Ensaio
Em defesa da
educação sexual nas escolas: o que temos a ver?
En defensa de la educación sexual en las escuelas:
¿qué tenemos que ver nosotros?
In defense of sex education in schools: what do we have
to do?
Adriane Roso[i]
Universidade Federal de Santa Maria
Santa Maria, RS, Brasil
https://orcid.org/0000-0001-7471-133X
Caroline Matos Romio[ii]
Universidade Federal de Santa Maria
Santa Maria, RS, Brasil
https://orcid.org/0000-0002-5759-2831
Mariana de Almeida Pfitscher[iii]
Universidade Federal de Santa Maria
Santa Maria, RS, Brasil
https://orcid.org/0000-0002-0286-8650
As
autoras contribuíram igualmente na elaboração do manuscrito.
Recebido: 12/12/2022
Aceito: 09/03/2023
Publicado:
21/03/2023
Linhas
Críticas | Periódico científico
da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília, Brasil
ISSN: 1516-4896 |
e-ISSN: 1981-0431
Volume 29, 2023
(jan-dez).
http://periodicos.unb.br/index.php/linhascriticas
Referência
completa (APA):
Roso, A., Romio, C. M., & Pfitscher, M. de A. (2023). Em defesa
da educação sexual nas escolas: o que temos a ver? Linhas Críticas, 29,
e46101. https://doi.org/10.26512/lc29202346101
Link alternativo:
https://periodicos.unb.br/index.php/linhascriticas/article/view/46101
Licença Creative Commons
CC BY 4.0.
Resumo: No Brasil, o aborto de uma menina de 10 anos foi
difundido nas mídias. Considerando este acontecimento, desenvolvemos este
artigo utilizando a metodologia de um ensaio, objetivando refletir sobre a
possível responsabilidade que as escolas têm de providenciar, para estudantes,
conhecimentos sobre direitos sexuais e reprodutivos de crianças e adolescentes.
Para a sua construção, realizamos um diálogo entre a educação libertadora, a
psicologia social e o feminismo decolonial. Propomos que as ciências incorporem
perspectivas que questionem o patriarcado e reconheçam os direitos das
mulheres. O processo de transformação deve começar pelo questionamento sobre
nossas representações e práticas sociais.
Palavras-chave: Violência. Educação. Representações Sociais.
Resumen: En Brasil, el aborto de una niña de 10 años, fue
difundido en medios sociales. Teniendo en conta este evento, desarrollamos este
artículo utilizando la metodología de un ensayo donde reflexionamos sobre la
posible responsabilidad que tienen las escuelas en arreglar, para estudiantes,
conocimientos sobre derechos sexuales y reproductivos de niños y adolescentes. Para
la construcción, mantuvimos un diálogo entre educación liberadora, psicología
social y feminismo decolonial. Proponemos que las ciencias incorporen
perspectivas que cuestionen el patriarcado y reconozca los derechos de las
mujeres. El proceso de transformación debe comenzar por cuestionar nuestras
representaciones y prácticas sociales.
Palabras
clave: Violencia. Educación. Representaciones Sociales.
Abstract: In Brazil, the abortion of a 10-year-old girl, was
widely propagated on media. Taking this event, we developed this article using
the methodology an essay we aim to reflect on the possible responsibility that
schools have in providing, to students, knowledge regarding sexual and
reproductive rights of children and adolescents. For the reflexive construction,
we rehearse a dialogue between liberating education, social psychology and
decolonial feminism. We propose that the sciences incorporate perspectives that
questions to patriarchy and recognize the women's rights. The transformation
process should start by questioning our representations and social practices.
Keywords: Violence. Education. Social Representations.
Introdução
Ao pensar em um
panorama sobre a iniquidade de gênero no Brasil, nos deparamos com a magnitude
do crime de estupro. Segundo o Fórum Brasileiro de
Segurança Pública (2019), o país registrou mais de 66 mil estupros ao longo
do ano de 2018. Os perpetradores dos crimes costumam ser pessoas próximas da
vítima, muitas vezes seus familiares, e as vítimas de estupro, em 53,8% dos
casos, costumam ser meninas com até 13 anos (configurando estupro de
vulnerável). Neste caso há a possibilidade das meninas gestantes, vítimas de
estupro, acessarem o aborto legalmente (Brasil, 1940).
O texto do Código
Penal é campo de disputas e de tensionamentos entre representações de
sociedade. Desde 2011, foram apresentados 69 Projetos de Lei (PL) sobre aborto
na Câmara Federal e no Senado. Destes, 80% versam pela restrição no acesso ao
direito pelas mulheres. Há PL que buscam revogar o artigo que permite a
realização do aborto em casos de estupro e quando há risco à vida da gestante.
Apenas um dos PL propôs a descriminalização do aborto no país (Libório, 2020).
Este cenário de
violência cotidiana que marca a vida de muitas mulheres esteve nas agendas da
mídia quando ocorreu o caso de uma menina de 10 anos de idade, estuprada desde
os seis anos pelo tio de 33 anos, cuja violência gerou uma gravidez. Utilizamos
este caso como disparador para as reflexões que constituem este ensaio[4] enquanto um manifesto
em defesa da Educação Sexual nas escolas.
Conforme foi
amplamente noticiado nas mídias digitais e jornalísticas no ano de 2020, a
menina, natural do estado do Espírito Santo, obteve autorização judicial para a
interrupção voluntária da gestação, uma vez que a justiça entendeu que se
tratava de gestação resultante de estupro e que a gestação colocava em risco a
sua vida. No entanto, o hospital referência para a prática no seu estado
apresentou impeditivo para realizar o procedimento, alegando o fato de que a
gestação estaria em estágio avançado, cerca de 22 semanas. Após esta negativa,
a criança foi transferida para outro hospital.
Devido a este
contexto, o caso foi noticiado e despertou reações intensas nas mídias sociais,
ficando o tema no Trending Topics do Twitter, que é uma ferramenta
algorítmica que determina quais os termos mais citados nas postagens do
Twitter, sob a hashtag #GravidezAos10Mata (Marassini, 2020). A ativista
religiosa Sara Fernanda Giromini (conhecida como Sara Winter) obteve os dados
do nome da criança e o local onde o procedimento seria realizado no estado de
Pernambuco e os divulgou nas redes sociais, violando assim o direito ao
anonimato da criança, previsto pela Constituição Federal de 1988 (Brasil,
1988).
Após a divulgação,
e sob orientação de Giromini, grupos religiosos se colocaram diante do hospital
em que o procedimento seria realizado e buscaram impedir que a criança e o
médico acessassem o hospital, acusando o profissional da saúde de assassinato.
Para acessar o serviço de saúde, a criança precisou entrar no porta-malas de um
carro. Durante todo o procedimento, que ocorreu sem comprometimentos à sua
vida, ela contou com o suporte da sua avó.
Não somente os
médicos foram culpabilizados, nas mídias sociais, pelo ocorrido, mas também as
escolas: “As escolas locais também devem ser inquiridas! Que horror de país é
esse!”, argumentou-se numa postagem do Twitter. Em São Paulo, uma professora da
educação básica “minimizou a violência sofrida pela criança em comentários
feitos em uma rede social e questionou o motivo dela nunca ter contado que era
violentada” (R7, 2020). Os comentários sinalizam para a necessidade de que a
escuta, acolhimento e orientação das crianças e adolescentes ultrapassem os
limites da família e alcancem proporções intersetoriais no campo da saúde e
educação.
Na educação, o
reconhecimento da necessidade da inserção da saúde e da educação sexual como
“temas transversais” está estabelecido nos Parâmetros Curriculares Nacionais
(PCNs) desde 1998 (Brasil, 1998). Assim, o Estado reconheceu a importância de
uma articulação entre a escola e a família na orientação de crianças e
adolescentes no cuidado da saúde.
A pesquisa
realizada por Vianna e Bortolini (2020) investigou a inserção de agendas
feministas, LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais) e
antigênero em disputa nos Planos Estaduais da Educação – PEE (2014-2018) no
contexto brasileiro. Os autores indicam a existência de uma tensa negociação
para manutenção e inclusão de pautas emergentes diante de políticas
reacionárias que avançam cada vez mais no país, sendo um tempo de embates e
resistências frente aos desmontes na educação (Vianna & Bortolini, 2020).
Os autores entendem
que o reconhecimento da pauta acerca das questões de gênero, direitos das
mulheres e da população LGBT é fruto da história de movimentos coletivos para
conquistas de direitos. Aproximadamente um terço dos planos estaduais
analisados expressa que as garantias sociais resultam do enfrentamento das
desigualdades em perspectivas “administrativas, pedagógicas e organizacionais”
(Vianna & Bortolini, 2020, p. 100) – ainda que, por outro lado, tenhamos
muito a enfrentar, visto a insistência de discursos que associam “ideologia de
gênero” como uma nefasta educação para crianças e adolescentes, fazendo com que
o avanço conservador veja tais políticas como uma ameaça, permitindo assim a
manutenção de um silenciamento histórico de debates que são emergentes (Vianna
& Bortolini, 2020, p. 100).
Este cenário
provocou alguns questionamentos: o que os profissionais do campo da educação
têm a ver com o contexto de violência contra as meninas e mulheres? Qual nosso
compromisso ao nos havermos com iniquidades de gênero que a produção do saber
científico legitimou em alguns momentos históricos? Como nos edificamos
enquanto profissionais que trabalham com educação em uma realidade marcada por
injustiças estruturais?
Em tempos de
ascensão do conservadorismo, temas como sexualidade, corpo e desejo configuram
tabus sociais. Uma educação que inclua estas temáticas é campo de debates e
disputas. Por um lado, há os defensores da escola como potência para quebrar
tabus em relação à sexualidade e se tornar território para semear a reflexão
sobre os direitos sexuais e reprodutivos. Por outro lado, encontramos grupos
que se posicionam contrários à escola servir como um espaço aberto para a
Educação Sexual. Mas há também os indecisos, os que não se manifestam, os que
não sabem o que defender.
Assim, neste ensaio
objetivamos refletir sobre a possível responsabilidade que as escolas têm de providenciar conhecimentos sobre direitos sexuais e
reprodutivos de crianças e adolescentes para suas estudantes. A questão
que guia a escrita deste ensaio é: como nos comprometemos com os direitos
sexuais e reprodutivos nas escolas?
O método ensaio
“caracteriza-se pela sua natureza reflexiva e interpretativa” […], sendo que
nesta proposta o “objeto exerce primazia, mas a subjetividade do ensaísta está
permanentemente em interação com ele” (Meneghetti, 2011, pp. 322-323). A
escolha pela produção de um ensaio se deve ao interesse de elaborar uma
argumentação crítica utilizando evidências com relação ao objeto do ensaio
(educação sexual) e promovendo interpretações das produções científicas.
Entendemos que ensaios são recursos argumentativos importantes no campo da
Educação e Ciências Sociais e Humanas, visto que esta modalidade de escrita
possibilita apresentar um posicionamento por parte das autoras, sem, contudo,
perder o caráter científico. Além disto, a dinamicidade de ensaios, seja pelo
uso de fontes diversas (livros, legislação, jornais etc.) ou pelo
entrelaçamento de argumentos e dados científicos, potencializa a criatividade
de quem o elabora, sem prejuízo à clareza e à lógica argumentativa. A análise
dos dados se sustenta no diálogo entre a psicologia social e a educação
libertadora (particularmente trazendo autores do campo da Teoria das
Representações Sociais e da Psicologia da Libertação), em sintonia com o
feminismo decolonial. Os elos entre estes campos de saber são, principalmente,
a dialogicidade e a crítica às opressões e iniquidades de gênero.
Sobre meninas e mulheres: os impactos das
representações sociais
Vamos iniciar a reflexão diferenciando hiper-representações e
representações sociais sobre as mulheres, já que nossa hipótese de trabalho
reflexivo é que são justamente elas que irão engendrar e corroborar os modos de
operação dos agentes do Estado, os profissionais e a sociedade em geral, no que
tange ao acesso das mulheres aos direitos sexuais e reprodutivos. Nossa
hipótese se articula com o Eixo Transversal dos PCNs Educação Sexual e Relações
de Gênero que compreende gênero justamente como o conjunto das representações
sociais que produzem saberes e sentidos para as diferenças biológicas dos sexos
(Brasil,
1998).
Quando as pessoas publicam suas reflexões sobre a violência na rede, elas
sinalizam certas representações comunicadas em nosso país sobre meninas,
mulheres e estupros. Quando se trata de hiper-representações, “estas são
produzidas sem nenhuma consideração com o objeto”, podendo “distorcer, contar
mentiras, iludir e confundir” (Jovchelovitch, 2008, p. 76). Elas têm um cunho
estático e proporcionam uma generalização com relação ao objeto e seus efeitos
costumam ser a opressão de certos grupos sociais. As hiper-representações são
homogeneamente compartilhadas, de geração em geração, por todos os integrantes
de um grupo social ou comunidade estruturada. Como uma espécie de coerção,
mobilizam os sujeitos a pensarem, sentirem e agirem de determinado modo similar
(Moscovici, 2008). Este modo de representar não significa, nas sociedades
modernas, que agimos como robôs, uniformizados e comandados por uma ordem única
superior. Todavia, há ideias, mitos, ideologias mais salientes que podem
conduzir certos grupos sociais a se portarem de um modo mais coletivo.
Já as representações sociais se constituem como conhecimentos produzidos
pelo senso comum através da transformação e incorporação de outros saberes,
inclusive os saberes elaborados pelo universo reificado, ou seja, saberes
científicos. Portanto, diferentemente das hiper-representações, elas são uma
criação contínua, de caráter dialógico e dinâmico, se (re)produzindo e se
modificando pela linguagem, pelos tensionamentos, pelas resistências às
práticas e pensamentos institucionalizados, cristalizados e naturalizados
(Moscovici, 2008).
Deste modo, podemos assumir que para que ocorram mudanças nas hiper-representações
presentes no contexto escolar, o diálogo deve preponderar. Um diálogo onde os
profissionais não imponham suas ideias e “que convide à crítica” (Freire &
Shor, 2008, p. 61) às hiper-representações que reificam as injustiças e
provocam sofrimento psíquico.
Quando pensamos nas dinâmicas que produzem um sistema moderno colonizador
de gênero, como propõe Lugones (2008), estamos
tratando também de hiper-representações. O capitalismo eurocentrado global se
sustenta na dominação heterossexual dos corpos, especialmente dos corpos de
mulheres de cor do sul global. Esta sustentação acontece tanto pela violência
direta aos corpos das mulheres quanto pela produção de saberes que negam os
saberes locais.
A tentativa de impedimento da realização do procedimento abortivo por
parte de grupos religiosos, sob comando de uma mulher, a ativista religiosa
Giromini, pode ser relacionada às hiper-representações. A menina, por ter um
corpo capaz de gestar, é assumida como uma mulher e não como criança, como um
útero-potencial para fabricar maternidade e bebês. O médico que irá realizar o
procedimento é representado como um assassino, porque ele viola a própria
representação da mulher como sendo naturalmente destinada à maternidade (Badinter, 1985).
Um país de maioria cristã, o Brasil tem visto a ascensão de políticos
religiosos conservadores (Miguel et al., 2017).
Estes políticos têm monopolizado o debate público no país, defendendo desde a
restrição dos limitados casos de acesso ao abortamento seguro até a eliminação
da Educação Sexual nas escolas. Os debates são entretecidos por falsos dados e
argumentos moralistas que limitam o acesso da população a informações e
reforçam estruturas sustentadas na violação de direitos.
É o caso de Sara Giromini, que foi candidata à deputada federal nas
eleições de 2018 pelo partido Democratas, não sendo eleita. Em 2019, de junho a
outubro, ela esteve à frente da Coordenação Geral de Atenção Integral à
Gestante e à Maternidade do Departamento de Promoção da Dignidade da Mulher, da
Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres, estando vinculada ao
Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (Governo
Federal, 2020).
Pela liderança de Giromini, as hiper-representações sobre as mulheres
aparentam reverberar no tecido social, provocando violências – de gênero,
institucional, de Estado. O caso da menina no Espírito Santo substancializa o
contexto de violência na atualidade brasileira. Uma criança que teve sua
infância violada recorrentes vezes, por um membro de sua família, que não
contou com amparo das instituições do Estado para protegê-la deste ciclo de
violência por quatro anos, se vê diante do desespero associado a uma gestação
que subjuga o seu corpo infantil e, ao acessar seu direito, é culpabilizada e
novamente violentada por agentes do Estado e sociedade civil.
Deste modo, entendemos que quando agentes conservadores culpabilizam
meninas vítimas de abuso, eles reforçam certas hiper-representações e
contribuem não só para a desvalorização das mulheres, mas para a destituição do
direito ao acesso à informação no campo dos direitos sexuais e reprodutivos.
Eles deslegitimam a pessoa que sofre o estupro ao afirmar que o produto da
violência (a gravidez) seja valorizado em detrimento da própria pessoa
sofrente. Eles transformam a criança em um adulto, calam-na, retiram seu poder
sobre seu próprio corpo, advogam pelos abusadores e reforçam as estruturas
violentas. Quando se obriga uma menina estuprada a gestar, se reproduz a
condenação que aliena as mulheres de seus corpos, de sua capacidade reprodutiva
e das suas capacidades de produzir saberes sobre si, movimento que o Estado e a
Igreja realizaram sistematicamente durante a Inquisição (Federici,
2017; 2018).
Federici (2018) sinaliza que a modernidade se estabeleceu atrelada à
exploração dos corpos para a produção e reprodução do capitalismo nascente.
Neste processo, os corpos dos homens foram transformados em máquinas de
trabalho; já os corpos das mulheres foram sujeitados à reprodução da força de
trabalho. Para estabelecer esta exploração foi necessário destruir o poder das
mulheres através do extermínio daquelas estigmatizadas como questionadoras.
O Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos Brasileiro foi
coordenado entre 2018-2022 pela Ministra Damares Alves (Partido Progressista),
pastora e advogada. Antes de assumir o Ministério, ela declarou que “a mulher
nasceu para ser mãe” (Balloussier, 2018). Com isto,
ela reforça hiper-representações acerca das mulheres, já que aos olhos de uma
agente política do Estado, a função social da mulher é essencialmente
reproduzir e ser subserviente, corroborando com uma perspectiva biologicista
que destina a mulher a uma única posição, de objeto reprodutor.
Esta declaração ignora uma das principais teses feministas, desenvolvida
por Elisabeth Badinter (1985), de que a maternidade
é um mito. Isto porque o amor materno não está inscrito na natureza das
mulheres, este amor é um sentimento como qualquer outro sentimento humano, carregado
de fragilidades, ambiguidades e inconstâncias. É o desejo da mulher de ser mãe
que corporifica a maternidade, a mulher não é um objeto reprodutor e não nasce
naturalmente destinada à maternidade.
As hiper-representações que estabelecem uma equivalência da mulher como
mãe reforçam uma preocupação cultural com os possíveis efeitos emocionais
negativos para as mulheres que abortam. No imaginário popular, as mulheres
seriam incapazes de tomar a decisão pelo aborto de modo racional, partindo dos
seus desejos, e isto faria com que a decisão fosse sempre carregada de
sofrimento, mesmo quando esta decisão está associada à realidade de um estupro.
Esta representação da mulher destinada à maternidade é amplamente sustentada em
valores religiosos (Badinter, 1985).
O Código Penal Brasileiro (Brasil, 1940)
estabelece que a prática do aborto não será punida nos casos de gravidez
resultante de estupro. Para viabilizar o acesso das mulheres ao aborto seguro
há o documento Atenção Humanizada ao Abortamento: Norma Técnica (Brasil, 2005). Ele apresenta a necessidade de se
oferecer atenção humanizada, acolhedora e integral às mulheres tanto na
realização do aborto nos casos previstos quanto no acolhimento de mulheres que
vivenciaram abortamento espontâneo ou induzido. Mesmo tendo documentos legais
para a assistência à saúde das mulheres, Souza e
Tyrrell (2007) sinalizam que existem dados e indicadores de saúde que
apontam para uma dificuldade de as mulheres obterem atendimento coerente com
estas concepções, com isto impedidas de acessarem um direito humano básico que
corresponde ao direito à saúde, como foi o caso da menina do Espírito Santo.
Isto ocorre porque, por mais avançados que sejam os documentos que
orientam os procedimentos no campo da saúde e no estabelecimento da equidade de
gênero, é na articulação entre hiper-representações e representações sociais
que os direitos humanos são reificados. Quando os profissionais da área da
saúde, da educação e jurídica atuam, suas práticas equiparam-se às
representações, cuja gênese são sempre sociais. De fato, as
hiper-representações, assim como as representações sociais, são uma espécie de
“preparação para a ação” (Moscovici, 2008, p. 9), ou seja, os fazeres são
atravessados por crenças, paixões e princípios, que são compartilhados por suas
comunidades, e que definem o modo como compreendem a realidade social.
Corroborando esta reflexão, um estudo sistemático voltado à produção
brasileira sobre a Educação Sexual nas escolas demonstrou que entre as
principais dificuldades para a implementação das estratégias de educação estão
as crenças sexistas e religiosas de pais e professores, que compreendem alguns
comportamentos sexuais como desvios (Furlanetto et al.,
2018). Neste sentido, identificar as hiper- representações e conhecer os
processos de construção de representações sociais nos auxiliam a compreender
como se operam as dinâmicas de manutenção e transformação do pensamento social.
É possível observar duas facetas do processo representacional, uma com possível
efeito negativo, opressor (a hiper-representação), e outra com potencial mais
positivo e (des)construtivo das relações de gênero (representação social).
Neste sentido, acreditamos que é fundamental que se abram espaços nas
escolas para o diálogo e se questionem as hiper-representações, acolhendo a
diversidade de ideias. Como representamos as mulheres? Quais as consequências
da fixidez e generalizações sobre as mulheres? Há outros modos de
representá-las? Como podemos transformar representações que geram iniquidades
de gênero? Estas são questões iniciais para a construção de outros caminhos na
educação.
Que caminhos vamos construir para o diálogo e
para o cuidado?
Queremos começar dizendo que acreditamos numa revolução na educação, numa
virada utópica, que exigiria, conforme Mészáros (2011),
eliminar as três dimensões inseparáveis do sistema do capital - capital,
trabalho e estado. Hooks (2019), por sua vez, também aposta em um caminho
radical, defendendo que “os esforços para acabar com a violência masculina
contra a mulher só serão bem-sucedidos se fizerem parte de uma luta maior para
acabar com todas as formas de violência” (p. 186). Todavia, no contexto
latino-americano, onde a opressão dos povos colonizados tem uma história e uma
dimensão diferente do contexto europeu, entendemos que “um dos enganos mais
paralisantes é o de acreditar que se não se muda tudo, não se muda nada, entre
o nada e o tudo há muitos passos que podem e devem ser dados” (Martín-Baró, 2017, p. 94). Assim, seguindo um caminho
menos ambicioso, apontaremos algumas propostas mais humildes de ação, além do
já discutido na parte anterior deste ensaio que tratou de mostrar a necessidade
da desconstrução de certas hiper-representações. É necessário um outro modo de
fazer na educação, que proponha uma agenda crítica, decolonial e feminista.
É possível uma outra psicologia e uma outra
escola?
A partir de uma ampliação da perspectiva de Martín-Baró (2017), propomos
que para pensar uma educação libertadora nas escolas, em primeira análise,
podemos refletir sobre a libertação das ciências que atuam neste campo, a
começar pela Psicologia, que tem frequentemente se colocado ao lado da
reprodução das relações de opressão. Isto porque, diante dos conflitos sociais,
frequentemente ela propõe estratégias para modificar o indivíduo, assegurando a
manutenção da ordem social. Com isto, a atenção do fazer repousa sobre uma
problemática entendida como individual, dissociada dos seus aspectos políticos
sociais e históricos (Martín-Baró, 1996). No campo
da educação, a sexualidade tem sido compreendida sobre um paradigma biomédico,
a sua orientação tem sido pautada em uma perspectiva de pedagogia moral e
cuidados de saúde (Furlanetto et al., 2018).
Quando pensamos no comentário da postagem no Facebook da Mídia Ninja (2020), “Cuidados para essa criança
traumatizada, todo apoio psicológico. O monstro na cadeia. Os que pregam falso
moralismo que deixem a criança em paz”, identificamos a percepção de que os
traumas e as violências sofridas pela menina estão na esfera individual, não há
referência à realidade coletiva e compartilhada. Quanto ao agressor, esse
também é compreendido em seu fazer como uma “monstruosidade”, que diz de uma
individualidade transgressora para a qual a punição exime toda a sociedade de
se comprometer em refletir sobre as violências estruturais.
Isto é, o que a sociedade “pensa” está em sintonia com o que a psicologia
e muitos trabalhadores da educação pensam e fazem – o indivíduo como agente
causador de sua própria condição e o social como agente reparador-punidor.
Aliás, Martín-Baró (2017, p. 90) já alertou para o fato de que a Psicologia e
suas pesquisas sobre os processos educativos “em geral, apenas elabora
diagnósticos”. Mas acreditamos que a psicologia social em suas vertentes
críticas tem se movimentado para transformar as práticas de trabalho no campo
da educação.
Precisamos estar atentos à individualização dos sujeitos reforçada e
produzida pela ciência moderna e positivista, a qual está em sintonia com a
“lógica opressora da modernidade colonial”, que é materializada no “uso de
dicotomias hierárquicas e de uma lógica categorizante” (Lugones,
2019, pp. 357-358). Nesta lógica, a separação entre indivíduo/sociedade,
margem/centro, vítima/agressor, monstros/anjos pode ser sintetizada na
antinomia humanos/não humanos. Estas antinomias contribuem para o
desinvestimento daqueles que estão à margem da sociedade. Deste modo, nos
alerta hooks (2019), o agressor, antes de agir com
violência, já teve sua humanidade aniquilada pelas estruturas de poder.
Talvez seja difícil reconhecer e aceitar o raciocínio de hooks (2019) no
que tange ao entendimento sobre o estupro, pois, num contexto mais imediato, a
categorização, a estigmatização e a punição do estuprador providenciam alívio à
pessoa agredida e àquelas que se afetam com a violência. Entretanto, ao punir o
agressor, retirando-o da sociedade, seja pelo encarceramento ou morte,
retornamos à centralidade da lógica do individualismo e retiramos a
responsabilidade da sociedade na construção desse indivíduo-monstro.
Como desmontar estes modos de opressão, este pensar-fazer pela educação?
Que caminhos vamos construir para o diálogo e para o cuidado, de modo que as
violências contra as mulheres possam ser erradicadas ou, pelo menos,
diminuídas? Seria preciso outra psicologia e outra escola que apostem numa
mudança estrutural, numa transformação radical da sociedade, do sistema
capitalista e das relações de trabalho.
Neste ensaio pensamos, como um caminho, visar a educação para a
libertação, apostando na defesa da Educação Sexual nas escolas sob uma
perspectiva feminista. Lugones (2008) indica que a educação popular pode ser um
método coletivo para superar e explorar criticamente o sistema colonial de
gênero. Através do feminismo decolonial, pretende-se “superar a colonialidade
dos gêneros”. O termo colonialidade, na perspectiva da autora, nomeia “uma
forma de classificar pessoas através de uma colonialidade do poder e dos
gêneros” (Lugones, 2019, p. 361), sendo, igualmente, um modo “para pensar sobre
o processo ativo de redução das pessoas, a desumanização que as qualificam para
a classificação, o processo de subjetivação, a tentativa de transformar o
colonizado em menos que humano” (Lugones, 2019, p. 361).
Ao refletirmos sobre outros modos de conhecer, uma estratégia possível de
transformação é através de uma educação libertadora e conscientizadora. Freire (2018) propõe a conscientização como um
processo de reconhecimento da realidade, quando o estudante se distancia do
mundo para observá-lo, apreendê-lo e admirá-lo, produzindo com isto um agir
consciente sobre a “realidade objetiva” (Freire, 2018, p. 30), permitindo uma
ação comprometida com a reflexão sobre a realidade do mundo.
Isto porque a realidade é conhecida à medida que o estudante é
instrumentalizado também para transformá-la. A educação deve estar voltada para
o suporte no processo das pessoas de tomada de consciência, sobre si, suas
relações e o contexto ao seu redor. Não uma consciência limitada aos aspectos
privados do saber e sentir subjetivos, mas voltada para os aspectos que se
referem à percepção sobre o seu ser e o seu fazer no mundo, o reconhecimento
consciente e autônomo da produção de conhecimentos sobre sua realidade e de
estratégias para melhorá-la. Uma consciência que se concretiza em saberes
práticos que rompem com hiper-representações (Martín-Baró,
1996; Freire, 2019).
Esta educação libertadora pressupõe também a problematização da
realidade. Através do ato de conhecer a realidade concreta, o educando reflete
sobre ela de modo crítico e propositivo. Para este movimento é indispensável a
liberdade e o diálogo. A educação ocorre através do encontro e do que se
comunica nele (Freire, 2019).
Considerando que um importante eixo de opressão das minorias são os
discursos que deslegitimam o seu poder de autonomia sobre os seus corpos,
pensar uma educação libertadora inclui necessariamente o debate sobre o campo
da sexualidade e da reprodução. Neste caso, segundo Maia
e Ribeiro (2011), a Educação Sexual passa a ser compreendida como um
processo pedagógico que realiza uma formação específica sobre sexualidade,
reconhecendo este aspecto da vida como social e político. A Educação Sexual na
escola se articula no acesso ao direito à liberdade, autonomia e integridade
sexual, segurança do corpo, privacidade, acesso ao prazer sexual, liberdade de
expressão sexual e o acesso a escolhas reprodutivas livres, todos estes
aspectos vivenciados com respeito consigo e com os demais.
Tensionando o patriarcado: descolonizando a
educação
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Brasil,
1996) e os PCNs (Brasil, 1998) preveem a abordagem do tema da sexualidade
na escola, que deve permitir que os estudantes tenham acesso a informações,
adequadas para as suas idades, que os orientem no campo da sexualidade para que
eles a possam exercer com responsabilidade, saúde e prazer. No entanto, em
decorrência do cenário fragilizado que a democracia brasileira tem vivenciado
nos últimos anos, a possibilidade de a escola operar na multiplicação de
saberes sobre gênero e sexualidade tem sofrido ataques.
Um dos ataques ocorreu em 2017, com a retirada da Base Nacional Comum
Curricular (BNCC) dos termos gênero e orientação sexual e generalizados como
“dimensões da sexualidade humana” (Brasil, 2017, p.
347). Outro ataque é o Movimento Escola Sem Partido, criado em 2004, que esteve
em anonimato por dez anos e tem ganhado força nos últimos anos. Este movimento
serve bem aos ideais conservadores. Ele prevê que a educação das crianças em
temas ligados à moralidade, religiosidade e política seja restrita ao ambiente
familiar, impedindo a escola de falar sobre tais temas porque incorreria em
“doutrinação ideológica” (Miguel, 2016).
Este movimento representa os grupos que se posicionam contrários à escola
servir como um espaço aberto para a Educação Sexual. Também contra a
possibilidade de ela exercer um papel republicano, promovendo espaços de
socialização e convívio com as diferenças. Para estes grupos, a criança não é
compreendida como sujeito de direito, capaz de conhecer o mundo desconectada
das referências dos pais e capaz de produzir representações sociais (Miguel,
2016).
Que fatores estão associados a esta percepção de escola? Acreditamos que
a ideologia do patriarcado branco tem forte relação com o modo como se antevê a
instituição escolar. À parte das controvérsias em torno do constructo
patriarcado, nos interessa aqui salientar que, de acordo com Pateman (2020), o
patriarcado não é puramente familiar (localizado na figura paterna) ou está
localizado na esfera privada, já que o mandato da lei do direito sexual
masculino rege também o domínio público. Deste ponto de vista, “o ‘indivíduo’
como proprietário é o ponto em torno do qual gira o patriarcado moderno” (Pateman, 2020, p. 30).
Outro exemplo de projeto que afeta as proposições democráticas da escola
é o de educação domiciliar. O Projeto 1338/2022 que regulamenta o ensino básico
domiciliar no Brasil foi aprovado pela Câmara Federal em 2022 e está sendo
considerado pela Comissão de Educação do Senado (Brasil,
2022).
Este projeto nega a possibilidade de a criança conhecer o mundo de modo
dialógico e para além dos conhecimentos e socialização dos seus pais. Ele
remete às hiper-representações da família com características patriarcais, onde
os filhos e o seu aprendizado são compreendidos como propriedades do pai, sendo
este supostamente o detentor de todos os recursos econômicos e simbólicos do
núcleo familiar. Os filhos devem repercutir o pensamento do pai, limitados à
possibilidade da repetição dos saberes prescritos.
É fato que “em muitos lares, crianças e adolescentes descobrem que seu
desejo de discutir certas questões com os pais às vezes é encarado como um
desafio à autoridade e ao poder paternos, como um ato de ‘desamor’” (hooks, 2019, pp. 183-184). Neste contexto, a escola
pode ser um potente espaço para a transmissão de informação sobre sexualidades,
sobre corpo e sobre relações de dominação/poder.
Agora, como seguir pela trilha da possibilidade de se ter prazer na
escola ao invés da punição, do silenciamento, da preparação para o “mercado de
trabalho”? Quando uma menina busca suporte para compreender uma situação de
violência da qual foi vítima, qual espaço de escuta ela encontra na escola?
Um caminho possível é realizarmos um trabalho comprometido com uma
educação que propulsione corpos educados livres para desejar, descobrir e se
estabelecer no mundo através da curiosidade e da crítica. Isto pode ser feito
construindo parcerias com grupos de pesquisa feministas das universidades e
movimentos sociais feministas que ofereçam espaços de escuta que incluam
estudantes do Ensino Fundamental e Médio e que respeitem seus saberes e os
sentidos que produzem. Afinal, “as mulheres que se sentem excluídas da
discussão e da práxis feministas”, como é o caso de muitas meninas pobres e
negras, “só podem encontrar um lugar para si mesmas se, antes de tudo, tomarem
consciência, por meio da crítica, dos fatores que as alienam” (hooks, 2019, p.
37).
Nesta via, pode-se constituir grupos de conscientização feministas nas
comunidades, com o intuito de alimentar subjetividades resistentes e
“decolonizar os gêneros”. Algumas perguntas que norteariam os trabalhos em
grupo: De onde vem as meninas? Quem foram seus ancestrais? O que faziam? Como
foram explorados? Como foram racializados? Como lutaram para (sobre)viver? Que
legados herdaram deles? A base dos questionamentos é “um aprender com os povos”
(Lugones, 2019, p. 363) e não um ensinar os povos.
Os grupos podem ser mediados pelas próprias estudantes (elas como
protagonistas) e contar com a participação de educadores. Igualmente, a
proposta pode se estender aos meninos, para que, à medida que as meninas se
sentirem confiantes, elas possam compor grupos mistos. Os grupos serviriam como
um dispositivo pelo qual se focaria na “melhoria das relações entre homens e
mulheres, [n]o trabalho conjunto de mulheres e homens no combate à educação
sexista” (hooks, 2019, p. 125).
Para Ribeiro, os índices de desenvolvimento humano e políticas para
grupos vulneráveis devem ser entendidos como um investimento no desenvolvimento
de uma cidade e de um país. Ela alerta para a necessidade de olharmos para uma
realidade, que historicamente é silenciada, e que precisa ser nomeada, “se não
nomeia uma realidade, sequer serão pensadas melhorias para uma realidade que
segue invisível” (Ribeiro, 2018, p. 43).
Considerando um possível despreparo dos profissionais da educação para
escutarem os questionamentos sobre gênero dos estudantes, que pode resultar em
abordagens punitivas e discriminatórias (Furlanetto et al., 2018), atentamos
para que outro caminho para a superação de uma dinâmica moderna colonial de
gênero está na transformação dos profissionais que atuam na educação. Freire (2019)
questiona sobre ao lado de quem está o educador quando ensina, para quê e para
quem se educa. Entendemos que os processos de conscientização, de refletir
sobre as representações sociais e de utilizá-las como meios de transformação
social precisam incluir os profissionais da educação, através de uma escuta
atenta que permita aos estudantes produzirem questionamentos implicados
coletivamente e criticamente com as suas experiências de vida, suas
curiosidades e suas ações no mundo.
Entendemos que ser um profissional do campo da educação é uma constante
transformação de si, à medida que acompanha a transformação do outro e do
mundo. Estas transformações são norteadas pelas representações sociais. É na
representação que se compreende, transforma e se atua no mundo. De alguma
forma, um fazer implicado se estabelece na aceitação de constantes fraturas das
representações que se carrega em si, que permite ao profissional ressignificar
a vida a partir da representação que o outro lhe apresenta.
A pluralidade constitui campo fértil para a transformação das
representações sociais. As representações se produzem no espaço de
inter-relação entre as pessoas, elas carregam elementos dos sujeitos, das suas
relações e da sociedade. Por estarem localizadas no entre, elas são
essencialmente relacionais. A relação e o encontro com o outro, com aquele que
possui conhecimentos diferentes, produzem transformações no modo como me
percebo, percebo o mundo e interajo com ele. Para que ocorram transformações
sociais, precisamos produzir encontros com o inovador e com o diferente que
repercutirão em representações sociais implicadas com a ética da vida.
Considerações Finais
Este
ensaio objetivou refletir sobre a possível responsabilidade que as escolas têm
de providenciar, para as estudantes, conhecimentos sobre direitos sexuais e
reprodutivos de crianças e adolescentes. Buscamos nesta escrita implicada
convocar para a reflexão crítica sobre a realidade de um país em que é comum
meninas não terem conhecimentos de seus direitos sexuais e reprodutivos e ser
recorrente engravidarem de estupros e não terem acesso ao aborto seguro
garantido.
Inicialmente
buscamos refletir sobre como estabelecemos hiper-representações sobre ser
menina e mulher em nossa cultura. Sinalizamos que as mulheres tiveram
historicamente seus corpos subjugados à reprodução da força de trabalho e às
representações da maternidade como um destino biológico natural para todas.
Nesta perspectiva, Estado e sociedade limitaram as mulheres no acesso aos seus
direitos sexuais e reprodutivos e, ainda, marcaram como desviantes aquelas que
se negaram a silenciar.
Quando
pensamos na superação das estruturas de violência, reconhecemos a necessidade
de uma revolução. Todavia, como caminhos possíveis de transformação da
realidade social propomos, inicialmente, um fazer no campo da educação liberto
de perspectivas que visam moldar o sujeito.
Outro
ponto de transformação é através do tensionamento do patriarcado e das
estruturas que se beneficiam deste modelo de dominação. Exemplos de projetos
que legitimam uma educação fundamentada no patriarcado na atualidade brasileira
são o projeto de educação domiciliar e o Escola Sem Partido. Acreditamos em uma
educação que questione a antinomia público/privada e o poder patriarcal e que
rompa com tradições disciplinadoras. Um possível caminho para esta
transformação é através de grupos de conscientização feminista.
Propomos observar
que os retrocessos no acesso à Educação Sexual podem sinalizar justamente para
a potencialidade conscientizadora e transformadora desta abordagem. Apoiadas na
perspectiva do feminismo decolonial, reconhecemos que as iniquidades de gênero
se interpenetram com outras iniquidades e reforçam sistemas de opressão e
silenciamento. Para superar estas iniquidades é preciso um compromisso coletivo
no campo da educação. Neste sentido, a escola pode permitir espaços de escuta e
fala sobre os direitos sexuais e reprodutivos, sobre a noção de autonomia do
corpo e a noção de consentimento, e sobre os sistemas de opressão, objetivando
a prevenção das violências de gênero e sexuais e a desconstrução de
estereótipos de gênero que reforcem iniquidades.
O
compromisso com uma educação liberta e emancipatória pressupõe que os
profissionais atuantes na educação devem se abrir para a transformação que
ocorre no processo de encontro e diálogo com o outro, que pode desacomodar
nossas representações da realidade. Na comunicação, na linguagem, nos processos
simbólicos poderemos produzir novas representações sociais sobre as mulheres,
homens e famílias, que permitam o estabelecimento de laços sociais mais
respeitosos e acolhedores.
Reconhecemos
que por se tratar de um ensaio, nossa escrita tem a limitação de não abarcar o
diálogo direto com educadores e estudantes para pensar proposições para a
Educação Sexual nas escolas. Desta forma, consideramos que estudos futuros
podem se dedicar a compreender as dinâmicas das representações sociais sobre
direitos sexuais e reprodutivos na comunidade escolar, também podem pensar
quais compreensões sobre feminismo se engendram entre educadores, estudantes e
famílias, e sobre os efeitos destas compreensões na educação sexual. Por fim,
consideramos importante dialogar com agentes das mídias jornalísticas junto com
professores para se pensar estratégias de compartilhamento de conhecimentos nos
veículos de comunicação acerca dos direitos sexuais e reprodutivos de meninas e
adolescentes, visando alertar sobre as iniquidades de gênero.
Ter
tomado como referência de análise o caso mobilizador deste ensaio, amplamente
difundido nas mídias, não apenas sinaliza para as violências a que meninas são
expostas, mas nos convoca à reflexão sobre os caminhos possíveis para resistir
a estes discursos e práticas. Resistir significa iluminar possibilidades de
encontro e de diálogos, desacomodar saberes, construir novas representações e
produzir afetos que nos permitam retomar a certeza de que nossa humanidade se
estabelece no reconhecimento e no compromisso com a humanidade do outro.
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[i] Pós-doutora em Psicologia pela
Harvard University (2019). Professora Associada na Universidade Federal de
Santa Maria (UFSM).
[ii] Mestra em Psicologia pela UFSM (2015).
Doutoranda em Psicologia pela UFSM. Psicóloga da UFSM.
[iii] Mestra em Psicologia pela UFSM
(2017). Doutoranda em Psicologia pela UFSM. Docente no Curso de Psicologia da
Universidade Luterana do Brasil.
[4] Este ensaio compõe uma pesquisa maior intitulada Politics
of Reproduction in the Cyberworld: Investigations on Contraceptive
Technologies, (In)fertility, and Social Representations of Masculinities/Femininities,
(financiada pelo CNPq e pela FAPERGS). Pesquisa aprovada pelo Comitê de
Ética (CAAE: 65692122.7.0000.5346).