Experimentando o método qualitativo: um exercício de vivência etnográfica

Experimentando el método cualitativo: un ejercicio de experiencia etnográfica

Experimenting with the qualitative method: an ethnographic experience exercise

Hudson do Vale de Oliveira, Gabriela Buffon, Marília Ribas Machado, Simone Ghisi Feuerschütte




Destaques


O trabalho descreve uma vivência de etnografia com doutorandos em Administração.


Apresenta-se reflexões sobre a teoria e a prática no campo da pesquisa qualitativa.


Constata-se a importância de se promover um debate teórico/prático com estratégia de ensino aprendizado para pesquisadores em administração.


Resumo


O estudo busca promover o debate acerca do ensino de métodos qualitativos de pesquisa a partir de uma vivência etnográfica. Trata-se de uma investigação teórico-empírica em que foi realizado um estudo envolvendo a experiência dos doutorandos em uma prática de observação etnográfica em um estabelecimento comercial. Após a vivência, as percepções dos doutorandos foram sistematizadas em áreas temáticas; destaca-se que a proposta etnográfica vivencial se configurou como uma estratégia para estimular o ensino da etnografia, uma vez que os doutorandos tiveram a oportunidade de aproximar-se do fenômeno de estudo e identificar possíveis elementos que são característicos do referido método.

Resumen | Abstract


Palavras-chave

Estratégia de ensino. Pesquisa qualitativa. Etnografia. Experiência.


Recebido: 02.02.2023

Aceito: 05.05.2023

Publicado: 16.05.2023


Introdução


A pesquisa qualitativa tem, ao longo dos anos, ganhado mais espaço nos estudos organizacionais, especialmente como uma possibilidade frente à tradicional lógica da epistemologia funcionalista predominante no campo (Barbosa et al., 2013; Schneider et al., 2019). Um dos pressupostos dessa abordagem é a interação entre sujeito e fenômeno, o que reforça a necessidade de ser estudada a fim de promover novos percursos na realização de estudos na área da Administração.

Em virtude de suas características, especialmente em função da importância da interação do pesquisador com o fenômeno em estudo, o ensino de métodos qualitativos privilegia a promoção de estratégias vivenciadas, dinâmicas e que despertam nos alunos alguns dos seus elementos típicos, como, por exemplo, o da etnografia, que durante muito tempo era identificada como sendo a própria pesquisa qualitativa (Denzin & Lincoln, 2006; Günther, 2006).

Nos estudos organizacionais a etnografia impõe desafios ao pesquisador; sua aplicação é a melhor maneira de se conhecer as organizações – seus detalhes e idiossincrasias. Assim, entendendo a interação esperada entre o pesquisador e o fenômeno, acreditamos na importância de desenvolver estratégias de ensino de métodos qualitativos que promovam tal interação (Alcadipani, 2014). Nesse sentido, a etnografia vai muito além dos meios acadêmicos, sendo uma pesquisa que possui valor social, ordena problemas e suscita debates na realidade vivenciada (Cefaï, 2010).

Dessa forma, com a intenção de sugerir uma alternativa para o ensino da pesquisa qualitativa e do método etnográfico, temos como objetivo identificar as percepções de doutorandos sobre uma vivência etnográfica a partir de uma experiênciadesenvolvida no contexto da disciplina de Métodos Qualitativos de Pesquisa em Administração, do Curso de Doutorado de um Programa de Pós-Graduação em Administração. Buscamos, com o relato da - experimentação e das percepções dos doutorandos, contribuir com o debate sobre o ensino de métodos qualitativos, vislumbrando reforçar a importância de o pesquisador interagir com os fenômenos que emergem do campo, articulando “teoria e fato”.

O artigo está estruturado com uma breve introdução e, a seguir, apresentamos um conteúdo teórico dos fundamentos principais da pesquisa qualitativa e da etnografia. Em seguida está descrita a vivência etnográfica, com os aspectos metodológicos. A seção quatro traz essa vivência, com foco nas percepções e reflexões acerca das categorias analíticas definidas. Na quinta seção são descritas algumas reflexões finais e, por fim, apresentamos as referências.

Pesquisa qualitativa: algumas considerações


As pesquisas qualitativas representam uma abordagem mais naturalista e interpretativista do mundo, pois os pesquisadores buscam compreender as coisas no seu cenário natural, assim como interpretar os fenômenos por meio do significado que as pessoas lhe atribuem. Para tanto, utilizam-se diferentes técnicas na coleta dos dados, assumindo um papel de bricoleur. Essa multiplicidade de técnicas busca assegurar a compreensão profunda do fenômeno estudado e, assim, fornecendo rigor, complexidade, riqueza e profundidade na investigação (Denzin & Lincoln, 2006).

Realizar uma pesquisa qualitativa é muito mais complexo do que pode parecer, pois o campo, e as interações sociais que nele se constroem, principalmente no âmbito das relações humanas, é incerto. Na esteira desse debate e considerando os diferentes métodos adotados nos estudos com essa abordagem, sobretudo na Administração, Schneider et al. (2019, p. 93) destacam que “a utilização de novos métodos trouxe uma riqueza sem precedentes às pesquisas em Administração, visto que, […] busca-se compreender a complexidade que circunda um objeto de estudo”.

Dentre os procedimentos qualitativos de pesquisa, a observação participante merece destaque, pois ela permite que o pesquisador fique submerso no campo para a compreensão profunda do fenômeno de interesse, o que facilita a “transferência” da pesquisa qualitativa para o leitor. Conforme Serva e Jaime Júnior (1995), a referida técnica tem se mostrado significativa para a atualização das teorias das organizações, no campo da Administração, pois a pesquisa participante coloca pesquisador e pesquisados em interação “face a face” (Serva & Jaime Júnior, 1995, p. 69) e a coleta de dados ocorre no ambiente natural do pesquisado. Assim, para fomentar estudos organizacionais, a etnografia se configura como uma possibilidade na busca da compreensão do outro, social e culturalmente, pois possibilita enriquecer as teorias organizacionais, uma vez que se caracteriza como método interdisciplinar, como é o caso dos cenários e realidades das organizações (Andion & Serva, 2006).

Etnografia: características e alternativas para o ensino do método


A etnografia tem como propósito a compreensão dos fenômenos a partir de uma perspectiva interna; sua principal característica é a inserção do pesquisador no ambiente a ser pesquisado (Flick, 2009). Sua participação é profunda ao inserir-se no campo, pois sente as dores, agonias, experiências emocionais, pequenas vitórias, traumas, fantasias, sonhos e esperanças presentes no contexto vivenciado; portanto, trata-se de narrativas reais do campo pesquisado (Van Maanen, 1988, como citado em Vidich & Lyman, 2006).

Devido à participação prolongada do pesquisador no campo, faz-se necessário o uso de diversas estratégias ou procedimentos para que se atinja o objetivo proposto. Dentre essas podem ser mencionadas a entrevista semiestruturada, a análise documental, a análise de discurso e de conteúdo, a observação participante, utilização de softwares, fotos, vídeos, dentre outras (Flick, 2009; Costa Filho et al., 2019).

Andion e Serva (2006) enfatizam que a pesquisa etnográfica, para além de um método, trata-se de uma postura do pesquisador diante do objeto e do contexto de pesquisa. O pesquisador assume uma postura dialética na relação sujeito-objeto, movimentando-se no ir e vir ao universo do pesquisador e do outro a ser pesquisado; e isso requer identificação de semelhanças e diferenças entre os dois universos. Ademais, é necessário o movimento do particular ao geral, em que o pesquisador realiza constantemente uma contextualização das peculiaridades dos fenômenos e interpretações das expressões de outros aspectos às situações sociais.

Para a realização da etnografia faz-se necessário, portanto, que o pesquisador esteja atento a elementos que se configuram não como um caminho definitivo, mas como um “guia” a ser considerado. Dentre tais elementos estão o preparo teórico, o qual precisa se apropriar dos conceitos sobre o tema (Andion & Serva, 2006). O acesso e o tempo no campo devem possibilitar que o pesquisador consiga se inserir neste espaço, construir e fortalecer a confiança com os sujeitos pesquisados, para resultados fidedignos (Ruben et al., 1996). Ademais, sua escrita etnográfica precisa ser clara e ética, pois deve ser um dos aspectos mais relevantes da pesquisa. Torna, assim, as experiências sensoriais vividas no campo em texto, fomentando a imaginação do leitor, contudo deve ser descritiva e didática, explorando o conhecimento científico (Fine, 1993; Laplantine, 1996, como citado em Andion & Serva, 2006; Cefaï, 2010).

Ao se trabalhar em organizações, deve-se ter em mente que essas são fluídas, complexas, pluralistas, com poderes, culturas, costumes e estruturas que podem, ou não, ser óbvias para o pesquisador e para os pesquisados (Cunliffe & Alcadipani, 2016). Os autores observam que os objetivos e interesses dos membros das organizações são diferentes e, normalmente, não coincidem com os interesses do pesquisador. Este, muitas vezes, pode encontrar obstáculos ao tentar obter ou mesmo manter o acesso ao campo, o que pode se configurar como um fator de sucesso nos resultados das pesquisas. Conforme pontuam Vidich e Lyman (2006), os etnógrafos só irão encontrar a compreensão social e cultural se estiverem cientes das ideias que os motivam e estarem dispostos a confrontá-las.

Nessa perspectiva, nos parece ser importante promover discussões acerca do ensino do método etnográfico, buscando desenvolver estratégias que possam ser usadas não só na sua aplicação, mas na prática de seus procedimentos, com foco em oportunizar a vivência de suas características e particularidades. Assim, o ensino a partir do exercício do método permite aos pesquisadores experienciar uma aproximação à pesquisa, no sentido do “aprender fazendo”, tal qual a experimentação que deu origem a este artigo. Assim, nosso objetivo, à luz da prática proposta, é identificar as percepções de doutorandos sobre uma vivência etnográfica, com a intenção de sugerir uma alternativa para o ensino da pesquisa qualitativa e, especificamente, do método etnográfico. Para tanto, no tópico a seguir, com foco na metodologia, apresentamos os elementos sobre a vivência etnográfica implementada na disciplina de métodos qualitativos em um Curso de Doutorado em Administração.

Descrição da vivência etnográfica


O percurso metodológico do artigo se inter-relaciona com a metodologia adotada na realização da vivência etnográfica. A proposta se deu na disciplina de Métodos Qualitativos de Pesquisa em Administração em um Curso de Doutorado, realizada com uma turma de doutorandos em um dia de aula. A primeira etapa da atividade, o estudo teórico-empírico, considerou a pesquisa bibliográfica em artigos específicos sobre o tema e a pesquisa qualitativa, especialmente com foco nas características dessa abordagem.

Antes da experiência, os doutorandos tiveram acesso a uma apresentação teórica sobre o método etnográfico, inclusive com leituras prévias de textos. Considerando suas características, a proposta foi envolver a turma em uma vivência etnográfica em um ambiente real, natural, no caso um estabelecimento comercial. Ademais, para essa dinâmica foi elaborado um material didático para apresentar como ela seria realizada, assim como fichas para obter as percepções dos doutorandos, que tinham por “missão” perceber e analisar, durante a sua realização, as interações humanas e elementos nãoditos expressos nessas interações.

A partir do objetivo da prática, realizamos a exploração prévia do campo, para viabilizar a vivência em uma empresa da cidade de Florianópolis, Santa Catarina. Assim, formalizamos, perante o estabelecimento, todo o processo de liberação para que a turma pudesse realizar a experiência. Tomou-se o cuidado de identificar e definir como ela seria executada junto aos responsáveis do contexto a ser observado, com foco nas questões relacionadas à interação entre pesquisador e realidade de pesquisa.

A turma contava com 11 alunos, mais a docente responsável pela disciplina e o seu monitor, totalizando 13 pessoas. Porém, da vivência etnográfica participaram ativamente 08 pessoas, sendo 05 doutorandos e 03 doutorandas. Além da docente e do monitor, 03 doutorandos foram responsáveis pela proposta da vivência e, portanto, durante a sua realização, que foi de 01 hora, fizeram registros diversos.

Para o seu desenvolvimento, acordamos com o gerente do estabelecimento que a turma seria dividida em 02 grupos, cada grupo com 04 doutorandos, sendo um atuando como empacotadores e o outro como repositores. Em linhas gerais, os empacotadores são os responsáveis por empacotar as compras realizadas pelos clientes, tendo contato direto com os operadores de caixa, que na medida em que passam/bipam as compras as repassam aos empacotadores. Já os repositores são responsáveis por realizar a reposição dos produtos que estão em falta nas prateleiras, de forma que os clientes possam tê-los sempre à disposição. Vale ressaltar que o gerente do estabelecimento ficou responsável por repassar a realização da atividade ao grupo de colaboradores.

Nesse sentido, considerando que a formalização junto ao estabelecimento se deu 15 dias antes da realização da vivência, o gerente teria esse tempo para informar aos colaboradores. Ressaltamos que em nenhum momento nos foram repassadas informações sobre as mudanças pelas quais a empresa estava passando, a exemplo da redução do número de colaboradores. De todo modo, ainda que não tenha sido mencionado acerca das “mudanças”, era possível perceber, dentro desses 15 dias, alterações, por exemplo, na fachada da empresa.

No início da atividade, ao chegarmos no “campo” da pesquisa, os 02 grupos – repositores e empacotadores – foram direcionados aos responsáveis por cada segmento, que deram as orientações necessárias para o início da vivência. Os doutorandos se apresentaram com camisetas na mesma cor do uniforme dos colaboradores da empresa, de forma a contribuir para melhor imersão na vivência proposta por meio da aproximação da realidade observada.

Finalizada a vivência etnográfica, a turma voltou à sala de aula para a consolidação das percepções. Essa consolidação se deu de 03 formas: i) individual; ii) em 02 grupos menores (empacotadores e repositores); e iii) envolvendo o debate com toda a turma. Os relatos dos doutorandos e o debate também foram gravados, com a devida anuência e, posteriormente, transcritos para auxiliar na sistematização das percepções.

Nessa perspectiva, buscamos identificar as percepções e os sentimentos dos doutorandos por meio da vivência etnográfica realizada enquanto exercício de pesquisa qualitativa. Para isso, consideramos como elementos analíticos: as interações observadas no contexto de “pesquisa”; os elementos nãoditos, como posturas, gestos, expressões próximas ou reveladoras de simbolismos, etc.; os dilemas acerca dos papéis na vivência etnográfica (estranhamento); e a postura dos colaboradores no ambiente observado. A seguir, as percepções são relatadas, com vistas a explorarmos a ideia e o propósito de que tal vivência pode ser uma alternativa para o ensino de métodos qualitativos.

Vivência etnográfica: percepções dos doutorandos


As percepções dos doutorandos, obtidas por meio da vivência etnográfica, acerca da experiência vivida como pesquisador inserido em um campo de pesquisa, para a coleta real de informações, sobre os aspectos culturais, as interações no ambiente, os dilemas do campo e do pesquisador, foram sistematizadas e caracterizadas em quatro grandes temas: interações, postura dos colaboradores, elementos nãoditos e dilemas acerca dos papéis na vivência etnográfica (estranhamento). Esses temas, enquanto categorias analíticas, serão detalhados a seguir.

Para melhor compreensão das análises, sobretudo acerca dos relatos dos doutorandos, esses serão apresentados considerando o número de doutorandos (1, 2, 3, 4 e 5) e de doutorandas (1, 2 e 3), garantindo-lhes o anonimato.

O campo de pesquisa em que os doutorandos foram inseridos é um supermercado de bairro, de médio porte, organizado de forma que os clientes não precisem de ajuda para localizar os produtos. Acreditamos que o estabelecimento apresenta boa localização e, possivelmente, em função disso tende a possuir um bom número de clientes. É importante ressaltar que o ambiente encontrado na empresa no dia do exercício estava sob um clima de “mudança”, pois estava sendo adquirida por uma nova rede, com a entrada de novos sócios. Adicionalmente, o supermercado estava trocando a sua marca e logomarca e reduzindo o número de funcionários, em todos os setores. Esse cenário vivenciado pelos doutorandos delineia a percepção dos “estudantes observadores” na descrição da categoria Postura dos Colaboradores.

Postura dos colaboradores


Esta categoria analítica está relacionada com o comportamento que os colaboradores do supermercado tiveram ao entrar em contato com os doutorandos. Foi observado pelos doutorandos, em diferentes momentos da sua inserção no ‘campo’, a dificuldade por parte dos colaboradores em estabelecer uma comunicação mais direta e espontânea, favorecendo a obtenção de confiança. Nos relatos dos doutorandos, percebe-se a reação mencionada: “Percebemos um clima de desconfiança em função do contexto organizacional do alto nível de demissão, a atuação por parte dos colaboradores com uma postura mais fechada então, essa falta de relações […]” (Doutorando 2).

Diante do observado é importante ressaltar que, ao inserir-se no campo, o pesquisador precisa perceber as relações que ocorrem no ambiente e como ocorrem, para poder estabelecer vínculos entre os colaboradores e obter uma postura menos reativa por parte destes, sendo um aspecto muito importante quando se realiza pesquisa etnográfica (Andion& Serva, 2006; Turetta&Alcadipani, 2011). Para tanto, é necessário que o etnógrafo ingresse como um integrante do grupo, ocupando uma posição formal:

Por mais que o pesquisador vá ao campo, o campo pode se demonstrar refratário à intercessão dele. Quando a gente chega em um lugar desconhecido a gente não sabe qual é o papel, a função e como aquela pessoa articula com as outras. Então a gente tem que ir buscando, cavando um pouco para tentar entender […] e conseguir fazer as associações e articulações corretas com as pessoas. […]. (Doutorando 1)

Um fato articulado pela Doutoranda 2 revela que a colaboradora responsável por ensinar a reposição de mercadoria apresentou resistência inicial, mencionando que “[…] não tenho tempo não, não vou poder te explicar, eu tenho que trabalhar, não tenho tempo para fazer isso”. Diante dessa situação, ela precisou dialogar de forma mais coloquial para que a colaboradora pudesse entender o seu papel de pesquisadora naquele momento:

[…] aí argumentei que era um trabalho da nossa faculdade, […] eu falei que estávamos fazendo uma pesquisa naquele recinto […]: Uma coisa é a gente pesquisar assim, perguntar para o cliente, outra coisa é a gente ver o cliente fazendo sem ele saber. A gente vai ficar olhando essas coisas todas para a gente fazer nosso relato… A senhora lembra uma vez, teve um pesquisador que se vestiu de gari e apareceu no programa do Fantástico? (Doutoranda 2)

A partir disso, a doutoranda conseguiu estabelecer um vínculo de confiança com a colaboradora, uma vez que esta, possivelmente, percebeu que o seu cargo não seria ocupado por aquela e, em seguida, passou a tratá-la de forma mais gentil e a orientá-la sobre o serviço a ser realizado.

A literatura demonstra que o estabelecimento da confiança entre o pesquisador e atores do contexto pesquisado se constitui em uma etapa complexa do estudo. No caso da vivência relatada, a dificuldade de interação foi sentida por alguns doutorandos, uma vez que não conseguiram se comunicar com os colaboradores. Por exemplo, a doutoranda 3 relatou “[…] toda a interação que aconteceu com a operadora de caixa com quem eu estava partiu de minha iniciativa […]”. Ademais, foi relatado que havia pouco vínculo entre os próprios colaboradores, conforme observou o doutorando 2:

Houve a comunicação entre o operador de caixa e o empacotador, mas a gente não percebeu a relação entre os operadores de caixa. Então a gente não conversou com a operadora que estava com ela, e ela em momento algum se direcionou à nós e olhou […]. (Doutorando 2)

As posturas dos colaboradores também ocorreram no sentido de distinção entre eles, colaboradores e doutorandos. Assim, o doutorando 1 destacou:

[…] os funcionários criaram como se fosse um grupo, separaram a gente. Como se fossem nós e eles e isso ficou bem claro… teve uma hora que a Doutoranda 1 estava com o carrinho dela em um computador que eu precisava usar e eu perguntei para ele se ele estava usando e ele disse: ‘É dela lá, que está com vocês aí.’ […]. (Doutorando 1)

Em parte, essa dificuldade que alguns doutorandos apresentaram pode estar vinculada à falta de comunicação entre o gestor e os colaboradores, pois no momento da recepção dos doutorandos os colaboradores não foram notificados de que iria ocorrer uma simulação de pesquisa no campo, conforme ressaltado pela Doutoranda 2: “O gerente da loja […] disse assim: Você [colaboradora] fica com ela [Doutoranda 2]; então foi possível perceber que o gerente não [havia] avisado previamente a repositora sobre a atividade”. Essa percepção foi reforçada pelo Doutorando 1: “Então, como eles não tinham clareza do que estávamos fazendo, acabaram nos tratando diferente”.

Os relatos apresentados reforçam a ideia de Cunliffe e Alcadipani (2016), de que os objetivos e interesses dos membros das organizações são diferentes dos interesses do próprio pesquisador. Por isso, com base nessas dificuldades, percebemos que cabe ao pesquisador conseguir conciliar e reformular os interesses da empresa diante de sua presença.

Indo ao encontro do elemento confiança, ressaltado por Turetta e Alcadipani (2011), foi possível observar que os colaboradores receberam os doutorandos com postura e atitudes reativas. Cabe lembrar que o tempo de inserção no campo foi, aproximadamente, de 01 hora, não havendo tempo hábil para os doutorandos conseguirem articular melhor suas interações com os colaboradores. Ademais, o comportamento descrito dos colaboradores parece natural, em um primeiro momento, considerando os pesquisadores estranhos à organização – inclusive por não terem sido os colaboradores informados sobre sua presença e as razões da mesma – e, principalmente, em razão do clima organizacional encontrado no dia da vivência, com instabilidade do vínculo de trabalho e ameaças de demissão de colaboradores.

Interações entre pesquisador-pesquisado


A pesquisa etnográfica tem como um dos objetivos abordar as interações humanas, de modo que o pesquisador ingressa no grupo estudado como se fosse um membro e procura realizar as atividades que são desempenhadas pelo grupo, compartilhando ao máximo a vida social daqueles que estão sendo observados. Assim, o pesquisador, ao se inserir no grupo, deve revelar quais são suas intenções ao mesmo tempo em que participa ou trabalha naquele local (Stacey, 1977, como citado em Turetta & Alcadipani, 2011). Nesse sentido, a categoria analítica agora abordada buscou verificar as interações – ou a sua ausência – entre doutorandos e colaboradores, e o desempenho dos estudantes para atingir outro aspecto da proposta da vivência, que era verificar as interações que ocorreram no ambiente e os elementos nãoditos, descritos em seção específica.

Para melhor compreensão desta categoria foi necessária uma subdivisão entre interações dos colaboradores e interações que ocorreram no ambiente, percebidas pelos doutorandos. Iniciaremos pela primeira, interações com colaboradores. Muitas dessas interações também estão presentes na categoria “Postura dos Colaboradores” como, por exemplo, a baixa comunicação entre repositores, bem como entre operadores de caixa, e a ausência de comunicação do gerente com os colaboradores.

De acordo com as percepções dos doutorandos, essas interações foram percebidas de maneira distinta:

Os funcionários realmente acharam que os participantes seriam os novos contratados, porque, por exemplo, o rapaz me levou lá para o fundo da loja, depois me levou para fazer um tour na loja, também me tratou como se eu fosse trabalhar realmente na loja, e daí eu comecei a dar uma direcionada na conversa, mas mesmo assim o funcionário perguntou se eu voltaria amanhã, aí eu respondi que não, que seria um trabalho para o doutorado. (Doutorando 2)

Esse relato ressalta que o gerente buscou uma interação mais próxima e cordial com o doutorando, mas ficou evidente, novamente, que houve pouca comunicação entre os colaboradores, pois esse gerente, responsável pelo setor de frente de caixa, não sabia sobre a realização da vivência que acontecia na empresa.

Ainda em relação às interações vivenciadas pelos doutorandos, observamos a importância do pesquisador ir a campo conhecendo o método a ser utilizado, corroborando com Stacey (1977, como citado em Turetta & Alcadipani, 2011), quando ressalta a necessidade do pesquisador revelar suas intenções aos seus pesquisados. Assim, no relato a seguir percebemos que o doutorando fez os devidos esclarecimentos à colaboradora que o recebeu na realização da vivência:

Eu estava muito integrado, as pessoas do meu caixa me cumprimentaram, me trataram bem, mas eu pensava: isso não é a realidade, esse rapaz que tinha recém sido demitido, ele pegou a bebida dele, olhou para mim e perguntou para a moça do caixa se já estavam contratando novos funcionários. A moça do caixa então falou que não, que éramos da universidade. (Doutorando 4)

Essa atitude também se mostrou importante para a doutoranda 2, conforme relato na categoria anterior, quando explicou suas intenções à colaboradora que estava auxiliando e percebeu que a interação foi facilitada, tornando-se mais agradável. Isso foi evidenciado, inclusive, conforme o relato da doutoranda 2, porque antes do término da vivência etnográfica a colaboradora já estava contando aspectos da vida pessoal, corroborando com a teoria que destaca que a explicitação das intenções do pesquisador favorece as interações com o pesquisado.

Outra interação que foi destacada por uma das doutorandas diz respeito à linha tênue entre trabalho etnográfico e risco de invasão do espaço pesquisado. A percepção dessa interação foi assim relatada:

Eu tive muito cuidado em não atrapalhar o serviço dela, porque é um serviço de ‘verdade’ […] então a gente tem que ser proativo na medida em que nos dão liberdade para ser proativos sem ser incômodo. Eu queria ajudá-la, mas não queria invadir o espaço dela. (Doutoranda 1)

Esse trecho ressalta a importância da percepção e sensibilidade do pesquisador no ambiente em que está inserido. Estabelecer uma relação de confiança e respeito é importante na coleta dos dados, pois é necessário que o grupo o aceite para a compreensão do campo. Esse comportamento dos colaboradores junto aos doutorandos é normal em um primeiro contato, pois o pesquisador é um ser estranho em seu ambiente, o que vem a gerar certo incômodo com os demais (Cançado, 1994).

Com relação às interações que ocorrem simultaneamente no ambiente pesquisado, a que apresentou maior destaque foi justamente a comunicação do gerente com os colaboradores que, na opinião dos doutorandos, pode se caracterizar pela falta de comunicação. Algumas dessas interações já foram elencadas anteriormente, mas como se mostrou um comportamento repetitivo merece destaque nesta subseção de interações.

Em diferentes momentos, os doutorandos perceberam que a comunicação do gerente com a equipe foi controversa e fortemente marcada por hierarquia vertical e autoritária, como pôde ser observado, por exemplo, na fala do doutorando 3:

Foi perguntado ao repositor do mercado se, quando não há caminhões, ele pode descansar. Ele disse que não, que quando não há caminhões no pátio para realizar as reposições os empregados necessariamente têm que estar trabalhando porque o gerente está de olho.

Esse relato corrobora com o comentário da doutoranda 2: “[…] eu percebi que os funcionários percebem que o gerente está sempre de olho, ou seja, há uma supervisão constante, até no sentido de vigiar para punir os funcionários”.

Além das interações entre os colaboradores, houve relato de interações destes com os clientes, conforme relato do doutorando 2: “Percebemos relações de intimidade entre os operadores e os clientes no caixa preferencial, pois a operadora conhecia todos os clientes”, dado que a colaboradora era a que possuía mais tempo na sua função no mercado. Mas, houve comportamentos ao contrário desta observação relatada, ocorrido no caixa em que o doutorando 1 estava realizando a sua vivência: “[…] percebemos muito mais um nível formal de interação, de ‘bom-dia’ e ‘obrigado’ […]; quando o cliente se demonstrava receptivo, […] o operador era mais simpático e até ensinava o cliente a detectar notas falsas […]”.

As interações também ocorreram por parte dos clientes, o que pode nos remeter ao fato de que esses são frequentadores há mais tempo do supermercado, conforme relato do doutorando 2: “Teve uma cliente que percebeu que a doutoranda 3 era nova no mercado, assim como percebeu que os demais participantes da atividade também eram novos ali”.

Contudo, nem todas as interações foram positivas, havendo aquelas que demonstraram falta de educação por parte dos clientes, como o relato da doutoranda 3 a seguir:

Teve uma cliente […] que estava com as bags dela e ela jogou em mim, […] e falou: dentro tem uma sacola para o ovo. Ela não me olhou, ela simplesmente pegou a sacola […]. Remetendo, inclusive, a uma relação de “serviçal”.

Outra interação com esse aspecto foi o questionamento de um dos colaboradores que foi demitido no dia da vivência, pois achou que os doutorandos eram novos colaboradores, demonstrando sua perplexidade diante dos acontecimentos; assim, complementando essa situação, o doutorando 4 relata a fala do ex-colaborador: “Se colocarem ele para fazer o meu serviço quero ver ele durar uma semana”, se referindo ao doutorando que atuava como empacotador.

Houve, ainda, a interação entre clientes e gerente, revelando que aqueles frequentam o supermercado regularmente, a ponto de conhecer o gerente e discutir, por exemplo, sobre o preço dos produtos, conforme vivenciado no setor de hortifrúti:

Eu flagrei uma minidiscussão, porque uma senhora reclamou com o gerente dos preços dos produtos em virtude do dia da feira. Uma vez que os produtos estavam com os valores maiores do que no dia que não era o dia da feira, estavam o dobro do preço […]. Aí ela ficou indignada e chegou no caixa brigando com todos, pois ela não queria pagar aquele valor. E eles ficaram batendo boca dentro do supermercado, porque o gerente não queria baixar o valor. (Doutoranda 2)

Essas interações entre colaboradores e clientes refletem indícios de uma cultura organizacional gerenciada, de certa forma, empiricamente, com poder hierárquico controlador e opressor, conforme relato dos participantes. A etnografia é justamente utilizada para descobrir essas nuances sobre o outro, sua cultura; um método importante para perceber o comportamento humano no seu contexto social (Cançado, 1994).

Destacamos que, além das interações humanas identificadas, houve algumas nãohumanas. Os elementos nãohumanos, bem como sua coexistência com os humanos, são geralmente tratados superficialmente na Teoria Organizacional (Orlikowski, 2007). Todavia, sua inclusão na análise dos fenômenos e da prática da pesquisa reduz o risco de direcionar a atenção somente para as pessoas, negligenciando uma variedade de elementos que compõem as relações (Czarniawska, 2008) e auxiliam a constituição da realidade e produção de significados.

Na vivência etnográfica, especificamente no grupo dos repositores, o aspecto observado pelos doutorandos acerca da interação com os nãohumanos refere-se à atividade ter sido considerada solitária, conforme ressaltou o doutorando 1: “Como tivemos também essa função mais solitária, foi difícil de observar algum tipo de interação humana”. Assim também foi observado pelo doutorando 4:

O trabalho de repositor é um trabalho solitário, há pouca e às vezes nenhuma interação, a interação que ocorre é com objetos, não humanos […]. Às vezes passa um colega […] e fala alguma coisa, mas é por pouco tempo. Então não tive muitas interações. (Doutorando 4)

E a doutoranda 1 explanou experiência similar:

É uma atividade solitária, com baixa interação, com interação com os produtos basicamente. Necessitava de muita atenção, calcular os espaços de quanto caberia para cada produto. A questão do trabalho de reposição ser solitário eu acho que deve mesmo ser, porque se a pessoa [se] desconcentrar pode errar na precificação quando o cliente for pagar. (Doutoranda 1)

As principais reflexões dos doutorandos quanto à interação entre pesquisador e pesquisado remetem às interações entre colaboradores e nãohumanos. Nas interações com os colaboradores destacamos o momento de reorganização do supermercado, como a troca de sócios e demissão de funcionários, o que acarretou em desconfiança e resistência por parte destes, fato reforçado pela falta de comunicação do gerente sobre a realização da vivência. Outro ponto de destaque é a interação com objetos, os nãohumanos, ou seja, o sentido dado a eles só possível pela inserção no contexto pesquisado, em que ao exercer a função de repositor os doutorandos consideraram a interação pesquisador e objeto (nãohumano) solitária.

Os nãoditos


Os hábitos e atitudes dos indivíduos que são objeto de estudo também devem ser considerados na pesquisa etnográfica, possibilitando compreender o real comportamento das pessoas, visto que a pesquisa acontece no ambiente natural em que os sujeitos estão inseridos (Caliman & Costa, 2008).

Assim, revela-se a impossibilidade de o discurso abranger uma enunciação completa sobre a realidade observada. Entende-se, deste modo, que hábitos, atitudes e símbolos são considerados nãoditos e que estes são constituintes, fundadores do discurso e dizem respeito às diversas facetas da linguagem. Portanto, perpassa e ultrapassa todo o dito e, de alguma forma, o complementa (Orlandi, 2005). Costumeiramente, nãoditos podem ser observados em diferentes perspectivas, ou seja, aquilo que as pessoas sabem e não precisam dizer e tudo o que sabem e não querem dizer, podendo expressar significados importantes na compreensão da realidade e, especificamente, do fenômeno em estudo (Cabral, 2008).

Na vivência realizada, um nãodito observado entre os participantes foi a utilização de camisetas na mesma cor do uniforme dos colaboradores. Esta camiseta representou um símbolo que inseriu os pesquisadores no campo da vivência, sendo considerado pelos doutorandos como um elemento nãodito:

A camiseta para mim foi um nãodito que fez toda a diferença, porque eu tive várias interações, ainda que pequenas, só porque eu estava com a camiseta. Então, por exemplo, um cliente veio me perguntar […]. O cara do sindicato que me entregou o panfleto sobre o salário que não foi reajustado. Ele, por exemplo, me perguntou: Mudou a camiseta de vocês? Uma funcionária que me reconheceu como funcionária nova já veio e me deu dicas de como fazer determinadas tarefas para tornar meu trabalho mais fácil, caso eu tenha dificuldades. Então assim, deu para ver que a camiseta “me colocou ali”. Então a camiseta me auxiliou nesse processo, tanto para os funcionários quanto para os clientes. (Doutoranda 3)

Outro elemento observado pelos participantes sobre nãoditos foi o estabelecimento das relações de poder entre colaboradores e gerente. Essas perpassam tanto a questão de postura quanto de vestimenta, já que o gerente se veste diferente dos demais, sem estar, inclusive, com o uniforme da empresa. Essa percepção é salientada no relato a seguir:

Uma coisa que eu observei é que o gerente estava com uma camiseta polo branca de marca. E eu achei aquilo meio deselegante, no sentido de que há uma distinção em relação aos outros funcionários. Porque é uma camisa de marca e os outros usam uniforme vermelho. (Doutoranda 3)

Ademais, a doutoranda 3 destacou uma relação de poder e autoridade, um nãodito por parte do gerente quando esse se encontrava em determinado ambiente, pois há um efeito psicológico exercido por ele sobre os colaboradores. Em seu relato, menciona: “Eu percebi que os funcionários […] percebem que o gerente está sempre de olho […] Quando ele chegava no corredor, era possível perceber que a pessoa que estava trabalhando ficava diferente, ela se fechava” (Doutoranda 3).

O silêncio e a recepção reativa, com pouca iniciativa por parte dos colaboradores diante da situação vivenciada, com o cenário de mudança na empresa, expressa outro nãodito, sendo esse relacionado ao medo da demissão com a chegada dos doutorandos, já que alguns acreditavam que eram novos colaboradores.

Os nãoditos ressaltam que há muita informação e comportamentos que devem ser observados pelo pesquisador no campo em que está inserido, pois essa leitura facilita a sua interação na vivência e uma postura favorável dos colaboradores com o pesquisador.

Dilemas acerca dos papéis na vivência etnográfica


O estranhamento é um processo que o pesquisador vivencia durante a observação no campo. Esse consiste na dificuldade de estabelecer e separar os dois papéis exercidos pelo pesquisador, de observador e de observado. Convém destacar que este estranhamento é afetado por uma complexidade adicional quando em uma pesquisa em organizações, interferindo fortemente na relação colaborador/pesquisador (Jaime Júnior, 2003).

Segundo Cavalcanti (2017), estes papéis que o pesquisador vivencia fazem com que ele reconheça dois pontos: primeiro, eu, enquanto pesquisador, não sou um deles; e, segundo, que o pesquisador deve refletir sobre o que significa tornar-se um deles e se isso é, de fato, possível. No processo de observação etnográfica, o pesquisador deve ser capaz de olhar as coisas em profundidade e não apenas ver aquilo que “salta aos olhos”, que permite ao pesquisador se surpreender durante a pesquisa.

Em relação à diferenciação dos papéis, o pesquisador é responsável (na condição de observado) por compartilhar com os outros colaboradores as obrigações organizacionais, além de ter de executar as atividades formalmente definidas para sua função. Por outro lado, o pesquisador (enquanto observador) precisará coletar dados e informações,o que envolve fazer perguntas sobre aspectos sociais e culturais das relações dos indivíduos, elaborar anotações ao perceber algo relevante e observar atentamente o desdobramento de eventos enquanto trabalha (Turetta & Alcadipani, 2011). O desempenho destes papéis pode se configurar como uma dificuldade durante a etnografia, uma vez que o pesquisador deve estar atento às suas diferentes atividades em cada um dos papéis a ele atribuído.

No contexto da vivência, a separação entre os dois papéis – no caso, “pesquisador-colaborador”– foi revelada por alguns dos doutorandos ao falarem sobre suas percepções: “Eu não consegui separar muito bem, porque a arte de reposição tem uma lógica por detrás, então fiquei muito preocupada com a atividade e não consegui pensar além disso” (Doutoranda 3). Ademais:

Foi bem difícil separar, todos os colegas, inclusive, sentiram a mesma dificuldade. […], mas quando nos delegaram a atividade, a gente queria realizar a atividade, e nesse sentido eu até buscava controlar o tempo, de modo a conseguir realizar o maior número de atividades naquele tempo e não ficar sem serviço. Então, de vez em quando eu me policiava para observar como pesquisador […], mas era preciso prestar mais atenção. (Doutorando 1)

Ainda em relação às dificuldades de diferenciar e desempenhar os papéis na vivência, os doutorandos relataram elementos pertinentes à adoção do método etnográfico como, por exemplo, o tempo limitado da vivência e a (im)possibilidade de fazer anotações sobre a pesquisa do campo.

Segundo Malinowski (2018), o pesquisador só poderá se familiarizar plenamente com o contexto quando há contato muito estreito com os pesquisados durante um longo período, pois desta forma é possível desvendar regras e costumes dos pesquisados. Nesse sentido, o doutorando 4 mencionou: “Devido ao pouco tempo foi difícil desenvolver uma autopercepção sobre o trabalho”.

Nessa perspectiva, podemos dizer que a prática apresentou certa limitação – ainda que o nosso propósito tenha sido realizar um exercício como alternativa para o estudo do método da etnografia. Assim, foi possível perceber que para a prática da vivência deveria ter sido previsto mais tempo, de maneira que os doutorandos se entrosassem com os colaboradores.

Quanto à impossibilidade, ou dificuldade, de fazer anotações sobre a pesquisa no campo, o doutorando 1 destacou: “Não anotar prejudicou este processo, pois muitas vezes o pesquisador não consegue se colocar na posição de observador e só na posição de participante” (Doutorando 1).

No tocante à (im)possibilidade de realizar anotações sobre a observação da pesquisa, Malinowski (2018) argumenta que, ao observarmos os comportamentos dos pesquisados, devemos não só anotar os acontecimentos e detalhes ditados pelo campo, como também registrar, de maneira cuidadosa e exata, atitudes dos atores, umas após as outras. O autor também afirma que esses registros não devem ser transformados em simples anotações superficiais, mas que estas devem conseguir compreender a atitude mental daqueles que são observados.

Reflexões finais


A etnografia caracteriza-se como um método de pesquisa de estudos qualitativos. Tal como ocorre nestes, uma investigação que adota o método etnográfico utiliza-se de diferentes estratégias de coleta de dados, com foco em obter o máximo de evidências para colaborar na compreensão do fenômeno estudado e interpretar significados que as pessoas lhe atribuem.

Nesse sentido, destacamos que promover o exercício dos métodos qualitativos, em particular, no ensino da pesquisa nos ajuda a percebermos como a realidade é complexa e como ela pode ser abordada sob a perspectiva de diferentes lentes, tal como a “lente da etnografia”, articulando o que “queremos enxergar” com aquilo que realmente estamos enxergando.

Assim, este artigo foi gerado a partir de uma vivência etnográfica para exercitar este método, e teve o propósito de identificar os significados e as percepções de estudantes de doutorado sobre sua experiência em um campo de pesquisa. Para tanto, 08 pessoas (05 doutorandos e 03 doutorandas), divididas em dois grupos (com 04 pessoas cada), um de empacotadores e o outro de repositores, durante o período de 01 hora, fizeram registros diversos ao longo da vivência.

Deste modo, buscamos, a partir da experiência proposta e aplicada pelos doutorandos, contribuir para o debate acerca do exercício do método de estudos qualitativos. Desta forma, é possível afirmar que o objetivo do artigo foi alcançado, uma vez que a vivência etnográfica possibilitou o exercício do método, por meio da percepção dos doutorandos em identificar seus elementos característicos frente à vivência realizada e as diferentes interações que aconteceram no momento de sua realização nos papéis de observador e observado.

À luz do que nos propusemos, acreditamos que o exercício realizado foi/é adequado para se compreender e experienciar o método etnográfico. Ainda assim, ratificamos e reconhecemos como desafio dessa vivência o tempo que foi utilizado na prática, sendo este aspecto fundamental para a realização de uma etnografia consistente e aprofundada.

De todo modo, a partir deste artigo esperamos estimular outras inovações em experiências de ensino para auxiliar na compreensão dos métodos de pesquisa qualitativa por meio de vivências, possibilitando, desta forma, aproximar os estudantes de seus conteúdos e de suas práticas, independentemente do nível de formação, resguardadas as particularidades dos fenômenos de estudo.

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Sobre os autores


Hudson do Vale de Oliveira


Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil

https://orcid.org/0000-0002-4474-5675


Doutor em Agronomia pela Universidade Estadual de Londrina (2015). Doutorando em Administração pela Universidade do Estado de Santa Catarina. Professor Efetivo do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Roraima, Campus Boa Vista Zona Oeste. Integrante do Núcleo de Inovações Sociais na Esfera Pública (NISP) e do Observatório de Inovação Social de Florianópolis (OBISF). E-mail: hudson.oliveira@ifrr.edu.br


Gabriela Buffon


Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil

https://orcid.org/0000-0002-8286-1167


Mestre em Gestão e Desenvolvimento Regional pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (2018). Doutoranda em Administração pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Integrante do grupo de pesquisa Ensino de Administração e Aprendizagem Organizacional (UDESC). Participante do projeto de pesquisa: Internacionalização, Acreditação, Avaliação e Indicadores de Desempenho da Educação Superior (UDESC). E-mail: gabrielabuffon@gmail.com



Marília Ribas Machado


Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil

https://orcid.org/0000-0002-4684-8627


Mestre em Administração pela Universidade Federal de Santa Catarina (2018). Doutoranda em Administração pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Professora da Faculdade Universidade do Sul de Santa Catarina. Integrante do grupo de pesquisa Ensino de Administração e Aprendizagem Organizacional (UDESC). Participante do projeto de pesquisa: Internacionalização, Acreditação, Avaliação e Indicadores de Desempenho da Educação Superior (UDESC). E-mail: marilia.ribas9@gmail.com


Simone Ghisi Feuerschütte


Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil

https://orcid.org/0000-0002-0963-1242


Doutora em Engenharia de Produção pela Universidade Federal de Santa Catarina (2006). Professora Titular da Universidade do Estado de Santa Catarina, no Centro de Ciências da Administração e Sócio-Econômicas. E-mail: simone.udesc@gmail.com


Contribuição na elaboração do texto: os autores contribuíram igualmente na elaboração do manuscrito.



Resumen


El estudio pretende promover el debate sobre la enseñanza de los métodos de investigación cualitativa a partir de una experiencia etnográfica. Se trata de un estudio teórico-empírico en el que se realizó una experiencia con estudiantes de doctorado de observación etnográfica en un establecimiento comercial. Después de la experiencia, las percepciones de los doctorandos fueron sistematizadas en ejes temáticos; cabe destacar que la propuesta etnográfica vivencial se configuró como una estrategia para estimular la enseñanza de la etnografía, ya que los doctorandos tuvieron la oportunidad de acercarse al fenómeno de estudio e identificar posibles elementos característicos de este método.


Palabras clave: Estrategia de enseñanza. Investigación cualitativa. Etnografía. Experiencia.



Abstract


The study to promote debate about the teaching of qualitative research methods based on an ethnographic experience. This is a theoretical-empirical study that was conducted involving the experience of doctoral students in an ethnographic observation practice in a commercial establishment. After the experience, the perceptions of the doctoral students were systematized into thematic areas; it is noteworthy that the ethnographic experiential proposal was configured as a strategy to stimulate the teaching of ethnography, since the doctoral students had the opportunity to get closer to the phenomenon of study and identify possible elements that are characteristic of the said method.


Keywords: Teaching strategy. Qualitative research. Ethnography. Experience.




Linhas Críticas | Periódico científico da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília, BrasilISSN eletrônico: 1981-0431 | ISSN: 1516-4896

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Referência completa (APA): Oliveira, H. do V. de, Buffon, G., Machado, M. R., & Feuerschütte, S. G. (2023). Experimentando o método qualitativo: um exercício de vivência etnográfica. Linhas Críticas, 29, e47013. https://doi.org/10.26512/lc29202347013


Referência completa (ABNT): OLIVEIRA, H. DO V. DE; BUFFON, G.; MACHADO, M. R.; FEUERSCHÜTTE, S. G. Experimentando o método qualitativo: um exercício de vivência etnográfica. Linhas Críticas, v. 29, e47013, 2023. DOI: https://doi.org/10.26512/lc29202347013


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