Ensaio

Em defesa da educação sexual nas escolas: o que temos a ver?

En defensa de la educación sexual en las escuelas: ¿qué tenemos que ver nosotros?

In defense of sex education in schools: what do we have to do?


Adriane Roso[i]

Universidade Federal de Santa Maria

Santa Maria, RS, Brasil

adriane.roso@ufsm.br

https://orcid.org/0000-0001-7471-133X

Caroline Matos Romio[ii]

Universidade Federal de Santa Maria

Santa Maria, RS, Brasil

carol.matosr@gmail.com

https://orcid.org/0000-0002-5759-2831

Mariana de Almeida Pfitscher[iii]

Universidade Federal de Santa Maria

Santa Maria, RS, Brasil

marianapfitscher@gmail.com

https://orcid.org/0000-0002-0286-8650

As autoras contribuíram igualmente na elaboração do manuscrito.

Recebido: 12/12/2022

Aceito: 09/03/2023

Publicado: 21/03/2023

Linhas Críticas | Periódico científico da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília, Brasil

ISSN: 1516-4896 | e-ISSN: 1981-0431

Volume 29, 2023 (jan-dez).

http://periodicos.unb.br/index.php/linhascriticas

Referência completa (APA):

Roso, A., Romio, C. M., & Pfitscher, M. de A. (2023). Em defesa da educação sexual nas escolas: o que temos a ver? Linhas Críticas, 29, e46101. https://doi.org/10.26512/lc29202346101

Link alternativo:

https://periodicos.unb.br/index.php/linhascriticas/article/view/46101

Licença Creative Commons CC BY 4.0.


Resumo: No Brasil, o aborto de uma menina de 10 anos foi difundido nas mídias. Considerando este acontecimento, desenvolvemos este artigo utilizando a metodologia de um ensaio, objetivando refletir sobre a possível responsabilidade que as escolas têm de providenciar, para estudantes, conhecimentos sobre direitos sexuais e reprodutivos de crianças e adolescentes. Para a sua construção, realizamos um diálogo entre a educação libertadora, a psicologia social e o feminismo decolonial. Propomos que as ciências incorporem perspectivas que questionem o patriarcado e reconheçam os direitos das mulheres. O processo de transformação deve começar pelo questionamento sobre nossas representações e práticas sociais.

Palavras-chave: Violência. Educação. Representações Sociais.

Resumen: En Brasil, el aborto de una niña de 10 años, fue difundido en medios sociales. Teniendo en conta este evento, desarrollamos este artículo utilizando la metodología de un ensayo donde reflexionamos sobre la posible responsabilidad que tienen las escuelas en arreglar, para estudiantes, conocimientos sobre derechos sexuales y reproductivos de niños y adolescentes. Para la construcción, mantuvimos un diálogo entre educación liberadora, psicología social y feminismo decolonial. Proponemos que las ciencias incorporen perspectivas que cuestionen el patriarcado y reconozca los derechos de las mujeres. El proceso de transformación debe comenzar por cuestionar nuestras representaciones y prácticas sociales.

Palabras clave: Violencia. Educación. Representaciones Sociales.

Abstract: In Brazil, the abortion of a 10-year-old girl, was widely propagated on media. Taking this event, we developed this article using the methodology an essay we aim to reflect on the possible responsibility that schools have in providing, to students, knowledge regarding sexual and reproductive rights of children and adolescents. For the reflexive construction, we rehearse a dialogue between liberating education, social psychology and decolonial feminism. We propose that the sciences incorporate perspectives that questions to patriarchy and recognize the women's rights. The transformation process should start by questioning our representations and social practices.

Keywords: Violence. Education. Social Representations.




Introdução

Ao pensar em um panorama sobre a iniquidade de gênero no Brasil, nos deparamos com a magnitude do crime de estupro. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2019), o país registrou mais de 66 mil estupros ao longo do ano de 2018. Os perpetradores dos crimes costumam ser pessoas próximas da vítima, muitas vezes seus familiares, e as vítimas de estupro, em 53,8% dos casos, costumam ser meninas com até 13 anos (configurando estupro de vulnerável). Neste caso há a possibilidade das meninas gestantes, vítimas de estupro, acessarem o aborto legalmente (Brasil, 1940).

O texto do Código Penal é campo de disputas e de tensionamentos entre representações de sociedade. Desde 2011, foram apresentados 69 Projetos de Lei (PL) sobre aborto na Câmara Federal e no Senado. Destes, 80% versam pela restrição no acesso ao direito pelas mulheres. Há PL que buscam revogar o artigo que permite a realização do aborto em casos de estupro e quando há risco à vida da gestante. Apenas um dos PL propôs a descriminalização do aborto no país (Libório, 2020).

Este cenário de violência cotidiana que marca a vida de muitas mulheres esteve nas agendas da mídia quando ocorreu o caso de uma menina de 10 anos de idade, estuprada desde os seis anos pelo tio de 33 anos, cuja violência gerou uma gravidez. Utilizamos este caso como disparador para as reflexões que constituem este ensaio[4] enquanto um manifesto em defesa da Educação Sexual nas escolas.

Conforme foi amplamente noticiado nas mídias digitais e jornalísticas no ano de 2020, a menina, natural do estado do Espírito Santo, obteve autorização judicial para a interrupção voluntária da gestação, uma vez que a justiça entendeu que se tratava de gestação resultante de estupro e que a gestação colocava em risco a sua vida. No entanto, o hospital referência para a prática no seu estado apresentou impeditivo para realizar o procedimento, alegando o fato de que a gestação estaria em estágio avançado, cerca de 22 semanas. Após esta negativa, a criança foi transferida para outro hospital.

Devido a este contexto, o caso foi noticiado e despertou reações intensas nas mídias sociais, ficando o tema no Trending Topics do Twitter, que é uma ferramenta algorítmica que determina quais os termos mais citados nas postagens do Twitter, sob a hashtag #GravidezAos10Mata (Marassini, 2020). A ativista religiosa Sara Fernanda Giromini (conhecida como Sara Winter) obteve os dados do nome da criança e o local onde o procedimento seria realizado no estado de Pernambuco e os divulgou nas redes sociais, violando assim o direito ao anonimato da criança, previsto pela Constituição Federal de 1988 (Brasil, 1988).

Após a divulgação, e sob orientação de Giromini, grupos religiosos se colocaram diante do hospital em que o procedimento seria realizado e buscaram impedir que a criança e o médico acessassem o hospital, acusando o profissional da saúde de assassinato. Para acessar o serviço de saúde, a criança precisou entrar no porta-malas de um carro. Durante todo o procedimento, que ocorreu sem comprometimentos à sua vida, ela contou com o suporte da sua avó.

Não somente os médicos foram culpabilizados, nas mídias sociais, pelo ocorrido, mas também as escolas: “As escolas locais também devem ser inquiridas! Que horror de país é esse!”, argumentou-se numa postagem do Twitter. Em São Paulo, uma professora da educação básica “minimizou a violência sofrida pela criança em comentários feitos em uma rede social e questionou o motivo dela nunca ter contado que era violentada” (R7, 2020). Os comentários sinalizam para a necessidade de que a escuta, acolhimento e orientação das crianças e adolescentes ultrapassem os limites da família e alcancem proporções intersetoriais no campo da saúde e educação.

Na educação, o reconhecimento da necessidade da inserção da saúde e da educação sexual como “temas transversais” está estabelecido nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) desde 1998 (Brasil, 1998). Assim, o Estado reconheceu a importância de uma articulação entre a escola e a família na orientação de crianças e adolescentes no cuidado da saúde.

A pesquisa realizada por Vianna e Bortolini (2020) investigou a inserção de agendas feministas, LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais) e antigênero em disputa nos Planos Estaduais da Educação – PEE (2014-2018) no contexto brasileiro. Os autores indicam a existência de uma tensa negociação para manutenção e inclusão de pautas emergentes diante de políticas reacionárias que avançam cada vez mais no país, sendo um tempo de embates e resistências frente aos desmontes na educação (Vianna & Bortolini, 2020).

Os autores entendem que o reconhecimento da pauta acerca das questões de gênero, direitos das mulheres e da população LGBT é fruto da história de movimentos coletivos para conquistas de direitos. Aproximadamente um terço dos planos estaduais analisados expressa que as garantias sociais resultam do enfrentamento das desigualdades em perspectivas “administrativas, pedagógicas e organizacionais” (Vianna & Bortolini, 2020, p. 100) – ainda que, por outro lado, tenhamos muito a enfrentar, visto a insistência de discursos que associam “ideologia de gênero” como uma nefasta educação para crianças e adolescentes, fazendo com que o avanço conservador veja tais políticas como uma ameaça, permitindo assim a manutenção de um silenciamento histórico de debates que são emergentes (Vianna & Bortolini, 2020, p. 100).

Este cenário provocou alguns questionamentos: o que os profissionais do campo da educação têm a ver com o contexto de violência contra as meninas e mulheres? Qual nosso compromisso ao nos havermos com iniquidades de gênero que a produção do saber científico legitimou em alguns momentos históricos? Como nos edificamos enquanto profissionais que trabalham com educação em uma realidade marcada por injustiças estruturais?

Em tempos de ascensão do conservadorismo, temas como sexualidade, corpo e desejo configuram tabus sociais. Uma educação que inclua estas temáticas é campo de debates e disputas. Por um lado, há os defensores da escola como potência para quebrar tabus em relação à sexualidade e se tornar território para semear a reflexão sobre os direitos sexuais e reprodutivos. Por outro lado, encontramos grupos que se posicionam contrários à escola servir como um espaço aberto para a Educação Sexual. Mas há também os indecisos, os que não se manifestam, os que não sabem o que defender.

Assim, neste ensaio objetivamos refletir sobre a possível responsabilidade que as escolas têm de providenciar conhecimentos sobre direitos sexuais e reprodutivos de crianças e adolescentes para suas estudantes. A questão que guia a escrita deste ensaio é: como nos comprometemos com os direitos sexuais e reprodutivos nas escolas?

O método ensaio “caracteriza-se pela sua natureza reflexiva e interpretativa” […], sendo que nesta proposta o “objeto exerce primazia, mas a subjetividade do ensaísta está permanentemente em interação com ele” (Meneghetti, 2011, pp. 322-323). A escolha pela produção de um ensaio se deve ao interesse de elaborar uma argumentação crítica utilizando evidências com relação ao objeto do ensaio (educação sexual) e promovendo interpretações das produções científicas. Entendemos que ensaios são recursos argumentativos importantes no campo da Educação e Ciências Sociais e Humanas, visto que esta modalidade de escrita possibilita apresentar um posicionamento por parte das autoras, sem, contudo, perder o caráter científico. Além disto, a dinamicidade de ensaios, seja pelo uso de fontes diversas (livros, legislação, jornais etc.) ou pelo entrelaçamento de argumentos e dados científicos, potencializa a criatividade de quem o elabora, sem prejuízo à clareza e à lógica argumentativa. A análise dos dados se sustenta no diálogo entre a psicologia social e a educação libertadora (particularmente trazendo autores do campo da Teoria das Representações Sociais e da Psicologia da Libertação), em sintonia com o feminismo decolonial. Os elos entre estes campos de saber são, principalmente, a dialogicidade e a crítica às opressões e iniquidades de gênero.

 

Sobre meninas e mulheres: os impactos das representações sociais

Vamos iniciar a reflexão diferenciando hiper-representações e representações sociais sobre as mulheres, já que nossa hipótese de trabalho reflexivo é que são justamente elas que irão engendrar e corroborar os modos de operação dos agentes do Estado, os profissionais e a sociedade em geral, no que tange ao acesso das mulheres aos direitos sexuais e reprodutivos. Nossa hipótese se articula com o Eixo Transversal dos PCNs Educação Sexual e Relações de Gênero que compreende gênero justamente como o conjunto das representações sociais que produzem saberes e sentidos para as diferenças biológicas dos sexos (Brasil, 1998).

Quando as pessoas publicam suas reflexões sobre a violência na rede, elas sinalizam certas representações comunicadas em nosso país sobre meninas, mulheres e estupros. Quando se trata de hiper-representações, “estas são produzidas sem nenhuma consideração com o objeto”, podendo “distorcer, contar mentiras, iludir e confundir” (Jovchelovitch, 2008, p. 76). Elas têm um cunho estático e proporcionam uma generalização com relação ao objeto e seus efeitos costumam ser a opressão de certos grupos sociais. As hiper-representações são homogeneamente compartilhadas, de geração em geração, por todos os integrantes de um grupo social ou comunidade estruturada. Como uma espécie de coerção, mobilizam os sujeitos a pensarem, sentirem e agirem de determinado modo similar (Moscovici, 2008). Este modo de representar não significa, nas sociedades modernas, que agimos como robôs, uniformizados e comandados por uma ordem única superior. Todavia, há ideias, mitos, ideologias mais salientes que podem conduzir certos grupos sociais a se portarem de um modo mais coletivo.

Já as representações sociais se constituem como conhecimentos produzidos pelo senso comum através da transformação e incorporação de outros saberes, inclusive os saberes elaborados pelo universo reificado, ou seja, saberes científicos. Portanto, diferentemente das hiper-representações, elas são uma criação contínua, de caráter dialógico e dinâmico, se (re)produzindo e se modificando pela linguagem, pelos tensionamentos, pelas resistências às práticas e pensamentos institucionalizados, cristalizados e naturalizados (Moscovici, 2008).

Deste modo, podemos assumir que para que ocorram mudanças nas hiper-representações presentes no contexto escolar, o diálogo deve preponderar. Um diálogo onde os profissionais não imponham suas ideias e “que convide à crítica” (Freire & Shor, 2008, p. 61) às hiper-representações que reificam as injustiças e provocam sofrimento psíquico.

Quando pensamos nas dinâmicas que produzem um sistema moderno colonizador de gênero, como propõe Lugones (2008), estamos tratando também de hiper-representações. O capitalismo eurocentrado global se sustenta na dominação heterossexual dos corpos, especialmente dos corpos de mulheres de cor do sul global. Esta sustentação acontece tanto pela violência direta aos corpos das mulheres quanto pela produção de saberes que negam os saberes locais.

A tentativa de impedimento da realização do procedimento abortivo por parte de grupos religiosos, sob comando de uma mulher, a ativista religiosa Giromini, pode ser relacionada às hiper-representações. A menina, por ter um corpo capaz de gestar, é assumida como uma mulher e não como criança, como um útero-potencial para fabricar maternidade e bebês. O médico que irá realizar o procedimento é representado como um assassino, porque ele viola a própria representação da mulher como sendo naturalmente destinada à maternidade (Badinter, 1985).

Um país de maioria cristã, o Brasil tem visto a ascensão de políticos religiosos conservadores (Miguel et al., 2017). Estes políticos têm monopolizado o debate público no país, defendendo desde a restrição dos limitados casos de acesso ao abortamento seguro até a eliminação da Educação Sexual nas escolas. Os debates são entretecidos por falsos dados e argumentos moralistas que limitam o acesso da população a informações e reforçam estruturas sustentadas na violação de direitos.

É o caso de Sara Giromini, que foi candidata à deputada federal nas eleições de 2018 pelo partido Democratas, não sendo eleita. Em 2019, de junho a outubro, ela esteve à frente da Coordenação Geral de Atenção Integral à Gestante e à Maternidade do Departamento de Promoção da Dignidade da Mulher, da Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres, estando vinculada ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (Governo Federal, 2020).

Pela liderança de Giromini, as hiper-representações sobre as mulheres aparentam reverberar no tecido social, provocando violências – de gênero, institucional, de Estado. O caso da menina no Espírito Santo substancializa o contexto de violência na atualidade brasileira. Uma criança que teve sua infância violada recorrentes vezes, por um membro de sua família, que não contou com amparo das instituições do Estado para protegê-la deste ciclo de violência por quatro anos, se vê diante do desespero associado a uma gestação que subjuga o seu corpo infantil e, ao acessar seu direito, é culpabilizada e novamente violentada por agentes do Estado e sociedade civil.

Deste modo, entendemos que quando agentes conservadores culpabilizam meninas vítimas de abuso, eles reforçam certas hiper-representações e contribuem não só para a desvalorização das mulheres, mas para a destituição do direito ao acesso à informação no campo dos direitos sexuais e reprodutivos. Eles deslegitimam a pessoa que sofre o estupro ao afirmar que o produto da violência (a gravidez) seja valorizado em detrimento da própria pessoa sofrente. Eles transformam a criança em um adulto, calam-na, retiram seu poder sobre seu próprio corpo, advogam pelos abusadores e reforçam as estruturas violentas. Quando se obriga uma menina estuprada a gestar, se reproduz a condenação que aliena as mulheres de seus corpos, de sua capacidade reprodutiva e das suas capacidades de produzir saberes sobre si, movimento que o Estado e a Igreja realizaram sistematicamente durante a Inquisição (Federici, 2017; 2018).

Federici (2018) sinaliza que a modernidade se estabeleceu atrelada à exploração dos corpos para a produção e reprodução do capitalismo nascente. Neste processo, os corpos dos homens foram transformados em máquinas de trabalho; já os corpos das mulheres foram sujeitados à reprodução da força de trabalho. Para estabelecer esta exploração foi necessário destruir o poder das mulheres através do extermínio daquelas estigmatizadas como questionadoras.

O Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos Brasileiro foi coordenado entre 2018-2022 pela Ministra Damares Alves (Partido Progressista), pastora e advogada. Antes de assumir o Ministério, ela declarou que “a mulher nasceu para ser mãe” (Balloussier, 2018). Com isto, ela reforça hiper-representações acerca das mulheres, já que aos olhos de uma agente política do Estado, a função social da mulher é essencialmente reproduzir e ser subserviente, corroborando com uma perspectiva biologicista que destina a mulher a uma única posição, de objeto reprodutor.

Esta declaração ignora uma das principais teses feministas, desenvolvida por Elisabeth Badinter (1985), de que a maternidade é um mito. Isto porque o amor materno não está inscrito na natureza das mulheres, este amor é um sentimento como qualquer outro sentimento humano, carregado de fragilidades, ambiguidades e inconstâncias. É o desejo da mulher de ser mãe que corporifica a maternidade, a mulher não é um objeto reprodutor e não nasce naturalmente destinada à maternidade.

As hiper-representações que estabelecem uma equivalência da mulher como mãe reforçam uma preocupação cultural com os possíveis efeitos emocionais negativos para as mulheres que abortam. No imaginário popular, as mulheres seriam incapazes de tomar a decisão pelo aborto de modo racional, partindo dos seus desejos, e isto faria com que a decisão fosse sempre carregada de sofrimento, mesmo quando esta decisão está associada à realidade de um estupro. Esta representação da mulher destinada à maternidade é amplamente sustentada em valores religiosos (Badinter, 1985).

O Código Penal Brasileiro (Brasil, 1940) estabelece que a prática do aborto não será punida nos casos de gravidez resultante de estupro. Para viabilizar o acesso das mulheres ao aborto seguro há o documento Atenção Humanizada ao Abortamento: Norma Técnica (Brasil, 2005). Ele apresenta a necessidade de se oferecer atenção humanizada, acolhedora e integral às mulheres tanto na realização do aborto nos casos previstos quanto no acolhimento de mulheres que vivenciaram abortamento espontâneo ou induzido. Mesmo tendo documentos legais para a assistência à saúde das mulheres, Souza e Tyrrell (2007) sinalizam que existem dados e indicadores de saúde que apontam para uma dificuldade de as mulheres obterem atendimento coerente com estas concepções, com isto impedidas de acessarem um direito humano básico que corresponde ao direito à saúde, como foi o caso da menina do Espírito Santo.

Isto ocorre porque, por mais avançados que sejam os documentos que orientam os procedimentos no campo da saúde e no estabelecimento da equidade de gênero, é na articulação entre hiper-representações e representações sociais que os direitos humanos são reificados. Quando os profissionais da área da saúde, da educação e jurídica atuam, suas práticas equiparam-se às representações, cuja gênese são sempre sociais. De fato, as hiper-representações, assim como as representações sociais, são uma espécie de “preparação para a ação” (Moscovici, 2008, p. 9), ou seja, os fazeres são atravessados por crenças, paixões e princípios, que são compartilhados por suas comunidades, e que definem o modo como compreendem a realidade social.

Corroborando esta reflexão, um estudo sistemático voltado à produção brasileira sobre a Educação Sexual nas escolas demonstrou que entre as principais dificuldades para a implementação das estratégias de educação estão as crenças sexistas e religiosas de pais e professores, que compreendem alguns comportamentos sexuais como desvios (Furlanetto et al., 2018). Neste sentido, identificar as hiper- representações e conhecer os processos de construção de representações sociais nos auxiliam a compreender como se operam as dinâmicas de manutenção e transformação do pensamento social. É possível observar duas facetas do processo representacional, uma com possível efeito negativo, opressor (a hiper-representação), e outra com potencial mais positivo e (des)construtivo das relações de gênero (representação social).

Neste sentido, acreditamos que é fundamental que se abram espaços nas escolas para o diálogo e se questionem as hiper-representações, acolhendo a diversidade de ideias. Como representamos as mulheres? Quais as consequências da fixidez e generalizações sobre as mulheres? Há outros modos de representá-las? Como podemos transformar representações que geram iniquidades de gênero? Estas são questões iniciais para a construção de outros caminhos na educação.

 

Que caminhos vamos construir para o diálogo e para o cuidado?

Queremos começar dizendo que acreditamos numa revolução na educação, numa virada utópica, que exigiria, conforme Mészáros (2011), eliminar as três dimensões inseparáveis do sistema do capital - capital, trabalho e estado. Hooks (2019), por sua vez, também aposta em um caminho radical, defendendo que “os esforços para acabar com a violência masculina contra a mulher só serão bem-sucedidos se fizerem parte de uma luta maior para acabar com todas as formas de violência” (p. 186). Todavia, no contexto latino-americano, onde a opressão dos povos colonizados tem uma história e uma dimensão diferente do contexto europeu, entendemos que “um dos enganos mais paralisantes é o de acreditar que se não se muda tudo, não se muda nada, entre o nada e o tudo há muitos passos que podem e devem ser dados” (Martín-Baró, 2017, p. 94). Assim, seguindo um caminho menos ambicioso, apontaremos algumas propostas mais humildes de ação, além do já discutido na parte anterior deste ensaio que tratou de mostrar a necessidade da desconstrução de certas hiper-representações. É necessário um outro modo de fazer na educação, que proponha uma agenda crítica, decolonial e feminista.

 

É possível uma outra psicologia e uma outra escola?

A partir de uma ampliação da perspectiva de Martín-Baró (2017), propomos que para pensar uma educação libertadora nas escolas, em primeira análise, podemos refletir sobre a libertação das ciências que atuam neste campo, a começar pela Psicologia, que tem frequentemente se colocado ao lado da reprodução das relações de opressão. Isto porque, diante dos conflitos sociais, frequentemente ela propõe estratégias para modificar o indivíduo, assegurando a manutenção da ordem social. Com isto, a atenção do fazer repousa sobre uma problemática entendida como individual, dissociada dos seus aspectos políticos sociais e históricos (Martín-Baró, 1996). No campo da educação, a sexualidade tem sido compreendida sobre um paradigma biomédico, a sua orientação tem sido pautada em uma perspectiva de pedagogia moral e cuidados de saúde (Furlanetto et al., 2018).

Quando pensamos no comentário da postagem no Facebook da Mídia Ninja (2020), “Cuidados para essa criança traumatizada, todo apoio psicológico. O monstro na cadeia. Os que pregam falso moralismo que deixem a criança em paz”, identificamos a percepção de que os traumas e as violências sofridas pela menina estão na esfera individual, não há referência à realidade coletiva e compartilhada. Quanto ao agressor, esse também é compreendido em seu fazer como uma “monstruosidade”, que diz de uma individualidade transgressora para a qual a punição exime toda a sociedade de se comprometer em refletir sobre as violências estruturais.

Isto é, o que a sociedade “pensa” está em sintonia com o que a psicologia e muitos trabalhadores da educação pensam e fazem – o indivíduo como agente causador de sua própria condição e o social como agente reparador-punidor. Aliás, Martín-Baró (2017, p. 90) já alertou para o fato de que a Psicologia e suas pesquisas sobre os processos educativos “em geral, apenas elabora diagnósticos”. Mas acreditamos que a psicologia social em suas vertentes críticas tem se movimentado para transformar as práticas de trabalho no campo da educação.

Precisamos estar atentos à individualização dos sujeitos reforçada e produzida pela ciência moderna e positivista, a qual está em sintonia com a “lógica opressora da modernidade colonial”, que é materializada no “uso de dicotomias hierárquicas e de uma lógica categorizante” (Lugones, 2019, pp. 357-358). Nesta lógica, a separação entre indivíduo/sociedade, margem/centro, vítima/agressor, monstros/anjos pode ser sintetizada na antinomia humanos/não humanos. Estas antinomias contribuem para o desinvestimento daqueles que estão à margem da sociedade. Deste modo, nos alerta hooks (2019), o agressor, antes de agir com violência, já teve sua humanidade aniquilada pelas estruturas de poder.

Talvez seja difícil reconhecer e aceitar o raciocínio de hooks (2019) no que tange ao entendimento sobre o estupro, pois, num contexto mais imediato, a categorização, a estigmatização e a punição do estuprador providenciam alívio à pessoa agredida e àquelas que se afetam com a violência. Entretanto, ao punir o agressor, retirando-o da sociedade, seja pelo encarceramento ou morte, retornamos à centralidade da lógica do individualismo e retiramos a responsabilidade da sociedade na construção desse indivíduo-monstro.

Como desmontar estes modos de opressão, este pensar-fazer pela educação? Que caminhos vamos construir para o diálogo e para o cuidado, de modo que as violências contra as mulheres possam ser erradicadas ou, pelo menos, diminuídas? Seria preciso outra psicologia e outra escola que apostem numa mudança estrutural, numa transformação radical da sociedade, do sistema capitalista e das relações de trabalho.

Neste ensaio pensamos, como um caminho, visar a educação para a libertação, apostando na defesa da Educação Sexual nas escolas sob uma perspectiva feminista. Lugones (2008) indica que a educação popular pode ser um método coletivo para superar e explorar criticamente o sistema colonial de gênero. Através do feminismo decolonial, pretende-se “superar a colonialidade dos gêneros”. O termo colonialidade, na perspectiva da autora, nomeia “uma forma de classificar pessoas através de uma colonialidade do poder e dos gêneros” (Lugones, 2019, p. 361), sendo, igualmente, um modo “para pensar sobre o processo ativo de redução das pessoas, a desumanização que as qualificam para a classificação, o processo de subjetivação, a tentativa de transformar o colonizado em menos que humano” (Lugones, 2019, p. 361).

Ao refletirmos sobre outros modos de conhecer, uma estratégia possível de transformação é através de uma educação libertadora e conscientizadora. Freire (2018) propõe a conscientização como um processo de reconhecimento da realidade, quando o estudante se distancia do mundo para observá-lo, apreendê-lo e admirá-lo, produzindo com isto um agir consciente sobre a “realidade objetiva” (Freire, 2018, p. 30), permitindo uma ação comprometida com a reflexão sobre a realidade do mundo.

Isto porque a realidade é conhecida à medida que o estudante é instrumentalizado também para transformá-la. A educação deve estar voltada para o suporte no processo das pessoas de tomada de consciência, sobre si, suas relações e o contexto ao seu redor. Não uma consciência limitada aos aspectos privados do saber e sentir subjetivos, mas voltada para os aspectos que se referem à percepção sobre o seu ser e o seu fazer no mundo, o reconhecimento consciente e autônomo da produção de conhecimentos sobre sua realidade e de estratégias para melhorá-la. Uma consciência que se concretiza em saberes práticos que rompem com hiper-representações (Martín-Baró, 1996; Freire, 2019).

Esta educação libertadora pressupõe também a problematização da realidade. Através do ato de conhecer a realidade concreta, o educando reflete sobre ela de modo crítico e propositivo. Para este movimento é indispensável a liberdade e o diálogo. A educação ocorre através do encontro e do que se comunica nele (Freire, 2019).

Considerando que um importante eixo de opressão das minorias são os discursos que deslegitimam o seu poder de autonomia sobre os seus corpos, pensar uma educação libertadora inclui necessariamente o debate sobre o campo da sexualidade e da reprodução. Neste caso, segundo Maia e Ribeiro (2011), a Educação Sexual passa a ser compreendida como um processo pedagógico que realiza uma formação específica sobre sexualidade, reconhecendo este aspecto da vida como social e político. A Educação Sexual na escola se articula no acesso ao direito à liberdade, autonomia e integridade sexual, segurança do corpo, privacidade, acesso ao prazer sexual, liberdade de expressão sexual e o acesso a escolhas reprodutivas livres, todos estes aspectos vivenciados com respeito consigo e com os demais.

 

Tensionando o patriarcado: descolonizando a educação

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Brasil, 1996) e os PCNs (Brasil, 1998) preveem a abordagem do tema da sexualidade na escola, que deve permitir que os estudantes tenham acesso a informações, adequadas para as suas idades, que os orientem no campo da sexualidade para que eles a possam exercer com responsabilidade, saúde e prazer. No entanto, em decorrência do cenário fragilizado que a democracia brasileira tem vivenciado nos últimos anos, a possibilidade de a escola operar na multiplicação de saberes sobre gênero e sexualidade tem sofrido ataques.

Um dos ataques ocorreu em 2017, com a retirada da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) dos termos gênero e orientação sexual e generalizados como “dimensões da sexualidade humana” (Brasil, 2017, p. 347). Outro ataque é o Movimento Escola Sem Partido, criado em 2004, que esteve em anonimato por dez anos e tem ganhado força nos últimos anos. Este movimento serve bem aos ideais conservadores. Ele prevê que a educação das crianças em temas ligados à moralidade, religiosidade e política seja restrita ao ambiente familiar, impedindo a escola de falar sobre tais temas porque incorreria em “doutrinação ideológica” (Miguel, 2016).

Este movimento representa os grupos que se posicionam contrários à escola servir como um espaço aberto para a Educação Sexual. Também contra a possibilidade de ela exercer um papel republicano, promovendo espaços de socialização e convívio com as diferenças. Para estes grupos, a criança não é compreendida como sujeito de direito, capaz de conhecer o mundo desconectada das referências dos pais e capaz de produzir representações sociais (Miguel, 2016).

Que fatores estão associados a esta percepção de escola? Acreditamos que a ideologia do patriarcado branco tem forte relação com o modo como se antevê a instituição escolar. À parte das controvérsias em torno do constructo patriarcado, nos interessa aqui salientar que, de acordo com Pateman (2020), o patriarcado não é puramente familiar (localizado na figura paterna) ou está localizado na esfera privada, já que o mandato da lei do direito sexual masculino rege também o domínio público. Deste ponto de vista, “o ‘indivíduo’ como proprietário é o ponto em torno do qual gira o patriarcado moderno” (Pateman, 2020, p. 30).

Outro exemplo de projeto que afeta as proposições democráticas da escola é o de educação domiciliar. O Projeto 1338/2022 que regulamenta o ensino básico domiciliar no Brasil foi aprovado pela Câmara Federal em 2022 e está sendo considerado pela Comissão de Educação do Senado (Brasil, 2022).

Este projeto nega a possibilidade de a criança conhecer o mundo de modo dialógico e para além dos conhecimentos e socialização dos seus pais. Ele remete às hiper-representações da família com características patriarcais, onde os filhos e o seu aprendizado são compreendidos como propriedades do pai, sendo este supostamente o detentor de todos os recursos econômicos e simbólicos do núcleo familiar. Os filhos devem repercutir o pensamento do pai, limitados à possibilidade da repetição dos saberes prescritos.

É fato que “em muitos lares, crianças e adolescentes descobrem que seu desejo de discutir certas questões com os pais às vezes é encarado como um desafio à autoridade e ao poder paternos, como um ato de ‘desamor’” (hooks, 2019, pp. 183-184). Neste contexto, a escola pode ser um potente espaço para a transmissão de informação sobre sexualidades, sobre corpo e sobre relações de dominação/poder.

Agora, como seguir pela trilha da possibilidade de se ter prazer na escola ao invés da punição, do silenciamento, da preparação para o “mercado de trabalho”? Quando uma menina busca suporte para compreender uma situação de violência da qual foi vítima, qual espaço de escuta ela encontra na escola?

Um caminho possível é realizarmos um trabalho comprometido com uma educação que propulsione corpos educados livres para desejar, descobrir e se estabelecer no mundo através da curiosidade e da crítica. Isto pode ser feito construindo parcerias com grupos de pesquisa feministas das universidades e movimentos sociais feministas que ofereçam espaços de escuta que incluam estudantes do Ensino Fundamental e Médio e que respeitem seus saberes e os sentidos que produzem. Afinal, “as mulheres que se sentem excluídas da discussão e da práxis feministas”, como é o caso de muitas meninas pobres e negras, “só podem encontrar um lugar para si mesmas se, antes de tudo, tomarem consciência, por meio da crítica, dos fatores que as alienam” (hooks, 2019, p. 37).

Nesta via, pode-se constituir grupos de conscientização feministas nas comunidades, com o intuito de alimentar subjetividades resistentes e “decolonizar os gêneros”. Algumas perguntas que norteariam os trabalhos em grupo: De onde vem as meninas? Quem foram seus ancestrais? O que faziam? Como foram explorados? Como foram racializados? Como lutaram para (sobre)viver? Que legados herdaram deles? A base dos questionamentos é “um aprender com os povos” (Lugones, 2019, p. 363) e não um ensinar os povos.

Os grupos podem ser mediados pelas próprias estudantes (elas como protagonistas) e contar com a participação de educadores. Igualmente, a proposta pode se estender aos meninos, para que, à medida que as meninas se sentirem confiantes, elas possam compor grupos mistos. Os grupos serviriam como um dispositivo pelo qual se focaria na “melhoria das relações entre homens e mulheres, [n]o trabalho conjunto de mulheres e homens no combate à educação sexista” (hooks, 2019, p. 125).

Para Ribeiro, os índices de desenvolvimento humano e políticas para grupos vulneráveis devem ser entendidos como um investimento no desenvolvimento de uma cidade e de um país. Ela alerta para a necessidade de olharmos para uma realidade, que historicamente é silenciada, e que precisa ser nomeada, “se não nomeia uma realidade, sequer serão pensadas melhorias para uma realidade que segue invisível” (Ribeiro, 2018, p. 43).

Considerando um possível despreparo dos profissionais da educação para escutarem os questionamentos sobre gênero dos estudantes, que pode resultar em abordagens punitivas e discriminatórias (Furlanetto et al., 2018), atentamos para que outro caminho para a superação de uma dinâmica moderna colonial de gênero está na transformação dos profissionais que atuam na educação. Freire (2019) questiona sobre ao lado de quem está o educador quando ensina, para quê e para quem se educa. Entendemos que os processos de conscientização, de refletir sobre as representações sociais e de utilizá-las como meios de transformação social precisam incluir os profissionais da educação, através de uma escuta atenta que permita aos estudantes produzirem questionamentos implicados coletivamente e criticamente com as suas experiências de vida, suas curiosidades e suas ações no mundo.

Entendemos que ser um profissional do campo da educação é uma constante transformação de si, à medida que acompanha a transformação do outro e do mundo. Estas transformações são norteadas pelas representações sociais. É na representação que se compreende, transforma e se atua no mundo. De alguma forma, um fazer implicado se estabelece na aceitação de constantes fraturas das representações que se carrega em si, que permite ao profissional ressignificar a vida a partir da representação que o outro lhe apresenta.

A pluralidade constitui campo fértil para a transformação das representações sociais. As representações se produzem no espaço de inter-relação entre as pessoas, elas carregam elementos dos sujeitos, das suas relações e da sociedade. Por estarem localizadas no entre, elas são essencialmente relacionais. A relação e o encontro com o outro, com aquele que possui conhecimentos diferentes, produzem transformações no modo como me percebo, percebo o mundo e interajo com ele. Para que ocorram transformações sociais, precisamos produzir encontros com o inovador e com o diferente que repercutirão em representações sociais implicadas com a ética da vida.

 

Considerações Finais

Este ensaio objetivou refletir sobre a possível responsabilidade que as escolas têm de providenciar, para as estudantes, conhecimentos sobre direitos sexuais e reprodutivos de crianças e adolescentes. Buscamos nesta escrita implicada convocar para a reflexão crítica sobre a realidade de um país em que é comum meninas não terem conhecimentos de seus direitos sexuais e reprodutivos e ser recorrente engravidarem de estupros e não terem acesso ao aborto seguro garantido.

Inicialmente buscamos refletir sobre como estabelecemos hiper-representações sobre ser menina e mulher em nossa cultura. Sinalizamos que as mulheres tiveram historicamente seus corpos subjugados à reprodução da força de trabalho e às representações da maternidade como um destino biológico natural para todas. Nesta perspectiva, Estado e sociedade limitaram as mulheres no acesso aos seus direitos sexuais e reprodutivos e, ainda, marcaram como desviantes aquelas que se negaram a silenciar.

Quando pensamos na superação das estruturas de violência, reconhecemos a necessidade de uma revolução. Todavia, como caminhos possíveis de transformação da realidade social propomos, inicialmente, um fazer no campo da educação liberto de perspectivas que visam moldar o sujeito.

Outro ponto de transformação é através do tensionamento do patriarcado e das estruturas que se beneficiam deste modelo de dominação. Exemplos de projetos que legitimam uma educação fundamentada no patriarcado na atualidade brasileira são o projeto de educação domiciliar e o Escola Sem Partido. Acreditamos em uma educação que questione a antinomia público/privada e o poder patriarcal e que rompa com tradições disciplinadoras. Um possível caminho para esta transformação é através de grupos de conscientização feminista.

Propomos observar que os retrocessos no acesso à Educação Sexual podem sinalizar justamente para a potencialidade conscientizadora e transformadora desta abordagem. Apoiadas na perspectiva do feminismo decolonial, reconhecemos que as iniquidades de gênero se interpenetram com outras iniquidades e reforçam sistemas de opressão e silenciamento. Para superar estas iniquidades é preciso um compromisso coletivo no campo da educação. Neste sentido, a escola pode permitir espaços de escuta e fala sobre os direitos sexuais e reprodutivos, sobre a noção de autonomia do corpo e a noção de consentimento, e sobre os sistemas de opressão, objetivando a prevenção das violências de gênero e sexuais e a desconstrução de estereótipos de gênero que reforcem iniquidades.

O compromisso com uma educação liberta e emancipatória pressupõe que os profissionais atuantes na educação devem se abrir para a transformação que ocorre no processo de encontro e diálogo com o outro, que pode desacomodar nossas representações da realidade. Na comunicação, na linguagem, nos processos simbólicos poderemos produzir novas representações sociais sobre as mulheres, homens e famílias, que permitam o estabelecimento de laços sociais mais respeitosos e acolhedores.

Reconhecemos que por se tratar de um ensaio, nossa escrita tem a limitação de não abarcar o diálogo direto com educadores e estudantes para pensar proposições para a Educação Sexual nas escolas. Desta forma, consideramos que estudos futuros podem se dedicar a compreender as dinâmicas das representações sociais sobre direitos sexuais e reprodutivos na comunidade escolar, também podem pensar quais compreensões sobre feminismo se engendram entre educadores, estudantes e famílias, e sobre os efeitos destas compreensões na educação sexual. Por fim, consideramos importante dialogar com agentes das mídias jornalísticas junto com professores para se pensar estratégias de compartilhamento de conhecimentos nos veículos de comunicação acerca dos direitos sexuais e reprodutivos de meninas e adolescentes, visando alertar sobre as iniquidades de gênero.

Ter tomado como referência de análise o caso mobilizador deste ensaio, amplamente difundido nas mídias, não apenas sinaliza para as violências a que meninas são expostas, mas nos convoca à reflexão sobre os caminhos possíveis para resistir a estes discursos e práticas. Resistir significa iluminar possibilidades de encontro e de diálogos, desacomodar saberes, construir novas representações e produzir afetos que nos permitam retomar a certeza de que nossa humanidade se estabelece no reconhecimento e no compromisso com a humanidade do outro.

 

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[i] Pós-doutora em Psicologia pela Harvard University (2019). Professora Associada na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

[ii] Mestra em Psicologia pela UFSM (2015). Doutoranda em Psicologia pela UFSM. Psicóloga da UFSM.

[iii] Mestra em Psicologia pela UFSM (2017). Doutoranda em Psicologia pela UFSM. Docente no Curso de Psicologia da Universidade Luterana do Brasil.

[4] Este ensaio compõe uma pesquisa maior intitulada Politics of Reproduction in the Cyberworld: Investigations on Contraceptive Technologies, (In)fertility, and Social Representations of Masculinities/Femininities, (financiada pelo CNPq e pela FAPERGS). Pesquisa aprovada pelo Comitê de Ética (CAAE: 65692122.7.0000.5346).