Dossiê | Escuta e participação nas pesquisas com (sobre) crianças
O rio da vida na pesquisa-intervenção com crianças em vulnerabilidade social
El río de la vida en la investigación-intervención con niñas en vulnerabilidad social
The river of life in intervention-research with socially vulnerable children
Victor José Machado de Oliveira
Destaques
Nas pesquisas com crianças, essas devem ser vistas como competentes e capazes de participar.
O rio da vida é uma ferramenta metodológica para pesquisar com crianças em vulnerabilidade social.
Além de produzir dados, a pesquisa deve buscar empoderar as crianças e transformar suas vidas.
Resumo
Um ensaio reflexivo é guiado sobre os processos de investigação com crianças em situação de vulnerabilidade social e/ou que tiveram seus direitos violados. Como inspiração teórico-metodológica nos pautamos na teoria da Salutogênese e na metáfora do rio da vida. Empiricamente, como fontes de relatos, apoiamo-nos em produções textuais feitas por crianças atendidas em um projeto social em Manaus, Amazonas. O direito à fala e à produção imagética percorrem processos não apenas investigativos, mas, de empoderamento das crianças. Destarte, propomos investigações horizontalizadas, reconhecendo as crianças como atores sociais, capazes de representar seus mundos em busca de ressignificá-los.
Palavras-chave
Educação Integral em Saúde Escolar. Crianças de Grupos Minoritários. Direitos da Criança. Salutogênese.
Recebido: 22.08.2023
Aceito: 05.10.2023
Publicado: 08.11.2023
DOI: https://doi.org/10.26512/lc29202350554
Introdução
A pesquisa com crianças vem ganhando novos contornos no Brasil, inclusive, a partir de esforços de pesquisadores e pesquisadoras para alargar a compreensão sobre as crianças, incluindo seus anseios e necessidades (Rodrigues et al., 2014). Compreendemos que tais esforços coadunam com a Sociologia da Infância, que toma a criança como sujeito de direitos e ator social, capaz e competente para mudar suas condições socioculturais (Sarmento, 2005). Essa perspectiva político-epistemológica tem guiado, também, nossas ações quando estamos nos ocupando da investigação com crianças.
Mafra (2015, p. 118) alça profícuas reflexões sobre a pesquisa com crianças quando traz os seguintes questionamentos: “De quais crianças estamos falando? Que vozes são essas?” Nessa esteira, compreendemos que nos processos investigativos precisamos considerar que além de as crianças possuírem idiossincrasias geracionais, também apresentam diferenças socioculturais e históricas, demarcando particularidades contextuais. É o caso, por exemplo, das crianças que se encontram em vulnerabilidade social e/ou que tiveram seus direitos violados. Nos parece que, se o fato de ser criança já confere a ela certa invisibilidade dentro de uma sociedade adultocêntrica (problemática geracional), ainda mais quando ela está exposta às iniquidades em decorrência da conjuntura neoliberal (problemática sociocultural e histórica).
Nosso campo de intervenção-investigação tem sido a Casa Mamãe Margarida. Localizada em Manaus/AM, a instituição, da ordem dos Salesianos, se configura como uma obra de cunho social sem fins lucrativos que atende meninas entre 5 e 17 anos e 11 meses de idade em situação de vulnerabilidade social e/ou que tiveram seus direitos violados. Além da oferta de atividades socioeducativas, culturais, de esporte e lazer, a instituição dá suporte de acolhimento em abrigo para as meninas que foram afastadas do convívio familiar por determinação judicial (Costa & Oliveira, 2023).
Na Casa Mamãe Margarida, temos nos inserido a partir do tripé da Universidade através do ensino com a realização de estágios do curso de graduação em licenciatura em Educação Física, da pesquisa com a realização de investigações em projetos de iniciação científica e de Trabalho de Conclusão de Curso e da extensão com projetos para a comunidade. A experiência da nossa estada ali nos permite compreender que a pesquisa não é sobre, mas com as crianças. Ainda mais, os processos investigativos buscam ir além dos aspectos tradicionais de explorar, descrever e explicar os fenômenos sociais. Logo, buscamos novos contornos ético-políticos visando, no ato investigativo, promover meios para que as crianças se empoderem. Esse empoderamento, inclusive, tem como justificativa dar uma resposta às consequências da precariedade e seus efeitos negativos à saúde das crianças (Kirk, 2023; Ferreira et al., 2023).
Para isso, temos nos dedicado no estudo da teoria da Salutogênese (origens das saúdes), principalmente, no conceito de Senso de Coerência (SCo) e na metáfora do rio da vida (Antonovsky, 1979; 1987; 1996). Em suma, visto que será melhor apresentado na sequência, a Salutogênese é um modo de responder à pergunta do mistério da saúde: Por que as pessoas, mesmo diante de estressores e processos de adoecimento, conseguem tensioná-los e superá-los? Antonovsky (1979; 1987) compreende que a resposta para a pergunta se encontra no SCo. Ou seja, quanto mais forte ele for, maiores serão as condições de enfrentamento bem-sucedido dos estressores e/ou recuperação dos processos de adoecimento. A metáfora do rio da vida é colocada como perspectiva para compreender a relação do fortalecimento do SCo, uma vez que as pessoas estão no rio e precisam serem ensinadas a nadar (a produzir saúde), em vez de apenas serem salvas do afogamento (com ações curativas ou de prevenção de doenças).
Percebemos que a metáfora do rio da vida nos fornece pistas metodológicas para a pesquisa com crianças, visto que sua base operacional é constituída pelo desenho e a oralidade – tidos como elementos potenciais na pesquisa com crianças (Mafra, 2015). Assim, aliada ao construto teórico da salutogênese, temos um caminho potente de produção de ações investigativas que podem conduzir a processos terapêuticos e de empoderamento das crianças (Denov & Shevell, 2021). Em conjunto, tomamos como postura ético-política que a pesquisa com crianças deve superar as ações verticalizadas e centradas em uma perspectiva adultocêntrica. Nesse sentido, neste ensaio propusemos como objetivo refletir sobre os processos investigativos com crianças em situação de vulnerabilidade social e/ou que tiveram seus direitos violados.
Este ensaio foi dividido em duas subseções. A primeira para tratar da teoria da salutogênese com destaque para o conceito de SCo e a metáfora do rio da vida. A segunda para refletirmos sobre os caminhos investigativos e as formas de empoderamento das crianças a partir do próprio rio da vida das Margaridas contidas em narrativas de duas produções textuais: 1) Na materialização de um livro em que participaram enquanto autoras. 2) Em um relatório de um projeto de extensão no qual escreveram cartas umas para as outras. Por fim, retomamos questões centrais nas considerações finais para reafirmar nosso compromisso ético-político de, com a pesquisa, buscar ajudar a transformar o rio da vida das Margaridas, mesmo que por meio de pequenas vitórias.
Salutogênese e a metáfora do rio da vida
A teoria da salutogênese foi criada pelo sociólogo norte americano-israelense Aaron Antonovsky (1923-1994). O termo salutogênese, é um neologismo proposto por Antonovsky (1996) que deriva do latim: salus (meio de salvação, saúde) e do grego: génesis (origem). Portanto, pode ser lido como a busca pelas “origens das saúdes”. A teoria tem sido usada para expressar uma orientação no campo da promoção da saúde, diferentemente da orientação patogênica (origens das doenças), cujo enfoque se centra nas ações curativas e/ou de prevenção de doenças.
Segundo Antonovsky (1996), há uma controvérsia que ressalta duas fraquezas do paradigma patogênico como orientador da promoção da saúde. A primeira se relaciona com a classificação dicotômica (saúde/doença) que leva as ações a se preocuparem apenas com fatores de risco e patógenos que podem vir a causar processos de adoecimento. A segunda se refere à concentração nos fatores de risco e a luta constante por reduzi-los ou eliminá-los. No final das contas, diz o autor, o foco do trabalho recai na doença e não na saúde, o que reduz a capacidade de olhar a complexidade do ser humano (Antonovsky, 1996).
Em vez da classificação dicotômica e do foco nos fatores de risco, Antonovsky (1996) sugere um modelo contínuo de saúde-doença1. Nesse modelo, cada um de nós estamos em um ponto no tempo e em algum lugar do contínuo. Parafraseando o autor, somos todos casos terminais, mas, enquanto houver algum sopro de vida, estaremos, de alguma forma, saudáveis (Antonovsky, 1987). Assim, Antonovsky (1979) alça uma virada paradigmática com a seguinte questão: mesmo em situações estressoras, como as pessoas se mantêm saudáveis ou como elas se recuperam de processos de adoecimento? Perguntado de outra maneira: o que explica/facilita o movimento das pessoas em direção ao polo mais saudável do contínuo saúde-doença? (Antonovsky, 1996).
A busca da resposta à pergunta anterior levou Antonovsky (1996) ao que denominou de “recursos de resistência generalizada” (adiante, recursos de saúde). Esse conceito se refere a uma propriedade individual/coletiva ou uma situação que facilita o enfrentamento bem-sucedido dos estressores que estão cotidianamente presentes na vida das pessoas. Os recursos de saúde parecem gerar experiências de vida repetidas e mais estáveis de maneira que a pessoa veja o mundo como fazendo sentido, cognitivamente, instrumentalmente e emocionalmente.
Segundo Antonovsky (1979; 1996), essas linhas de pensamento levaram ao surgimento do construto que foi denominado de SCo. O SCo é uma orientação global em que as pessoas percebem a vida, mesmo em sua dinamicidade, como algo compreensível, gerenciável e significativo. Nesse sentido, o SCo é composto por três pilares, a saber: 1) A significância que expressa a motivação para enfrentar os problemas e seguir em frente. 2) A compreensibilidade que destaca a capacidade cognitiva de perceber e compreender os desafios. 3) A capacidade de gerenciamento que indica o aspecto comportamental em que a pessoa acredita que os recursos para enfrentar as situações estão disponíveis e prontos para o uso. Com um forte SCo, a pessoa terá maior facilidade de se mover para o polo mais saudável do contínuo saúde-doença (Antonovsky, 1979; 1996).
Diante dessa base teórica, Antonovsky (1987; 1996) indica uma metáfora para melhor compreendermos a salutogênese: o rio da vida. O autor, destaca que estamos todos no grande e perigoso rio da vida e que nunca estamos próximos à margem. Nesse sentido, em vez de nos preocuparmos com ações curativas ou preventivas, deveríamos nos perguntar: quão perigoso é esse rio e quão bem podemos nadar? Logo, mais do que salvar os nadadores do afogamento, deveríamos ensiná-los a nadar.
Eriksson e Lindström (2008) comentam sobre a metáfora como a “saúde no rio da vida”. Quando nascemos, somos jogados no rio e flutuamos com a corrente, cuja direção é a vida. No rio, alguns nascem em regiões em que estão mais propensos à flutuação, visto que as condições de vida são boas e há muitos recursos à disposição. Porém, outros nascem em lugares mais turbulentos do rio, o que indica que as condições de vida estão comprometidas e a luta pela sobrevivência é mais difícil – logo, o risco de cair rio abaixo é maior. No entanto, o rio está cheio de riscos e recursos para todas as pessoas e o resultado do manejo deles também se baseia na capacidade das pessoas em identificar e usar os recursos para melhorar suas opções de saúde e de vida.
Para além de uma leitura focada no indivíduo, com base na metáfora apresentada, McCuaig e Quennerstedt (2018) indicam que a saúde é uma relação dinâmica e sempre presente entre o nadador e a água. Os autores aproveitam para questionar o fato de que o foco da pesquisa salutogênica, hodiernamente, tem sido direcionado quase que exclusivamente para o nadador, ou seja, na mensuração de suas “capacidades natatórias”2. Nesse sentido, colocam questões como: O que é nadar? Como aprendemos a nadar? Quais as condições da água em que os nadadores estão imersos? Em suma, os autores advogam: Onde está o rio na pesquisa salutogênica?
A última questão destaca a necessidade de olharmos para o rio da vida, ou seja, para as condições socioculturais que permeiam as vidas das pessoas. Nesse sentido, os estressores podem ser identificados como os desafios e as demandas da vida diária. Logo, os recursos de saúde serão sempre contextuais e dependerão das condições sociais como: gênero, classe social, etnia, contexto histórico e sociocultural. Ainda mais, os recursos podem estar em três lugares: no rio, no nadador ou na relação desse com o rio (McCuaig & Quennerstedt; 2018).
Dentro dessa perspectiva, destaca-se que o SCo (que torna o mundo compreensível, administrável e significativo) irá variar de pessoa para pessoa, de situação para situação e de cultura para cultura. Nesta esteira, McCuaig e Quennerstedt (2018) destacam a importância de uma orientação para a pesquisa com uma abordagem salutogênica. Os autores indicam a inspiração nas histórias de vida observando como as diferentes pessoas, em diversos contextos, podem recorrer a diferentes recursos para viver uma boa vida. Nesse sentido, o foco da pesquisa se dá na relação entre nadador e o rio.
Dentro da seara que a teoria salutogênica nos proporciona, observamos que ela pode ser considerada para alçar reflexões acerca da pesquisa com crianças em situação de vulnerabilidade social3. Nesse sentido, nos chama a atenção os estudos desenvolvidos por David Kirk (2023) acerca da precariedade que tem afetado o Norte Global. Focado principalmente nos países desenvolvidos, o autor indica que as mudanças sociais, inclusive no mundo do trabalho com a emergência da economia gig (cuja configuração se estrutura nos trabalhos temporários), têm gerado incertezas e instabilidades, assim, afetando os jovens e as crianças, inclusive, a sua saúde mental.
Uma grande questão, para Kirk (2023), está em quatro efeitos produzidos pela precariedade nas crianças e jovens: a raiva, a ansiedade, a alienação e a anomia (os 4 As da precariedade4). O autor destaca a salutogênese como uma teoria focada na promoção da saúde e que se destaca no contexto da precariedade. Seu argumento é delineado no fato de que o SCo, e seus três pilares (significância, compreensibilidade e capacidade de gerenciamento), representarem uma antítese aos 4 As da precariedade.
Como frente de trabalho para o desenvolvimento de uma abordagem salutogênica, Kirk (2023) aposta nas pedagogias do afeto, cuja preocupação está no domínio afetivo. Logo, trata-se do desenvolvimento da “motivação, confiança e autoestima, determinação e resiliência, responsabilidade e liderança, respeito, tolerância e comunicação” (Kirk, 2023, p. 7). Ainda, segundo o autor: “Se crianças e jovens estão vivenciando os 4s A da precariedade, precisamos de abordagens pedagógicas [...] que abordem a saúde mental e o bem-estar de forma direta e explícita” (Kirk, 2023, p. 7). Nesse sentido, o foco está em apoiar crianças e jovens que vivem cotidianamente expostas à precariedade e aos seus efeitos prejudiciais.
Apesar da profícua contribuição de Kirk (2023), é necessário destacar que seu foco de pesquisa está no Norte Global, contexto diferente do caso brasileiro, por exemplo. Apesar disso, Ferreira et al. (2023) destacam que a precariedade pode ser observada (e potencializada) nos países do Sul Global em que as pessoas já vivem em contextos de iniquidades e vulnerabilidades sociais. Vale ressaltar, com os autores, a necessidade urgente de pedagogias críticas que afetem positivamente as crianças e jovens para enfrentarem as forças sociais que causam a deterioração da vida (Ferreira et al., 2023). Nesse sentido, a aposta está em “responder às forças sociais que alimentam a precariedade e desumanizam as pessoas, produzindo vidas periféricas e precárias” (Ferreira et al., 2023, p. 5).
A base teórica apontada a partir da salutogênese nos parece ser um caminho profícuo, tanto para considerarmos as próprias participantes da pesquisa que, no nosso caso, são as crianças em vulnerabilidade social e/ou que tiveram seus direitos violados, assim como as relações delas com os contextos em que vivem. Ainda mais, precisamos pensar, refletir e produzir pesquisas comprometidas com o empoderamento dessas pessoas de maneira que contribua para que o próprio processo investigativo se torne um recurso de saúde para o enfrentamento bem-sucedido dos estressores presentes nas vidas delas.
Diante dessa colocação, destacamos a atividade do “rio da vida” que foi desenvolvida por Joyce Mercer e está disponível no portal On Being (Lin, 2019). Trata-se de uma atividade que pode se tornar uma generosa ferramenta investigativa e reflexiva com as crianças. A atividade começa com um trecho do poema de Antonio Machado: “Caminhante, não há caminho,/ Você faz o caminho caminhando./ Ao caminhar, você faz o caminho”. Após, cinco momentos são apresentados para o desenvolvimento da atividade:
Refletir sobre a vida como se fosse um rio (Que forma ele teria? Existem voltas/mudanças? Existem pedras ou obstáculos? Existem partes poderosas ou pequenas?).
Desenhar o rio da vida e destacar com textos os eventos da vida e idade aproximada ao longo do fluxo do rio.
Pensar nas pessoas que acompanharam ao longo da jornada do rio (relacionamentos significativos e marcantes, perdas significativas, grupos ou comunidades importantes).
Refletir sobre a jornada e a trajetória da vida para colocar os eventos vividos nos locais do desenho feito (Existem momentos de dor/sofrimento próprios ou de outros que influenciaram o rio da vida? Quais acontecimentos locais, regionais ou mundiais que alteraram o rio da vida?).
Avaliar o que tem sido importante (Quais valores, compromissos, princípios são mais importantes em algum determinado momento da vida? Para quais objetivos as energias foram direcionadas?) (Lin, 2019).
Por último, é solicitado que a atividade seja revisada para verificar se nenhum elemento importante foi deixado de fora e, caso necessário, seja ajustada. Também, é destacado que é impossível capturar toda a jornada de uma vida em uma imagem (Lin, 2019). Compreendemos que o material em destaque é um profícuo recurso para a condução de um diálogo aberto, atencioso, assertivo e amoroso (para pensarmos em Paulo Freire), que pode levar ao empoderamento e naquilo podemos chamar de “pequenas vitórias”. Conforme destacam Ferreira et al. (2023, p. 14), dois estudos baseados nas pedagogias críticas afetivas conduzidos no Brasil, foram fontes de aprendizado e importantes para a vida das pessoas “em termos da necessidade de diálogo, da importância da solidariedade, do poder da esperança e da imaginação, da possibilidade de humanização, do poder dos vínculos e da concretização de realizações por meio de pequenas vitórias”.
Os autores mencionam que tais processos possibilitam às pessoas nomearem, criticarem e negociarem as iniquidades e vulnerabilidades que enfrentam cotidianamente. Vale ressaltar, na condução das pesquisas, a importância dada ao contexto, do apoio das pessoas que possuam vínculos profundos com a localidade e do afeto positivo que gera esperança e confiança. São “pequenas conquistas que restauram a humanidade e geram autoconfiança entre as pessoas” e que “são altamente significativas e cumulativas” (Ferreira et al., 2023, p. 14).
Metodologicamente, ainda podemos considerar as narrativas das crianças, principalmente, aquelas em que se constroem oportunidades para que sejam protagonistas da produção de artefatos culturais. É o caso do livro: “Margaridas: histórias de superação” (Barroso & Barroso, 2023), que será nosso foco de atenção no próximo tópico, além de cartas escritas sobre a participação no projeto de extensão “Vida em Movimento”.
O rio da vida nas narrativas das Margaridas: refletindo caminhos investigativos e formas de empoderamento das crianças
A pesquisa com crianças envolve processos de desconstrução epistemológica da investigação adultocêntrica que acaba marginalizando as crianças e as infâncias. Rodrigues et al. (2014) observaram um esforço nas pesquisas brasileiras no sentido de construir uma perspectiva holística das crianças, preocupando-se com seus anseios e necessidades, assim como tomando-as como participantes competentes e capazes de opinar e mudar as condições socioculturais. Um exemplo prático é o trabalho de Figueiredo e Marinho (2020), o “Dicionário da criança aventureira”, construído com seis crianças que praticam atividades de aventura a partir de suas vozes e desenhos.
Indo além da ação de dar voz às crianças, concordamos com Mafra (2015, p. 118) quando destaca o seguinte:
Muito mais do que dar voz às crianças, é urgente a escuta e respeito dessas vozes, muitas vezes silenciadas pela ordem institucional imposta a elas. Dessa forma, ouvir e legitimar estas vozes precisa se constituir como o ponto de partida de toda e qualquer pesquisa que envolva esses sujeitos de pouca idade. Porém, é necessário também problematizar essa ação. De quais crianças estamos falando? Que vozes são essas? Mas, principalmente, de que forma essas vozes serão interpretadas pelo pesquisador e levadas, enquanto registros, para a pesquisa?
No presente ensaio, além das questões postas (e que são de fundamental importância) de compreender a criança como competente e capaz, de ouvi-la e legitimar sua voz, podemos adicionar a necessidade de que é necessário empoderá-las nos processos de investigar com elas. Quando nos deparamos com as questões: Quais crianças são essas? Que vozes são essas? Precisamos nos ater, de fato, ao rio da vida dessas crianças para que possamos considerar suas condições socioculturais e verificar, por exemplo, se elas estão expostas à precariedade e suas consequências.
Nesse sentido, podemos adicionar a pergunta: O que podemos fazer para contribuir no processo de empoderamento de crianças expostas à precariedade? Não basta apenas ouvi-las. É necessário que a pesquisa as ajude a se mover para algum lugar no contínuo saúde-doença longe dos efeitos adversos dos estressores que enfrentam diariamente, ou seja, que agreguem pequenas vitórias em sua vida. Compreende-se que aí temos um ponto de partida para considerar mais um aspecto (micro)político das pesquisas com as crianças.
O contato com as Margaridas (é assim que me referirei a elas) foi um profícuo encontro de aprendizado acadêmico e pessoal. Isso deve ser dito, pois toda pesquisa carrega consigo as implicações do próprio pesquisador no ato de investigar. Destaca-se que a investigação, neste contexto, vai (ou deveria ir) além do sobre para afirmar-se no com. Dentro da ótica salutogênica, podemos considerar que o pesquisador nunca está fora do rio da vida, mas, dentro dele e junto com os demais. Ou seja, quando se insere no campo de pesquisa-intervenção ele se torna um elemento no rio da vida das outras pessoas com as quais interage no seu desenvolvimento. Isso destaca a necessidade de um compromisso ético-político do pesquisador, qual seja, o de usar suas energias investigativas para, de alguma forma, afetar positivamente as pessoas com quem pesquisa.
Um exemplo do compromisso ético-político encontra-se no relato de Costa e Oliveira (2023), em que se destaca como uma das ações de pesquisa-intervenção que se desdobrou no decorrer do Estágio Curricular Supervisionado do curso de Licenciatura em Educação Física. A leitura salutogênica do estágio permitiu observar que a Casa Mamãe Margarida pode ser considerada como um recurso para as crianças que ali são atendidas, visto que parece se apresentar como um “refúgio salutogênico”. Ainda mais, os autores observam que, nas aulas de Educação Física, as crianças têm oportunidades de fortalecer o seu SCo (Costa & Oliveira, 2023).
Para além do contexto da pesquisa, ações vêm sendo desenvolvidas no sentido de trazer contribuições e afetos positivos para as Margaridas aliando a posição da Universidade no tripé ensino (estágio), pesquisa (projetos científicos) e extensão (projetos de atendimento à comunidade). Vale ressaltar que, no bojo das ações extensionistas, um projeto denominado “Vida em Movimento” foi desenvolvido para colaborar com as aulas de Educação Física e a ampliação de visão de mundo das Margaridas com visitas à Universidade.
Os caminhos investigativos com as Margaridas escapam os meandros da pesquisa tradicional e solicitam construções implicadas com a transformação social e o empoderamento das crianças. Nesse sentido, vemos como profícua a possibilidade de construir ações salutogênicas que busquem fortalecer o SCo das meninas. Nesse sentido, o “retorno” da pesquisa não pode ser apenas o seu relatório final, mas, deve ser a configuração do caminho (e do caminhar) colaborando na ou para a mudança de rumo das crianças no seu rio da vida.
Nesse sentido, vemos que a oralidade e a produção imagética parecem ser caminhos profícuos para o desenvolvimento de ações investigativas e de empoderamento das Margaridas. Alçamos como exemplos, trechos do livro organizado pelas educadoras Tereza Barroso e Socorro Barroso em que 36 narrativas de Margaridas, de professoras e de um professor são trazidas indicando suas histórias de superação (Barroso & Barroso, 2023). Complementarmente, destacamos algumas produções textuais contidas no relatório do projeto de extensão Vida em Movimento. Nesse caso, as crianças produziram cartas umas para as outras em que contavam as experiências vivenciadas no projeto de extensão. Durante nosso contato com a Casa Mamãe Margarida, pudemos observar que toda atividade aventada tem como cunho central o desenvolvimento pessoal das meninas atendidas. E isso nos tem inspirado a pensar na pesquisa com as crianças de maneira socialmente comprometida.
A seguir, vamos nos deter em algumas narrativas das Margaridas, contidas no livro, para refletirmos na potencialidade de uma investigação com crianças em situação de vulnerabilidade social e/ou que tiveram seus direitos violados.
Narrativa de Jhennifer Scarlett:
Um dia quando estava na Venezuela e tinha seis anos, meu pai viajou sozinho para o Brasil porque o dinheiro só dava para uma passagem. Só ele podia viajar, então, ele foi, e minha mãe, minha irmã e eu ficamos sozinhas. Nós queríamos ter ido para o Brasil, então, minha mãe vendeu tudo e nós conseguimos viajar para o Brasil. (Barroso & Barroso, 2023, p. 70)
Narrativa de Ana Pinheiro:
Nesta Casa aprendi lições de vida que hoje em dia percebo que foram necessárias para o meu crescimento. As pessoas dessa casa nos ensinam como viver no mundo de hoje, como o mundo ficou muito cruel e como precisamos de pessoas generosas, honestas e alegres.
A vida é muito difícil fora da casa Mamãe Margarida, mas temos que ter consciência, pois não vamos estar sempre dentro de um lar acolhedor, devemos encarar os problemas de frente e ser forte.
A Casa mostrou a minha melhor parte, me fez ver o que ainda não enxergava. Alguns me acham mimada, metida e chata, mas sempre digo: Essas pessoas devem conhecer melhor o outro e nunca julgar. Eu não gosto de julgar um livro pela capa, sempre procuro descobrir tudo sobre uma pessoa. Ainda tenho medo de ser julgada, mas a Casa Mamãe Margarida me faz sentir segura, ser eu mesma e a cada dia pensar em realizar meus sonhos. (Barroso & Barroso, 2023, pp. 103-104)
Narrativa de Jhennifer Pereira:
Aqui na Casa Mamãe Margarida encontrei a felicidade. Comecei a participar desta Casa desde o primeiro ano do Fundamental, sempre gostei de minhas professoras e hoje estudo em outra escola, mas faço atividade na Casa. Gosto muito de participar da Gincana Mariana, do Terço Mariano e de dançar no palco com minhas colegas da Margarida. (Barroso & Barroso, 2023, pp. 109-110)
Também, vamos destacar alguns registros contidos no relatório do projeto de extensão Vida em Movimento. A produção textual é fruto de uma atividade desenvolvida pela professora da turma na qual as crianças escreveram bilhetes para as outras sobre a visita à Universidade Federal do Amazonas, na Faculdade de Educação Física e Fisioterapia, onde conheceram laboratórios e espaços de práticas corporais. Nesse sentido, a visita à Universidade foi um motor gerador e nos proporcionou uma produção autoral das Margaridas para identificarmos alguns dos afetos produzidos pela experiência.
Hoje dia 17 de março de 2023 as meninas do 4º ano foram fazer uma visita à Universidade. Chegando lá foram para o auditório e o professor e os amigos fizeram uma palestra sobre o projeto de Educação Física desenvolvido na Universidade.
Nós descobrimos muitas coisas. É uma Universidade que prepara o profissional de Educação Física. Lá dão aula de medicina, balé, natação e atletismo. Eles dão oportunidades de você ganhar uma bolsa para estudar em outros países (Margarida 1, 9 anos, criança atendida pela Casa Mamãe Margarida).
Oi Margarida [nome fictício],
Eu e as meninas do 4º ano fomos na Universidade. Você precisa ir lá e você vai ver que é uma Universidade muito bonita. Nós aprendemos a jogar queimada da abelha rainha e aprendemos a fazer muita força nas pernas.
Muitos beijos e abraços. (Margarida 2, 9 anos, criança atendida pela Casa Mamãe Margarida)
O rio da vida das Margaridas, seja como exemplificado nas narrativas, seja nas conversas cotidianas (em que tomamos maior dimensão de suas histórias), apresentam os efeitos da precariedade, dos processos de vulnerabilidade e das iniquidades a que estão expostas, quais sejam: fome, miséria, violência doméstica, assédio moral, violação sexual, imigração, tráfico humano etc. Cada uma das Margaridas possui uma história e, assim, um rio da vida singular que merece ser foco de investigações.
No entanto, assim como foi observado por Antonovsky (1979), também conseguimos perceber que, apesar dos estressores presentes, as Margaridas conseguem enfrentá-los quando dizem que: encontraram a felicidade, aprenderam, conseguiram fazer, se olharam positivamente etc. (elementos que se aproximam dos pilares do SCo: significância, capacidade de gerenciamento e compreensibilidade). Também, vemos como as ações de projetos possibilitam o “alargamento” do rio da vida, uma vez que novos horizontes se abrem e as Margaridas têm a oportunidade de ter acesso a novos recursos. Por exemplo, muitas delas nunca havia pisado em uma Universidade e nem sabiam da existência dela. Com a visita, vislumbraram as possibilidades de mudar o seu rio da vida com novos projetos.
Muitas dessas crianças vivem em contextos precários, em casas pequenas de madeira em localidades de vulnerabilidade social, expostas à poluição e falta de saneamento básico, ao tráfico de drogas, à fome e à miséria. Geralmente, a “paisagem cognitiva” que elas têm do mundo é o da família e da localidade em que vivem. Desde que tivemos contato com elas, seus relatos parecem indicar que essa visão de mundo ganha novos contornos quando elas chegam à Casa Mamãe Margarida. Logo, criar oportunidades para as Margaridas verem outras paisagens cognitivas e ampliar sua visão de mundo, implica a criação de projetos de vida que possam romper com suas atuais condições de vida.
No entanto, cabe ressaltar algumas problemáticas. Nos parece que os projetos apresentados podem ter um alcance de ação adstrito. Ou seja, sozinhos, eles não conseguem resolver os problemas sociais que afetam as crianças atendidas. Nesse sentido, é necessário que políticas públicas sejam produzidas e aplicadas buscando dar uma resolutividade aos problemas que são fontes dos estressores das Margaridas. Em uma leitura salutogênica, é necessário não apenas se concentrar na ação individual (apenas ensinar a nadar no rio da vida), mas tomar base na mudança dos cenários de ação para a vida (ou seja, mudar o próprio rio da vida). Contudo, mesmo diante de tais limitações, ainda assim, é possível apostar nas pequenas vitórias, no sentido de serem transgressões cotidianas que buscam ajudar as crianças em vulnerabilidade social ou que tiveram seus direitos violados.
Nesse sentido, uma pesquisa com o foco salutogênico, nestes termos, não se preocupa apenas em explorar, descrever e explicar os fenômenos que engendram a vida das crianças. Para além disso, a investigação nesta orientação busca compreender como as crianças se movem em direção ao enfrentamento bem-sucedido dos estressores. Logo, podemos nos orientar a partir da seguintes questão: Como as crianças enfrentam os estressores de forma bem-sucedida e se movem para o lado mais saudável do contínuo saúde-doença? Ainda mais: Como podemos ajudá-las para se empoderarem nesse processo? Diante das problemáticas, nossa aposta ético-política de investigação para pequenas vitórias está centrada na salutogênese e nos constructos teóricos do rio da vida e do SCo. Percebemos como algo profícuo utilizarmos a atividade do rio da vida, já apresentada no tópico anterior, por proporcionar a produção empírica através do desenho e da oralidade.
Denov e Shevell (2021) conduziram um estudo com jovens nascidos de estupro no contexto de guerra e genocídio em países africanos. Apesar de o estudo ter sido conduzido com pessoas jovens (média de 23 anos de idade), ele tem como foco as suas infâncias. Ainda mais, a pesquisa apresenta uma orientação teórico-metodológica profícua e destaca o rio da vida como uma ferramenta de mapeamento autobiográfico baseado em artes, principalmente, em contextos de iniquidades. A partir do estudo, podemos extrair algumas reflexões sobre a pesquisa com crianças em situação de vulnerabilidade social e/ou que tiveram seus direitos violados:
Sobre as questões epistemológicas, a ferramenta do rio da vida auxilia na mitigação da relação de desequilíbrio de poder entre pesquisador e participante.
Sobre as abordagens baseada nas artes, destaca-se que elas devem: refletir as práticas culturais e o contexto local, serem significativas para as pessoas, assim como, serem desenvolvidas para atender ao contexto sócio-histórico único em que os participantes vivem. Logo, é essencial que a metodologia baseada em artes seja adaptada à cultura e ao contexto em que a pesquisa está ocorrendo.
Sobre os preceitos éticos, coloca-se que há riscos potenciais que precisam ser analisados com cada participante, visto que pensar e compartilhar eventos potencialmente traumáticos pode evocar forte sensação de ansiedade. Ainda, é posta a necessidade do acompanhamento com psicólogo que, no caso da investigação conduzida, foi realizado como sessões mensais de aconselhamento.
Sobre os procedimentos, detalha-se que os participantes são convidados a desenhar suas histórias e percursos de vida mostrando os fluxos, contornos e obstáculos do percurso do seu rio da vida. Após, eles são convidados a compartilhar o significado do seu desenho com os pesquisadores, explicando os eventos importantes ao longo do seu curso de vida. Ainda mais, os participantes devem ter garantida a liberdade para, a partir dos seus critérios, decidir o que e como desenhar e sobre o que desejam compartilhar com os pesquisadores. Nesse sentido, afirma-se que o método deve permitir aos participantes a liberdade e a agência de contar suas histórias da maneira que acharem mais adequada.
Sobre os benefícios previstos, destaca-se que a técnica permite aos participantes refletir sobre seu passado e imaginar o seu futuro. No estudo conduzido, a ferramenta metodológica apresentou consequências positivas e não intencionais, visto que os participantes puderam explorar suas experiências passadas, sua situação atual e contemplar o seu futuro. Nesse sentido, a metodologia permite a criação de contextos de empatia incorporada de maneira a promover ativismo e empoderamento. Por fim, os pesquisadores apontam que essa abordagem possui qualidades terapêuticas, principalmente, aquelas relacionadas aos benefícios psicológicos (Denov & Shevell, 2021).
Compreendemos que as indicações apontadas corroboram o pensamento do estudo a ser desenvolvido com crianças, no nosso caso, aquelas em contexto de vulnerabilidade social e/ou que tiveram seus direitos violados. Nesse sentido, concordamos com Denov e Shevell (2021) sobre a necessidade de adaptação da atividade do rio da vida ao contexto cultural, social e, inclusive, geracional. Nesse sentido, vemos a possibilidade de condução compartilhada da metodologia com crianças visto que o rio da vida é produzido a partir do desenho e da oralidade. Mafra (2015, p. 114) considera que “[...] o desenho e a oralidade são compreendidos como reveladores de concepções e olhares das crianças em relação a seu contexto social, histórico e cultural”. Logo, a produção oral-imagética do rio da vida das crianças emerge como uma proposta metodológica em que podemos, juntos com elas, compreender onde se encontram no rio da vida, quais os desafios (estressores) presentes e como é possível tensioná-los e/ou superá-los.
Considerando a questão da metodologia de produção de dados, agora mais vinculada à produção imagética, nos atemos às reflexões de Mafra (2015) quanto ao uso de desenhos na pesquisa com crianças. Para a autora, mesmo que a atividade de desenhar seja uma ferramenta lúdica, ela pode se tornar cansativa, visto que a criança já a produz cotidianamente. Nesse sentido, é necessário respeitar a decisão da criança em fazer ou não o desenho (Mafra, 2015). Isso nos parece ter uma implicação quanto à temporalidade da presença do pesquisador no campo de pesquisa, com destaque para dois grandes motivos: 1) O motivo metodológico, em que a produção dos dados ocorrerá de acordo com o tempo da criança. 2) O motivo ético-político, visto que o empoderamento e a transformação não ocorre “da noite para o dia”, colocando para o pesquisador uma responsabilidade de acompanhar os processos e as pequenas vitórias das crianças com as quais pesquisa.
Compreendemos que essas são reflexões iniciais e que necessitam de maior aprofundamento teórico-empírico com a condução de investigações de longa imersão (pois, até o momento, estamos em um processo de aproximação com nosso campo de estudo-intervenção). Nesse sentido, vemos uma profícua seara investigativa na Casa Mamãe Margarida, não apenas no sentido de produzir dados científicos, mas, principalmente, de buscar no processo de pesquisar com as Margaridas formas para que conquistem pequenas vitórias e consigam mudar o seu rio da vida.
Considerações finais
Diante do exposto, consideramos que o desafio de pesquisar com crianças em situação de vulnerabilidade social e/ou que tiveram seus direitos violados pode ser realizado com o apoio da teoria da salutogênese focando no rio da vida e no SCo. A pesquisa com o rio da vida enquanto ferramenta metodológica indica caminhos de equilíbrio das relações de poder entre pesquisador e participante. Assim, coloca como fator sine qua non a agência do participante, considerando seu contexto, seus anseios e necessidades. Por isso, o método deve sempre ser adaptado a cada contexto, inclusive, podendo ser lançado mão de outras ferramentas das artes. Além disso, destaca-se que a pesquisa deve ir além dos aspectos exploratórios, descritivos ou explicativos, para compreender como as crianças se movem para transformar suas condições de vida.
O movimento investigativo também solicita um compromisso ético-político do pesquisador, de uma profunda imersão e permanência no campo de pesquisa, inclusive, buscando meios para criar afetos positivos nele. Ainda mais, solicita uma consideração ética cuidadosa na pesquisa, visto que o emprego da metodologia poderá fazer emergir potenciais eventos traumáticos, indicando a necessidade de uma equipe que tenha um psicólogo para o acompanhamento. Esse parece ser um limite a ser enfrentado, visto que as equipes de pesquisa podem não dispor desse profissional, assim como as instituições nas quais poderão vir a pesquisar. Logo, a ausência desse profissional nesse tipo de pesquisa pode trazer danos que devem ser considerados nas reflexões éticas. Buscar parcerias com instituições e o Sistema Único de Saúde pode ser uma alternativa. Apesar do desafio, se conduzida com sucesso, a intervenção-pesquisa pode se mostrar como benéfica para uma ação terapêutica, assim como para o empoderamento dos participantes.
Apesar dos pontos positivos apresentados, um limite a ser considerado na pesquisa de orientação salutogênica ocorre quando ela é conduzida (na perspectiva neoliberal) no sentido de responsabilizar o indivíduo como único responsável pela produção de sua saúde. Ou seja, para utilizar a metáfora do rio da vida, há um limite quando as ações se centram apenas no nadador sem considerar o rio (contextos e condições socioculturais). Os pesquisadores e pesquisadoras necessitam de estar atentos a essa problemática para não reduzir os esforços investigativos-analíticos à agência sem considerar a estrutura sociocultural que se relaciona com ela.
Apesar disso, compreender como se encontra o SCo pode ser um ponto de partida profícuo (desde que não se fique apenas nessa medida). Assim, há a possibilidade de se usar o “questionário de orientação para a vida” em sua versão adaptada para crianças de 5 a 10 anos de idade5. No entanto, o instrumento ainda não possui uma versão validada para o português, o que designa a necessidade de pesquisas que possam fazer sua validação.
Em nossa experiência de intervenção-investigação, que se encontra em um estágio inicial, temos observado que abordagens que destacam as potencialidades de ação das crianças podem se mostrar profícuas ferramentas na produção coletiva do conhecimento. No entanto, esbarramos em problemas de ordem sociocultural que, por vezes, não são facilmente resolvidos pela ação individual. Diante dessa problemática, observamos a complexidade que demanda ações coletivas, inclusive, no tensionamento das autoridades para a construção de políticas públicas que atendam aos anseios e necessidades das populações que se encontram em vulnerabilidade social.
Logo, a pesquisa desenvolvida nesses contextos pode contribuir, sistematicamente, em dois grandes campos de ação: 1) No plano da agência, a construção de experiências positivas que levem a pequenas vitórias dando condições de enfrentamento dos estressores (ou seja, ensinar as pessoas a nadarem bem). 2) No plano sociocultural, o tensionamento das autoridades para a construção e aplicação de políticas públicas condizentes que criem experiências favoráveis para o enfrentamento dos estressores, ou que mudem as paisagens de iniquidades presentes na vida (ou seja, que melhor estruture ou mude o rio da vida). Para isso, vemos como necessário estabelecermos uma agenda de trabalho que considere essa dualidade agência-estrutura, já indicada na metáfora em que o nadador está em relação com o rio. Nesse sentido, advogamos e convidamos aos interessados e interessadas em estudar essa temática a produzir futuras pesquisas com o uso dos métodos abordados neste texto, considerando o rio da vida e as maneiras de empoderar as crianças em vulnerabilidade social e/ou que tiveram seus direitos violados.
Por fim, a pesquisa com o rio da vida pode nos introduzir aos mistérios da saúde, cuja compreensão pode nos tornar mais humanos, inclusive, ao buscarmos, juntos, os caminhos que nos façam mais felizes e saudáveis.
Referências
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Victor José Machado de Oliveira
Universidade Federal de Goiás, Goiânia, GO, Brasil
http://orcid.org/0000-0001-7389-9457
Doutor em Educação Física pela Universidade Federal do Espírito Santo (2018). Professor da Faculdade de Educação Física e Dança da Universidade Federal de Goiás. E-mail: oliveiravjm@gmail.com
Se orienta un ensayo reflexivo sobre los procesos de investigación con niñas en situación de vulnerabilidad social y/o a quienes se les vulneraron sus derechos. Como inspiración teórico-metodológica, nos guiamos por la teoría de la Salutogénesis y la metáfora del Río de la Vida. Empíricamente, como fuentes de relatos, nos basamos en producciones textuales realizadas por niñas asistidas en un proyecto social en Manaos, Amazonas, Brasil. El derecho a la expresión ya la producción de imágenes pasa por procesos que no solo son de investigación, sino también de empoderamiento de las niñas. Así, proponemos investigaciones horizontales, reconociendo a las niñas como actores sociales, capaces de representar sus mundos en busca de resignificarlos.
Palabras clave: Educación Integral en Salud Escolar. Niños de grupos minoritarios. Derechos de los niños. Salutogénesis.
A reflective essay is guided on the research processes with children in situations of social vulnerability and/or who had their rights violated. We were theoretically and methodologically inspired by the theory of Salutogenesis and the metaphor of the River of Life. Empirically, as sources of reports, we rely on textual productions made by children assisted in a social project in Manaus, Amazonas, Brazil. The right to speech and image production goes through processes that are not only investigative, but also empowering children. Thus, we propose horizontal investigations, recognizing children as social actors, capable of representing their worlds in search of resignifying them.
Keywords: Comprehensive School Health Education. Minority Group Children. Children's Rights. Salutogenesis.
Linhas Críticas | Periódico científico da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília, BrasilISSN eletrônico: 1981-0431 | ISSN: 1516-4896
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Referência completa (APA): Oliveira, V. M. de. (2023). O rio da vida na pesquisa-intervenção com crianças em vulnerabilidade social. Linhas Críticas, 29, e50554. https://doi.org/10.26512/lc29202350554
Referência completa (ABNT): OLIVEIRA, V. M. DE. O rio da vida na pesquisa-intervenção com crianças em vulnerabilidade social. Linhas Críticas, 29, e50554, 2023. DOI: https://doi.org/10.26512/lc29202350554
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1No original, “health-ease/dis-ease continuum”, Antonovsky “brinca” com um jogo de palavras entre saúde-facilidade e doença-não facilidade; o que não conseguimos traduzir satisfatoriamente para o português.
2A crítica vale para os estudos que se centram apenas em medir o SCo através de uma escala produzida por Antonovsky (1987), sem considerarem os elementos socioculturais que afetam esse SCo.
3Também, vemos como possível o desenvolvimento da pesquisa com outras crianças que não estejam em vulnerabilidade social. Porém, o recorte do artigo se dá nesse âmbito, visto o contato com o projeto social Casa Mamãe Margarida.
4São chamados de 4 As, visto que no inglês as palavras iniciam com a letra A: anger (raiva), anomie (anomia), anxiety (ansiedade) alienation (alienação) (Kirk, 2023).
5O questionário de orientação para a vida é um instrumento que mede o SCo. Maiores informações podem ser obtidas no site: https://stars-society.org/scales/