do cotidiano – inclusive atribuindo aos adultos de ambos os contextos uma posição de afeto e de autoridade, simultaneamente. Essa percepção desse grupo de crianças nos remete a Corsaro (2011) ao assinalar que a primeira base de formação das culturas infantis ocorre na família, pelo intermédio dos adultos que cuidam da criança, e depois se estende para diferentes direções, onde podemos inserir a escola, as outras crianças e os professores que promovem interações.
Considerações finais
Neste artigo, foi possível perceber que, por mais que cada categoria tenha apresentado enquadramentos distintos acerca da história de vida das crianças, elas possuem interfaces que se configuram como conjunções de vários cotidianos que representam, ao mesmo tempo, as rotinas e suas rupturas, forjadas no/pelo corpo infantil.
As crianças trouxeram elementos em torno de acontecimentos sediados em seus lares e nos bairros em que moram. Foram observados aspectos da vida familiar e da arquitetura da casa (como são ou como gostariam que fossem). Também foram narradas as características do cotidiano associadas aos grandes centros urbanos, suscitando uma compreensão pautada pelo imaginário acerca das cidades. O brincar foi indicado como um meio de fuga dos afazeres domésticos. Ademais, identificou-se, como ponto em comum, as interações entre pares, conflituosas ou não, como parte fundamental da construção do ponto de vista das crianças acerca do que venha ser, para elas, sinônimo de cotidiano.
Foram observados registros que associavam a escola como principal tempo-espaço da rotina infantil, situada como lugar de cumprimento das obrigações, indispensável para a busca de um futuro. Outrossim, identificaram-se narrativas que concebem a escola como um espaço praticado, de vazão para a imaginação, assim como de brincadeiras e de cultivo de amizades, ensejos esses que serviam como uma espécie de refúgio da realidade vivida dentro ou fora da própria escola. Além disso, as produções trouxeram à tona representações das crianças que transitam entre comportamentos aprendidos por meio das intervenções institucionais e outros transgressores, revelando a dimensão inventiva e autoral das culturas infantis.
Observamos ainda as interfaces entre o cotidiano familiar e escolar, em que as crianças retrataram situações costumeiras que caracterizam esses dois ambientes como complementares na noção de cotidiano. Uma peculiaridade que figura nas narrativas que relacionavam contextos familiar e escolar foi a influência dos produtos midiáticos na configuração das rotinas infantis. Também sublinhamos a perspectiva adultocêntrica de administração do tempo da criança, que tem forjado uma ideia de infância compartimentada, atribuindo diversas funções e papéis em ambos os contextos.
Inferiu-se também que as narrativas apresentadas pelas crianças brasilienses se aproximam da realidade cotidiana assim como de roteiros fictícios, inspirados por projeções do que gostariam de viver. Nessa situação, o cotidiano não se torna menos real, mas uma representação, em que são postos em xeque fatos e aspectos recorrentes em suas vidas que não são bem aceitos pelas crianças. Ficou evidente a compreensão do cotidiano como fruto do confronto entre a fantasia e a rigidez das culturas institucionais.
Considerando a pesquisa desenvolvida e as discussões alcançadas, é possível ainda sugerir que as interações sociais são incorporadas na elaboração das culturas infantis e, por conseguinte, na compreensão de corpo das crianças. Dessa forma, são expostos limites e frestas inabitáveis entre os sujeitos, favorecendo a identificação, a interpretação e a reconstrução do cotidiano.
Referências
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Mayrhon José Abrantes Farias
Universidade Federal do Maranhão, São Luís, MA, Brasil
https://orcid.org/0000-0002-1641-1950
Doutor em Educação Física pela Universidade de Brasília (2019). Professor Adjunto do Departamento de Educação Física da Universidade Federal do Maranhão, Campus Bacanga. Vice-líder do Grupo de Estudos sobre Corpo e Educação - IMAGEM/UnB e do Núcleo de Investigação Multidisciplinar em Educação Física NIMEF/UFNT. E-mail: mayrhon@gmail.com
Marciel Barcelos
Universidade Federal do Tocantins, Miracema do Tocantins, TO, Brasil
https://orcid.org/0000-0003-1181-8724
Doutor em Educação Física pelo Programa de Pós-Graduação em Educação Física da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) (2019). Professor adjunto do curso de Licenciatura em Educação Física e do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Universidade Federal do Tocantins (UFT). Membro do Instituto de Pesquisa em Educação e Educação Física – PROTEORIA/UFES e Coordenador do Grupo de Investigação Pedagógica em Educação Física – GIPEF/UFT. E-mail: marcielbarcelos@gmail.com
Rodrigo Lema Del Rio Martins
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Seropédica, RJ, Brasil
https://orcid.org/0000-0002-1082-2425
Doutor em Educação Física pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Professor do Departamento de Teoria e Planejamento do Instituto de Educação da UFRRJ, lecionando no curso de graduação em Educação Física, no Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGEduc) e no Programa de Pós-Graduação em Educação Física em Rede Nacional (ProEF). Vice-líder do Núcleo de Aprendizagens com as Infâncias e seus Fazeres (NAIF) e Líder do Grupo de Pesquisa em Docência na Educação Física (GPDEF). E-mail: rodrigodrmartins@ufrrj.br
Contribuição na elaboração do texto: autor 1 - planejamento dos processos de pesquisa, produção de registros em campo, análise de dados, escrita do artigo; autor 2 - análise dos dados, articulação com o referencial teórico, escrita do artigo; autor 3 - articulação do referencial teórico, análise dos dados, revisão final da escrita do texto.
La investigación comprende los significados atribuidos por 34 niños de una escuela de Brasília a su rutina familiar y escolar, con aportes teóricos y metodológicos de la Sociología de la Vida Cotidiana, la Sociología de la Infancia y los Estudios con la Vida Cotidiana. A partir de la observación participante, dibujos y discursos de los niños, se produjeron y analizaron las siguientes categorías: cotidiano familiar, cotidiano escolar e intersección entre cotidiano familiar y escolar. Los resultados indican que las interpretaciones de los niños se conciben dentro y fuera de la escuela y transitan entre el mundo real y el imaginario, revelando afectos, tensiones e idiosincrasias sobre sus rutinas.
Palabras clave: Infancia. Familia. Educación. Cada día.
This research comprises the meanings attributed by 34 children from a school in Brasília to their family and school routine, with theoretical-methodological contributions from the Sociology of Everyday Life, Sociology of Childhood and Everyday Life Studies. From participant observation, drawings and children's spoken narratives, the following categories were produced and analyzed: family daily life, school daily life and intersection between family and school daily life. The results indicate that children's interpretations are conceived inside and outside school and transit between the real and the imaginary world, revealing affections, tensions and idiosyncrasies about their daily routines.
Keywords: Childhood. Family. Education. Everyday.
Linhas Críticas | Periódico científico da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília, BrasilISSN eletrônico: 1981-0431 | ISSN: 1516-4896
http://periodicos.unb.br/index.php/linhascriticas
Referência completa (APA): Farias, M. J. A., Barcelos, M., & Martins, R. L. D. R. (2023). Os cotidianos familiar e escolar sob a perspectiva das crianças. Linhas Críticas, 29, e50572. https://doi.org/10.26512/lc29202350572
Referência completa (ABNT): FARIAS, M. J. A.; BARCELOS, M.; MARTINS, R. L. D. R. Os cotidianos familiar e escolar sob a perspectiva das crianças. Linhas Críticas, 29, e50572, 2023. DOI: https://doi.org/10.26512/lc29202350572
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1Para Corsaro (2011), a cultura de pares é a forma autoral com que as crianças interagem entre si, experienciando o mundo que as circunda, apropriando, ampliando e compartilhando seu capital cultural de práticas.
2Devido aos limites de caracteres desta revista, selecionamos as narrativas que consideramos serem as mais representativas, evitando repetições.
3Aprovado por Comitê de Ética em Pesquisas (CAAE: 80440317.0.0000.0030). Os responsáveis assinaram o consentimento em reunião. Com linguagem acessível, promovemos uma roda de conversa com as crianças para explicar o estudo e obter delas o assentimento.
4Chilena é um tipo de linha para pipas altamente cortante se comparada à linha de algodão tradicional. Ela é proibida em várias cidades brasileiras.