Notas para compreender relações contemporâneas entre tecnologia e educação

Notas para entender las relaciones contemporáneas entre tecnología y educación

Notes to understand contemporary technology and education relationships

Joana Peixoto



Destaques


Aporte da antropologia e da filosofia da técnica para compreender a tecnocultura contemporânea.


Importância da crítica ao tecnocentrismo como abordagem explicativa para as relações entre educação e tecnologias.


Possibilidade de compreender a tecnologia, simultaneamente, em suas dimensões técnica e simbólica.


Resumo


A tecnologia é uma produção humana e, como tal, histórica e social. Por esta razão, para compreender a estrutura e o sentido da tecnologia contemporânea, é necessário investigar suas origens e o percurso do pensamento que a explica. Este artigo apresenta um roteiro de estudo, fundamentado numa abordagem dialética, como chave para leitura da tecnocultura contemporânea e das questões que ela coloca para a educação. Para tal, parte da caracterização da realidade técnica, considerando o aporte de uma antropologia da técnica; discute a técnica moderna com base em Heidegger (2002) e apropria-se do estudo de Feenberg (2002; 2004; 2013a; 2013b) sobre as relações entre tecnologia e ação humana.

Resumen | Abstract


Palavras-chave

Tecnologia e educação. Fenômeno Tecnológico Contemporâneo. Técnica e Tecnologia. Tecnocentrismo.


Recebido: 08.05.2023

Aceito: 10.07.2023

Publicado: 18.07.2023

DOI: https://doi.org/10.26512/lc29202348540


Introdução


A tecnologia é uma produção humana e, como tal, histórica e social. Por esta razão, para compreender a estrutura e o sentido da tecnologia contemporânea, é necessário investigar suas origens e a racionalidade que fundamenta a sua trajetória.

O presente artigo traça alguns elementos para identificar, no pensamento ocidental, as origens e o percurso que constitui o processo de constituição dos conceitos de técnica e de tecnologia. Isto, considerando que este é um caminho para compreender a tecnocultura contemporânea e as questões que ela coloca para a educação.

A cada momento histórico corresponde uma cultura técnica particular. Assim, é preciso reconhecer nas técnicas as relações entre as dimensões sociais, culturais, filosóficas e históricas (Vargas, 1994a; 1994b; Vieira Pinto, 2005). A compreensão do lugar da técnica na sociedade contemporânea é impossível sem a compreensão global do fenômeno técnico.

Desde o século XVII, a técnica se converte, informada pela ciência, em poderosa força material – a chamada tecnologia, que é afetada e afeta o nosso modo de ser e as formas de sociabilidade. Este artigo apresenta um roteiro de estudo, fundamentado numa abordagem dialética, como chave para leitura da tecnocultura contemporânea e das questões que ela coloca para a educação. Partimos de uma caracterização da realidade técnica, considerando o aporte de uma antropologia da técnica; discutimos a técnica moderna, considerando o que a distingue da técnica na antiguidade grega, com base em Heidegger (2002); tomamos o exercício desenvolvido por Feenberg (2002; 2004; 2013a; 2013b) em torno de uma taxionomia das relações entre tecnologia e ação humana, problematizando a proposta do autor para uma tecnologia democrática. A abordagem adotada permite tomar a tecnocultura contemporânea e os problemas que ela coloca para a humanidade como uma possibilidade de leitura de questões educacionais que se relacionam à tecnologia.

A técnica: ubíqua e invisível


A técnica é tão antiga quanto a humanidade, mas é desprezada, pois, na tradição ocidental, o que está ligado à satisfação de exigências vitais é considerado vulgar. Ela marca a dimensão animal do homem biológico e é, por isso mesmo, desconsiderada ou desprezada por aqueles que pretendem ser superiores às determinações naturais. Graças à técnica, através do trabalho, o homem se produz ao mesmo tempo em que produz as condições de sua existência (Marx & Engels, 2007). Decorre daí, a técnica ser associada ao sacrifício, à rotina e ao trabalho manual.

Mas não é possível negligenciar inteiramente o papel da técnica visto que realizações técnicas que datam desde a antiguidade clássica são bem conhecidas, como o despertador, o odômetro ou o moinho d’água.

Os conhecimentos técnicos da antiguidade greco-romana teriam permitido realizações tecnológicas que apoiariam o trabalho humano, no entanto, há condições que frearam o desenvolvimento e a disseminação de tecnologias. As invenções mecânicas como o parafuso ou o moinho d’água, por exemplo, levaram certo tempo para serem aplicadas à vida cotidiana. O parafuso, descoberto pelos gregos no século III A.C., só foi utilizado na máquina pneumática no século I A.C. O moinho d’água, que é conhecido desde a antiguidade, só teve seu uso generalizado na Idade Média, em razão da mentalidade do mundo antigo para a qual o trabalho dos escravos, associado à generalização da força animal, era considerado como a mais confortável e a mais normal dentre as fontes de energia. A generalização do moinho d’agua ocorreu apenas após uma mudança ideológica (Drãgãnescu, 2004).

Embora a técnica estivesse presente de forma intrínseca à atividade humana, o pensamento ocidental ocultou esta presença. Ao descrever a expulsão do homem do estado natural, marcando o início de sua história, Rousseau (1987, p. 63, grifos do autor) afirma: “o verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cercado um terreno, lembrou-se de dizer isto é meu e encontrou pessoas suficientemente simples para acreditá-lo”. Destaco a presença da técnica neste ato “fundador da sociedade civil”: para cercar um terreno é preciso dispor de técnicas, aliás expressamente designadas por Rousseau, algumas linhas a seguir: “quantos crimes, guerras, assassínios, misérias e horrores não pouparia ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou enchendo o fosso, tivesse gritado a seus semelhantes [...]” (Rousseau, 1987, p. 63). Aí aparecem técnicas que exigem operações bem precisas. No caso das estacas: cortar, esquadrinhar, transportar, furar, erguer; no caso do fosso: cavar, nivelar, drenar, escorar. Tanto num quanto noutro caso, é preciso também, antes, fazer o levantamento topográfico, medir, traçar, delimitar. Mas todas estas ações só são possíveis com a ajuda de ferramentas ou instrumentos tais como pá, enxada, picareta, cestos ou baldes, cordas, esquadro, serras, machados e, portanto, de materiais como metal, vime, tela, lona, madeira etc. Enfim, técnicas são apresentadas na operação que o autor descreve.

Segundo Lévi-Strauss (1996), os índios Nambiquara eram tão primitivos que sequer dispunham de técnica, o que é desmentido pelo seu próprio relato, suscitando a ideia de que, por mais primitiva que seja a sociedade, sempre há técnica. O autor relata uma expedição, no fim dos anos 1930, ao país dos Nambiquara, que viviam ao norte da Chapada dos Parecis, no Mato Grosso. “Tinha procurado uma sociedade reduzida a sua expressão mais simples. A dos Nambiquara era-o, ao ponto de aí encontrar apenas homens” (Lévi-Strauss, 1996, p. 314). Mas a observação da maneira como vivem estes homens desvela uma organização técnica complexa:

O ano Nambiquara divide-se em dois períodos distintos. Na temporada chuvosa, de outubro a março, cada grupo mora sobre uma pequena eminência dominando o curso de um riacho; os indígenas ali constroem cabanas toscas com galhos ou palmas. Fazem queimadas na mata ciliar que ocupa o fundo úmido dos vales, e plantam e cultivam roçados onde figuram sobretudo a mandioca (doce e amarga), diversas espécies de milho, fumo, às vezes feijão, algodão, amendoim e cabaças. As mulheres ralam a mandioca em tábuas incrustadas de espinhos de certas palmeiras e, caso se trate das variedades venenosas, espremem o suco apertando a polpa fresca num pedaço de casca de árvore torcido. A lavoura fornece recursos alimentícios suficientes para uma parte da vida sedentária. Os Nambiquara conservam até a massa da mandioca, enterrando-a na terra, de onde a retiram, semiapodrecida, depois de algumas semanas ou alguns meses.

No início da estação seca, a aldeia é abandonada e cada grupo se desfaz em vários bandos nômades. Durante meses, esses bandos vão vagar pelo cerrado, em busca de caça: bichinhos sobretudo, tais como larvas, aranhas, gafanhotos, roedores, cobras, lagartos; e de frutas, grãos raízes ou mel selvagem, em suma, tudo o que pode impedi-los de morrer de fome. (Lévi-Strauss, 1996, p. 259)

Observa-se que os Nambiquara dispõem de numerosos utensílios, tais como pranchas incrustadas de espinhos, prensas feitas de casca de árvores, ferramentas de jardinagem. Pode-se supor que eles dispõem também de armas, já que a estação da seca é destinada à caça. De fato, eles manejam o arco e a flecha, dos quais existem diversos tipos: flechas para os pássaros, flechas para a pesca, flechas envenenadas e flechas para caçar grandes animais. Mas a indiscutível materialidade de todos estes objetos não pode mascarar que outras técnicas são empregadas pelos Nambiquara: para plantar os diferentes vegetais enumerados é preciso dispor de meios próprios para conservar os grãos; para cultivar sobre terrenos abertos com o fogo, é preciso não apenas fazer fogo, mas ser capaz de prever a orientação do vento, de coordenar a ação daqueles que vão acender o fogo. E mais ainda, a própria divisão do trabalho se constitui em técnica. A coexistência dos dois modos de vida – nômade no inverno, sedentária no verão – também pode ser considerada como uma técnica. O exemplo dos Nambiquara nos mostra que, por mais arcaica que seja uma sociedade humana, nela são encontradas técnicas.

O que faz com que a técnica seja ao mesmo tempo onipresente e despercebida? Estes exemplos pretendem mostrar que na tradição do pensamento ocidental nem sempre se destaca a reflexão sobre as técnicas que dão forma à existência humana. No entanto, não há humanidade sem objetos técnicos, nem sem ambiente técnico contínuo (Vargas, 1994a, 1994b; Vieira Pinto, 2005).

O próprio termo “objeto técnico” precisa também ser problematizado. Ele tem sido habitualmente usado como um termo genérico para denotar uma ferramenta, um instrumento, uma máquina, um software, ou mais geralmente qualquer artefato considerado do ponto de vista de sua tecnicidade. Dependendo da abordagem teórica, é adotada a noção de artefato ou artefato técnico. Na tentativa de definir a essência da técnica, Simondon (2020, p. 20) propõe uma ontologia do objeto técnico, substituindo o critério utilitário (formas de uso) pelo da gênese do objeto técnico. O autor realiza uma ruptura com o senso comum ao afirmar que os objetos técnicos não são apenas meios a serviço de um fim, mas que devem ser conhecidos de acordo com sua essência técnica, que poderia ser traduzida por um esquema de relações que pode ser repetido e refinado nesta repetição. Já Rabardel (1995), na perspectiva de um sistema antropotécnico, adotou a noção de artefato como uma estrutura técnica, como um dispositivo de funcionamento e que, além de objeto material, pode também ser considerado em sua dimensão simbólica. Esta abordagem valoriza as diferentes formas de relação entre o sujeito e os objetos técnicos.

Com base em Ellul (1977), Rabardel (1995), Rüdiger (2003; 2011), Simondon (2020) e Spengler (1993), é possível apontar alguns elementos essenciais para a caracterização da realidade técnica. Um aspecto fundamental é o caráter histórico e cultural da técnica, em oposição a uma visão de que esta seria fruto exclusivamente de um desenvolvimento natural ou biológico. Como a técnica marca o pertencimento a uma ordem cultural, o domínio de uma técnica só pode provir de uma aprendizagem e não de uma hereditariedade biológica. Em outras palavras, uma técnica não é inata, é fruto de atividade social e historicamente constituída. Devido à sua plasticidade, os seres humanos são capazes de desenvolverem técnicas continuamente. A técnica é como um envelope ou uma prótese que protege o homem de suas fragilidades diante da natureza.

O objeto técnico também satisfaz necessidades humanas. Mas este objeto só existe porque uma rede de técnicas está a ele subjacente. Então, pode-se distinguir entre técnicas destinadas a satisfazer diretamente uma necessidade vital (por exemplo, consumir a mandioca em forma de beiju), e outras que são destinadas a tornar possível a existência das técnicas de primeiro plano (por exemplo, ralar a mandioca para obter a farinha para o beiju). Os Nambiquara não podem ser considerados como um grupo humano restrito a um conjunto de necessidades, tal como o homem selvagem de Rousseau (1987). Eles são, de fato, sujeitos inseridos num sistema técnico. As técnicas não existem como estado isolado, há conjuntos (sistemas) técnicos de complexidade variável.

Algumas técnicas são visíveis porque são realizadas através de um objeto material, mas outras técnicas são invisíveis, como por exemplo as técnicas de orientação que permitem descobrir a presença de um rio. Uma técnica não está sempre ligada a um utensílio ou uma ferramenta. Podem existir técnicas abstratas, cuja realidade é indiscutível, mas que não implicam necessariamente numa aparelhagem, como as técnicas de cálculo mental ou as medidas de gestão e de higiene nos hospitais.

Estes critérios caracterizam a realidade técnica: uma atividade visível ou invisível, essencialmente coletiva e, portanto, social e historicamente constituída, que tem como efeito o estabelecimento de uma barreira protetora entre o homem e seu meio, organizando-se em um sistema.

O processo histórico humano e técnico são inseparáveis; tampouco faz sentido nos opormos à humanidade ou à técnica. Mas, até à modernidade, momento histórico que emerge com a ciência e a técnica moderna, observamos a constituição de um pensamento tecnológico cuja natureza e sentido se relacionam dialeticamente com seu antípoda, o pensamento humanista. A partir da modernidade, a perspectiva tecnocêntrica se afirma, como será exposto a seguir.

Modernidade técnica


A técnica, em sua expressão moderna, é voltada para a exigência humana de dominar a natureza. Nesta perspectiva, a técnica alcança o seu objetivo por meio do controle sobre o que acontece, isto no sentido de fazer acontecer o que foi projetado. Desta maneira, ela se torna o meio pelo qual se desvelam todos os campos da experiência humana. Observamos aí um deslocamento significativo do pensamento grego clássico ao pensamento moderno: para os antigos, o homem é o sujeito, e a técnica, o instrumento à sua disposição; já o homem moderno dispõe da natureza como fundo de reserva e se subordina à técnica (Heidegger, 2002).

Assenta-se sobre tal entendimento toda uma crítica que tem sido feita à ordem técnica e à tecnologia, com base na retomada que Heidegger (2002) empreende do pensamento grego, trazendo um outro olhar para a técnica (techné)1 em seu sentido artesanal, por meio do qual o autor esclarece e denuncia o lugar do homem na época dominada pela técnica.

Para os antigos, a techné servia para obter da natureza tudo o que era exigido em vista da satisfação das necessidades humanas: era voltada ao consumo, e a partir da modernidade, à produção. Em outras palavras, o objetivo era o consumo imediato e não a produção de meios para o acúmulo e a estocagem.

Para nós, modernos, a natureza (physis) é compreendida mecanicamente e não teleologicamente. Não há uma causa fundamental que reja a natureza, de forma que esta seja portadora de propósitos independentes da vontade ou da intervenção humana. A natureza existe para ser controlada e usada. Nada deve escapar, tudo deve ser submetido à inteligência analítica que produz meios cada vez mais eficientes e poderosos, desenvolvendo a tecnologia.

Os gregos viviam em harmonia com o mundo enquanto nós estamos alienados dele por nossa mesma liberdade em definir nossos propósitos como nos aprazem” (Feenberg, 2013a, p. 57). Isto porque a técnica antiga requiria da natureza um produto que a natureza podia produzir. Podemos considerar que a provocação técnica era um auxílio para que a natureza liberasse determinado produto de si. Tratava-se de um processo interminável, num movimento cíclico de satisfação das necessidades humanas básicas, o qual mantinha o caráter imutável da physis. Assim, nenhum meio técnico poderia abalar a relação entre o homem e a natureza, nem poderia colocar em risco o sentido da vida humana.

Na antiguidade, tanto a essência dos artefatos como a das coisas naturais contêm um propósito. Portanto, o mundo é repleto de significados e de intenções, que transcendem o homem. Assim, os humanos não são os mestres da natureza: eles exploram o potencial da natureza para trazer à tona o significado que já está lá. Para os gregos, a physis revela o que se cria a si mesmo, enquanto a cultura ou produção (poiésis) diz respeito à atividade, ao que depende de algo para existir.

Importante demarcar que a poiésis não se restringe à técnica. A natureza também é produtiva ou poética, mas o princípio do desenvolvimento de um produto da natureza está nela própria. A cada forma de poiésis se associa uma techné, que inclui, portanto, um propósito e um significado a cuja produção se orienta. Enfim, a poiésis designa o trabalho do artesão e do artista, uma ação que transforma e continua o mundo (Feenberg, 2013a). A poiésis é, ao mesmo tempo, a atividade livre do ser humano e a criação.

Naquela visão de mundo, em que não havia para a técnica a possibilidade de se tornar um valor autônomo e independente, o homem era sujeito, e a técnica o instrumento para alcançar as finalidades humanas que a imutável natureza tornava possíveis.

A partir da progressiva autonomização da técnica em relação aos fins, o homem se tornou subordinado à técnica e ela perdeu a substancialidade que os antigos lhe atribuíam. Verificou-se uma transformação da essência da técnica pela qual a produção, no sentido de poiésis, foi substituída por uma provocação que ordena à natureza liberar uma energia que pode ser acumulada e estocada para mais tarde ser liberada com uma força maior. Esta é a ótica heideggeriana, que denuncia a submissão do homem moderno à ordem técnica.

Assim, o que distingue a técnica antiga da técnica moderna é a passagem do poder do homem para a técnica. A técnica antiga, como meio adotado pelo homem para a produção de suas condições de subsistência, se enquadra na definição instrumental e antropológica da técnica. Em outras palavras, tratava-se de uma técnica que garantia ao homem o seu domínio. Mas o modo como a técnica moderna dispõe o mundo para o homem retira dele o domínio sobre a técnica. Assim, afirma-se uma centralidade na técnica ou o tecnocentrismo como fundamento do mundo moderno.

Heidegger (2002) destaca a questão da técnica como fundamental para o nosso tempo. O autor contribui para compreender a essência da técnica e não apenas sua simples função como meio a serviço da ação humana. Ele nos fala da técnica como desvelamento de um mundo que só é compreendido pelo homem na medida em que este aja como técnico.

Isto explica o recurso às ideias deste autor por parte dos críticos da técnica. Mas, é importante sublinhar que o pensamento de Heidegger não nos impede de vislumbrar a contradição na realidade moderna. A técnica conduz o homem ao seu destino, mas este destino não é uma fatalidade, é um apelo.

Partindo das distinções que se originam no pensamento grego e que prevalecem ao longo da tradição ocidental, Feenberg (2002; 2004; 2013a; 2013b) se exercita numa caracterização das concepções de tecnologia, o que será abordado a seguir.

Uma tecnologia democrática?


Para Feenberg (2002; 2004; 2013a; 2013b), a filosofia da tecnologia começa com os gregos e é o fundamento de toda filosofia ocidental. A partir do iluminismo, os costumes e as instituições devem ser úteis para a humanidade. A utilidade proviria de uma associação íntima entre o conhecimento e sua aplicação, entre a ciência e a tecnologia, que se tornam a base para as crenças do homem moderno (Feenberg, 2002).

A ciência e a tecnologia constituem-se na base da razão moderna, mas podemos identificar formas distintas de conceber a tecnologia a partir da sociedade moderna. De forma esquemática, a variedade teórica pode ser representada em dois eixos que figuram o papel da ação humana na esfera técnica e a neutralidade dos meios técnicos, conforme Feenberg (2004, 2013a). O autor constrói uma categorização do sistema técnico contemporâneo, ao examinar o impacto das tecnologias nas sociedades contemporâneas, com vistas à proposição de uma teoria crítica da tecnologia.

Quadro 1

Sistema técnico contemporâneo

Quatro perspectivas

Tecnologia é

Neutra

eixo (A)

Autônoma

eixo (B)

Humanamente controlada

(1)

Determinismo

por exemplo: a teoria da modernização

(2)

Instrumentalismo

fé liberal no progresso

Carregada de valores

Meios que formam um modo de vida que inclui fins

(3)

Substantivismo

Meios e fins ligados em sistemas

(4)

Teoria Crítica

Escolha de sistemas de meios-fins alternativos

Fonte: Feenberg (2013a, p. 57).

O exercício desenvolvido por Feenberg se dá em torno de uma taxionomia das relações entre tecnologia e ação humana. Ele apresenta um quadro organizado em dois eixos axiológicos, cada um expresso em dois polos. O eixo vertical se refere ao caráter ou à natureza social da tecnologia:

a) na parte superior encontra-se a abordagem que afirma a neutralidade da tecnologia. Segundo tal perspectiva, a tecnologia não seria intrinsecamente portadora de valores, interesses ou propósitos predefinidos, seja de ordem econômica, política, social ou moral. Neste caso, o efeito das tecnologias poderia ser tanto positivo como negativo.

b) na parte inferior do eixo axiológico é disposta a perspectiva na qual a tecnologia é portadora de valores a ela inerentes. Segundo tal abordagem, a tecnologia transmite, automaticamente ao seu uso, um propósito predefinido.

O eixo horizontal diz respeito às possibilidades da ação humana sobre a tecnologia:

a) à esquerda é apresentado o entendimento da tecnologia como autônoma. Nesta perspectiva, a tecnologia apresentaria leis a ela imanentes, leis que ordenariam inelutavelmente o seu desenvolvimento (e, em certa medida, a sua apropriação).

b) à direita, a tecnologia se enquadra na perspectiva de ser controlada pelo homem. Neste caso, as formas de uso das tecnologias e seu impacto estariam inexoravelmente a critério dos usuários.

A partir desta categorização, é possível tecer alguns comentários sobre as quatro possibilidades explicativas para as relações entre a tecnologia e os sujeitos sociais.

Como vimos, para o senso comum moderno, meios e fins são independentes. A tecnologia é neutra, o que dá base para a teoria instrumentalista da tecnologia. O instrumentalismo combina as perspectivas do controle humano da tecnologia com a neutralidade de valores.

A concepção instrumental da tecnologia está ancorada, como destaca Feenberg (2002; 2004; 2013a), num tipo de senso comum que tem suas raízes nos pensadores iluministas e positivistas do período moderno, expressando, no entanto, uma visão contemporânea que concebe a tecnologia como uma ferramenta gerada pela espécie humana, através de métodos que, ao serem aplicados à natureza, asseguram à ciência atributos de verdade, e à tecnologia, de eficiência. Segundo esta abordagem, nenhum valor ou intenção política pode ser atribuída à tecnologia. Dito de outra forma, as ferramentas são totalmente neutras e devem servir aos fins imputados por seus usuários, fins que podem ser bons ou maus, positivos ou negativos.

Para efeito de síntese, Feenberg (2004) apresenta quatro pontos que caracterizam esta teoria instrumental e neutra:

1. A tecnologia é indiferente à variedade dos fins aos quais pode servir.

2. A tecnologia é indiferente ao que diz respeito à política. Um martelo é um martelo e ele funcionará da mesma maneira em qualquer contexto social.

3. A neutralidade sociopolítica da tecnologia é associada a seu caráter racional e à universalidade da verdade que ela encarna. O que funciona para uma sociedade pode funcionar para qualquer outra.

4. A universalidade da tecnologia significa igualmente que as mesmas normas de medida e de eficácia podem ser aplicadas em diferentes contextos. Assim, uma mesma tecnologia pode aumentar a produtividade de trabalhadores em diferentes épocas e em distintas sociedades.

Mas, a teoria instrumental não pode ser considerada como neutra. Esta teoria é alimentada pela necessidade de inovação e pela ênfase nos resultados. Paradoxalmente, a neutralidade defendida por esta concepção permite aos usuários utilizarem a tecnologia segundo suas próprias intenções, sem levar em conta o contexto de utilização. Da mesma maneira, o usuário e o criador da tecnologia aparecem como seres em abstrato, sem considerar os interesses particulares a cada classe social. A eficácia no uso da tecnologia seria sempre a mesma, salvo quando há imposição de prescrições morais. Neste caso, a eficácia é abalada, acarretando a retração dos resultados ou de um aumento de custos. Assim, uma preocupação ecológica ou democrática seria tomada como fator de restrição da eficácia de uma tecnologia (Feenberg, 2002). Então, a teoria instrumental da tecnologia, apesar de sua neutralidade declarada, permanece com uma intenção ideológica, a de garantir a sustentabilidade da ordem política vigente.

Em suma, a tecnologia, na perspectiva instrumental, é considerada como um meio neutro que encarna uma verdade universal, sem referência ao contexto de utilização, quer dizer, sem referência às condições objetivas e concretas materializadas no espaço e no tempo histórico.

Outra possibilidade explicativa é o determinismo tecnológico, que tem aspectos convergentes com a teoria instrumental da tecnologia. A diferença se encontra na questão do controle da tecnologia. Para o instrumentalismo, a tecnologia é controlada pelo homem, enquanto para o determinismo tecnológico, a tecnologia é autônoma. Nesta perspectiva, tecnologia é sinônimo de progresso.

O determinismo combina autonomia e neutralidade. Segundo tal perspectiva, a tecnologia não é controlada pelo homem. É ela que, utilizando-se do avanço do conhecimento do mundo natural, verdadeiro e neutro, molda — e empurra para um futuro cada vez melhor — a sociedade mediante as exigências de eficiência e de progresso que ela estabelece.

Feenberg (2004) define o determinismo segundo duas premissas. Aquela do progresso unilinear, segundo a qual a tecnologia se desenvolve numa direção inequívoca: pode variar o ritmo deste desenvolvimento, mas ele se orienta, inevitavelmente, de uma condição menos para uma mais complexa. A outra premissa do determinismo tecnológico é que este implica a adaptação das instâncias sociais a imperativos de base tecnológica. Nestas duas premissas, que são o progresso unilinear e a determinação pela base, a tecnologia é apresentada como descontextualizada e autogenerativa. Como a técnica segue leis próprias de desenvolvimento, ela deve ser apolítica, incontestável e de alcance genérico. Numa perspectiva determinista da tecnologia, o progresso não é uma escolha, mas uma fatalidade. E é por esta via que se define se um país é avançado ou subdesenvolvido, por exemplo.

As teorias deterministas reduzem ao mínimo a capacidade humana de controlar o desenvolvimento técnico, mas consideram que os meios técnicos são neutros, na medida em que se desenvolvem segundo uma ordem própria. O substantivismo — outra possibilidade explicativa para as relações entre tecnologia e sociedade — compartilha o ceticismo determinista no que diz respeito à atividade humana, mas nega a tese da neutralidade, pois, considera que os fins são tão diretamente implicados com os meios técnicos utilizados para realizá-los que não há sentido em distinguir os meios dos fins. Os meios e os fins seriam, assim, ligados em sistemas submetidos ao controle humano.

Para a concepção substantivista da tecnologia, assim como para o determinismo, o progresso técnico é autônomo e unilinear. No entanto, para o determinismo esta autonomia tem um valor neutro, quer dizer que ela não é boa ou má. Enquanto para o substantivismo, a autonomia não é neutra, ela internaliza valores e estes valores são obrigatoriamente orientados para formas de dominação. Por isto, politicamente, é tão importante não dissociar os meios dos fins. Para o substantivismo, a tecnologia teria apenas uma essência, abstraída de qualquer contexto sócio-histórico, a qual seria responsável pelos principais problemas da civilização.

Heidegger é um dos maiores representantes desta abordagem. Para ele, a tecnologia é um novo tipo de sistema que reestrutura totalmente o mundo, como um objeto de controle que afeta o sentido do que é humano. Apenas o retorno à tradição e à simplicidade ofereceriam alternativas ao progresso destruidor da natureza e devastador do sentido da vida humana (Feenberg, 2013a; 2013b).

A teoria substantivista, que coloca em questão a civilização industrial, será a base de uma cultura disseminada após a euforia dos anos de pós-guerras e da consolidação da sociedade de consumo. Tal cultura repercute em obras de ficção científica, como Matrix, Terminator e 1984, por exemplo. Esta reação tecnófoba responde também à tecnocracia2 representada pela expansão do poder militar e industrial do pós-guerras3.

O substantivismo exclui a possibilidade de a democracia se estender à esfera técnica, o que a teoria crítica busca fazer ao colocar em questão a autonomia da tecnologia.

A teoria crítica da tecnologia4 combina as perspectivas da tecnologia como humanamente controlada e como portadora de valores. Segundo esta visão, as tecnologias são percebidas como sistemas que não são neutros e que não são apenas técnicos. Há pontos de convergência com o instrumentalismo (a tecnologia é controlável), mas, reconhece, como o substantivismo, que os valores capitalistas conferem à tecnologia características específicas, que os reproduzem e reforçam, que implicam consequências social e ambientalmente catastróficas que inibem a transformação social.

Contrariamente à perspectiva substantivista, que considera a tecnologia essencialmente como uma forma de dominação, sem possibilidade de controle humano, a teoria crítica busca a emancipação humana. Ela propõe um debate entre a autonomia e o controle da tecnologia. Tanto o substantivismo como a teoria crítica compreendem que as tecnologias incorporam valor, mas consideram de forma distinta a capacidade da sociedade agir sobre estes valores.

A concepção técnica da teoria crítica se define por uma ruptura com o determinismo tecnocrático. Da mesma maneira, as técnicas não se resumem a meios subordinados a objetivos, elas formam um sistema, um modo de vida, constituindo-se em formas de poder. Estas formas de poder não se configuram em apenas uma via oferecida pelo progresso: a técnica é ambivalente, o que implica a possibilidade de escolhas. Feenberg (2004) chama a atenção para o fato que tais escolhas não dizem respeito aos meios a serem ou não utilizados: “o que está em jogo na ambivalência técnica não é simplesmente a gama limitada de usos possíveis para um determinado projeto técnico, mas a gama completa de efeitos de sistemas técnicos inteiros (Feenberg, 2004, p. 30, grifos do autor, tradução minha). Ao incluir no debate questões que antes eram consideradas “puramente” técnicas, o autor acena não apenas com uma possibilidade, mas com a necessidade da intervenção democrática nos assuntos técnicos.

Para a teoria crítica, conforme proposta por Feenberg (2004), a tecnologia não é vista como simples ferramenta, mas como suporte para estilos de vida. A tecnologia atualmente existente daria forma não apenas a um estilo de vida, mas a muitos outros possíveis. Isto porque a tecnologia não é percebida como uma ferramenta capaz de ser usada por um único projeto político como considera o determinismo e nem como algo que deve ser usado e orientado eticamente, como se acredita na perspectiva instrumental. Tampouco — conforme propõe o substantivismo — como um apêndice indissociável de valores e estilos de vida particulares, privilegiados em função de um modelo hegemônico de sociedade. Segundo a teoria crítica, desde que “reprojetada” e submetida a uma “instrumentalização secundária” com características “democráticas”, e mesmo a uma “racionalização subversiva”, a tecnologia pode servir como suporte para estilos de vida alternativos (Feenberg, 2002; 2004). Abre-se, assim, um espectro de possibilidades para pensar estes tipos de escolhas, questioná-las e traduzi-las em projetos democráticos de desenvolvimento tecnológico.

O percurso das ideias aqui apresentadas permite perceber que a técnica e a tecnologia se constituem em sistemas que expressam as formas como o sujeito humano se coloca no mundo ocidental. A tecnologia não é neutra e muito menos um fenômeno apartado de toda e qualquer ação humana.

O modo próprio de funcionamento da sociedade capitalista oculta que o trabalhador produz uma riqueza que se concentra nas mãos daquele que é proprietário dos meios de produção, isto segundo um mecanismo que reproduz a estrutura de classes. A dominação de classe tende a ser exercida em todas as esferas da vida social (Marx, 1987; 2017). No campo econômico, a classe que possui como bem privado os meios de produção social pode impor suas condições àqueles que dispõem apenas de sua força de trabalho, o que podemos observar no processo contemporâneo de uberização do trabalho, por exemplo. Esta dominação se desdobra no campo político, por meio do Estado e demais instrumentos de poder, da justiça à escola. A exclusão digital, seja através do acesso, seja através das modalidades de apropriação da tecnologia, compõe este espectro de fenômenos característicos ao capitalismo (Echalar, 2015). Assim, para se aproximar mais da totalidade deste fenômeno, falta ao projeto da teoria crítica da tecnologia levar em conta a base social capitalista que se materializa na divisão da sociedade em classes sociais antagônicas e na expropriação do trabalho de uma classe pela outra.

Os limites da racionalidade técnica traduzem a impossibilidade da emancipação humana em uma sociedade sob a égide do capital. A falta de democracia na relação do homem moderno com a tecnologia não pode ser explicada unicamente por uma operação do pensamento e, portanto, não poderá ser superada por uma nova explicação ou uma outra atribuição de valores ideológicos. O percurso desta exposição demonstra que a técnica e a tecnologia não são abstrações, que elas se traduzem em ideias e valores, mas, sobretudo, constituem e são constituídas pelo modo concreto de vida dos sujeitos sociais.

Algumas questões que o tecnocentrismo coloca para a educação


Nos últimos decênios, a integração de tecnologias tornou-se um objetivo importante dos sistemas educativos. É importante observar que a incorporação de tecnologias à educação tem se dado por ciclos inconclusos no uso de objetos técnicos que se sucedem sem que as práticas pedagógicas mediadas por tais objetos sejam rigorosamente avaliadas. É assim que observamos políticas, ações e programas educacionais para o uso pedagógico de suportes como a lousa digital, o laptop, o celular e o tablet; e para a implementação de recursos como os aplicativos educacionais, os jogos eletrônicos, os ambientes virtuais de aprendizagem e as diversas ferramentas comunicacionais em rede (Echalar, 2015; Peixoto, 2016).

Políticas são implantadas, recursos são destinados à aquisição de equipamentos, programas de treinamento são propostos: um conjunto de ações começa a ser implementado e, antes mesmo que estas ações tenham sido experimentadas em sua plenitude, são substituídas por ações voltadas para um outro objeto técnico, mais novo, considerado de nível técnico mais elevado e pedagogicamente mais potente.

O que define estas sucessivas alterações não é o perfil do estudante a ser formado ou as condições próprias às instituições educativas. Não são as demandas apresentadas pelos docentes e nem mesmo os princípios de um paradigma educacional que justificam a permuta de um por outro objeto técnico. Esta dinâmica de substituição constante se dá em função da necessidade de empregar uma tecnologia considerada mais recente, ou seja, uma inovação tecnológica que precisa ser adotada para atualizar a educação5. Em outras palavras, a incorporação de tecnologias na educação brasileira tem um caráter eminentemente tecnocêntrico, pois, é baseada mais na tecnologia adotada do que em razões de ordem pedagógico-didática (Peixoto, 2016).

O caráter tecnocêntrico que prevalece nas políticas e programas educacionais orienta também os programas de formação inicial e continuada de professores. Na verdade, as políticas educacionais referentes às tecnologias se colocam no bojo das reformas educacionais brasileiras que, a partir dos anos 1990, se alinham às demandas econômicas de ordem neoliberal. Neste caso, a centralidade na tecnologia é mais um dos elementos importantes para a consolidação de um projeto que ordena os objetivos e os melhores meios aos fins a serem alcançados. É assim que a ênfase na tecnologia se articula ao foco nos resultados quantitativos, à fragmentação do trabalho docente e à supervalorização da dimensão técnica do trabalho do professor, fazendo parte de um mesmo projeto de submissão da educação à economia. Tomada como valor autônomo, a tecnologia é assim introduzida a serviço de um certo desvio dos objetivos educacionais. Sua presença nas escolas permitiria impor valores tecnocêntricos, incompatíveis com finalidades educativas.

Isto permite compreender por que professores oscilam entre uma visão instrumental e determinista, ambas tecnocêntricas, no que diz respeito às relações entre tecnologias e educação. A ótica tecnocêntrica instrumental nos induz a uma polarização: ou supervalorizamos os poderes pedagógico-didáticos das tecnologias, ou rejeitamos sumariamente as tecnologias em razão de sua faculdade dissimuladora da realidade e manipuladora de informações. A perspectiva tecnocêntrica determinista nos submete à necessidade de adotar as tecnologias para não nos tornarmos ultrapassados (Peixoto, 2016).

Assim, nós, professores, temos enxergado as relações entre tecnologias e educação numa perspectiva que tem se tornado uma armadilha que nos autoinfligimos, pois, se consideramos as tecnologias como redentoras dos problemas educacionais, temos que dar conta de resolver tais problemas através de seu uso; se as tomamos como origem de uma educação limitadora, devemos rejeitá-las a todo custo. De toda forma, temos considerado as tecnologias isoladas das múltiplas dimensões que as constituem.

Este maniqueísmo entre tecnófilos e tecnófobos é bem demonstrado por Rüdiger (2003; 2011) quando se refere ao sentido atribuído por aqueles que analisam a chamada cibercultura6. O autor explica que tanto os fáusticos (que rejeitam a tecnologia como fonte de desenvolvimento) como os prometeicos (que idolatram o poder civilizatório da tecnologia) são muito menos uma oposição e mais um cruzamento de ideias que convergem para o tecnocentrismo.

O suporte ao trabalho do docente demanda oferecer a este trabalhador possibilidades para compreender o chamado fenômeno tecnológico contemporâneo (Rüdiger, 2003; 2011), para o quê este texto pretende contribuir. Tal compreensão implica destrinchar o caráter e o sentido da técnica moderna. Isto porque o que pensamos sobre a tecnologia é fenômeno histórico e a técnica está na essência do significado e do sentido que atribuímos à tecnologia (Vargas, 1994a).

Compreender a técnica e a tecnologia: um convite


A reconstrução do pensamento tecnológico aqui empreendida, longe de realizar uma reflexão plena acerca da estrutura e sentido deste fenômeno, propõe uma chave de leitura para a sua compreensão.

A concepção binária da tecnologia, entre instrumentalismo e determinismo, pode ser observada e certamente tem seus efeitos no trabalho educativo, o que Heidegger (2002) e Feenberg (2002; 2004; 2013a; 2013b) nos permitem elucidar.

A teoria crítica da tecnologia foca em necessidades, interesses e soluções imediatas de grupos sociais contemporâneos e na influência disso em suas escolhas tecnológicas, mas não considera, em última instância, o conjunto articulado dos aspectos sociais, políticos e econômicos que determinam e condicionam as escolhas tecnológicas. De toda forma, um dos méritos desta teoria é possibilitar a compreensão da tecnologia como construção social, que não é neutra e nem resultado de um progresso linear.

Os autores aqui elencados, alguns apenas citados e outros que foram objeto de exposição sintética, problematizam a tecnologia — exercício para o qual este texto se coloca como um convite. A problemática subjacente ao presente texto diz respeito ao papel a ser atribuído à tecnologia na educação. Para que a tecnologia atenda a demandas educativas e evite as armadilhas da mercantilização e da massificação, fazemos dela um problema, tomando-a como objeto de estudo. Problemas podem ser verificados quando, por exemplo: a) a tecnologia, por seu código técnico, não responde à solução de problemas humanos; b) a tecnologia traz embutida um projeto educacional instrumental, massificado e excludente; ou c) à tecnologia são atribuídos significados que entram em conflito com suas funções.

O primeiro passo foi a caracterização da realidade técnica no sentido de demonstrar que técnica e homem se formam mutuamente, compreendendo-a como construção sócio-histórica que tem sido ocultada pelo pensamento tecnológico moderno.

Ao tomar a técnica como traço fundamental da época moderna, Heidegger (2002) discute o seu conceito, libertando-o das sucessivas interpretações da tradição filosófica que a tornaram um conjunto de meios com vistas a fins. Ao fazê-lo, o conceito de técnica se vê desdobrado em sua historicidade e para além de sua determinação metafísica como desvelamento do ser. O autor nos mostra que a técnica moderna, como característica fundamental de nosso tempo, determina a própria aparência do ser, ou seja, o tipo de ser a que os sujeitos contemporâneos terão acesso. O homem moderno estaria, assim, subordinado à técnica.

Feenberg (2002; 2004; 2013a; 2013b), por meio de sua classificação das teorias da tecnologia, avança na discussão da lógica tecnocrática da modernidade. A saturação dos ideais da modernidade — razão, progresso, futuro —, associada às possibilidades das tecnologias digitais em rede, orienta a tecnologia em direção a um projeto político tecnocrático ao qual o autor procura se contrapor.

Este trajeto nos traz, enfim, a necessidade de ancorar as explicações para as relações entre tecnologia, sociedade e educação em fundamentos materialista-dialéticos (Marx, 1987; 2017), na perspectiva que nós, docentes, sujeitos do ato educativo, possamos realizar um trabalho pedagógico intencional. A tecnologia não precisa ser instrumento de submissão docente a paradigmas instrumentais que nos desviam de um projeto de formação humana. O que torna fundamental a nossa compreensão das múltiplas determinações que caracterizam o fenômeno tecnológico, convite que fazemos através deste texto.

Referências


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Sobre os autores


Joana Peixoto


Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás, GO, Goiás, Brasil

https://orcid.org/0000-0002-9769-9107


Doutora em Ciências da Educação pela Universidade Paris VIII (2005). Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Educação do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás. Líder do Kadjót – Grupo interinstitucional de estudos e pesquisas sobre as relações entre tecnologias e educação. E-mail: joana.peixoto@ifg.edu.br



Resumen


La tecnología es una producción humana y, como tal, histórica y social. Por ello, para compreener la estructura y significado da la tecnología contemporánea, es necesario indagar sus orígenes y en la vía de pensamiento que la explica. Este artículo presenta un guión de estudio, basado en un enfoque dialéctico, como clave de lectura de la tecnocultura contemporánea e las preguntas que plantea para la educación. Para tal, parte de la caracterización de la realidad técnica, considerando el aporte de una antropología de la técnica. Discute la técnica moderna basada en Heidegger (2002) y se apropia del estudio de Feenberg (2002; 2004; 2013a; 2013b) sobre las relaciones entre la tecnología y la acción humana.


Palabras clave: Tecnología y educación. Fenómeno tecnológico contemporáneo. Técnica y tecnología. Tecnocentrismo.



Abstract


Technology is a human production and that as a such a historical and asocial one. For this reason, in order to understand the structure and meaning of contemporary technology, it is necessary to investigate its origins and the path of thought that explains it. This article presents a study script based on a dialectical approach, as a key to reading contemporary technoculture and the questions it raises for education. In this way, it starts from the characterization of the technical reality, considering the contribution of a technique anthropology. It discusses modern technique, based on Heidegger (2002) and appropriates the Feenberg’s study (2002; 2004; 2013a; 2013b) on the relationship between technology and human action.


Keywords: Technology and education. Contemporary technological phenomenon. Technique and technology. Technocentrism.



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Referência completa (APA): Peixoto, J. (2023). Notas para compreender relações contemporâneas entre tecnologia e educação. Linhas Críticas, 29, e48540. https://doi.org/10.26512/lc29202348540

Referência completa (ABNT): PEIXOTO, J. Notas para compreender relações contemporâneas entre tecnologia e educação. Linhas Críticas, 29, e48540, 2023. DOI: https://doi.org/10.26512/lc29202348540

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1Seguimos a tradução adotada por Feenberg (2013a) e Rüdiger (2006), dentre outros, para os termos gregos: techné = técnica; physis = natureza; poiésis = cultura/produção.

2Feenberg (2004, p. 27, tradução minha) explica a tecnocracia como “um sistema administrativo tentacular que, para se legitimar, afirma, a expertise científica mais do que a tradição, o direito ou a vontade dos indivíduos”.

3Ao abordar a crítica à racionalidade científica, Feenberg (2013a; 2013b) faz referência à crítica “antiutópica de esquerda”, recorrendo a Marcuse e Foucault para discutir o controle social do desenvolvimento tecnológico.

4Na caracterização teoria crítica da tecnologia, Feenberg (2004, p. 131, tradução minha) destaca o debate entre Marcuse e Habermas sobre a técnica, que “marcou um momento decisivo na história da Escola de Frankfurt”.

5A partir dos anos 1980, a associação entre o uso de tecnologias e a inovação de práticas pedagógicas tem sido fundamento de políticas educacionais brasileiras (Echalar, 2015; Evangelista, 2014; Heinsfeld & Pischetola, 2019; Previtalli & Fagiani, 2022).

6A cibercultura, termo cunhado por Lévy (1999), designa, em linhas gerais, a convergência entre o social e o técnico.

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