Dossiê | Pesquisa narrativa no fazer ordinário da docência: múltiplas perspectivas

Docência no Instituto Federal do Amazonas – aprendendo com as experiências

Enseñanza en el Instituto Federal de Amazonas – aprendiendo de experiencias

Teaching at the Federal Institute of Amazonas – learning from experience

Claudio Afonso Peres Filomena Maria de Arruda Monteiro José González-Monteagudo



Destaques


A criação dos Institutos Federais (IFs) trouxe novas configurações para a docência.


A atuação docente no Instituto Federal (IF) no Interior do Amazonas apresenta dupla complexidade.


A experiência é formativa e transformadora, pelo fato de ser histórica e contínua.


Resumo


O artigo trata da reflexão sobre a experiência de ser docente no Instituto Federal do Amazonas (IFAM) – Campus Coari. Perseguindo os princípios da pesquisa narrativa, no diálogo com a pesquisa (auto) biográfica, busca-se identificar as principais experiências vividas no local que ampliaram a concepção de complexidade da docência e que possibilitaram evidenciar as diferentes nuances do Desenvolvimento Profissional Docente (DPD). Propõe-se caminhos de aprendizagens significativas que possam facilitar os processos de identificação no campo das diferenças e do contexto da docência no Instituto Federal, ampliando a perspectiva formativa da pesquisa narrativa, a partir da experiência refletida.

Resumen | Abstract


Palavras-chave

Desenvolvimento Profissional Docente. Instituto Federal do Amazonas. Contexto Complexo.


Recebido: 31.03.2023

Aceito: 29.06.2023

Publicado: 18.07.2023

DOI: https://doi.org/10.26512/lc29202347920


Introdução


Diferentes estudos têm atestado a complexidade do trabalho docente em várias de suas dimensões (Gatti, 2017; Lima et al., 2020; Bastos & Boscarioli, 2021), entendimentos que partem de pesquisas e de experiências vivenciadas por estes autores e atores. Verificamos isto na identificação da docência com outras profissões, no reconhecimento de que o docente necessita considerar os contextos e desenvolver várias competências, para além de saber ensinar.

A ampliação e a expansão da Rede Federal de Educação Superior, Técnica e Tecnológica (RF), junto com as diversas atividades e cursos oferecidos pela rede, possibilitaram entender a ampliação da complexidade do trabalho docente (Fernandes et al., 2011). A Lei n.º 11.892/2008 (Brasil, Brasil, 2008) estabelece as finalidades, os objetivos e a configuração dos Institutos Federais (IFs), que precisam de adaptação e ressignificação em diferentes lugares, mas no esforço de não perder os propósitos para os quais foram criados. Em geral, os Institutos são:

Instituições pluricurriculares e multicampi (reitoria, campus, campus avançado, polos de inovação e polos de educação a distância), especializados na oferta de educação profissional e tecnológica (EPT) em todos os seus níveis e formas de articulação com os demais níveis e modalidades da Educação Nacional, oferta os diferentes tipos de cursos de EPT, além de licenciaturas, bacharelados e pós-graduação stricto sensu (Brasil, 2008).

Diversos são os aspectos que diferenciam os IFs das instituições de ensino existentes no país, dentre eles, níveis e modalidades de ensino diversos; busca da verticalização da oferta em todos os níveis; formação diversa de professores; ensino integrado; tripé universitário concomitante com o cuidado e formação humana exigido no ensino médio; produção de pesquisa e extensão com participação de alunos do ensino médio; programas de bolsas diversos para alunos do ensino médio e professores; pesquisa aplicada e inserção em diversos contextos do país (Brasil, 2008). Estes são alguns dos aspectos que diferenciam os IFs e ampliam a complexidade no Desenvolvimento Profissional Docente (DPD).

Quanto ao DPD, o entendemos como um amplo e contínuo processo que perpassa toda a vida educativa e formativa dos professores, para além da formação inicial e continuada, que se movimenta retrospectiva e prospectivamente em tempos, lugares e relações situadas. Neste campo, destacamos os estudos de Christopher Day (2001), Marcelo Garcia (2009) e Fernández-Cruz (2015).

Associada à complexidade no DPD nos IFs, a rápida expansão trouxe a necessária interiorização, pela qual as mais de 661 unidades chegaram, no ano de 2019, a lugares de difícil acesso e com economias precárias, como a cidade de Coari, no interior do Amazonas, nosso fenômeno em estudo. O local estudado, os relatos dos docentes, alguns dados da pesquisa e a experiência do primeiro autor no campus estudado permitem refletir sobre a questão-problema da pesquisa, como estar professor e pesquisador nesta dupla complexidade: a da atuação docente no contexto de Instituição novidadosa e a vivência no local diferente, incomum à grande maioria dos profissionais, que são geralmente outsiders procedentes de diversas regiões do País. No momento da pesquisa, no ano de 2019, apenas 22% eram do local.

Para melhor compreensão do contexto, o município de Coari está localizado a 433 km de distância da capital Manaus, pode ser acessado diariamente por via fluvial, pela Calha do Rio Solimões ou por precários voos semanais. Comporta uma população estimada em 85.910 habitantes, com densidade demográfica de 1,31 hab./km², segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2020). A economia local em Coari gira em torno do setor primário da economia. Os produtos são consumidos no município e o excedente (sem que toda a população se beneficie), geralmente, é vendido in natura a comerciantes locais, conhecidos no passado recente como “barões da banana”, que realizam as vendas em Manaus, obtendo lucros aviltantes. Alguns produtos agrícolas locais estão imersos na dinâmica do comércio internacional, sendo vendidos em diversos países, inclusive se valendo da origem amazônica como estratégia de marketing. Ainda assim, este comércio não traz retornos econômicos para a população.

Além do funcionalismo público, notadamente da Prefeitura Municipal, e de um comércio modesto que atende apenas ao local, o município não oferta vagas de emprego para atender à população. O percentual de pessoas com ocupação formal no município em 2017 era de apenas 6,7%. Quanto à renda mensal, 48,9% dos domicílios possuíam renda de até meio salário mínimo. O Município apresentava 62% dos domicílios com sistema de esgoto sanitário inadequado e 78,7% de domicílios com urbanização igualmente inadequada (IBGE, 2020). Com um Produto Interno Bruto (PIB) per capita relativamente alto, de R$15.580,35 (620ª posição entre os 5.570 municípios do país), o município tem o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de 0,586 (4.495ª posição entre os 5.570 municípios do país) (IBGE, 2020). Ou seja, a riqueza existente não garante a distribuição de renda mais igualitária. Estes dados revelam um paradoxo que pode ser explicado pelo histórico de corrupção e má gestão dos recursos públicos.

A economia local é bastante dependente e 83,4% da renda provêm de fontes externas (IBGE, 2020). Este PIB é impulsionado pelos royalties recebidos pelo município, desde 1989, decorrentes da extração de gás natural, na Província Petrolífera de Urucu, pela Petrobras. A construção do gasoduto Coari-Manaus movimentou a economia local, provocando o ingresso descontrolado de pessoas da zona rural e de outros municípios, o que fez com que a população urbana do município passasse de 35% em 1989 (Almeida & Souza, 2008) para 65% em 2020 (IBGE, 2020). Com o término da construção do gasoduto, a cidade de Coari não logrou manter o nível de empregabilidade, o que explica em boa parte sua atual situação precária.

O município de Coari carrega suas singularidades, como observado, no entanto, reconhecemos que todo singular carrega algo de universal, de plural. Afinal, o universal é o local sem os muros (Torga, 1986). É preciso reconhecer as interconexões que são ampliadas nos tempos de avanço tecnológico que vivemos. Com efeito, a realidade do local implica diferenças sobre concepção de tempo, capitalismo, política e educação, que resultam em mecanismos geradores de tensões na vivência dos docentes no local. Os processos de identificação são complexos. Reconhecer a diferença como constitutiva e que vem antes de nossas identidades, como aponta Silva (2014), tem sido um desafio para os docentes do campus. Neste sentido, perseguindo os princípios da pesquisa narrativa, no diálogo com a pesquisa (auto) biográfica, realizamos a análise-interpretativa dos relatos dos participantes, dialogando com o referencial teórico e o contexto local complexo, trazendo novas compreensões sobre a complexidade da docência que possibilitaram evidenciar diferentes nuances do DPD. E nós, no papel de autores deste trabalho, esperamos ter ampliado as perspectivas da pesquisa narrativa nos processos de formação de professores envolvidos com a causa da docência no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas (IFAM) – Campus Coari.

Caminhos metodológicos


Perseguindo os princípios da pesquisa narrativa (Clandinin & Connelly, 2015; Blix et al., 2021), no diálogo com a pesquisa narrativa e (auto) biográfica, para entender o campo da formação de professores (Fernández-Cruz, 2015; González-Monteagudo, 2018), a pesquisa desenvolveu diversas metodologias, produzindo variados textos de campo, nos limitando aqui à análise interpretativa de alguns relatos, colocados em diálogo com o contexto complexo e com o aporte teórico citado.

Para Clandinin e Connelly (2015, p. 172), existem três considerações que marcam o método narrativo: “considerações teóricas; considerações práticas orientadas para o texto de campo; e considerações analítico-interpretativas”. Neste artigo buscamos equilibrar esta relação para que a teoria consiga apoiar a compreensão dos textos de campo.

Partimos da análise interpretativa dos relatos das Rodas de Conversa (RC) e Entrevistas Individuais (EI) realizadas junto a 10 docentes, entre os 43 do IFAM Campus Coari à época da pesquisa (Peres, 2022), considerando a diversidade de origem, idade, sexo, tempo de serviço, titulação, formação e áreas do conhecimento, como demonstra o Quadro 1, além das diferenças históricas constitutivas de cada indivíduo1.

Quadro 1

Caracterização dos professores

Nome

Tempo Serviço

Docência Anterior

Sexo

Idade

Origem

Título

Disciplina

Formação

Inicial

Iracema

11 anos

12 anos

F

45

Coari/AM

Me.

Língua Portuguesa

Licenciada

Antônio

4 anos

8 anos

M

44

Manaus/AM

Esp.

Matemática

Bacharel

Edson

3 anos

10 anos

M

40

Acre

Esp.

Informática

Tecnólogo

Kleverton

3 anos

0 ano

M

37

Rondônia

Grad.

Informática

Bacharel

Marcos Cione

0 anos

0 ano

M

36

Tocantins

Grad.

Zootecnia/

Medicina Veterinária

Bacharel

Liliane

1 ano

1 ano

F

35

Bahia

Esp.

Contabilidade

Bacharel

Bruna

1 ano

1 ano

F

33

Minas Gerais

Dr.

Ciências Agrárias ou Agronomia

Licenciada

Jean

2 anos

0 ano

M

30

Tapauá/AM

Me.

Recursos Pesqueiros

Bacharel

George

2 anos

5 anos

M

29

Ceará

Esp.

Geografia

Licenciado

Renan Belém

4 anos

0 ano

M

27

Coari/AM

Esp.

Língua Portuguesa

Licenciado

Fonte: os autores.

Com a convivência diária por aproximadamente três meses no campo da pesquisa, entre julho e setembro de 2019, além de outras visitas e contatos esporádicos, foi possível realizar observação em diversos âmbitos e produzir significativos textos de campo, que orientaram a composição dos sentidos e elaboração do texto de pesquisa. Eles são resultados das histórias em andamento no campus no momento da pesquisa, sendo moldados pelo relacionamento (Clandinin & Connelly, 2015). Os relatos constituem as experiências. A experiência refletida, e tudo o que ela significa, fundamenta a pesquisa narrativa e constitui as bases metodológicas que, associadas ao enfoque biográfico, fundamentam esta pesquisa.

Buscamos entre os relatos das experiências aquilo que faz sentido contar, para repensar o DPD na dupla complexidade, identificando possíveis reflexões para novas experiências, que ressoam na narratividade. Para Dewey (1979), a simples atividade não constitui experiência. Caso ela se disperse e não sirva para construir novas experiências, terá sido uma experiência sem valor. Ela terá valor quando for “uma atividade contínua pelas consequências que dela decorrem adentro, quando a mudança feita pela ação se reflete em uma mudança operada em nós, esse fluxo e refluxo são repassados de significação” (Dewey, 1979, p. 153).

A dupla complexidade no relato dos docentes


Após as reflexões iniciais sobre o local, a Instituição e suas peculiaridades, perseguindo o objetivo proposto, foi preciso ouvir os relatos dos participantes para identificar as ressonâncias e dissonâncias do contexto e os significados atribuídos por eles ao novidadoso IF, no local onde vivem a experiência, buscando compreender como se identificam e como transitam entre as diferenças do local e da Instituição.

Nas conversas da pesquisa foi possível perceber como cada um significa e ressignifica o “lugar” — podendo este ser o município ou o Campus, percebido como complexo, considerando que lugar é aquele onde existe (ou se busca) a identificação (Bauman, 2001; Augé, 2020). No entanto, a vivência no campus permite perceber que muitos reagem à complexidade com a não identificação, ocupando um “não-lugar”, na acepção destes autores. Ao ocupar um “não-lugar”, muitos docentes não se envolvem, não se comprometem, não fazem juízos sobre a docência. Não é o caso de nossos participantes. Com efeito, os imperativos demográficos, como tratados por Fernández-Cruz (2015, p. 31), na maioria das vezes, dominam as ações e as conversas.

Para organizar esta discussão, dividimos a análise dos relatos em três breves unidades narrativas: primeiro, compreendendo as realidades política, social e econômica do local; depois, as implicações desta realidade na docência; e, por último, os processos de identificação e o dilema da permanência no campus e no local.

As realidades política, social e econômica do local


Marcos Cione, que era bacharel em zootecnia, com muita preocupação social e chegado ao campus sem qualquer formação pedagógica, começa uma roda de conversa com o paradoxo mais intrigante para os docentes que se interessam pela economia local. “É a segunda cidade mais rica do Amazonas, é a cidade rica em petróleo e gás [...]. Ela é uma cidade que ela é um polo e ela deve ter... Dar alguns benefícios para as pessoas que moram aqui” (Marcos Cione, 36 anos, Professor de Zootecnia, RC). Ele revela sua perplexidade diante da situação econômica do município e a realidade social das pessoas, o que se reflete no IFAM (Peres, 2022). Associada à “rica pobreza” do município, está uma gestão pública marcada pelo histórico de corrupção e administração precária dos recursos. Além disto, por estar localizada no médio Rio Solimões, rota de tráfico de drogas provenientes da Colômbia (Araújo, 2019), o índice de criminalidade também afeta o campo da educação escolar.

Isto nos remete à qualidade da política local. Com frequência, discutimos esta realidade informalmente no campus, mas nos sentimos impotentes para aprofundamentos. Como professor do IFAM, participar da política local pode levar a várias consequências, como o perigoso envolvimento com a “pequena política local”, estudado por Gouveia e Silva (2017), e o risco de conflitos com alunos, pais de alunos e com a gestão da Instituição. Nos relatos aparecem estes conflitos, o juízo que alguns docentes fazem da política e como isto reflete no campus. O relato de Antônio, professor de matemática, é bastante emblemático:

A gente tem aqui uma coisa trazida da própria cidade, nós temos uma cidade onde ela é dividida em quem gosta do prefeito e da família dele, e de quem não gosta. E eu vejo que as pessoas que são aqui de Coari trazem esse negócio para dentro da instituição. (Antônio, 44 anos, Professor de Matemática, EI)

Assim, buscando o afastamento da política local, mas contingenciados pelo econômico, os docentes da pesquisa focam na formação do aluno, percebendo a implicação do social e do econômico para os processos do ensino e da aprendizagem. Os professores se apropriam de suas experiências e buscam que elas sejam provocadoras de transformação social pelo ensino.

Diante da latente desigualdade social e econômica, Marcos Cione vê que o IFAM está, de certa forma, atendendo à população mais privilegiada. “É uma instituição que ela ainda é elitizada [...], vejo que aquele pessoal que está na periferia não tem condições de acessar o IFAM” (Marcos Cione, 36 anos, Professor de Zootecnia, RC). O transporte urbano é precário e a ausência de estradas sujeita as pessoas à navegação fluvial precária, o que torna a Instituição excludente. Jean, que é Engenheiro de Pesca e bastante ligado às atividades de extensão, comenta sobre estas comunidades rurais. Relata que são “280 comunidades, 30% da população do município excluída já do IFAM” (Jean, 30 anos, Professor de Recursos Pesqueiros, RC).

Diversos relatos da pesquisa reforçam estes aspectos que transitam entre a economia e a política e que refletem na sociedade de forma contundente, formando uma cultura clientelista e patrimonialista, na qual cada grupo ou família busca defender seu espaço, como critério de sobrevivência, com reflexos na escola.

Estas experiências refletem nos processos de DPD e nas práticas docentes de forma contundente. A experiência é formativa pelo fato de ser histórica e contínua. Considera-se que “experiências são histórias que as pessoas vivem. As pessoas vivem histórias e no contar dessas histórias se reafirmam. Modificam-se e criam novas histórias” (Clandinin & Connelly, 2015, p. 27). Ao criarem novas histórias, vão reinventando a docência.

As realidades política, social e econômica do local


Liliane, que é professora de contabilidade, mas formada pelo viés social nas pastorais da Igreja Católica e nos movimentos de luta popular, procura conhecer os bairros em que os alunos vivem e suas realidades, a carência de recursos e a precariedade de suas casas. Como trata-se de uma instituição de ensino técnico e tecnológico, a escassez dos recursos traz prejuízos aos alunos. Ela relata que seu notebook é “comunitário”, já que muitos alunos não possuem sequer celular.

Kleverton, que é professor de informática e bastante técnico, diz que conserta e faz upgrade em notebooks e celulares de alunos, para viabilizar suas atividades. Ele também desafia os alunos a aprenderem na adversidade: “você vai fazer no caderno [...] como é que esse seu programa, esse algoritmo vai se comportar, quando você chegar aqui no IFAM, você chega e testa” (Kleverton, 37 anos, Professor de Informática, RC). Desta forma, ele leva o aluno a refletir sobre sua prática. Mesmo com a iniciativa e o esforço de vários professores, como Kleverton e Liliane, esta falta de alguns meios causa alguma exclusão e afasta a integração que, numa perspectiva crítica (Walsh, 2010), tem foco na inclusão social.

Edson, também professor de informática, mas treinador de voleibol, que acompanhava a rotina e a vida dos alunos do time do campus, é reflexivo ao cobrar atividades aos alunos: “fiquei refletindo [...], como é que eu vou cobrar do meu aluno? Que o cara não tem nem onde dormir, num porão totalmente à mercê de vários tipos de doenças” (Edson, 40 anos, Professor de Informática, RC). De fato, muitos alunos vivem em condições insalubres, em casas tipo palafitas na beira dos rios e igarapés, em flutuantes, em bairros sem qualquer serviço público ou saneamento e, geralmente, em famílias numerosas. “Claro que a gente tem que fazer isso, cobrar, fazer a nossa parte, mas como a Liliane falou, cada caso é um caso” (Edson, 40 anos, Professor de Informática, RC). Muitos docentes da pesquisa demonstraram frustação ao não conseguirem promover as mudanças na escola, frustrando as expectativas com o DPD e se afastando da dimensão do cuidado com o aluno, adotando o viés mais técnico. Os docentes querem as respostas requeridas, mas para tal precisam construir um DPD múltiplo, com “o conhecimento sobre o desenvolvimento organizacional, o conhecimento sobre o desenvolvimento e inovação curricular, o conhecimento sobre o ensino e o conhecimento sobre o professor e a sua formação” (Marcelo Garcia, 1999, p. 140). São poucos os que buscam ou alcançam estes níveis amplos de conhecimento.

A cobrança, a nota, a avaliação parece ser algo que preocupa bastante os docentes do campus, no mesmo sentido que conclui Silva (2015, p. 185) em sua pesquisa: “o entendimento de que avaliar é classificar ainda vigora”. De fato, no Instituto, este entendimento é recorrente e recordo que me via constrangido no início da carreira ao conversar sobre avaliação com alguns colegas, que não admitiam subjetividades nas avaliações, ignorando as diferenças entre os alunos.

Tentando minimizar a exclusão, muito se fala nos relatos sobre o modo de avaliar o aluno, considerando sua condição social e seus limites para atingir resultados. Marcos Cione tem dificuldades com isso.

Se ele baixa o nível, ele diminui a condição do pessoal que tem acesso. E se ele sobe o nível demais, ele expulsa o pessoal. Eu tenho que falar para vocês, eu não tenho esse equilíbrio ainda. Ele se vê ‘entre a cruz e a espada’. (Marcos Cione, 36 anos, Professor de Zootecnia, RC)

Este dilema da avaliação é discutido no campus nos encontros pedagógicos, mas o viés tecnicista tende a dominar as orientações.

A escola criadora, na acepção de Gramsci (1982), exige procedimentos de investigação e de conhecimento sobre a prática e a aprendizagem autônoma do aluno, requerendo mudanças nos conteúdos e nos métodos de ensino, para os quais é preciso que haja formação neste sentido, para que se possa orientar o aluno neste percurso, para bastante além da avaliação objetiva e classificatória. Embora o Instituto esteja fundado nas bases da escola unitária, da educação omnilateral e integral (Castro & Duarte Neto, 2021), estamos distantes de uma formação substantiva nesta perspectiva. E a desigualdade “bate à porta”.

Bruna, que é professora e coordenadora do curso de agropecuária se mostra incomodada com a desigualdade entre os alunos: “na agropecuária, é muito claro a divisão de classes que tem ali. Uma pequena parte tem dinheiro [...], a maioria que não tem” (Bruna, 33 anos, Professora de Agronomia, RC). É uma preocupação recorrente, o paradoxo de uma cidade rica x pobre, como já demonstramos, que se reflete no IFAM. Existe uma enorme massa de pessoas de baixa renda ou sem renda e um pequeno grupo de pessoas ricas, constatada pelo elevado PIB e precário IDH, já comentado. Os filhos destas pessoas ricas invariavelmente estão no IFAM. Por isto, a discussão sobre a forma de acesso é recorrente. Atualmente, o acesso se dá pelo ranqueamento das melhores notas em Ciências, Matemática e Língua portuguesa nos anos finais do Ensino Fundamental, já foi por concurso, mas ambas as formas acabam sendo excludentes.

Araújo e Frigotto (2015) discutem os limites impostos pelas questões econômicas nas políticas educacionais e permitem a reflexão sobre a desejável formação integrada inspirada na escola unitária de Gramsci, pela qual as classes subordinadas são incluídas e emancipadas no processo. Isto nos permite pensar a perspectiva da educação integrada associada à interculturalidade crítica, uma inclusão integradora, percurso pouco percorrido no campus, diante da ausência da formação inicial e continuada dos docentes neste sentido.

Liliane, que carrega algo do viés da interculturalidade na formação, recorda que evitava contar sua história de sofrimento e sua relação com educação em sua formação. No entanto, agora ela usa sua história para incentivar os alunos. Diante deste relato, é possível imaginar que certamente muitos alunos omitem também suas mazelas, apresentam resultados insatisfatórios e desistem. Por isto, precisam confiar no professor, confiança que vem na relação, no afeto e no compromisso social e pedagógico. Os alunos chegam ao campus para cursar o ensino médio, procedentes de um ensino fundamental bastante precário, mas, em geral, não estamos preparados para este acolhimento, como demonstram alguns relatos.

Apesar de ter se preparado para as adversidades, Liliane enfrenta muitos desafios. “Eu vim muito preparada, assim, psicologicamente para uma realidade bem difícil” (Liliane, 35 anos, Professora de Contabilidade, RC). A profissão docente envolve tensões e dilemas, para os quais Day (2005, p. 52) sugere, como:

Tener capacidad de motivarse uno mismo y de persistir a pesar de las frustraciones; de controlar el impulso y diferir de la gratificación, de regular los propios estados de ánimo y evitar que el malestar ahogue la capacidad de pensar, empatizar y esperar.

Os desafios da docência exigem o domínio da inteligência emocional e do pensamento crítico, a capacidade de conhecer e dominar as próprias emoções, reconhecer as emoções dos outros e controlar as relações pessoais. Para tal tarefa, o autor sugere o diálogo da pesquisa-ação com a pesquisa narrativa, para conhecer melhor a história de vida dos professores. Liliane tem conseguido êxito nesta luta e parece que a experiência narrativa pode colaborar. Mas, as histórias de vida e as experiências de Liliane e outras participantes da pesquisa são marcadas pela percepção da diferença de ser mulher, em contextos por vezes assimilacionistas, ou mesmo patriarcais e excludentes. “Tem hora que dá vontade de chorar, mas você tem que engolir o choro e falar assim: ‘é isso que eu quero’” (Liliane, 35 anos, Professora de Contabilidade, RC). A distância familiar é uma experiência nova para ela e compreende a identificação e a permanência.

Liliane procura entender os diferentes alunos. Geralmente, todos os indivíduos sonham com coisas boas para o futuro, emprego, família, carro, viagens, mas ela não via isto nos alunos em Coari. “Eu perguntei qual era os sonhos dos alunos, tanto para vida pessoal, familiar e tudo. [...] Tinha gente que não sabia” (Liliane, 35 anos, Professora de Contabilidade, RC). Para sonhar, é preciso conhecer as possibilidades. A realidade de alguns é muito fechada, estão inseridos precariamente nos processos de globalização dos meios de comunicação e transporte e parece que têm até medo de narrar os sonhos. A prioridade é sobreviver, já que não há muita motivação para outras tarefas, considerando que a saída de Coari pode implicar viver numa periferia de Manaus, exposto a todo tipo de violência e insegurança, como já identificamos em pesquisas anteriores com egressos do campus (Peres et al., 2017). A maioria dos alunos só conhece a cidade de Coari, não conhecendo sequer alguma comunidade rural.

Muitos docentes têm dificuldade para compreender esta diferente realidade social, muitos formados na perspectiva mais técnica ou mesmo tecnicista. Mas é recorrente no campus a troca de experiências entre os docentes das áreas técnicas e humanas, embora que de maneira não planejada. Sempre que existe a necessidade de resolver algo prático ou técnico, em qualquer área, ainda que não seja a especialidade do professor, nós das humanas falamos: “chame o fulano”. Sempre que precisam resolver algo ligado às relações, conflitos e tensões políticas, é bastante comum recorrerem aos professores das áreas de humanas. No entanto, o escasso e prescritivo encontro pedagógico do início do ano não estimula o diálogo construtivo entre as diferentes áreas, por vezes, estimulando este binarismo e perspectivismo.

Neste contexto, é necessário refletir sobre a preparação do docente para esta realidade, do técnico para conhecer o humano, e do professor da formação geral, a capacidade para entender o propósito da educação profissional do IF e buscar o campo intercultural. Pensar na formação docente que vislumbre “horizontes de captação do mundo além das rotinas escolares, dos limites do estabelecido e do normatizado, para que ele se aproprie da teoria e da prática que tornam o trabalho uma atividade criadora, fundamental ao ser humano” (Ciavatta, 2012, p. 101).

Não podemos esperar do jovem adolescente que ele compreenda e se aproprie da práxis integradora, como muitos docentes parecem esperar. Os jovens têm sonhos específicos e nesta idade isso é o que interessa. O local tem suas peculiaridades que afetam o IFAM. Em Coari existe apenas uma escola privada de nível médio, com apenas uma turma, e as escolas públicas não garantem os mesmos resultados que o IFAM (Peres et al., 2017). Kleverton comenta algo que já constatamos em pesquisas anteriores e que o incomoda. “A maioria dos alunos que a gente tem na Instituição, os de integrado, eles não vão pelo ensino técnico, eles vão exclusivamente hoje pelo Ensino Médio, que por sinal é o melhor da cidade” (Kleverton, 37 anos, Professor de Informática, RC).

Esta procura pelo ensino médio provoca o desinteresse pela formação técnica e o professor desta área, por vezes, se sente desvalorizado, geralmente não se colocando no lugar do aluno, que tem uma história sobre estar ali. No ano de 2017 foi perguntado a 262 alunos sobre o motivo pelo qual ingressaram no IFAM, 23,28% elegeram a possibilidade de fazer um curso técnico e 70,61% a possibilidade de ter boa formação para ingresso no ensino superior (Peres & Cordovil, 2020).

Marcos Cione e Kleverton alegam que exigem o mínimo nas suas áreas técnicas, deixando espaço para a formação geral. Porém, Edson se preocupa com as possíveis consequências de formar um técnico que venha a comprometer a imagem da instituição no mercado. Existe outro paradoxo no município de Coari. Em uma entrevista realizada com um empresário local, em 2017, ele relatou que não gosta de contratar ex-aluno do IFAM, que prefere uma pessoa inexperiente, para formá-la à sua maneira (Souza & Dell’Oso, 2020). Tratava-se de uma empresa com carência em serviços de informática, área prioritária do IFAM em Coari, mas que não contrata os empoderados alunos do Instituto, que conhecem a técnica, mas conhecem os direitos trabalhistas e exigem mínimas condições de trabalho.

Ao se referir a este dilema, Edson se pergunta: “qual é o nosso papel dentro do Instituto?” (Edson, 40 anos, Professor de Informática RC). Seria importante ao professor hierarquizar o conhecimento? Escolher o melhor para o aluno? O debate se acirra. Bruna diz que: “a gente pode mostrar os caminhos” (Bruna, 33 anos, Professora de Agronomia, RC). Jean reflete: “eu estou pensando aqui, quem passou pelo que os meninos tão passando agora? Eu não passei” (Jean, 30 anos, Professor de Recursos Pesqueiros, RC). Edson reconhece: “eu vejo os nossos alunos como guerreiros” (Edson, 40 anos, Professor de Informática, RC). São várias tentativas de respostas, mas que param no clássico debate da dualidade formação geral vs. técnica.

Em geral, os docentes lutam por melhorias e contra as reformas liberais implementadas à época, mas percebem que a formação no IFAM não vai garantir a felicidade dos alunos. É recorrente ouvir professores orientando para que os alunos se mudem para outras cidades, sob a alegação de que Coari não tem futuro para eles. A discussão possibilita compreender que a crítica de setores liberais e de alguns teóricos (Schwartzman, 2016; Magalhães & Castioni, 2019) de que o modelo integrado de ensino, baseado na politecnia, esteja dificultando a formação para o trabalho parece não interessar ao local, pois, em Coari os problemas ainda são outros.

Estas experiências, que podem ser comuns em escolas de periferia, ressoam no DPD do docente do campus, que experimenta a complexidade do lugar, do Instituto e o dilema de estar “fora de casa” e no lugar diferente. Embora tenha vindo voluntariamente, a identificação com o local não acontece trazendo prejuízos à docência. O DPD é constituído por processos de identificação docentes que envolvem dimensões do profissional (profissionalidade, profissionalização e profissionalismo), do pessoal (subjetividade), do contexto (a escola, o local de trabalho), do organizacional e do institucional-administrativo (cultura organizacional) (Marcelo Garcia, 1999). Todas estas dimensões afetam o DPD dos docentes em Coari e são complexificadas pela dimensão do cultural, no campo das diferenças.

Processos de identificação e o dilema da permanência


A não identificação e não adaptação dos docentes com o local faz do Campus Coari um lugar onde “ninguém quer ficar”, onde a identificação é inexistente ou baixa. Vários são os motivos alegados. Antônio considera que:

A própria estrutura da cidade, você não tem muitas opções de lazer, você não tem muitas opções, por exemplo, você ter um plano de saúde aqui praticamente não vale a pena, em Coari, porque você não tem para onde ir. (Antônio, 44 anos, Professor de Matemática, EI)

Paradoxalmente, é o salário satisfatório que estimula o desejo de ir para maiores centros: “como ele pode mais, ele quer poder consumir mais, quer ter uma estrutura melhor. Infelizmente, hoje, o interior não oferece isso” (Antônio, 44 anos, Professor de Matemática, EI). A remuneração que é um problema recorrente do docente no Brasil, como já comentado na seção anterior, no IFAM parece que representa um dilema diferente, porque a boa remuneração alimenta o desejo de não permanecer. A identificação como sujeito consumista (Hall, 2019) tende a orientar as decisões das pessoas. Giddens (2002) trata da reflexividade e estilo de vida, apresentando o dilema de viver uma experiência personalizada ou uma experiência mercantilizada na formação da identidade, influenciados pela publicidade e padrões de consumo. O padrão de consumo de Coari é também diferente dos de outras periferias brasileiras, existe uma relação diferente com a natureza. Os costumes alimentares, dentre outros, são distintos, logo causam estranhamento.

Santos (2021), em Reflexões sobre a educação no interior do Amazonas/Brasil, descreve boa parte dos dilemas e dramas vivenciados pelos docentes da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), da Universidade Estadual do Amazonas (UEA) e do IFAM no interior, tomando como amostra o município de Coari. Ele considera que, para além da quantidade de professores, é preciso “pensar na sua remuneração, no seu preparo psicopedagógico para se adaptarem a áreas carentes, com metodologias que possam valorizar a cultura indígena, usar o ambiente como grande laboratório e conteúdos contextualizados com a realidade Amazônica” (Santos, 2021, p. 38). A Tese de Souza (2018, p. 156) trata do Custo Amazônico, “o custo adicional empreendido pelas instituições que desenvolvem atividades na Amazônia, quando consideradas as dificuldades de deslocamento, transporte, comunicação e logística para áreas de difícil acesso como: as áreas de florestas, ribeirinha, quilombolas e indígenas”, que “tem influência direta em duas das principais dificuldades levantadas que são: a logística e a alta rotatividade do corpo docente” (Souza, 2018, p. 8).

O autor estuda o caso do campus São Gabriel da Cachoeira, onde a questão indígena está mais presente, diferenciando-o de Coari, mas com intersecções diversas que os identificam continuamente. O processo de identificação dos indígenas de Coari é bastante tardio, afetado pela movimentação campo-cidade e alta empregabilidade, no contexto da construção do Gasoduto da Petrobras, já comentado. O município, que é historicamente construído sobre as bases da cultura indígena, possui apenas uma Terra Indígena e três etnias reconhecidas (IBGE, 2020). Existe a expectativa de grandes mudanças nestes índices a partir de dados de pesquisa do Instituto, em andamento.

O docente que é de fora não desenvolve identificação com estas questões indígenas, rurais e ribeirinhas, com o que seria a “vocação” do Instituto. Porém, o docente do local também tem seus dilemas. A possibilidade de se mover no mundo globalizado por si só já é um mecanismo de tensão, pois, é uma possibilidade, um convite em aberto. Com a família coariense, a esposa com um bom emprego, sem filhos, Renan não descarta totalmente a possibilidade de deixar o Campus Coari. Sobre isto, ele reflete: “se eu sinto vontade? Se for, mas para um município, também, pequeno, por exemplo, Presidente Figueiredo, Manacapuru” (Renan Belém, 27 anos, Professor de Língua Portuguesa, EI). Estes são municípios da região metropolitana da capital Manaus, porém, para Renan fica a nível da imaginação, de processos inconscientes talvez, um descentramento possível na modernidade, como explicou Hall (2019). Ele ressalta: “hoje, em Coari, eu estou estabilizado totalmente, estou em casa” (Renan Belém, 27 anos, Professor de Língua Portuguesa, EI). A palavra “hoje” tem efeito nesta frase, demonstra a contingência do tempo.

Alves et al. (2019) realizaram importante pesquisa no Campus Coari sobre a qualidade de vida no trabalho no campus, envolvendo a realidade do interior do Amazonas e os servidores técnico-administrativos. O estudo revelou forte satisfação no exercício das atividades laborais pelos participantes. Resta refletir, e poderá ser feito em estudos posteriores, sobre os possíveis fatores que influenciam esta satisfação, incluindo os docentes neste estudo. Políticas sobre qualidade de vida, condições efetivas de trabalho, pertencimento ao local e relações sociais mais efetivas são fatores a serem considerados.

Iracema, que é coariense e professora de língua portuguesa, saiu de Coari para Manaus aos 8 anos de idade e retornou aos 36 anos para atuar como docente no Instituto, também tem seus dilemas. Ela considera que o elo familiar ajuda na sua identificação com o local, mas percebe diferenças no local que incomodam as pessoas que vêm de fora, a violência, o trânsito, a dificuldade de fazer amizades. Não omite as mazelas do local como costumam fazer os irracionais defensores dos lugares imaginados, como escreve Hall (2019) sobre os relacionados às “comunidades imaginadas”.

Ela vê o local com um certo estranhamento. Aspectos percebidos com naturalidade pelas pessoas da cidade despertam sua atenção. Ela caminha entre duas perspectivas, na fronteira da cultura, no hibridismo. Vive um descentramento diante dos paradoxais centros de referência. Relata também que o desemprego do marido, problemas familiares e outro, pontual, que teve no Campus, estimulam seu desejo de ir embora de Coari. As conversas sobre permanecer ou não em Coari abrem caminhos para várias interpretações sobre o lugar onde atuam e aprendem estes docentes, considerando as concepções de lugar, não lugar e pertencimento, que permitem um diálogo teórico com Bauman (2001), Hall (2019) e Augé (2020).

Ainda assim, ao entrar no debate sobre a permanência dos docentes no local, em outras conversas da pesquisa, apesar de histórias, desejos e necessidades diferentes, todos procuraram propor soluções, dentro dos limites de suas agências e entendimentos. Buscavam saídas para que os deslocamentos docentes não prejudicassem o ensino, identidade substantiva do docente, na acepção de Day (2001).

No momento da escrita deste artigo no ano de 2023, dos 12 participantes que iniciaram na pesquisa, realizada em 2019, apenas cinco ainda estão no campus. Dois deles saíram no início da pesquisa e os demais posteriormente. O participante George, professor de Geografia, já foi removido para outro campus, não se adaptou e conseguiu um processo de reversão, mediante permuta com outro da mesma área. Estes deslocamentos exigem uma preocupação com as políticas da Instituição sobre a permanência no interior, considerando as ressonâncias que os deslocamentos ou a vontade de deslocamento provocam nos DPD dos docentes.

Possíveis caminhos de aprendizagens para o duplo contexto


Considerando a complexidade socioeconômica e cultural do município de Coari/AM, a natureza também complexa do Instituto e a identificação conflituosa do docente com o local, percebida nos relatos das experiências, parece pertinente pensar em ações formativas que tenham potencial para transformar as experiências em identificações mais favoráveis à realidade experimentada, minimizando o impacto negativo ao DPD, abrindo para novas possibilidades na docência. Neste sentido, sugerimos:

Uma vez que os processos de identificação são também biográficos e (auto) biográficos, estes enfoques devem ser considerados na formação dos docentes. Esta perspectiva, que vem dos anos 1980, tem crescido com vigor nas pesquisas por todo o mundo (González-Monteagudo, 1996; Fernández-Cruz, 2015; Contreras Domingo et al., 2019).

Considerações finais


No artigo buscamos, da maneira breve que o trabalho exige, identificar alguns relatos dos docentes do Campus Coari que se configuram como mecanismos geradores de tensões. Buscamos (ainda) apresentar caminhos de aprendizagens que permitam compreender os processos de identificação no campo das diferenças e das complexidades do duplo contexto, minimizando os impactos das realidades política, social e econômica e suas implicações no DPD.

A intenção do trabalho foi também de ampliar as perspectivas da pesquisa narrativa e do uso dos relatos nos processos de formação de professores envolvidos com a causa da docência no IFAM Campus Coari. Ele é fruto de pesquisa, experiência e diálogo colaborativo entre os três autores, da docência e pesquisas no Instituto Federal do Amazonas, da pesquisa narrativa e formação docente na Universidade Federal de Mato Grosso e da interculturalidade e estudos biográficos na Universidade de Sevilha.

A partir das experiências relatadas identificamos que a realidade do trabalho no local diante das vivências anteriores dos docentes, a diferente relação com o meio ambiente, o isolamento físico e geográfico, o acesso exclusivo por via fluvial, a economia e estrutura precárias e complexas, a proximidade com a cultura indígena e a do caboclo ribeirinho, além dos costumes que representam a cultura local, são os principais mecanismos geradores de tensão que deslocam e descentram os docentes (Hall, 2019). Considera-se que “experiências são histórias que as pessoas vivem. As pessoas vivem histórias e no contar destas histórias se reafirmam. Modificam-se e criam novas histórias” (Clandinin & Connelly, 2015, p. 27).

Entre estas novas histórias, os docentes vão constituindo aprendizagens, mudanças contínuas no DPD e novos conhecimentos neste campo. A reflexão sobre a fluidez das identidades, dos estudos culturais, que tratam dos processos de identificação e das diferenças, parece ser caminho importante para o campo da formação docente, conforme foi possível perceber nesta pesquisa.

Este artigo se propõe a uma reflexão a partir das experiências e os caminhos apontados não devem ser pensados como prescrições, mas oportunidades de ampliar as perspectivas de formação de professores de modo a minimizar os impactos da dupla complexidade do contexto do IFAM no interior no DPD, lembrando que o desenvolvimento profissional envolve necessariamente a vida dos docentes.

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Sobre os autores


Claudio Afonso Peres


Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas, Coai, AM, Brasil

https://orcid.org/0000-0002-6125-0279


Doutor em Educação pela Universidade de Mato Grosso (2022). Professor e Pesquisador do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Política e Formação Docente (GEPForDoc). E-mail: claudioperes@ifam.edu.br


Filomena Maria de Arruda Monteiro


Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, MT, Brasil

https://orcid.org/0000-0003-3428-0533


Doutora em Educação pela Universidade Federal de São Carlos (2004). Professora Titular e Pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Mato Grosso. Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Política e Formação Docente. E-mail: filarruda@hotmail.com


José González-Monteagudo


Universidade de Sevilha, Sevilha, Espanha

https://orcid.org/0000-0002-3094-8092


Doutor em Pedagogia pela Universidade de Sevilha (1996). Professor Titular e Pesquisador da Faculdade de Ciências de Educação da Universidade de Sevilha. Pertence às associações francesa, inglesa e brasileira de investigação e formação com foco em histórias de vida. E-mail: monteagu@hotmail.com


Contribuição na elaboração do texto: autor 1 – produção dos textos de campo, entrevistas, análise e interpretação dos dados, produção do texto e na discussão teórico-metodológica do artigo; autora 2 – suporte metodológico, diálogo entre método e metodologia, teoria e textos de campo, análise dos dados, revisão e consolidação do manuscrito; autor 3 – suporte teórico, diálogo entre a teoria e os textos de campo, tradução dos resumos, revisão e consolidação do manuscrito.


Resumen


El artículo trata de la reflexión sobre la experiencia de ser profesor en el Instituto Federal de Amazonas (IFAM) – Campus Coari. Siguiendo los principios de la investigación narrativa, en diálogo con la investigación (auto)biográfica, busca identificar las principales experiencias vividas in situ que han ampliado la concepción de la complejidad de la enseñanza y que permitieron destacar los diferentes matices del Desarrollo Profesional Docente (DPD). Se proponen caminos de aprendizaje significativos que pueden facilitar los procesos de identificación en el campo de las diferencias y del contexto de enseñanza en el Instituto Federal, ampliando la perspectiva formativa de la investigación narrativa a partir de la experiencia reflexionada.


Palabras clave: Desarrollo Profesional Docente. Instituto Federal de Amazonas. Contexto Complejo.



Abstract


The article deals with the reflection on the experience of being a teacher at the Federal Institute of Amazonas (IFAM) – Coari Campus. Following the principles of narrative research, in dialogue with (auto)biographical research, this paper seeks to identify the main experiences lived in situ that have broadened the conception of the complexity of teaching and that allowed to highlight the different nuances of the Professional Teaching Development (DPD). Significant learning paths are proposed that can facilitate the identification processes in the field of differences and the teaching context at the Federal Institute, broadening the formative perspective of narrative research, based on the reflected experience.


Keywords: Teacher Professional Development. Federal Institute of Amazonas. Complex Context.



Linhas Críticas | Periódico científico da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília, BrasilISSN eletrônico: 1981-0431 | ISSN: 1516-4896

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Referência completa (APA): Peres, C. A., Monteiro, F. M. de A., González-Monteagudo, J. (2023). Docência no Instituto Federal do Amazonas – aprendendo com as experiências. Linhas Críticas, 29, e47920. https://doi.org/10.26512/lc29202347920

Referência completa (ABNT): PERES, C. A.; MONTEIRO, F. M. de A.; GONZÁLEZ-MONTEAGUDO, J. Docência no Instituto Federal do Amazonas – aprendendo com as experiências. Linhas Críticas, 29, e47920, 2023. DOI: https://doi.org/10.26512/lc29202347920

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1Utilizamos os nomes reais dos participantes, que no momento da pesquisa decidiram não usar codinomes, atestando a confiança criada pelo pesquisador no campo e o aspecto relacional da pesquisa narrativa.

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