Letramento crítico a partir das leituras de um livro paradidático

Literacidad crítica a partir de las lecturas de un libro paradidáctico

Critical literacy from the readings of a paradidactic book

Hélvio Frank, Paulo de Almeida de Oliveira Júnior




Destaques


O letramento crítico permite expansão de perspectivas e compreensão de ideologias para além dos textos.


A leitura da palavra e a leitura de mundo podem promover letramento crítico.


Ideologias moderno-coloniais cristãs ainda são vigentes em vários letramentos produzidos na escola.


Resumo


Neste texto, problematizamos leituras discentes como possibilidade de letramento crítico em relação aos temas gênero, sexualidade, raça e arranjos familiares, a partir da recepção da obra paradidática ‘Vento Forte, de sul e norte’, de Manuel Filho, em um projeto de leitura envolvendo alunos do 9º ano de escola pública. Sob o paradigma qualitativo da pesquisa-ação, ao analisar o livro paradidático, as rodas de conversa e as redações discentes, observamos que, embora ideologias coloniais cristãs mantenham-se vigentes nas práxis escolares, validando argumentos sobre os temas abordados, o letramento crítico surge como opção transformadora de visões universalistas e excludentes em sociedade.

Resumen | Abstract


Palavras-chave

Letramento crítico. Leitura paradidática. (De)colonialidade.


Recebido: 15.06.2023

Aceito: 21.08.2023

Publicado: 04.09.2023

DOI: https://doi.org/10.26512/lc29202349107


Considerações iniciais


A leitura sempre se constituiu como ação-condição plena de promoção de letramentos. Freire (2005, p. 11) discute o valor social e político da leitura, que “não se esgota na decodificação pura da palavra escrita ou da linguagem escrita, mas que se antecipa e se alonga na inteligência do mundo”. Interdisciplinarmente, ao falar da leitura do mundo e da palavra, sugere o vínculo da linguagem com a construção da realidade e, de uma perspectiva transformadora, salienta que “[a] compreensão do texto a ser alcançada por sua leitura crítica implica a percepção das relações entre o texto e o contexto”.

Freire (2005) realça que quanto mais se torna íntimo do próprio mundo, em que melhor o percebe e o entende na leitura que dele vai se fazendo, os temores vão se diminuindo. Nesse caminho, quanto mais se lê palavra e vida, mais se aumenta a capacidade de percepção e expansão de nossas realidades. Ler passa, então, a significar o que não sabemos, com vistas à libertação do medo e da ignorância.

Neste texto, problematizamos leituras discentes em relação aos temas gênero, sexualidade, raça e arranjos familiares, a partir da recepção da obra paradidática “Vento forte, de sul e norte”, de Manuel Filho (2015), em um projeto de leitura conduzido com estudantes do 9º ano de uma escola pública. Nas próximas seções, discorremos sobre o ato de ler e o letramento crítico, descrevemos o contexto da pesquisa e, por fim, trazemos uma análise sobre o projeto de leitura.

Ler o mundo e se ler a partir de um livro


A leitura é o caminho que nos permite acessar informações e obter determinados acessos culturais, se por ela nos permitirmos enveredar. É sempre uma atividade de letramento, se pressupormos que sua compreensão será garantida pelo exercício da noção coletiva de existência em companhia dos sentidos graficamente reconhecidos. Em sala de aula, os letramentos da vida e da letra se promovem mediante as mais variadas práxis e eventos de leitura propostos pedagogicamente.

Ler uma obra paradidática, além de uma opção escolar estética privilegiada, promotora de letramento literário, pode ser uma forma de se promover letramento crítico (Jordão, 2013, 2014a, 2014b; Monte-Mór, 2015). Em meio à leitura da palavra, do mundo e de si mesmo, é possível despertar consciência crítica (Freire, 2021b), que nos faz ler os fatos do mundo na maneira causal e circunstancial como se dão na experiência empírica. Para Menezes de Souza (2011b), essa condição pode avançar, transformando e tornando o sujeito um ser reflexivo e problematizador, considerando como o eu produz a significação, ou melhor, como os ‘eus’ a produzem.

Desde a invasão europeia ao Brasil, temos sido submetidos a colonialidades, isto é, a classificações raciais/étnicas, e por que não dizer de gênero?, como padrão de modernidade (Quijano, 2000), subordinados a uma condição de poder, saber e ser relativa ao conhecimento, ao trabalho, à autoridade, que muitas vezes se estabelece de maneira oculta nas relações intersubjetivas (Mignolo, 2003). A alternativa pedagógica de resistência a algo marcadamente discursivo, que tende a universalizar, homogeneizar, classificar, padronizar e hierarquizar tudo que é plural, sob prerrogativa democrática, estaria na mediação decolonial (Walsh, 2013) e na promoção de letramento crítico (Monte-Mór, 2015).

Para nós, o letramento crítico é uma possibilidade pedagógica de expandir visões homogêneas, universais e restritas de um passado colonial. Para Menezes de Souza (2011a, p. 296), esse tipo de proposta serve à ampliação de leituras e de construção de significados, na medida em que compreensões textuais não são feitas de modo aleatório, mas são ideologicamente balizadas por discursos, dos quais engendram relações de poder, dialogismos, posicionamentos intersubjetivos, características sócio-políticas e históricas de sua produção, entre outros aspectos enunciativos, e pela diferença social.

Jordão (2013) distingue leitura crítica, na pedagogia freiriana, de letramento crítico, com base nos estudos linguísticos. Para a autora, a leitura crítica estaria mais reservada ao trabalho docente homogeneizante, com modelo de subjetividade pré-concebido, quando esse profissional ensina seus alunos a perceberem a maquinação da ideologia em textos e, assim, os ajuda a desvelarem a realidade existente, obtendo consciência por trás da palavra e se libertando do sistema de ocultação opressor. Com essa consciência, o aluno pode, então, promover transformação.

No letramento crítico, entretanto, a multiplicidade de sentidos ideológicos viabilizada pela linguagem (discurso) torna-se algo produtivo no trabalho docente, ao explorar, com estudantes, cada verdade, ideologia e sentido em disputa, a fim de se construírem (novos) sentidos e relações passíveis de negociação, conforme a circunstância na qual se inserem, mas sempre articuladas com outras verdades ideologicamente possíveis no mundo.

À medida que, conforme Jordão (2013, p. 76), no letramento crítico “tanto alunos quanto professores se percebem desenvolvendo processos de construção de sentidos”, torna-se relevante a observação por esses agentes de sua própria condição de “construtores e atribuidores de sentidos às coisas”. Assim, cabe ao leitor “não apenas ler, mas ler, se lendo”, isto é, estar o tempo todo consciente de como está lendo, construindo significados, “e não achar que a leitura é um processo transparente” (Menezes de Souza, 2011a, p. 296), que o que se lê é aquilo que está escrito. Seriam válidas autorreflexões como: “por que entendi assim? Por que acho isso? De onde vieram as minhas ideias, as minhas interpretações?”, já que “leitura nunca tem um único significado” (p. 297).

O letramento crítico, nessa direção, conduziria leitores a desvelamentos de condições opressoras em práxis sociais, permitindo-os relacionar disputas ideológicas existentes nas palavras e no mundo. Consequentemente, isso lhes forneceria relações de sentidos-outras existentes entre leituras. Se, em nossa realidade social brasileira, a colonialidade se mobiliza por ideologias que nos fizeram/fazem acreditar que determinadas leituras de mundo são únicas, ao nos precavermos disso e ultrapassarmos tal dimensão, por contraste entre mundos possíveis, poderíamos constatar a relatividade dos sentidos e das circunstâncias que nos impedem de ler de outra forma, tornando promissoras as ressignificações.

Além disso, em uma proposta de letramento crítico, ao invés de busca por igualdade, “é necessário mostrar aos alunos que devemos conviver com a diferença, que ela não é errada, é apenas diferente do ‘eu’” (Silva & Nunes, 2021, p. 191). Para tanto, segundo Landim (2018) e Duboc e Ferraz (2018), é necessário que o leitor esteja ciente de sua existência coletiva e busque aprender a ouvir e a aprender a se ouvir, ouvindo; aprenda a ler, se lendo, ou seja, uma atitude consciente à emancipação de sentidos que lhe atribui o desenvolvimento de ação social.

Para Janks (2016, p. 31), “como o nosso mundo é construído na e pela linguagem, ela molda nossa compreensão dele, associada ao nosso senso de um eu particular e dos outros”. Assim, por intermédio da característica discursiva da leitura entramos em contato com nosso eu, com o outro e com o mundo, e dentro de uma possibilidade de letramento crítico, cujos princípios se associam à diversidade cultural, podemos desafiar o status quo, e transformar nossa sociedade desigual em termos de classe, raça, gênero, sexualidade e inclusão. Isso se torna fulcral à cidadania, uma vez que a linguagem encabeça vários desses processos.

Já que a leitura constitui-se um modo de (res)significar e de trazer à existência o que antes não conseguíamos nomear, podemos dizer que o letramento crítico se faz plausível em eventos de leitura literária, ao reconhecer que todo texto levado à dimensão de interpretação por um professor, desde uma obra canônica a uma receita de bolo, em contexto escolar ou extraclasse, corresponde, primeiramente, a um fazer político-pedagógico que, por consequência, vai ser alimentado por trajetórias textuais políticas próprias de leitura contidas no conteúdo e na autoria do lido, construindo sentidos no mundo social.

O letramento crítico é uma condição pedagógica que permite desenvolver leituras de mundo, chances alheias de interpretação e ampliação de pensamentos sem propositura de um modelo ideal ou mesmo uma postura incisiva docente. Com isso, pode nos conduzir a processos de relativismo cultural, de alteridade e de respeito às diferenças. Se, como enfatizam Menezes de Souza (2011a), Jordão (2013, 2014a, 2014b) e Monte-Mór (2015), o letramento crítico propicia desenvolvimento de agência naquele que lê, trazer certos assuntos mobilizados em uma obra paradidática, emudecidos socialmente pela colonialidade, pode ser uma maneira de transformar o silenciamento de questões cotidianas opressoras, evitando desigualdades sociais.

Contextualização e metodologia


O material empírico deste estudo se constitui de uma pesquisa-ação qualitativa (Thiollent, 2006; 2011), com a finalidade de, por intermédio de um projeto de leitura paradidática realizado na escola, promover letramento crítico e expandir a compreensão discente acerca dos temas aventados na obra. Desse modo, a geração dos dados se faz articulada à obra literária paradidática-base, ao projeto de leitura institucional e à ação dos agentes envolvidos.

A obra paradidática-base do projeto


Constitui-se base do projeto de leitura o livro paradidático destinado ao público juvenil, escrito por Manuel Filho1 (2015), intitulado “Vento forte, de sul e norte”. Narra a história de uma menina negra e orfã, chamada Luísa, que foi adotada, ainda criança, por um homem homossexual, enquanto pai solo, o qual, logo depois, se casa com Otávio. Em seu dia a dia, a protagonista vive sob estigmas sociais orientados pelo sistema moderno-colonial, mobilizando, conforme Akotirene (2019), interseccionalidades de gênero, sexualidade, raça e classe social.

Figura 1

Capa e contracapa do livro paradidático

Fonte: Manuel Filho (2015).

O romance de Manuel Filho (2015) é dividido em narração e narrativa. As narrativas trazem falas diretas das personagens Luísa, Otávio, Valmir e Gabriel, contadas em primeira pessoa. Já as narrações são produzidas em terceira pessoa e contam situações, sentimentos adolescentes e preconceitos vividos por Luísa.


O projeto de leitura institucional


A pesquisa se organiza a partir do projeto de leitura desenvolvido em uma escola pública municipal durante aulas de língua portuguesa ministradas no turno matutino do ano de 2021. Apresentamos o Quadro 1 com a divisão das etapas:

Quadro 1

Cronograma do projeto de leitura

Cronograma

Data

Ações realizadas

Participação

Duração

Atividade 1

16/10/21

Atividade prévia sobre raça



Encontro 1


Tema: Negritude



Dia 1

18/10/21

(2 aulas)

Troca de leituras entre os textos produzidos sobre raça;

comentários.

Pesquisador

Professora

18 alunos

1h20



Dia 2

19/10/21

(2 aulas)

Projeção e discussão do vídeo Cores e Botas, de Juliana Vicente.

Pesquisador

Professora

18 alunos

1h20

Problema-tização 1

20/10/21

22/10/21

Roda de conversa sobre Negritude

Pesquisador

Professora

16 alunos

0h50

Atividade 2

23/10/21

Atividade prévia sobre arranjos familiares



Encontro 2


Tema: Arranjos familiares,

gênero e sexualidade



Dia 3

22/10/21

Exposição sobre o conceito de família nuclear utilizado nas Constituições Federais brasileiras e Código Civil de 2002

Pesquisador

30 alunos

1h20

Problema-tização 2

23/10/21

Roda de conversa sobre arranjos familiares

Pesquisador

17 alunos


Atividade 3


22/10/21

02/11/21

Leitura do livro paradidático

e preenchimento

da Ficha de leitura



Encontro 3


Debate sobre conteúdo do livro paradidático



Dia 4

03/11/21

(2 aulas)

Apanhado das temáticas abordadas no livro

Pesquisador 16 alunos

1h40

Dia 5


04/11/21

(3 aulas)

Discussões sobre o livro paradidático

Pesquisador 16 alunos

2h30

Fonte: os autores.

Os participantes


A pesquisa-ação foi conduzida em uma turma do 9º ano de escola pública municipal de Goiás, composta de 16 alunos, professora e um dos pesquisadores deste estudo. Apesar de não aparecem relatos de todos os participantes da pesquisa, por conta da ausência aos encontros ou da efetiva participação durante as interações, consideramos relevante apresentar, no Quadro 2, a seguir, toda a equipe de composição, uma vez que as materialidades trazidas à discussão se condicionam ao contexto de produção discursiva, conferindo intencionalidades e efeitos de sentidos intersubjetivos.

Quadro 1

Informações sobre os participantes obtidas durante roda de conversa

Pseudônimo

Idade

Cor/ Raça

Arranjo familiar

Sexo

Religião

Pesquisador

34

Branca

Nuclear

Masculino

Evangélico

Professora regente

38

Branca

Unipessoal

Feminino

Evangélica

Clara

14

Negra/ Parda

Monoparental

(de mãe viúva)

Feminino

Evangélica

Carol

14

Branca

Nuclear

Feminino

Católica

Dressa

14

Branca

Nuclear

Feminino

Cristã

Kaká

15

Negra/Parda

Nuclear

Masculino

Católico

Nanda

14

Negra/Parda

Nuclear

Feminino

Cristã

Batista

15

Branca

Nuclear

Masculino

Cristão

Biel

14

Branca

Nuclear

Masculino

Cristão

Geo

15

Negra/Parda

Nuclear

Feminino

Cristã

Jotacê

14

Negra/Morena

Nuclear

Masculino

Evangélico

Kari

14

Branca

Nuclear

Feminino

Cristã

Quim

14

Negra/ Parda

Nuclear

Masculino

Evangélico

Duda

14

Negra/ Parda

Monoparental

(de mãe solo)

Feminino

Cristã

Mari

14

Branca

Nuclear

Feminino

Católica

Rai

15

Negra/Preta

Monoparental

(de pai solo)

Feminino

Cristã

Tatá

14

Branca

Nuclear

Feminino

Cristã

Mavi

15

Negra/Preta

Afetiva (adoção)

Feminino

Católica

Nota: Houve escolha do próprio pseudônimo pelos participantes, para garantir o anonimato das informações, e foram assinados os termos de consentimento livre e esclarecido.

Fonte: os autores.

Os instrumentos de pesquisa


Além do conteúdo do livro paradidático, os dados foram gerados a partir da gravação em áudio das rodas de conversas produzidas durante os encontros do projeto, e das atividades escritas discentes. Além das intencionalidades discursivas da conversa, levam-se em conta, ainda, as subjetividades na autoria deste texto, que se dão pela seleção de recortes e de fragmentos textuais à luz de um processo interpretativo (Moita Lopes, 1994).

Neste texto, optamos por trazer à reflexão falas diretas dos participantes, mobilizando a estrutura sintática e lexical original de produção conforme as conversas. Nos excertos, é informada a referência ao encontro (E1, E2 etc.), à atividade (AT1, AT2 etc.) e ao dia específico (D1, D2 etc.), a fim de contextualização dos enunciados para uma melhor qualidade à análise.


Uma interpretação da ação em campo


Ler a obra paradidática lendo a si mesmos e o mundo à volta configurou-se como uma forma de refletir sobre a vida dentro e fora de sala de aula. O projeto de leitura, conduzido sob mediação discursivo-política articulada a textos, ocasionou aos participantes da ação a oportunidade de produzir asserções, algumas reveladoras de processos reflexivos, de expandir visões e opiniões e de observar as diferenças acontecendo em meio aos relatos de colegas. À vista disso, promoveu possibilidades de letramento crítico, corroborando um processo de expansão de perspectivas e de criação de possibilidades de (auto)construção em meio às relações estudantis.

Sobre o tema arranjos familiares, os alunos puderam ampliar exemplos de composição a começar da analogia à família homoparental da personagem Luísa. A aluna Carol, embora defina seu pertencimento a uma família nuclear, compreende que parentescos se formam para além da consanguinidade: pela subjetividade dos próprios membros.

Figura 2

Atividade 2 sobre modelos de família produzida por Carol

Fonte: os autores.

Com as leituras, os discentes constataram outros arranjos familiares presentes na vida dos próprios colegas, como a família afetiva (por adoção) da participante Mali, a família monoparental (mãe solo) de Duda e monoparental (pai solo) de Rai. Observaram que a monoparentalidade feminina não é exclusividade brasileira, e mais expressiva em famílias de baixa renda. Verificaram que o termo “mãe solteira” continua moralmente reprovável diante da condição patriarcal, machista e misógina de sociedade, e que, apesar de haver leis que garantem direitos às mulheres desprovidas de renda e com filhos incapazes, previstas na Constituição da República Federativa do Brasil (Brasil, 1988), no Estatuto da Criança e do Adolescente (Brasil, 1990) e na Lei que institui o Código Civil (Brasil, 2002), ainda se faz comum o estigma de elas chefiarem famílias.

Tenho uma tia que viveu muito tempo mãe solteira, a filha dela virou engenheira e o filho dela virou piloto de avião. A vida inteira dela, ela trabalhou para os filhos dela, e hoje eles são bem de vida, mas, na opinião dela, se ela tivesse um marido, um bom marido, seria melhor, mas, no meu ponto de vista, eu olhando para eles, eles já são uma família perfeita. Os dois filhos dela têm um bom emprego, uma boa vida e os três são unidos. (Quim, 14 anos, estudante)

O letramento crítico nessa cena se materializa em função do escancaramento de realidades pós-leitura, movimentadas por consciência crítica de sentidos vivenciados pelos próprios estudantes, os quais trazem à tona, ecoando Jordão (2013, p. 84), a relação de suas vidas com os sistemas sociais de dominação ao investigarem sentidos que pairam sobre os arranjos familiares no Brasil e os processos de sua construção.

A leitura da obra incitou discentes a espontaneamente procurarem por outras leituras, a fim de conectar o tema às argumentações que os colegas e a própria obra produziam. Durante essas buscas dentro e fora da escola, traziam para o encontro dados e fontes importantes para os debates. Discursivamente, ler outros modos de arranjo familiar significou problematizar aqueles modelos antes desqualificados em virtude da família nuclear (Caetano et al., 2016). Durante um dos encontros, a discente Mavi narrou o próprio processo de adoção, contando sobre sua genitora e sobre sua família afetiva:

Eu fui adotada aos quatro anos de idade, e sempre que eu conto para alguém, sempre desperta a curiosidade: “Você morou em orfanato? Como é?” Mas eu nunca cheguei a morar num abrigo, a minha mãe tinha muito uma coisa do tipo, me deixar na casa de uma certa pessoa e falar: “Vou ali e já volto”. Ela voltava uma semana depois, e me buscava.[...] Minha mãe biológica. Ela me buscava de novo, aí, um tempo depois, ela precisava de novo, me deixava na casa de alguém, sumia e voltava. Tanto que, da última vez que ela fez isso, ela falou com uma senhora de idade, ela falou: “Fica com minha filha uns minutos, que eu vou ali e já volto bem rápido”. E nisso, minha mãe foi e demorou nove meses para voltar. Nesses nove meses, eu havia sido adotada pela minha mãe [nome da mãe]. Então, começou o processo de adoção. Eu mesma não conhecia muito o pessoal da família biológica, eu fui ter contato com eles em 2017, quando o juiz os intimou para o processo de adoção, eu fui conhecer um pouco, saber que a minha mãe tinha falecido há uns anos atrás, saber que meu pai era um dependente químico, da minha irmã que morou num orfanato uns seis meses. Só que ao mesmo tempo que eu julgo muito eles, por serem irresponsáveis e imaturos, eu não julgo, porque sempre tem dois lados da história. Eu sempre conheci o meu lado, por achar que eles sempre eram os vilões, mas eles também passaram por muitas coisas, também sofreram muito, então, não dá para sempre apontar o dedo e julgar uma versão sem conhecer o outro lado também. (Mavi, 15 anos, estudante)

Com a história de Mavi (real) se cruzando com a estória de Luísa (ficção), foi possível observar “[c]omo “o eu [do autor com o de Mavi] produz a significação” (Menezes de Souza, p. 139) ao fazer a leitura sobre o desafio brasileiro diante do grande número de crianças e adolescentes em situação de acolhimento, ou seja, afastadas de seus responsáveis legais devido a abandono, maus tratos, vício em entorpecentes, prostituição etc. Emergiram da conversa alguns traumas infantis decorrentes da situação de abandono, a morosidade dos ritos judiciais para se conceder a legalidade da adoção, além das ressalvas estabelecidas pelos pretendentes ao adotar: preferência por crianças menores de 6 anos, com boa saúde física e mental, sem doenças infectocontagiosas, entre outras.

Referente às questões raciais, durante um encontro foi lido fragmento da narrativa de Luísa, no momento em que ela estava chegando da escola ao prédio onde morava. Pegando o elevador de serviço, que já estava disponível para chegar ao seu andar, a protagonista conta a seguinte cena:

Dentro dele, uma senhora bem vestida, excessivamente perfumada, me olhou de cima a baixo.

Bom dia – falei ao entrar.

Silêncio total. A mulher, então, sorriu e perguntou:

Sua mãe trabalha aqui? […]

Por quê?

Feliz com o interesse, ela respondeu:

Acabei de me mudar para cá e estou precisando de uma empregada nova, quem sabe se sua mãe não poderia me indicar uma, não é?

O “não é?” me soou bastante conclusivo, como se toda aquela situação tivesse apenas uma única resposta. (Manuel Filho, 2015, pp. 9-10)

Na trama, Dona Sofia é uma nova moradora no prédio onde residem Luísa e seus pais. O trecho infere uma situação de preconceito que se articula a outros, interseccionando classe, raça e gênero. Em atenção ao que é definido por Akotirene (2019), a injustiça social vivenciada pela personagem protagonista tem a ver com seu corpo racializado e generificado, lido enquanto menina negra e pobre. A partir disso, o estudante Biel comenta:

Só por ela (Luísa) ser uma menina negra, aquela mulher tem um sentimento meio racista, preconceituoso, que a mãe dela ia ser uma empregada. Não podia ser uma professora ou ter uma profissão de nível mais alto. Só por causa que a cor da pele [...] a mulher viu aquilo ali, falou: “Estou procurando empregada” e falou que a mãe dela pudesse ser. (Biel, 14 anos, estudante)

Posteriormente, Geo nos apresenta uma leitura interessante em relação à situação racial em nosso país em um trecho de sua redação:


Figura 3

Atividade 1 sobre negritude no Brasil produzida por Geo

Fonte: os autores.

Como podemos notar, dos assuntos trabalhados na obra ecoam instigantes reflexões discentes sobre a diferença familiar, de gênero e, no caso do texto produzido por Geo, da estrutura racial brasileira com as desigualdades que operam. Tudo isso nos permite ver o avanço do “desvendar a ideologia” racista para a “reflexividade perante (processos de) construção de sentidos”, conforme Jordão (2014a, p. 87). Logo, a proposta de letramento crítico com a leitura paradidática associada a temas cotidianos discentes propiciou que assuntos da diferença (histórica, cultural, ideológica etc.) fossem discursivamente tratados em sala de aula.

No decorrer dos encontros, houve aberturas à aprendizagem, estranhamentos, resistências, mas logo os alunos começaram a perceber a relevância de se lerem perante os conflitos da trama, isto é, lerem criticamente ao “problematizar práticas de construção de sentidos/representações” das personagens ficcionais, reposicionando-se (Jordão, 2014a, p. 87). Inclusive, foi processual a compreensão de que poderiam emitir opiniões, concordar ou contestar proposições ali realizadas. Em outro momento coletivo, foi lido um trecho de uma conversa de Luísa com sua melhor amiga Nara, reiterando o sentimento de preconceito vivido por ser filha adotiva e por ter pais homossexuais:

A sua família é tão legal... – disse Nara. – A minha é bastante sem graça. Sabe quando uma festa assim ia acontecer lá em casa? Nunca!

Um monte de gente não aceita minha família, você sabe disso [disse Luísa]. (Manuel Filho, 2015, pp. 9-10)

Quanto ao gênero, o aluno Quim, em resposta à atividade desenvolvida na sequência, relativiza a composição familiar à crença cristã que possui, cita partes bíblicas que supostamente proibiriam a homossexualidade, ao mesmo tempo que apresenta argumentos do livro cristão em relação ao amor ao próximo:

Figura 4

Resposta de Quim às problematizações do Encontro 2

Fonte: os autores.

Em vários momentos, a questão religiosa-cristã, que sustenta o (cis)tema colonial vigente, foi tópico de discussão, especialmente ao se tocar no tema da homossexualidade suscitado pela obra. No E2D3, Quim, chegou a levar uma Bíblia e a ler uma citação do livro cristão análoga a condições de imoralidade sexual. No encontro seguinte, E3D4, também causou certo desconforto nos colegas, ainda que todos se assumissem cristãos, ao se posicionar contrário ao modelo de família de Luísa:

Eu sou cristão. O cristão em si leva muito a parte bíblica e a cultura. Na nossa crença, as leis são diferentes. Prostituição, adorar ídolo, comer carne sacrificada e imoralidade sexual são pecados. A Dressa diz que homossexualismo não tem a ver com imoralidade sexual, mas [...] em Romanos fala sobre isso ser pecado e quem fizer isso não será abençoado. [...] Como cristão, eu não apoio a comunidade LGBT, mas respeito. Como na Bíblia fala pra gente amar os outros. [...] Eu sigo a lei. Qualquer um que quiser seguir a lei, pode seguir. [...] (Quim, 14 anos, estudante)

Eu sou evangélica. Minha família é muito rígida, inclusive a maioria dos homens é machista demais. Aí, eu não concordo com a opinião deles, com o fato de a pessoa ser desse tipo e não ter salvação. Para mim, a pessoa nasce assim e vai continuar assim. Nasceu com aquilo, vai continuar com aquilo. Para mim não tem que discriminar, mas também não tem que julgar, não tem que opinar na vida da pessoa. [...] se ele fez alguma coisa, alguma coisa errada da Bíblia, é ele com Deus. [...] Inclusive tem vários amigos desse tipo e... [gesto batendo com os dedos das mãos de um lado para o outro, em sentido de que não importa, tanto faz]. (Clara, 14 anos, estudante)

[...] mas eu acho que muitos usam a Bíblia para esconder o preconceito. [...] (Carol, 14 anos, estudante)

Em plena amostra de como o letramento crítico se promove, nas palavras de Menezes de Souza (2011b, p. 139), tendo “a leitura como dissenso, conflitante” entre produtores da significação, diferentemente de Quim, Clara demonstra-se favorável à diversidade de gênero com seus argumentos que desestabilizam a ordem do cristianismo assimilada histórica e culturalmente como verdades absolutas. Apesar da divergência, Clara mobiliza os termos “aquilo” e “desse tipo” em referenciação à homossexualidade, assim como veremos, em dois excertos seguintes, outros participantes buscando evitar nomear a homossexualidade. Por fim, Carol inaugura uma profícua reflexão sobre a heteronormatividade religiosa cristã. Todavia, sem continuidade.

Trazendo conhecimentos legítimos para o contato de sala de aula”, que é outro princípio do letramento crítico segundo Jordão (2014b, p. 202), alguns estudantes levantaram o fato de que, apesar de viverem em um país oficialmente laico, ainda hoje a cristandade exerce grande influência na cosmovisão binária e cis-heteronormativa brasileira.

Parte da árvore genealógica da minha família, meu tio era um homem muito religioso e se desviou. Ele tinha três filhos. Um começou a roubar e fazer tráfico. E os outros dois viraram homossexuais. Eles não eram assim. Eles eram trabalhadores, eram gente... não vou dizer gente normal, mas eram pessoas tradicionais [...]Eu não diria isso [que eles saíram da igreja porque se tornaram homossexuais], porque foi uma escolha deles. [...] Eu acho que eles não tinham isso [a homossexualidade] com eles. [...] Como é um assunto delicado e eles moram longe, nunca perguntei isso [se já tiveram experiências ou interesse por outros caras] para eles. [...] Eu não acho [que foi um castigo de Deus]. O pai deles era muito rigoroso, eles se afastaram dos pais, não ficou tendo regra, regra, regra, regra, o tempo inteiro. Aí, não sei, deve que eles foram se libertando... entre aspas. (Quim, 14 anos, estudante)

Não acho que é questão de sair da igreja não. Por exemplo, eu frequento muito a igreja. E desde criança, eu acho que ser gay, ser lésbica, ser bi, eu acho que a pessoa nasce. Se eu pudesse escolher, eu não queria escolher nascer lésbica, porque eu acho muito difícil, especialmente, pelo fato de o meu pai não concordar. Eu acho que Deus criou o homem e a mulher para ser uma forma de reprodução, se não ele não tinha criado outros homens e outras mulheres. Eu frequento muito a igreja, e acho que não impede a pessoa de ser ou não ser lésbica ou gay. (Mari, 14 anos, estudante)

Eu também conheço pessoa que assim, mesmo tudo contra ela, ela ainda tem um sentimento de atração. (Quim, 14 anos, estudante)

Não é questão de a pessoa crescer e falar: “Só vou saber se eu realmente sou se eu estiver adulta, aí eu descubro”. Não. Por exemplo, quando eu era pequena, eu já sentia atração por menina. [...] Eu não pensava que era uma coisa diferente, uma coisa estranha, porque para mim era normal. Era como se eu gostasse de menino, só que eu gostava de menina. (Mari, 14 anos, estudante)

Não que acho errada a opinião dele [Quim], só que na minha visão eu discordo, porque eu acho que a pessoa nasce. Ele disse que os parentes não eram assim e se transformaram depois... Muitas pessoas não se mostram por conta do preconceito e esconde, quando se sente bem, conta. Então, eu acho que nasce. (Carol, 14 anos, estudante)

Então, eu não nasci hétero. Eu vi meu pai e minha mãe se beijando, não me influenciou em nada, eu não virei hétero. (Kaká, 15 anos, estudante)

Apesar da fala intolerante de Quim, apontando que a homossexualidade é uma escolha e, assim como a criminalidade, se dá devido à desobediência à regra, Mari, Carol e Kaká discordam do colega, e apontam exemplos pessoais, sustentando que se trata de ‘orientação’. Kaká afirma, inclusive, que não escolheu ser homossexual e que nem mesmo o fato de sempre ver seus pais se beijarem o influenciou a “tornar-se” heterossexual.

Cabe salientar, ainda, que a negociação de sentidos, marcada pela expressão de Carol: “não acho errada a opinião dele [de Quim], só que [...] discordo”, reafirma o fato de que o letramento crítico, conforme acepção de Jordão (2014b, p. 203), é caracterizado pelo princípio de comunidades interpretativas, ou seja, nela os sentidos se tornam [a]tribuídos/construídos por cada estudante, sem uma verdade dominante em sobreposição.

Em outro encontro, Mavi foi contundente ao corrigir o termo ‘homossexualismo’ utilizado por Quim, alegando o preconceito por trás do sufixo -ismo, designado como “patologia, doença” pela própria Organização Mundial de Saúde até 1990, contrastando a evolução histórica para ‘homossexualidade’, com o sufixo -dade significando “modo de ser”. Foi aproveitado o tema “formação de palavras”, que veio à tona, para expor exemplos desse prefixo e de outros morfemas em língua portuguesa.

Após leitura de outro trecho da obra, em que o personagem Otávio conta como se deu o momento de se afirmar homossexual à família, Mari e outros colegas inauguram esta reflexão:

A sociedade impõe uma coisa tão... igual eu falei no começo. Por que a pessoa precisa se assumir que é lésbica, que é gay, que é bi e não precisa assumir... [a heterossexualidade] (Mari, 14 anos, estudante)

[Não preciso me assumir hétero] Porque é algo padrão, tradicional né? Tipo assim, você ... normal. (Dressa, 14 anos, estudante)

A sociedade vê hétero como normal. (Quim, 14 anos, estudante)

Acho que tem que mostrar isso [questões de gênero] desde cedo, né? (Mari, 14 anos, estudante)

[...] fica escondendo isso das crianças, quando a criança descobre, pensa que é uma coisa de outro mundo. (Biel, 14 anos, estudante)

Tem gente que pensa assim: “– Ah, meu filho vai assistir uma coisa que é de gay, ele vai ser gay também” [...] você pode sentir alguma coisa, se você for, né? (Mari, 14 anos, estudante)

Podemos sugerir que as várias leituras do livro estimularam a insurgência de sentidos leitores, construindo letramentos críticos em meio às (des)identificações estudantis. Mari compreende que é preciso falar de gênero e sexualidade e que (se) informar sobre tais assuntos não se trata de uma futilidade erótica.

Eu vou citar um programa que passava na televisão e meus pais não gostavam que eu assistisse [...] porque já apareceu uma parte que acho que eles viram dois homens se beijando, [...] e eles pensaram que ia me influenciar por causa daquilo lá. Mas, eu acho que não tem nada a ver, porque eu não me transformei nisso por causa de programa nenhum. Eu só senti. Não teve nada de... Ah, eu vi um programa e me transformei diferente. Eu acho que é porque... eu comecei a sentir uma coisa diferente. [...] Eu não me influenciei por causa de um programa. (Kaká, 15 anos, estudante)

Então, se um adolescente, que se considera homossexual, ver um casal hétero beijando, ele vai quere voltar a ser hétero? [pergunta ironicamente] (Dressa, 14 anos, estudante)

Interessante notar, no excerto anterior, de Dressa, a maneira como seu posicionamento não representa, do ponto de vista discursivo, uma verdade absoluta elaborada contundentemente. Pelo contrário, o tom de pergunta endereçada ao coletivo colabora para a problematização dos estigmas que se apuram no momento em que são lidos trechos da estória em sala de aula.

Em outra discussão, Mari fala sobre como a suposta neutralidade pedagógica acerca das temáticas de gênero implica severos danos às pessoas que performam em seus corpos a diferença.

Hoje em dia discute [questões de gênero], só que é pouco, né? [...] [Quando não se fala de racismo] Ele não existe. Igual o presidente [Bolsonaro] disse que não tem racismo no Brasil. [...] Por isso que eu citei, a forma que a sociedade finge que nada está acontecendo para não precisar... É que tem gente que pensa assim: Ah, não vou falar o que eu penso porque vai dar alguma briga ou discussão. (Mari, 14 anos, estudante)

Para além da razão colonial presente na escola de se primar por relações harmoniosas, na qual contestar ou discordar surte como posturas agressivas, arrogantes, não obedientes, quando, de fato, são elas exatamente a promover a busca e a ampliação do conhecimento que se provoca, o fato é que questões de gênero em território escolar são meticulosas e melindrosas.

Porque não é todo mundo que fala sobre [assuntos delicados], na escola tem muitos alunos que precisam (?) (Nanda, 14 anos, estudante)

Eu vou dar um exemplo pro senhor do dia da inclusão. A *professora fulana* falou assim que não ia ter nada [palestras e apresentações] de manhã, porque era só a tarde que tinha pessoas com deficiência. Eu fiquei, tipo, tá... Mas, não era de manhã mais assim que tinha que falar? [...] É inclusão, então, por que vai falar só pros que tem que ser incluídos? (Carol, 14 anos, estudante)

A problematização travada pelos adolescentes nos faz entender que temas “delicados”, ainda que necessários, quase não são abordados na escola. Todavia, o principal ponto a se destacar é como a leitura paradidática incita os discentes a trazerem conhecimentos legítimos para o contato de sala de aula, ecoando Jordão (2014b, p. 202), com leituras didáticas usadas não apenas “como pretexto para apresentar aos alunos um conhecimento melhor, mais sofisticado”.

Logo, ler a trama sai do convencional dentro da escola, de modo a causar curiosidade e participação discente, e a construir pontes de interpretação em associação com outras leituras e temas. Por essa razão, a discussão sobre assuntos polêmicos como gênero, adoção, homossexualidade, raça etc. induzidos pela obra paradidática em um projeto de leitura institucional, ainda que não muito frequente, enfatizando Frank (2021), precisa acontecer para expandir visões sobre determinados assuntos. Para tanto, é preciso cercar-se de uma mediação política, crítica e especialmente discursiva em meio às negociações e disputas de sentidos.

O equívoco de parte da população sobre a neutralidade do ensinar, em que ao docente só é permitido despejar conteúdos e técnicas, traz imensos prejuízos à cidadania ao não produzir letramento crítico. Se a “curiosidade epistemológica” promovida com a crítica não vem, segundo Freire (2021a, p. 27), mantém-se a educação bancária. Nesse sentido, romper com o status quo colonial escolar significa reduzir os danos avassaladores da intolerância, do desrespeito e, primordialmente, da ignorância no futuro.

A escola é um espaço de realidade micro da sociedade, no qual pessoas completamente diferentes participam em coletivo de uma mesma cultura institucional de ensino. Assim, é indispensável que, além do currículo comum e conteudista, desde sempre abordado na escola, haja inclusão de propostas de letramento crítico. É sua promoção em aula que nos permitirá falar, escutar, pensar, comparar etc., e principalmente: ler-se lendo:

Eu achei bom [participar do projeto de leitura], porque o povo quase não fala desse assunto. Eu acho que por ter medo. Aqui na escola, por exemplo, esse livro tem aqui né? Mas, ninguém quer mesmo falar sobre esse assunto, fala mais é sobre economia, essas coisas. Eu acho que tem medo de chegar algum pai e falar assim: “Está obrigando meu filho a ler esse livro aqui, vai desconverter meu filho.” (Mari, 14 anos, estudante)

Esses temas deviam ser trabalhados na escola. (Mavi, 15 anos, estudante)

Eu só acho que todo mundo é pessoa. E tudo isso aí de preconceito é só por conta de sexualidade, não vai mudar a pessoa no dia a dia. (Clara, 14 anos estudante)

Para Caetano et al. (2016, p. 131-132), é importante trabalhar temas que “valorize[m] os conhecimentos em sua pluralidade e vislumbre[m] outros caminhos para discutir as múltiplas possibilidades de estar no mundo”. Diante da certeza sobre a incerteza das convicções, continuamos a apostar nos benefícios do letramento crítico sempre como um convite à expansão e à problematização das coisas no mundo. No exercício reflexivo da leitura do livro e da vida, do ler-se lendo, está o compromisso ético da mudança pessoal e social.

Diante de uma coletividade que usufrui de códigos morais cristãos – ainda que recortados, descontextualizados ou readaptados – para fundamentar condutas de ódio e intolerância, torna-se fulcral, como assumem Caetano et al. (2016, p. 141), que “a problematização e o enfrentamento dos padrões dominantes e hegemônicos” sejam “constantes e intensivos”. Fugir do padrão heteronormativo burguês desumanizante tem que ser uma práxis sem precedentes em sala de aula à base de letramentos críticos como “brechas” (Duboc, 2014, p. 209), para construirmos espíritos abertos ao diálogo, característica essa essencial para se ler e ler o mundo à volta. Afinal, o letramento crítico consiste em fazer que a pessoa exposta a questionamentos possa refletir sobre os próprios argumentos, rever sua existência conjunta no mundo. Para tanto, como assevera Frank (2021), tem que ser permanente o envolvimento reflexivo, de forma consciente, sobre a produção discursiva na vida social.

Apesar de termos avançado com determinadas possibilidades de letramento crítico ao longo dos encontros propiciados pelo projeto de leitura, é possível observar que os leitores da obra ainda não mergulharam em um letramento crítico na dimensão exclusiva do ler-se lendo, conforme delineado por Menezes de Souza (2011a) e reiterado por Duboc (2014). Alguns questionamentos que se reservariam à perspectiva do ler-se lendo, talvez por conta do teor ficcional e metafórico da obra, não se tornaram possíveis. A nosso ver, o ler se lendo se articularia melhor a relações de sentidos mais denotativas e referenciais, para conseguir responder a algumas das dimensões de questionamentos sugeridas por Duboc (2014, p. 220):

O que o texto privilegia? O que o texto apaga (deixa de dizer)? O texto responde aos interesses de quem? Se o texto fosse escrito por outro sujeito ou em outro lugar, qual seria a diferença? Por que eu leio este texto assim? Por que o outro lê este texto assim?

Não obstante, ainda que o ler-se lendo não tenha sido promovido no decorrer dos encontros, o letramento crítico não deixou de cumprir promessa ao longo do projeto, uma vez que as leituras sofreram compreensões mediadas por contextualização, heterogeneidade, subjetividade e multiplicidade de sentidos, aspectos esses que, para Duboc (2014), são fundamentais ao letramento crítico, porque ultrapassam o modelo curricular tradicional, o universalismo e a objetividade dos conteúdos. Se queremos uma escola social, política e histórica, precisamos avançar exatamente nesses e em outros letramentos críticos.

Considerações finais


A leitura do livro de Manuel Filho (2015) no contexto de aplicação promoveu debates muito relevantes, nunca antes realizados naquela turma de nono ano. Um dos propósitos do letramento crítico, que era o de tensionar, foi, antes, uma tensão por não sabermos a aceitação que teríamos, por parte da comunidade, para falar sobre assuntos engavetados, como os previstos na obra paradidática. Mesmo porque esses temas desafiam a norma colonial sob privação ponderada em torno de argumentos coloniais-cristãos, conforme vimos. Todavia, ao longo do projeto, diferentemente do esperado, percebemos o interesse e a curiosidade por parte de toda turma, heterogênea, bem como a urgência de serem promovidos outros letramentos críticos a partir da estória lida.

As leituras permitiram, retomando Freire (2021a, p. 28), a transformação dos educandos “em reais sujeitos da construção e da reconstrução do saber ensinado, ao lado do educador, igualmente sujeito do processo”. Com o movimento da palavra ao mundo e, ao mesmo tempo, do mundo à palavra, fomos lendo a obra, partilhando o (re)conhecimento de realidades heterogêneas e abrindo espaços para a problematização, autoafirmação, aceitação, compreensão e confrontação. Fomos lendo a obra, nos lendo como cristãos e percebendo a heteronormatividade compulsória em que vivemos, o legado colonial de raça e de gênero introjetado em nossas visões de mundo. Boa parte das vezes foram invocados sentidos-outros, valorizando a história pessoal a partir da identificação com as leituras, além da interação de conhecimentos situados com os princípios dos letramentos críticos. O ato de ler foi oferecendo, à nossa inquieta (des)identificação, letramento crítico como possibilidade reconhecedora da multiplicidade de sentidos e de diferenças ideológicas mobilizadas, e de algumas opressões e desigualdades sociais sob atenções linguísticas.

Referências


Akotirene, K. (2019). Interseccionalidade. Pólem.

Brasil. (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Congresso Nacional do Brasil. Assembleia Nacional Constituinte. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm

Brasil. (1990). Lei 8.069 de 13 de julho de 1990. (Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências). Presidência da República. Casa Civil. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm

Brasil. (2002). Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002. (Institui o Código Civil). Presidência da República. Casa Civil. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm

Caetano, M., & Silva Júnior, P. M. , & Goulart, T. E. S. (2016). Famílias, masculinidades e racialidades na escola: provocações queer e decoloniais. Revista da FAEEBA, 25(45), 127-143. https://doi.org/10.2015/jan.abr.v25n45.010

Duboc, A. P. M. (2014). Letramento crítico nas brechas da sala de línguas estrangeiras. Em N. H. Takaki, & R. F. Maciel (Orgs.). Letramentos em terra de Paulo Freire. (pp. 209-230). Pontes.

Duboc, A. P. M., & Ferraz, D. M. (2018). Reading ourselves: placing critical literacies in contemporary language education. RBLA, 18(2), 227-254. https://doi.org/10.1590/1984-6398201812277

Frank, H. (2021). A complexidade da linguagem e de seus usos: incitações a uma educação linguística crítica. Humanidades & Inovação, 8(43), 296-308. https://revista.unitins.br/index.php/humanidadeseinovacao/article/view/5873

Freire, P. (2005). A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. Cortez.

Freire, P. (2021a). Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. Paz e Terra.

Freire, P. (2021b). Pedagogia do oprimido. Paz e Terra.

Janks, H. (2016). Panorama sobre letramento crítico. Em D. M. Jesus, & D. Carbonieri (Orgs.). Práticas de multiletramentos e letramento crítico: outros sentidos para a sala de aula de línguas estrangeiras (pp. 21-39). Pontes.

Jordão, C. M. (2013). Abordagem comunicativa, pedagogia crítica e letramento crítico: farinhas do mesmo saco?. Em C. H. Rocha, & R. F. Maciel (Orgs.). Língua estrangeira e formação cidadã: por entre discursos e práticas. (pp. 69-90). Pontes.

Jordão, C. M. (2014a). Aprendendo LE com o professor Jacotot: criticidade na pedagogia crítica e no letramento crítico. Em E. Mateus, & N. B. Oliveira. (Orgs.). Estudos críticos da linguagem e formação de professores/as de línguas: contribuições teórico-metodológicas (pp. 121-143). Pontes.

Jordão, C. M. (2014b). Pontes. Birds of different feathers: algumas diferenças entre letramento crítico, pedagógica crítica e abordagem comunicativa. Em N. H. Takaki, & R. F. Maciel (Orgs.). Letramentos em terra de Paulo Freire. (pp. 195-207). Pontes.

Landim, D. S. P. (2018). Ler-se lendo “A hora da Estrela”: reflexividade e letramento crítico de alunos na Educação de Jovens e Adultos (EJA). Papéis, 22(43), 109-134. https://desafioonline.ufms.br/index.php/papeis/article/view/5951/5322

Manuel Filho. (2015). Vento forte, de sul e norte. Editora do Brasil.

Menezes de Souza, L. M. T. (2011a). Para uma redefinição de letramento crítico: conflito e produção de significação. Em R. F. Maciel, & V. A. Araújo (Orgs.). Formação de professores de línguas: ampliando perspectivas (pp. 128-140). Paco Editorial.

Menezes de Souza, L. M. T. (2011b). O professor de inglês e os letramentos no século XXI: métodos ou ética? Em C. M. Jordão, & J. Z. Martinez, & R. C. Halu. (Orgs.). Formação desformatada: práticas com professores de língua inglesa (pp. 279-303). Pontes.

Mignolo, W. (2003). Historias locales/disenos globales: colonialidad, conocimientos subalternos y pensamiento fronterizo. Akal.

Moita Lopes, L. P. (1994). Pesquisa interpretativa em Linguística Aplicada: a linguagem como condição e solução. DELTA, 10(2), 329-338. https://revistas.pucsp.br/index.php/delta/article/view/45412/29985

Monte-Mór, W. (2015). Crítica e letramentos críticos: reflexões preliminares. Em C. H. Rocha, & R. F. Maciel (Orgs.). Língua estrangeira e formação cidadã: por entre discursos e práticas (pp. 31-50). Pontes.

Quijano, A. (2000). Colonialidad del poder y clasificacion social. Journal of world-systems research, 11 (2), 342-386.

Silva, N. S. M., & Nunes, T. M. (2021). Letramento crítico no planejamento de aulas de inglês: promovendo o “ler, se lendo”. Revista de Estudos Acadêmicos de Letras, 14(1), 187-201. https://doi.org/10.30681/real.v14i1.4812

Thiollent, M. (2006). A inserção da pesquisa-ação no contexto da extensão universitária. Em C. R. Brandão, & D. R. Streck (Orgs.). Pesquisa participante: a partilha do saber (pp. 151-165). Ideias & Letras.

Thiollent, M. (2011). Metodologia da pesquisa-ação. Cortez.

Walsh, C. (2013). Pedagogías decoloniales: prácticas insurgentes de resistir, (re)existir y (re)vivir. Ediciones Abya-Yala.


Sobre os autores


Hélvio Frank


Universidade Estadual de Goiás, Itapuranga, GO, Brasil

https://orcid.org/0000-0002-0553-8075


Doutor em Letras e Linguística pela Universidade Federal de Goiás (2013). Docente efetivo do Departamento de Letras da Universidade Estadual de Goiás, Câmpus Cora Coralina, Unidade Universitária de Itapuranga. E-mail: helviofrank@hotmail.com


Paulo de Almeida de Oliveira Júnior


Secretaria Municipal de Educação, Rubiataba, GO, Brasil

https://orcid.org/0000-0002-1756-7893


Mestre em Educação, Linguagem e Tecnologias pela UEG (2022). Professor efetivo de Língua Inglesa da Escola Municipal Rivaldo Santana Sampaio. E-mail: pjcristo@hotmail.com


Contribuição na elaboração do texto: os autores contribuíram igualmente na elaboração do manuscrito.


Resumen


En este texto, problematizamos las lecturas de estudiantes como posibilidad de literacidad crítica em relación con los temas género, la sexualidad, la raza y los arreglos familiares, desde la recepción de la obra paradidáctica 'Vento Forte, de sul e norte', de Manuel Filho, en un proyecto de lectura realizado con estudiantes de 9° grado de una escuela pública. En el análisis cualitativo de la pesquisa-acción, observamos que, aunque las ideologías coloniales cristianas siguen vigentes en la praxis escolar, validando argumentos sobre los temas abordados, la literacidad crítica emerge como una opción transformadora de carácter universalista y visiones excluyentes en la sociedad.


Palabras clave: Literacidad crítica. Lectura paradidáctica. (De)colonialidad.



Abstract


In this paper, we problematize students’ reading as possibility of critical literacy in relation to gender, sexuality, race and family arrangements, from reception of paradidatic book “Vento Forte, de sul e norte”, written by Manuel Filho, in a reading project carried out at public elementary school. Based on qualitative paradigm of action-research, by analyzing paradidactic book, the conversation circles and students’ texts, we notice that, although Christian colonial ideologies remain in force in school praxis, validating arguments in relation to topics discussed in class, critical literacy emerges as an option to transform universalist and exclusionary visions in society.


Keywords: Critical literacy. Paradidactic reading. (De)coloniality.



Linhas Críticas | Periódico científico da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília, BrasilISSN eletrônico: 1981-0431 | ISSN: 1516-4896

http://periodicos.unb.br/index.php/linhascriticas

Referência completa (APA): Frank, H., & Oliveira Júnior, P. de A. de. (2023). Letramento crítico a partir das leituras de um livro paradidático. Linhas Críticas, 29, e49107. https://doi.org/10.26512/lc29202349107

Referência completa (ABNT): FRANK, H.; OLIVEIRA JÚNIOR, P. de A. de. Letramento crítico a partir das leituras de um livro paradidático. Linhas Críticas, 29, e49107, 2023. DOI: https://doi.org/10.26512/lc29202349107

Link alternativo: https://periodicos.unb.br/index.php/linhascriticas/article/view/49107

Todas as informações e opiniões deste manuscrito são de responsabilidade exclusiva do(s) seu(s) autores, não representando, necessariamente, a opinião da revista Linhas Críticas, de seus editores, ou da Universidade de Brasília.

Os autores são os detentores dos direitos autorais deste manuscrito, com o direito de primeira publicação reservado à revista Linhas Críticas, que o distribui em acesso aberto sob os termos e condições da licença Creative Commons Attribution (CC BY 4.0): https://creativecommons.org/licenses/by/4.0

1Manuel Filho nasceu em São Bernardo do Campo/SP em 06 de março de 1968, é escritor e cantor. Possui mais de 60 livros publicados, sendo agraciado pelo prêmio Jabuti 2008. Integra o projeto Literatura Viva, do SESI e já recebeu por 5 vezes o selo de Acervo Básico da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil.

21