Educação popular e movimentos sociais do campo: a experiência do Movimento 21

Educación popular y movimientos sociales rurales: la experiencia del Movimiento 21

Popular education and rural social movements: the experience of the 21 Movement

João Paulo Guerreiro Severino Bezerra da Silva Sandra Maria Gadelha de Carvalho




Destaques


O Movimento 21 (M21) marca a denúncia ao modelo destrutivo e contraditório de produção no campo.


O M21 e a articulação em defesa do território da Chapada do Apodi apresentam potencial educativo e comunitário.


O M21 motivou a criação de uma lei que proíbe a pulverização aérea de agrotóxicos no Ceará.


Resumo


Este artigo relaciona a Educação Popular e os Movimentos Sociais na construção de processos de resistência camponesa, evidenciando os aprendizados constituídos por eles. Por meio da sistematização de experiências, reconstruímos a experiência do Movimento 21, na Chapada do Apodi, Ceará, abordando seu caráter educativo e o processo participativo. Desde 2010, desenvolveu diversas ações coletivas e práticas educativas no território onde se insere, numa perspectiva agroecológica, as quais combinam a resistência camponesa com a problematização e a conscientização, voltadas à libertação, constituindo-se como uma nova experiência de educação popular e de transformação social.

Resumen | Abstract


Palavras-chave

Educação Popular. Movimentos Sociais. Movimento 21-Agroecologia. Práticas Educativas.


Recebido: 24.02.2023

Aceito: 22.05.2023

Publicado: 31.05.2023

DOI: https://doi.org/10.26512/lc29202347285


Introdução


Neste artigo, refletimos sobre as novas configurações de movimentos sociais no campo e os aprendizados que ocasionam, desde uma perspectiva latino-americana, e tendo como referência uma região cujas tensões com o agronegócio levou à formação do Movimento 21 (M21), no Ceará. O M21 marca a denúncia ao modelo destrutivo e contraditório de produção no campo, característico do agronegócio, e busca romper com as situações de opressão e violação de direitos humanos no Vale do Jaguaribe, especificamente na Chapada do Apodi, localizada na divisa dos estados do Ceará e do Rio Grande do Norte.

Deste território conflituoso emergem forças contra-hegemônicas, fruto da articulação e entre instituições, grupos de pesquisa de universidades públicas, coletivos e movimentos sociais, os quais resistem e afirmam a agricultura camponesa como alternativa ao agronegócio, mas também atuam na defesa do território. Em suas ações coletivas, como já constatado por Almeida e Silva (2021a), o Movimento 21 desenvolve diversas práticas educativas, no campo e na cidade, aqui identificadas como constituintes de uma educação popular. Embora retomemos esse debate ao longo do artigo, antecipamos, lato sensu, compreendermos a educação popular, segundo Brandão (1983), como uma educação crítica, que proporciona aos sujeitos envolvidos reapropriarem-se de suas vozes, reverberando-as no espaço público, quando evidenciam suas demandas e lutas.

Dessa forma, partimos da indagação central: Como a educação popular pode se articular aos processos de resistência dos movimentos sociais que lutam pela terra? Objetivamos, assim, discutir a articulação entre a educação popular e os movimentos sociais do campo na construção de processos de resistência, evidenciando os aprendizados por eles construídos.

Do ponto de vista metodológico, alguns autores e algumas autoras da educação popular, como Holliday (2020; 2006), Streck (2010a), Freire (2019a) e Brandão (1983), dos movimentos sociais, a exemplo de Gohn (2014; 2022) e, ainda, de território (Fernandes, 2006) compõem o arcabouço teórico que fundamentará a discussão aqui iniciada. Outros autores e autoras, como Carvalho (2013), Freitas (2018) e Araújo (2020), foram consultados, a fim de tratar, especificamente, sobre o M21 e o contexto em que se consolidou.

Recorremos, ainda, à metodologia de sistematização de experiências, proposta por Holliday (2006, p. 24), que assim a define:

[…] sistematização é aquela interpretação crítica de uma ou várias experiências que, a partir de seu ordenamento e reconstrução, descobre ou explicita a lógica do processo vivido, os fatores que intervieram no dito processo, como se relacionaram entre si e porque o fizeram desse modo.

Para isso, observamos: a reconstrução ordenada da experiência, seu caráter educativo e o seu processo participativo. Destacamos, assim, uma síntese encadeada de atividades desenvolvidas pelo Movimento 21, por seus integrantes e/ou instituições parceiras, no período compreendido entre 2006 e 2023, organizadas em forma de quadro e analisadas em consonância com a Teoria dos Movimentos Sociais (Gohn, 2014). Dada a inserção no referido território, como professores-pesquisadores engajados, a reunião dessas fontes vem ocorrendo concomitantemente à nossa atuação no/do Movimento 21, desde as primeiras articulações (quando ainda não havia a autointitulação de Movimento Social) à sua criação em 2010, com os desdobramentos posteriores. O artigo, portanto, se situa na fronteira entre uma investigação bibliográfica e um registro de experiência, nos moldes da enunciação de Holliday (2006).

O discorrer da argumentação reflete inicialmente sobre as concepções de educação popular em diálogo com os movimentos sociais, para num segundo momento se deter ao Movimento 21, elaborando uma cronologia de ação, atividades e processos educativos. Ainda num terceiro momento, enfocamos as reverberações desse Movimento no território onde se localiza e, ao final, buscamos sistematizar como se deu a ressignificação da educação popular ao longo do caminhar de resistência constituído.

No contexto político e econômico brasileiro de um governo protofascista, no qual avançou a criminalização dos movimentos sociais e ataques à vida de camponeses e camponesas deles participantes, e até de estudiosos(as) e pesquisadores(as), o artigo adquire relevância ao registrar e analisar uma organização política diferenciada e sua atuação perseverante com processos de educação popular que podem inspirar e encorajar novas investigações sobre essa temática, assim como outros movimentos sociais em suas lutas.

Não obstante, nesse contexto socio-político, particularmente no território de atuação do Movimento 21, também se insere a pauta ambiental, mediante o avanço da crise e emergência climática, o desmatamento e desertificação na caatinga, bem como a luta em defesa da saúde humana – agravada com a pulverização excessiva de agrotóxicos – e contra a violação de direitos humanos, em decorrência da territorialização do agronegócio. Tais questões são centrais à atuação e construção da identidade do referido movimento social, ao passo que contribuem para a constituição de estratégias de resistência em territórios camponeses.

Educação popular e movimentos sociais: diálogos possíveis


A expressão e o debate sobre a educação popular tomam vulto significativo desde várias experiências ocorridas, principalmente no Nordeste brasileiro, entre o final da década de 1950 e o início dos anos 1960. Paiva (1987) destaca o Movimento de Cultura Popular (MCP) em Pernambuco, a “Campanha de Pé no Chão também se aprende a ler”, no Rio Grande do Norte, a Campanha de Educação Popular (CEPLAR) na Paraíba, o Movimento de Educação de Base (MEB), estendido a vários estados da região e, ainda, as atividades educativas desenvolvidas pelos Centros Populares de Cultura (CPC), ligados à União Nacional dos Estudantes (UNE).

Desde então, tem se constituído um campo de estudo com notável diversidade reflexiva acerca da educação popular, abrangendo as dimensões epistemológica, teórica e metodológica, porém, lato sensu, a educação popular designa processos educativos desenvolvidos junto às classes populares, tanto formais quanto não formais, na perspectiva de mudanças ou da transformação social.

Todavia, são diversas as fontes do pensamento educacional latino-americano, inspiradoras da concepção e prática de educação popular, que remontam aos Séculos XVIII e XIX. Com referência em Streck (2010a), podemos fazer menção ao venezuelano Simon Rodríguez (1783-1830), precursor do projeto de uma educação para todo o povo, incluindo-se indígenas; a brasileira Nísia Floresta (1810-1885), ao abordar a equidade de gênero na educação; o argentino Domingo Faustino Sarmiento (1811-1888), que pensou um modelo de educação popular para a Argentina e a América Latina; e o grande inspirador da Revolução Cubana, José Martí (1853-1895).

Na virada para o século XX, Pericás (2006) destaca o peruano José Carlos Mariátegui (1894-1930), cuja defesa de uma educação fundamental voltada aos anseios das classes trabalhadoras levou-o também a fortalecer o projeto de uma Universidade Popular, contextualizados com o pensamento crítico inovador que desenvolveu (Lowy, 1999). Ainda, o brasileiro Paulo Freire (1921-1997), idealizador da proposta de educação libertadora que lança bases para a educação popular no Brasil (Almeida & Silva, 2021b). As teorizações produzidas por tais autores marcam diversos olhares sobre a educação latino-americana e contribuem de forma significativa com a proposição de uma educação popular.

Holliday (2020) apresenta um panorama histórico da educação popular latino-americana, em primeiro momento identificada como instrução pública para as classes populares, nos séculos XVIII e XIX, com vistas à formação de uma “sociedade republicana”, ideia reforçada por Simon Rodríguez, um dos precursores da Educação Popular na América Latina (Streck, 2010a). Sarmiento também corrobora esta ideia de instrução pública e compreende o acesso à educação como necessário para superação do “atraso cultural” dos povos. Na direção contrária, José Martí (tal como Mariátegui) evidencia a necessidade de educação que extrapole os limites do espaço escolar e parta da “[…] realidade cultural e social do povo e o forme para ser capaz de conhecer e transformar essa realidade” (Holliday, 2020, p. 68).

No Brasil, Gomes (2020) destaca que, ao longo da história, a educação popular teve diversos sentidos, que, combinados aos contextos sócio-históricos, manifestam concepções de educação para ou com as classes populares. Inicialmente, sobretudo nas décadas de 1940 e 1950, comumente articulada às campanhas de alfabetização de adultos em larga escala, a educação popular era assim denominada como expressão de uma educação para as classes populares, a qual carregava uma perspectiva de escolarização voltada para o desenvolvimento econômico no processo de industrialização. Tratava-se de uma perspectiva que ora combinava a ideia de educação como instrução pública, ora como antídoto à ignorância no contexto do Nacionalismo-Desenvolvimentista.

Na década de 1960, a América Latina vem a abrigar diversas experiências de caráter popular e transformador, como a Revolução Cubana e o Governo Popular no Chile, contexto que embala a efervescência política das Reformas de Base no Brasil, do governo João Goulart. A expressão educação popular ganha, assim, outro sentido, então voltado à valorização da cultura popular como elemento de problematização e compreensão crítica da realidade.

Marcam este período as, anteriormente citadas, iniciativas do MCP e CPCs, a CEPLAR e a Campanha de Pé no Chão Também se Aprende a Ler. Ainda neste contexto, a experiência de alfabetização de adultos nas “Quarenta Horas de Angicos” (Lyra, 1996), comandada por Paulo Freire, representa um divisor de águas na história e na concepção de educação popular.

Se até então, no Brasil, predominava o pensamento de uma educação para as classes populares, como doação e forma de adaptação ao processo de desenvolvimento, a partir destas experiências passa-se a pensar a educação junto/com as classes populares, num diálogo intersubjetivo entre os sujeitos populares e seus saberes, mediados pelos contextos em que se encontravam inseridos. Um diálogo crítico e problematizador, que partia do local e se articulava na compreensão do global, com vistas à conscientização dos sujeitos e à transformação social (Holliday, 2020; Freire, 2019a). Todavia, estas iniciativas foram interrompidas em virtude do golpe civil-militar de 1964.

Nesta contextualização, uma questão se torna inquietante: a educação popular estaria, sobremaneira, voltada às experiências de alfabetização de adultos? Trata-se de uma perspectiva comumente disseminada, no entanto, mesmo que precursoras do paradigma brasileiro de educação popular, as experiências de alfabetização de adultos, na década de 1960, não são exclusivas. Brandão (1983, p. 52) é elucidativo neste sentido, sobretudo em dois aspectos:

[...] a educação popular é, em si mesma, um movimento de trabalho pedagógico que se dirige ao povo como um instrumento de conscientização; a educação popular é aquela que o próprio povo realiza, quando pensa o seu trabalho político — em qualquer nível ou modo em que ele seja realizado [...] — e constrói o seu próprio conhecimento.

Nessa direção polissêmica sobre a educação popular, Paiva (1987) corrobora com Brandão (1983), porém, atenta para a compreensão da educação popular como aquela destinada às classes populares, incluindo-se aqui os ciclos fundamentais na escola pública, uma compreensão que remonta aos escritos dos precursores latino-americanos já mencionados. Para efeito deste artigo, a concepção de educação popular se insere na compreensão de um projeto educativo que parte da realidade vivida, para refleti-la e transformá-la, portanto, de natureza crítica e conscientizadora.

Evidentemente, na história da educação brasileira, há de se reconhecer as contribuições das experiências de alfabetização de adultos para o olhar e o fazer sobre a educação popular. Todavia, no decorrer da década de 1980, no contexto da redemocratização, ao final da ditadura empresarial militar (1964-1985), com a expansão das concepções sobre participação cidadã e lutas por direitos sociais e civis, a educação popular passa a compor o cenário estratégico de lutas e resistências dos coletivos e movimentos sociais (Grzybowski, 1987).

A articulação entre educação popular e movimentos sociais será retomada mais adiante, com a experiência do Movimento 21. Importa, neste momento, compreender a definição de movimento social, desenvolvida por Gohn (2014). No que concerne às correntes europeias dos movimentos sociais, a autora destaca que, inicialmente, as análises voltavam-se aos paradigmas clássicos dos séculos XIX e XX, com o movimento operário ou camponês, numa perspectiva de classe.

Nas décadas finais do século XX, os movimentos sociais aparecem nos cenários latino-americano (no Brasil, sobretudo após o processo de redemocratização na década de 1980) e europeu e, desde que reservadas as particularidades dos contextos, podemos observar que novas bandeiras de lutas são (re)erguidas: direitos sociais como a educação, saúde, reforma agrária, direitos trabalhistas; e direitos civis, como sufrágio universal, igualdade racial e de gênero, direito à cultura e à cidadania. São denominados de Novos Movimentos Sociais e podem ser representados pelo francês Alain Tourraine e o acionalismo dos atores coletivos; por Alberto Melucci, italiano que defendia a ideia de identidade coletiva construída nos movimentos sociais; e o alemão Claus Offe e a sua abordagem neomarxista. Também destacamos as teorizações dos estadunidenses Sidney Tarrow – no campo das ações coletivas –, acerca dos ciclos de protesto e as estruturas de oportunidades políticas e Charles Tilly, o qual situa os Movimentos Sociais como uma forma de fazer política (Gohn, 2014).

No contexto latino-americano, alguns autores são fundamentais para adentrar à discussão sobre movimentos sociais e constituir um aparato conceitual e característico da temática, com um olhar atento às nossas particularidades.

O uruguaio Raúl Zibechi (2007) discute os movimentos sociais – indígenas, camponeses e urbanos – como poderes antiestatais e trata, assim, da construção de territórios de resistência mediante essa atuação. Na mesma direção, destacamos a argentina Maristella Svampa, cuja teorização no campo dos movimentos sociais e da sociologia política, atualmente traz contribuições à análise acerca do avanço do neoextrativismo na América Latina e da produção de commodities agrícolas para exportação, cujos impactos desaguam em desequilíbrios e conflitos socioambientais e territoriais, bem como desdobramentos nas desigualdades socioeconômicas, exploração e degradação ambiental. Em resposta, Svampa (2019) propõe a urgência de um giro ecoterritorial, ao trazer à tona estas problemáticas e registrar a importância do Bem Viver, a defesa da Terra e de relações humanas justas para a sua superação.

No caso brasileiro, de acordo com Gohn (2014; 2022), merecem destaque as experiências do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), Movimento Feminista, Movimento Negro, Movimento Indígena, Movimento Ambientalista, Movimento LGBTQIA+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros, Queers, Intersexo, Assexual e outros), como exemplos de organizações e coletivos diversos, com pautas/repertórios igualmente diferenciados e complexos. No campo conceitual, dialogamos com Danilo Streck (2010b) e Gohn (2014) para tal discussão.

Na perspectiva de Streck (2010b), no que tange aos movimentos sociais, deve-se destacar: a sua organização, a busca por mudanças ou transformação social, as questões e pautas defendidas (particulares e universais) e o processo de humanização e libertação dos sujeitos. Logo, a educação perpassa substancialmente este processo. Compreendemos que, no que toca ao M21, a educação popular consiste num elemento articulador e necessário para alcançar tal finalidade.

Assim, para o desenvolvimento de uma definição sobre movimentos sociais, Gohn (2014) reforça a complexidade da categoria teórica, dada a diversidade de correntes teóricas e, consequentemente, pautas apresentadas.

Referenciada em Offe, Gohn (2014) destaca que não há uma institucionalização do movimento na esfera pública ou privada, mas estes criam um campo político. Também aborda a diferenciação entre ação coletiva e movimento social; a primeira, identificada como atos políticos, protestos, passeatas, rebeliões, ocupações, dentre outras, que embora importantes, não representam a estrutura de um movimento ou coletivo social, mas que mesmo assim, podem compor seu arcabouço de estratégias de resistência ou a sua práxis. A autora explicita que os movimentos sociais incorporam em seus repertórios a luta social, que não necessariamente significa luta de classes. Logo, categorias básicas como totalidade, força social, ideologia, organização e identidade devem fazer parte da proposta metodológica do movimento social.

Feitas estas ponderações, apresentamos a definição de movimentos sociais em Gohn (2014, p. 251):

[…] são ações sociopolíticas construídas por atores sociais coletivos pertencentes a diferentes classes e camadas sociais, articuladas em certos cenários da conjuntura socioeconômica e política de um país, criando um campo de força social na sociedade civil. As ações se estruturam a partir de repertórios criados sobre temas e problemas em conflitos, litígios e disputas vivenciados pelo grupo na sociedade. As ações desenvolvem um processo social e político-cultural que cria uma identidade coletiva para o movimento, a partir dos interesses em comum.

A autora ressalta que, além dos objetivos próprios das ações coletivas, as relações intrínsecas entre seus participantes ocasionam uma identidade própria, com pautas e demandas individuais, mas que também pertencem a um grupo e se constroem nessa articulação. Enfatiza, ainda, que além das inovações e mudanças que provocam nos espaços públicos, é necessário observar os movimentos sociais, em um certo período histórico (Gohn, 2014). Para a experiência do M21, sobre a qual dissertaremos a seguir, filiamo-nos à concepção acima exposta, de autoria de Gohn (2014), destacando o caráter de classe desse movimento, sua força social e a identidade coletiva que vai se construindo no território de sua atuação.

M21: olhares sobre a educação popular nos movimentos sociais


No contexto de avanço do agronegócio no campo brasileiro, a partir da Revolução Verde na década de 1970 e da Política Nacional de Irrigação promovida na década de 1990, desencadearam-se diversos conflitos envolvendo a luta por terra e território. No estado do Ceará, este fenômeno implica na criação de Perímetros Irrigados na Região do Vale do Jaguaribe, a saber: Perímetro Irrigado de Morada Nova (PIMN), Perímetro Irrigado Tabuleiro de Russas e Perímetro Irrigado Jaguaribe-Apodi (PIJA). Este último interessa bastante à nossa discussão.

A Chapada do Apodi, situada na divisa dos estados do Ceará e do Rio Grande do Norte, compõe esse cenário de modernização agrícola e abriga, simultânea e conflitivamente, dois modelos de produção: o do agronegócio, localizado no PIJA, caracterizado por emprego de mão de obra assalariada, produção de commodities em monocultura com o uso massivo de defensivos agrícolas e sementes transgênicas, contando para isso com incentivos financeiros do Estado para os latifundiários; e a agricultura familiar e camponesa, caracterizada pela produção diversificada de culturas com pouco ou sem uso de agrotóxicos, empregando o núcleo familiar em pequenas propriedades, mesmo sem receber o devido amparo do Estado (Freitas, 2018; Carvalho, 2013).

O território do Vale do Jaguaribe-Ceará, especificamente o Baixo Jaguaribe, nos municípios de Limoeiro do Norte, Quixeré e Tabuleiro do Norte, abriga a Chapada do Apodi, a qual vem sendo palco de disputas envolvendo o agronegócio e a agricultura familiar e camponesa. Numa aproximação com a teorização de Svampa (2019), percebemos que, em decorrência da Política Nacional de Irrigação, diversos impactos sócio-ambientais puderam ser observados no território – compreendido para além do limite geográfico, como também um espaço de disputas e relações de poder (Fernandes, 2006) -, a exemplo da expropriação de comunidades, adoecimento de trabalhadores das empresas de fruticultura irrigada e trabalhadores rurais, envenenamento do solo, da água e do ar, bem como de moradores das comunidades da Chapada do Apodi (Freitas, 2018).

Este cenário desolador, hoje amplamente divulgado, também foi marcado pelo silêncio e por uma pedagogia do medo (Carvalho & Mendes, 2014). Em 21 de abril de 2010, o assassinato do agricultor e líder comunitário José Maria Filho, da Comunidade do Tomé, Chapada do Apodi – Limoeiro do Norte, conhecido como Zé Maria do Tomé, marca a tentativa de cercear as vozes que ecoavam no território e promoviam um incipiente processo de denúncia e de resistência, por meio de ações coletivas. O agricultor, então presidente da Associação de Moradores da Comunidade, denunciava os impactos da chegada das empresas de fruticultura na Chapada, com a expropriação de comunidades e a pulverização aérea de agrotóxicos.

Sua morte não significou o cessar da luta no território. Almeida e Silva (2021a) e Araújo (2020) esclarecem que após certo momento de temeridade, houve um processo de organização coletiva e criação do Movimento 21, assim denominado por fazer referência à data em que tombou Zé Maria do Tomé. Araújo (2020) destaca que, embora já existisse uma articulação em torno das problemáticas concernentes aos impactos socioambientais das empresas na Chapada, esta se autodenomina como movimento social a partir de 2010, frente ao fato ocorrido com Zé Maria.

A princípio, houve organização mais interna do grupo para avaliar o caso Zé Maria e iniciar momentos de ações coletivas, como protestos e passeatas para relembrar o caso. Fruto dessa articulação, foram forjados diversos momentos formativos, no campo ou na cidade, dos quais podemos destacar as Semanas Zé Maria, “[…] eventos realizados anualmente, no intuito de problematizar as lutas da Chapada e mobilizar os sujeitos históricos deste território” (Almeida & Silva, 2021a, p. 02).

O M21 constitui uma rede política sui generis que articula segmentos diversos, a saber: o MST, Movimento de Mulheres do Vale do Jaguaribe, Associações de Moradores da Chapada do Apodi, a Organização Popular (OPA), Sindicatos, a Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares (RENAP); bem como professores(as), pesquisadores(as) e discentes do Instituto Federal do Ceará (IFCE) e das Universidades Federal do Ceará (UFC) – particularmente, o Núcleo Trabalho, Meio Ambiente e Saúde (TRAMAS) – e Universidade Estadual do Ceará (UECE) – Laboratório de Estudos da Educação do Campo (LECAMPO) e o Grupo de Pesquisa e Articulação Campo, Terra e Território (NATERRA); da Associação Escola Família Agrícola Jaguaribana (AEFAJA), da Fundação de Educação e Defesa do Meio Ambiente do Jaguaribe (FEMAJE) e setores da Igreja Católica do Vale do Jaguaribe vinculados à Teologia da Libertação, como a Cáritas Diocesana de Limoeiro do Norte.

Assim, o M21 articula instituições, coletivos e representações de movimentos sociais, visando à resistência camponesa unificada no território jaguaribano. Em especial, distingue-se do MST, o qual, ao longo seus quase 40 anos de existência apresenta pautas diversas, que ampliam a luta pelo direito à posse da terra; tem uma representatividade nacional, com diversos assentamentos e acampamentos, o que confere ao movimento uma heterogeneidade de sujeitos, territórios e processos de resistência e organização. Todavia, há convergências entre esses dois movimentos que atuam no campo, sobretudo no que tange à luta por Reforma Agrária, a defesa da Agroecologia e dos territórios camponeses, a perspectiva anticapitalista, bem como uma preocupação com processos formativos. Embora seja interessante, no escopo deste artigo, não é possível um maior aprofundamento comparativo entre o M21 e outros movimentos sociais, questão que pode ser levada a cabo em estudos posteriores.

Para a sua consolidação como movimento social no Vale do Jaguaribe, o M21 foi fruto e, ao mesmo tempo, promoveu a resistência junto às comunidades da Chapada, na problematização das questões do território e na articulação com a academia. A “pedagogia da luta” é um processo de educação popular, à medida que possibilita constituir novas visões de mundo, reflexões e intervenções sociais, uma “educação como prática da liberdade” (Freire, 2019b).

A teorização de Gohn (2014) possibilita compreender algumas fases da criação de um movimento social até a sua consolidação. O quadro a seguir explicita como se deu a experiência do Movimento 21, no decorrer de sua atuação no território jaguaribano.

Quadro 1

As experiências do M21 (2006 a 2021)

Fase dos movimentos sociais (Gohn, 2014)

Como foi a experiências do M21


Antes do assassinato de Zé Maria (2006 a 2010):

1- Situação da carência ou ideias e conjunto de metas e valores a se atingir.

- Organização da comunidade em Associação;

2- Formulação das demandas por um pequeno número de pessoas (lideranças e assessorias).

- Denúncias das comunidades ao cotidiano de violação de direitos e anúncio das perspectivas para o território;

3- Aglutinação de pessoas (futuras bases do movimento) em torno das demandas.

- Ocupação da rodovia estadual cearense (CE) 209 por mulheres participantes da Via Campesina, MST, e outros, em março de 2007, como marco político do Dia Internacional da Mulher. A interdição impediu os ônibus que transportavam os(as) trabalhadores(as) das agroindústrias chegassem até o local de trabalho, promovendo uma paralisação geral (Araújo, 2020).
- Articulação com a academia, a exemplo do Núcleo TRAMAS, para a execução de estudos científicos sobre os impactos sócio-ambientais da chegada das empresas de fruticultura. Os resultados de parte destes estudos encontram-se em Rigotto (2011);
- Articulação com trabalhadores das empresas na Greve de 2008, que denunciava a situação de trabalho dos mesmos;
- Articulação e pressão para a criação da Lei n.º 1.278 (Limoeiro do Norte, 2009), que versava contra a Pulverização Aérea no referido município, aprovada pela Câmara Municipal em 20 de novembro de 2009, quando Limoeiro do Norte se tornou “o primeiro município no Brasil e no mundo a ter uma lei específica contra a pulverização aérea” (Araújo, 2020, p.18);
- Em 2009, Audiência Pública na Assembleia Legislativa do Ceará para discutir o Perímetro Irrigado Tabuleiro de Russas, lançando as bases para o diálogo com o poder legislativo.


Após o assassinato de Zé Maria (2010 em diante):

4- Transformação das demandas em reivindicações.

- (Re)articulação do coletivo para cobrar a investigação do assassinato de Zé Maria, identificação do(s) mandante(s) e consequente judicialização do processo, bem como para pressionar a Câmara Municipal pela manutenção da Lei Contra a Pulverização Aérea;

5- Organização elementar do movimento.

- Articulação dos coletivos para a criação do Movimento 21 em 2010 (Araújo, 2020);

6- Formulação de estratégias.

- Continuidade das articulações para o desenvolvimento de pesquisas em diversas áreas sobre o contexto da Chapada.

7- Práticas coletivas de assembléias, reuniões, atos públicos etc.

- Reuniões para discutir encaminhamentos;
- Realização de atos e elaboração de panfletos em memória à luta de Zé Maria;

8- Encaminhamento das reivindicações.

- Organização das Semanas Zé Maria. Teve início em 2011 e só não aconteceu no ano de 2020, devido à Pandemia da COVID-19. Atualmente, a Semana faz parte do calendário oficial do Estado do Ceará (Lei n.º 17.122, 12.12.2019 - Assembleia Legislativa do Ceará, D.O. 16.12.2019) e ainda dos municípios de Limoeiro do Norte e Quixeré (Ceará, 2019a);

9- Práticas de difusão e/ou execução de certos projetos.

- Criação do Memorial da Chapada do Apodi, na Comunidade Tomé, em 2011;
- Elaboração e publicação dos cordéis sobre a Chapada do Apodi, do Almanaque do Baixo Jaguaribe, a ser distribuído nas escolas pelo Núcleo TRAMAS, da Universidade Federal do Ceará, publicado em 2012;
- Contribuições na articulação em torno da ocupação de terras no Perímetro Irrigado Jaguaribe-Apodi, que resultou na criação do Acampamento Zé Maria do Tomé (AZMT) em 2014;
- Desenvolvimento de projetos de extensão voltados à memória camponesa, estudos sobre gênero, juventude, educação do campo e agroecologia pelo LECAMPO no âmbito do AZMT desde 2014;
- Publicação da Cartilha “A viagem pela Chapada do Apodi”, pela Cáritas Diocesana de Limoeiro do Norte, em 2015;
- Realização de peças de teatro (Teatro do Oprimido) e participação em programas de rádio da região, a fim de problematizar os impactos negativos da territorialização do agronegócio na Chapada do Apodi;
- Realização da Romaria da Chapada, anualmente, no dia 21 de abril, para rememorar a luta de Zé Maria e outros mártires;
- Participação na organização de Feiras Agroecológicas;
- Realização de atividades em escolas municipais, estaduais e federais, como parte da Semana Zé Maria do Tomé, nos anos de 2022 e 2023, discutindo questão agrária, resistência e identidade camponesa, impactos socioambientais e na saúde humana ocasionados pelo modus operandi do agronegócio na região.

10- Negociações com os opositores ou intermediários por meio dos interlocutores.

- Lei Municipal Contra a Pulverização Aérea (Lei 1278/2009, revogada em 2010, pela Câmara Municipal de Limoeiro do Norte);
- Mobilização em defesa da criação do CERESTA Zé Maria do Tomé – Centro de Referência em Saúde do Trabalhador em Limoeiro do Norte, no ano de 2014.
- Lei Zé Maria do Tomé – Lei Estadual n.º 16.820/2019, apresentada pelos deputados estaduais Renato Roseno (PSOL) e Elmano Freitas (PT), tornando o Ceará o único estado brasileiro a proibir a pulverização aérea de agrotóxicos (Ceará, 2019b), podendo nortear legislações semelhantes em outras unidades federativas.

Fonte: Elaborado pelos autores.

Na perspectiva de Oscar Jara Holliday (2006, p. 73), há cinco momentos para a sistematização da experiência: O ponto de partida, que inclui a participação e registro da experiência, que no caso em tela também incluiu fontes diversas, como o registro de observação participante, pesquisa bibliográfica e documental; as perguntas iniciais: o que se pretende sistematizar, apresentadas na seção introdutória deste trabalho; os aspectos centrais dessa experiência que nos interessa sistematizar, que levam em consideração a recuperação do processo, a reconstituição da história e a ordenação e classificação da informação, apresentados no quadro anterior; reflexões sobre o processo, ou seja, uma análise e interpretação críticas que vimos desenvolvendo desde uma perspectiva inter-relacionada à educação popular; e, por último, os pontos de chegada, que são as sínteses que se procura aqui expor.

Estes elementos foram fundamentais para a sistematização da experiência do M21 no contexto de resistência camponesa da Chapada do Apodi e nos permitiram desenvolver argumentações ora expostas, acerca deste processo e da interface entre movimentos sociais do campo e educação popular.

O quadro indica que, entre os anos de 2006 e 2010, no cotidiano da Chapada do Apodi, as fases 1, 2 e 3 já aconteciam e contavam com a participação do então líder ambiental Zé Maria do Tomé, sendo levadas adiante pelo Movimento 21 em momentos posteriores. As fases 4 a 6 foram essenciais nos processos de problematização das questões concernentes ao território e no pensar das estratégias de ação coletiva; as fases 7 a 9 representam momentos formativos como as Semanas Zé Maria do Tomé, as Romarias dos Mártires e diversas outras práticas educativas.

A fase 10 é bastante significativa, uma vez que, dessa luta, surge a Lei Zé Maria, em âmbitos municipal e estadual. Neste último caso, a Lei estadual 16.820/19 (Ceará, 2019b), conhecida como Lei Zé Maria do Tomé, torna o Ceará o primeiro estado brasileiro a proibir a pulverização aérea de agrotóxicos, todavia foi contestada pela Confederação Nacional da Agricultura (CNA), pela Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6137. É importante mencionar que o referido instrumento foi rejeitado, por unamidade, pelo Supremo Tribunal Federal, no ano de 2023, após intensa mobilização nacional.

Dada a organização das fases de consolidação de um Movimento Social expostas de forma didática por Gohn (2014), no caso em análise do M21, destacamos acontecimentos significativos em cada uma delas para a construção de um território de resistência camponesa (Zibechi, 2007) e de um giro ecoterritorial (Svampa, 2019). Elucidamos, também, que na dinamicidade da luta, as fases facilmente se imiscuem, permanecendo por períodos mais longos, construindo uma circularidade entre os processos.

Ressalte-se que a consolidação do M21 foi possível devido ao processo educativo proporcionado nas comunidades e na região, por meio da práxis revolucionária (Freire, 2019a) da luta social. Na tentativa de romper com uma Pedagogia Opressora (Freire, 2019b), que até então vigorava na Chapada do Apodi, incutindo em muitas gerações a ideia de desenvolvimento no campo a partir do lucrativo pelo agronegócio, o M21 promoveu uma “disputa de consciências”, intervindo no território com forças políticas e concepções contra-hegemônicas e reverberando outras perspectivas de desenvolvimento, para além da ideia disseminada pelos arautos do agronegócio (Carvalho et al., 2021).

Ao discorrer sobre as experiências de educação popular no território, a partir do M21, nosso primeiro destaque vem para a elaboração de cordéis sobre a Chapada do Apodi, a saber: “A maldição dos agrotóxicos ou o que faz o agronegócio” e “O trabalho e a vida da mulher do campo”, este segundo elaborado por uma moradora da Comunidade do Tomé, mediante atividades de pesquisa-ação realizadas pelo Núcleo TRAMAS, da UFC.

Os versos a seguir, extraídos do cordel “O trabalho e a vida da mulher do campo” revelam a compreensão da autora sobre o trabalho da mulher nas empresas do agronegócio e a denúncia à alienação camponesa dos meios de produção: “Na minha comunidade/Trabalham muitas mulheres/No sol escaldante e forte/Todos sabem como é/Plantam melão, mamão e banana/Sem ser delas nem um pé” (Lima, 2016, p. 04). Trata-se de um pensar sobre o território que não nega as contradições do modo de produção capitalista e seus impactos no cotidiano das comunidades camponesas, que além da expropriação das terras, carregam em seu âmago a violação de direitos sociais e civis.

Outra experiência que merece destaque é o Almanaque do Baixo Jaguaribe ou TRAMAS para a afirmação do trabalho, meio ambiente e saúde para sustentabilidade, publicado em 2012, pelo Núcleo TRAMAS da UFC, cujos membros fazem parte do Movimento 21. Como consta no sítio do TRAMAS, o Almanaque resulta de quatro anos de pesquisa (2007 a 2010) e de dois anos de sistematização, a partir da pesquisa “Estudo epidemiológico da população da região do Baixo Jaguaribe exposta à contaminação ambiental em área de uso de agrotóxicos”, contemplada no edital MCT-CNPq/MS-SCTIE-DECIT/CT – Saúde – n.º 24/2006 e coordenada pela professora Raquel Rigotto; junto a um livro e um cordel, o almanaque forma os produtos da referida pesquisa. O Almanaque também é composto por um cartaz e um Jogo da Memória do Baixo Jaguaribe, ambos disponibilizados às escolas municipais de Limoeiro do Norte.

Também destacamos a experiência de elaboração da cartilha “A viagem pela Chapada do Apodi”, pelas comunidades do território junto à Cáritas Diocesana de Limoeiro do Norte, em parceria com outros sujeitos identificados com estes processos de resistência e participantes do Movimento 21. Tal experiência possibilitou às comunidades revisitar memórias sobre o cotidiano do território antes da chegada das empresas de fruticultura, revelando seus anseios e suas participações no contexto. Um pensar sobre o território e sobre si como constituinte do mesmo. Isto pode representar um passo importante para a conformação de uma identidade camponesa por parte dos sujeitos da Chapada.

Ressaltamos, ainda, o papel da Cáritas Diocesana na aproximação e resistência junto às comunidades da Chapada do Apodi de Limoeiro do Norte e Tabuleiro do Norte, mediante a implantação de Tecnologias Sociais para a Convivência com o Semiárido e Projetos de Economia Popular Solidária; embora não consistam em iniciativas do M21, estas têm significativa relevância social para a defesa da Agroecologia e dos territórios camponeses.

Recuperando produções científicas acerca do M21, merecem destaque os artigos de Almeida et al. (2022), Carvalho e Mendes (2014) e Carvalho (2013), que sistematizam reflexões sobre processos educativos no território, como síntese de projetos de pesquisa e extensão desenvolvidos no âmbito do Laboratório de Estudos da Educação do Campo e no Mestrado Acadêmico Intercampi em Educação e Ensino (MAIE), situados na Faculdade de Filosofia Dom Aureliano Matos (FAFIDAM), campus da Universidade Estadual do Ceará em Limoeiro do Norte.

Também trazemos a Semana Zé Maria, um evento com 12 edições anuais, iniciado em 2011 (não tendo acontecido em 2020, devido à pandemia do COVID-19). Na X edição em 2021, o referido evento teve como tema “Zé Maria do Tomé Vive! A luta continua e a r-existência se faz vida”. As temáticas tratadas versaram sobre as memórias da luta na Chapada do Apodi, conflitos ambientais e lutas por direitos, agrotóxicos e saúde, a universidade como espaço de resistência com a apresentação de pesquisas desenvolvidas na Chapada, educação popular e movimentos sociais, bem como lançamentos de livros e dossiês. É pertinente evidenciar que em todas as edições houve programações desenvolvidas nas comunidades da Chapada, no entanto, devido ao formato virtual e à necessidade de isolamento social no contexto de pandemia do Covid-19, estas atividades foram suprimidas, sendo retomadas na edição de 2023.

Mediante a sistematização desta experiência, identificamos que a educação popular foi bastante presente nestes processos, uma vez que quaisquer atividades desenvolvidas tinham a participação dos acampados/camponeses na construção e na execução, partiam de seus territórios, suas demandas e buscavam a problematização da realidade com vistas à transformação social.

Assim, tendo o território como ponto de partida, compreendemos que a educação popular inspira ações de mudanças ou transformação social, pois combina uma proposta educativa que reconhece o saber popular e o articula ao conhecimento científico, buscando dialogicamente a problematização da realidade, a tomada de consciência, conscientização (Freire, 2019a; 2019b) e incentiva a práxis numa perspectiva de totalidade.

Pensando no cotidiano da Chapada do Apodi, as experiências supramencionadas mostram o quão, dos pontos de vista epistêmico e metodológico, pode ser viva e fecunda a educação popular articulada aos movimentos sociais e aos processos de resistência nos territórios camponeses; uma “práxis verdadeira e revolucionária” (Freire, 2019a), imprescindível à educação libertadora.

Considerações finais


No presente artigo, partimos da seguinte indagação central: Como a educação popular pode se articular aos processos de resistência dos movimentos sociais que lutam pela terra? O recorte para a experiência do M21 na construção de territórios de resistência evidencia que a articulação camponesa em torno da denúncia ao modus operandi do agronegócio na Chapada do Apodi revela viva e ressignificada a educação popular. Compreendendo a atuação do Agronegócio como uma Pedagogia Opressora, a alternativa para superá-la é a construção coletiva e a afirmação de uma Pedagogia do Oprimido, que busque a organização dos sujeitos em torno da transformação social.

Mediante a sistematização da experiência do Movimento 21, compreendemos que a luta por/no território caminha lado a lado com a educação popular, lançando mão de estratégias diversificadas em sua construção e execução. No caso do M21, podemos identificar uma série de experiências que desaguaram na consolidação desse movimento como um genuíno processo de educação popular: problematização, conscientização, diálogo e práxis para a libertação.

Mediante a tessitura deste texto, identificamos que as experiências ora apresentadas e discutidas evidenciam o caráter educativo, articulador e comunitário dessa rede que constitui o M21. Educativo, porque não nega o lugar da educação popular no processo de resistência camponesa; comunitário, porque não nega à comunidade o espaço e o protagonismo na luta. Neste sentido, a experiência do M21 reafirma o lugar da Educação Popular na construção das identidades e lutas populares locais e latino-americanas na constituição de sujeitos de direitos. Trabalho possível, mediante a disponibilidade do Movimento e de seus integrantes, em retornar às bases, educando e educando-se no processo.

Destacamos, também, que, nesta roda, foi possível o resgate da memória camponesa e a construção de caminhos para o fortalecimento da agroecologia a partir das tensões no território e das relações entre universidade e comunidade.

Apesar das conquistas, existem tensões, a saber: a defesa da Lei Zé Maria do Tomé, já mencionada, e a territorialização do Agronegócio na Chapada do Apodi no município de Tabuleiro do Norte, a qual vem ocasionando os mesmos impactos então vivenciados em Limoeiro do Norte. O caminho ora trilhado traz indicativos sobre o quão é necessária e significativa essa dinâmica de resistência unificada no território.

Por fim, dado o recorte escolhido para a discussão em tela, outras nuances da atuação do Movimento 21 não puderam ser aprofundadas. Neste sentido, investigações futuras poderão refletir sobre duas temáticas em específico, quais sejam: a relação comunidade-universidade-M21 e o diálogo entre conhecimentos científicos e saberes populares na produção intelectual crítica e engajada em territórios camponeses; bem como os processos de conscientização realizados pelo M21 em escolas públicas (municipais, estaduais e federais), observando a inter-relação escola-comunidade-movimento social para o fortalecimento da resistência camponesa e defesa da Agroecologia na Chapada do Apodi.

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Sobre os autores


João Paulo Guerreiro


Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará, Limoeiro do Norte, CE, Brasil

https://orcid.org/0000-0002-3055-8182


Mestre em Educação pela Universidade Estadual do Ceará (2017). Professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará, campus Limoeiro do Norte. Membro do Grupo de Pesquisa “Educação Popular, Memórias e Saberes” (CNPq/UFPB). E-mail: joaopaulo.guerreiro@ifce.edu.br


Severino Bezerra da Silva


Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, PB, Brasil

https://orcid.org/0000-0002-3062-6640


Doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2003). Professor da Universidade Federal da Paraíba. Líder do Grupo de Pesquisa “Educação Popular, Memórias e Saberes” (CNPq/UFPB). E-mail: severinobsilva@uol.com.br


Sandra Maria Gadelha de Carvalho


Universidade Estadual do Ceará, Limoeiro do Norte, CE, Brasil

https://orcid.org/0000-0002-0759-2788


Doutora em Educação pela Universidade Federal do Ceará (2006). Professora da Universidade Estadual do Ceará. Membra do Grupo de Pesquisa “Travessias: Trajetórias Juvenis, Afetividades e Direitos Humanos” (CNPq/UECE). E-mail: sandra.gadelha@uece.br


Contribuição na elaboração do texto: os autores contribuíram igualmente na elaboração do manuscrito.



Resumen


Este artículo relaciona Educación Popular y Movimientos Sociales en la construcción de procesos de resistencia campesina, destacando sus lecciones. A través de la sistematización de experiencias, reconstruimos la experiencia del Movimento 21, en Chapada do Apodi-Ceará, abordando su carácter educativo y el proceso participativo. Desde 2010, ha desarrollado diversas acciones colectivas y prácticas educativas en el territorio donde se ubica, desde una perspectiva agroecológica, que conjugan la resistencia campesina con la problematización y sensibilización, encaminadas a la liberación, constituyéndose como una nueva experiencia de educación popular y transformación social.


Palabras clave: Educación Popular. Movimientos Sociales. Movimiento 21-Agroecología. Prácticas Educativas.



Abstract


This scientific paper relates Popular Education and Social Movements in the construction of peasant resistance processes, highlighting the lessons learned in them. Through the systematization of experiences, we rebuilt the experience of Movimento 21, in Chapada do Apodi-Ceará, addressing its educational character and the participatory process. Since 2010, has developed several collective actions and educational practices in the territory where it is located, from an agroecological perspective, which combine peasant resistance with problematization and awareness, aimed at liberation, thus constituting itself as a new experience of popular education and social transformation.


Keywords: Popular Education. Social Movements. Movement 21-Agroecology. Educational Practices.


Linhas Críticas | Periódico científico da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília, BrasilISSN eletrônico: 1981-0431 | ISSN: 1516-4896

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Referência completa (APA): Guerreiro, J. P., Silva, S. B. da, & Carvalho, S. M. G. de. (2023). Educação popular e movimentos sociais do campo: a experiência do Movimento 21. Linhas Críticas, 29, e47285. https://doi.org/10.26512/lc29202347285


Referência completa (ABNT): GUERREIRO, J. P.; SILVA, S. B. da; CARVALHO, S. M. G. de. Educação popular e movimentos sociais do campo: a experiência do Movimento 21. Linhas Críticas, v. 29, e47285, 2023. DOI: https://doi.org/10.26512/lc29202347285


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