Artigo

Autismo e o paradigma da neurodiversidade na pesquisa educacional

Autismo y el paradigma de la neurodiversidad en la investigación educativa

Autism and the neurodiversity paradigm in educational research


Andrea Soares Wuo[i]

Universidade Regional de Blumenau

Blumenau, SC, Brasil

awuo@furb.br

https://orcid.org/0000-0003-2110-7184

André Luiz Corrêa de Brito[ii]

Universidade Regional de Blumenau

Blumenau, SC, Brasil

alcbrito@furb.br

https://orcid.org/0000-0001-7139-2716

Os autores contribuíram igualmente na elaboração do manuscrito.

Recebido: 04/12/2022

Aceito: 02/03/2023

Publicado: 10/03/2023

Linhas Críticas | Periódico científico da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília, Brasil

ISSN: 1516-4896 | e-ISSN: 1981-0431

Volume 29, 2023 (jan-dez).

http://periodicos.unb.br/index.php/linhascriticas

Referência completa (APA):

Wuo, A. S., & Brito, A. L. C. de. (2023). Autismo e o paradigma da neurodiversidade na pesquisa educacional. Linhas Críticas, 29, e45911. https://doi.org/10.26512/lc29202345911

Link alternativo:

https://periodicos.unb.br/index.php/linhascriticas/article/view/45911

Licença Creative Commons CC BY 4.0.


Resumo: Este trabalho buscou identificar os modos como o autismo é abordado em pesquisas educacionais situadas no campo dos estudos críticos do autismo, por meio de pesquisa de revisão da literatura nacional e internacional produzida entre 2007 e 2020. Os resultados mostraram crescente produção do conhecimento no cenário internacional, mas ainda escassa em âmbito nacional. A análise evidenciou que, sob a ótica da neurodiversidade, o autismo assume um caráter identitário, político e social que contribui para o desenvolvimento de propostas baseadas na acessibilidade e na participação dos estudantes autistas, garantindo sua permanência e aprendizagem nas instituições educacionais.

Palavras-chave: Neurodiversidade. Educação Inclusiva. Autismo.

Resumen: Este trabajo buscó identificar las formas en que el autismo es abordado en investigaciones educativas ubicadas en el campo de los estudios críticos del autismo, a través de una revisión de la literatura nacional e internacional producida entre 2007 y 2020. Los resultados evidenciaron una creciente producción del conocimiento en el panorama internacional, pero todavía escaso a nivel nacional. El análisis mostró que, desde la perspectiva de la neurodiversidad, el autismo asume un carácter identitario, político y social que contribuye al desarrollo de propuestas basadas en la accesibilidad y participación de los estudiantes autistas, garantizando su permanencia y aprendizaje en las instituciones educativas.

Palabras clave: Neurodiversidad. Educación Inclusiva. Autismo.

Abstract: This work sought to identify the ways in which autism is addressed in educational research situated in the field of the critical autism studies, through a review of the national and international literature produced between 2007 and 2020. The results showed a growing knowledge production on the international scene, but still scarce at the national level. The analysis showed that, from the perspective of neurodiversity, autism assumes an identitarian, political and social character that contributes to the development of proposals based on accessibility and participation of autistic students, guaranteeing their permanence and learning in educational institutions.

Keywords: Neurodiversity. Inclusive Education. Autism.




Introdução

A explicação do autismo, desde sua identificação por Leo Kanner na década de 1940, esteve vinculada ao conhecimento médico. A partir da década de 1980, suas definições e seus critérios diagnósticos passaram a ser reconhecidos pela Associação de Psiquiatria Americana (APA) e publicados, pela primeira vez, na terceira edição do Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-III) (APA, 1980). Diante da patologização do autismo, visto como um ‘mal a ser eliminado’, a educação de pessoas autistas manteve-se, historicamente, às margens do saber e do fazer pedagógicos.

Em contraposição à tendência clínica e patológica do autismo, durante a década de 1990, ativistas autistas buscaram rever seu lugar na sociedade. Em 1993, Jim Sinclair, criador da Autism International Network em 1992, publica o ensaio Não lamente por nós,[3] voltado aos familiares de crianças autistas que sofrem ao receber o diagnóstico de seus filhos. Em sua fala, Sinclair (1993) apela aos pais para que compreendam e abracem as diferenças de seus filhos autistas, buscando novas formas de percepção do autismo, que superem a visão e o sentimento de tragédia. O texto de Sinclair popularizou-se em redes socais e comunidades formadas por pessoas autistas e ativistas, que entenderam a perspectiva de Sinclair como um caminho para a autoaceitação do autismo perante o discurso público (Sinclair, 1993; Kapp, 2020).

Nesse contexto, o termo ‘neurodiversidade’ foi cunhado pela socióloga e ativista autista Judy Singer em fins da década de 1990, em parceria com o jornalista Harvey Blume (Silberman, 2015). Em 1997, Blume já discutia a presença do pluralismo neurológico em comunidades online e a importância da internet em comunidades autistas, cuja representatividade poderia se equiparar à comunidade surda. O primeiro uso do termo ‘neurodiversidade’ na imprensa deu-se em 1998, em artigo publicado no jornal The Atlantic por Blume, intitulado On the neurological underpinnings of geekdom (Sobre os fundamentos neurológicos do reino geek). Na matéria, Blume (1998) aborda os aspectos neurológicos que fazem parte da comunidade geek, formada, em sua maioria, por pessoas autistas com conhecimentos avançados na área das tecnologias digitais do Vale do Silício. Ao tensionar as relações entre neurotípicos e neurodiversos, conforme propõem os membros do denominado Instituto de Estudos do Neurologicamente Típico,[4] Blume (1998, p. 1, tradução nossa) enfatiza que “[…] a neurodiversidade pode ser tão crucial para a raça humana quanto a biodiversidade é para a vida em geral”.

Um ano após a publicação de Blume, Judy Singer utilizou o termo em seu ensaio Por que você não pode ser normal uma vez na sua vida? De um problema sem nome ao surgimento de uma nova categoria de diferença. Singer (1999, p. 64, tradução nossa) definiu o termo como uma “política de diversidade neurológica”, considerando o ‘neurologicamente diferente’ como “[…] uma nova adição às categorias políticas familiares de classe/gênero/raça […]”. Para Kapp (2020), foi com essa definição de Singer que o termo ‘neurodiversidade’ começou a fazer parte dos movimentos de defesa dos direitos do autista em diferentes países.

Ao questionar o modelo biomédico de classificação do autismo, enfatizando uma abordagem crítica e social, o paradigma da neurodiversidade surge como uma contribuição para a superação de barreiras atitudinais construídas desde a descoberta do autismo, na década de 1940. No cenário acadêmico, o conceito da neurodiversidade foi incorporado pelos chamados ‘estudos críticos do autismo’ (critical autism studies [CAS]) e passou a ser considerado por alguns pesquisadores como um novo paradigma, possibilitando novas compreensões e modos de lidar com o autismo (Armstrong, 2012a; Kapp et al., 2013).

Os CAS foram criados em 2012, por Davidson e Orsini, em um encontro no Canadá que resultou na produção da obra Worlds of Autism: Across the spectrum of neurological difference (Davidson & Orsini, 2013). Esse campo de estudos organiza-se a partir de três eixos, a saber: a) a ênfase nos modos como as relações de poder produzem o conhecimento sobre o autismo; b) a busca por novas narrativas sobre o autismo que discutam os discursos predominantes do modelo biomédico, centrado no déficit e na degradação; e c) a construção de novas estruturas analíticas sobre o estudo da natureza e da cultura do autismo, com base em pressupostos teórico-metodológicos inclusivos (O’Dell et al., 2016; Davidson & Orsini, 2013). Os CAS caracterizam-se como um movimento político e científico heterogêneo, em que cientistas e ativistas buscam, por diferentes vias, a promoção dos direitos das pessoas com autismo, sobretudo no que concerne à sua participação política, social e acadêmica. No contexto acadêmico, destacam-se publicações escritas por pesquisadores autistas, em sua maioria da área das Ciências Sociais, trazendo novas perspectivas para a construção do conhecimento sobre o autismo (Arnold, 2020).

No Brasil, é possível observar a emergência de comunidades formadas por ativistas e de pesquisas acadêmicas que discutem o tema sob a perspectiva da neurodiversidade. Na educação, a produção sobre o autismo no campo dos estudos críticos privilegia o discurso médico, fundamentado nas definições do DSM e na visão do déficit. Poucos são os estudos que abordam o autismo em uma perspectiva social ou crítica (Wuo et al., 2019). No contexto ibero-americano, Amador Fierros et al. (2021), a partir de pesquisa em artigos de língua espanhola sobre neurodiversidade na Educação Superior, mostram que a produção do conhecimento na América Latina ainda é incipiente. Os resultados do estudo evidenciam que o conceito de neurodiversidade encontra-se em processo de apropriação. No tocante às pesquisas sobre as condições neurodiversas (autismo, dislexia, TDAH, dificuldades de aprendizagem e ansiedade), os autores observaram a tendência de vinculação à noção de deficiência e déficit, em contraposição à noção de diferença, sob a qual se assenta o paradigma da neurodiversidade.

Nesta pesquisa, perguntamos acerca dos modos como os estudos de perspectiva crítica sobre o autismo, vinculados ao paradigma da neurodiversidade, abordam a educação de pessoas autistas. Com isso, buscamos ampliar o repertório teórico das pesquisas educacionais no Brasil sobre autismo em uma perspectiva crítica, possibilitando a criação de alternativas ao modelo médico vigente.

Considerando a escassez de produções sobre educação de pessoas autistas vinculadas ao paradigma da neurodiversidade no Brasil e na América Latina, bem como a necessidade de construir novas formas de pensar o autismo na educação, o presente artigo tem como objetivo identificar os modos como a educação de pessoas autistas é abordada na literatura científica situada no campo dos estudos críticos sobre o autismo. De forma mais específica, buscamos identificar: a) as compreensões sobre o autismo e b) as temáticas e abordagens sobre a educação de pessoas autistas nas pesquisas levantadas. Para tanto, realizamos uma pesquisa do tipo ‘estado do conhecimento’, reunindo artigos publicados em periódicos nacionais e internacionais, entre os anos 2006 e 2020.

 

Método

Realizamos um estudo do tipo ‘estado do conhecimento’, de abordagem qualitativa, em busca de artigos sobre autismo e neurodiversidade publicados em periódicos nacionais e internacionais da área da educação. Romanowski e Ens (2006) definem os estudos do tipo ‘estado do conhecimento’ como aqueles que buscam analisar a produção acadêmica de um determinado assunto em apenas um setor do conhecimento. Neste projeto, propomos um estudo com foco apenas em artigos científicos, descartando outros setores, como monografias (teses e dissertações), anais de congressos ou livros científicos.

Para o levantamento da literatura, definimos três portais de busca: o Portal de Periódicos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), que reúne periódicos e bases de dados nacionais e internacionais; o Portal Scientific Electronic Library Online (SciELO), que reúne a produção de periódicos da América Latina; o portal Educational Resources Information Centre (Eric), base de dados internacional que reúne periódicos da área da educação. Os descritores utilizados foram ‘neurodiversidade’ e ‘educação’; ‘neurodiversity’ e ‘education’. Em virtude da pequena produção do campo, optamos por não definir um período de busca. As buscas ocorreram entre setembro e dezembro de 2020, data que encerra o período de levantamento de dados. Os critérios de inclusão de produções foram: artigos em língua inglesa, espanhola e portuguesa; estudos que abordassem o autismo na perspectiva crítica e exclusivamente no campo da educação. O Quadro 1 apresenta o resumo das estratégias de busca utilizadas e os resultados encontrados:

Quadro 1

Estratégias de busca nos portais

Portal

Descritores

Campos

Resultados

iniciais

Resultados

eliminados

Resultado

final

Periódicos Capes

Neurodiversidade AND educação

Qualquer

13

11

2

Neurodiversity AND education

Assunto

13

10

3

SciELO

Neurodiversidade AND educação

Todos

3

3

0

Neurodiversity AND education

Todos

0

0

0

Eric

Neurodiversidade AND educação

Todos

0

0

0

Neurodiversity AND education

Todos

15

7

8

Total

44

31

13

Fonte: elaborado pelos autores.

No portal Periódicos Capes, a primeira estratégia de busca se deu a partir dos descritores em língua portuguesa. No campo de seleção, mantivemos as opções ‘qualquer campo’ e ‘contém’; no tipo de material, selecionamos ‘todos os itens’, obtendo inicialmente 13 artigos. Nos descritores em língua inglesa, a fim de refinar a busca, selecionamos a opção ‘assunto’, obtendo 13 entradas. Contudo, 2 artigos eram repetidos e 8 não se relacionavam com o tema específico da pesquisa, restando apenas 3 artigos.

No Portal SciELO, utilizamos os mesmos descritores, tanto em língua portuguesa como em língua inglesa. No campo ‘seleção’, escolhemos a opção ‘todos os índices’. Encontramos 3 artigos repetidos. No Portal Eric, identificamos 15 artigos, dos quais apenas 8 referiam-se ao autismo. Os 7 artigos restantes abordam diferentes condições que se albergam sob o guarda-chuva ‘neurodiversidade’, como as dificuldades de aprendizagem, o transtorno do déficit de atenção e hiperatividade e a dislexia. Para realizar a análise, construímos um corpus composto por 13 artigos, sendo 8 advindos do Eric e 5 do Portal Periódicos Capes. Dos artigos selecionados para esta pesquisa, apenas 2 foram publicados em periódicos nacionais.

A análise dos dados foi realizada em duas etapas: primeiro, organizamos os dados relativos à autoria, data de publicação, periódico, tipo de pesquisa e temas centrais em planilha do Excel, para a caracterização do corpus da pesquisa. Em seguida, os artigos foram lidos integralmente e organizados a partir dos seguintes critérios: perspectivas sobre autismo e neurodiversidade; abordagens de temas educacionais. A análise de conteúdo resultou na construção de duas categorias amplas, a saber: (a) neurodiversidade e a identidade autista e (b) acessibilidade.

 

Resultados e discussão

O Quadro 2 apresenta a distribuição dos 13 artigos que compõem o corpus da pesquisa, a partir dos periódicos, autores, datas de publicação.

Quadro 2

Periódicos e revistas nacionais e internacionais com publicações sobre o tema

Periódico / Revista

Autores / Ano

College English

Jurecic (2007)

International Journal of Inclusive Education

Broderick e Ne’eman (2008)

Research & Practice for Persons with Severe Disabilities

Tincani et al. (2009)

Educational Leadership

Armstrong (2012b)

Tizard Learning Disability Review

Mackenzie et al. (2012)

Research in Drama Education: The Journal of AppliedTheatre and Performance

May (2017)

Journal of Autism and Developmental Disorders

Sarrett (2018)

Composition Studies

Tomlinson e Newman (2017)

Research in Drama Education: The Journal of AppliedTheatre and Performance

Fletcher-Watson e May (2018)

Revista Educação em Saúde

Machado et al. (2019)

Revista Educação Especial

Wuo et al. (2019)

Higher Education

Clouder et al. (2020)

Journal of Pre-College Engineering Education Research

Ehsan e Cardella (2020)

Fonte: elaborado pelos autores.

O Quadro 2 revela que os estudos sobre neurodiversidade e educação estão presentes em vários periódicos educacionais. Contudo, evidencia-se a escassez de produção nacional sobre o tema desta pesquisa, sobressaindo-se a internacionalização do tema e sua divulgação em periódicos de relevância internacional, em especial naqueles cujos foco e escopo relacionam-se com o tema da deficiência. As produções concentram-se na segunda década dos anos 2000, com um aumento significativo a partir de 2012, ano marcado pela criação dos CAS por Davidson e Orsini (2013). O aumento de produção nesse período também reflete o fortalecimento do tema no campo de estudos científicos, a adoção de abordagens metodológicas e temas distintos, além da crescente presença na área da educação.

As pesquisas de cunho teórico prevalecem entre os artigos publicados até 2012, nos quais os autores discutem o conceito de neurodiversidade, bem como apresentam articulações com o campo da educação (Jurecic, 2007; Broderick & Ne’eman, 2008; Tincani et al., 2009; Armstrong, 2012b). Já a partir de 2012, observamos a emergência de pesquisas de campo (Tomlinson & Newman 2017; Fletcher-Watson & May, 2018; Sarrett, 2018; Ehsan & Cardella, 2020), revisões de literatura (Machado et al., 2019; Wuo et al., 2019; Clouder et al., 2020) e relatos de experiência (May, 2017). Para além das discussões conceituais acerca da neurodiversidade na educação (Broderick & Ne’eman, 2008; Tincani et al., 2009; Machado et al. 2019; Wuo et al., 2019), as temáticas diversificam-se no campo da educação, abordando: as políticas educacionais (Mackenzie et al., 2012); a formação docente (Armstrong, 2012b); o ensino e a aprendizagem na educação básica (Ehsan & Cardella, 2020); a educação dramática (May, 2017; Fletcher-Watson & May, 2018); a educação superior (Jurecic, 2007; Tomlinson & Newman, 2017; Sarrett, 2018; Clouder et al., 2020). Vale destacar a concentração de estudos na área da Educação Superior, possivelmente relacionada ao caráter participativo e emancipatório dos estudos críticos do autismo, que envolvem, em geral, a participação ativa de pessoas autistas na produção das pesquisas.

Observamos duas tendências nas produções: a primeira, marcada pelos artigos da primeira década dos anos 2000, que buscam relacionar os conceitos da neurodiversidade com a área da educação por meio de discussões como o impacto da cultura na educação de estudantes autistas e a importância da análise interseccional (Tincani et al., 2009); as relações entre aprendizagem, neurociências e a perspectiva da neurodiversidade (Jurecic, 2007); os embates entre as narrativas médicas sobre o autismo e as contranarrativas da neurodiversidade (Broderick & Ne'eman, 2008); e a neurodiversidade como um conceito fundamental para a promoção de ambientes inclusivos de aprendizagem (Armstrong, 2012b).

A segunda tendência é marcada por produções que articulam a perspectiva da neurodiversidade em diferentes áreas da pesquisa educacional. Assim, Tomlinson e Newman (2017) discutem, por meio de entrevista com pessoas autistas, a escrita, seu desenvolvimento e aprendizagem nos diversos níveis e situações educacionais. Ehsan e Cardella (2020) abordam, por meio de pesquisa qualitativa realizada com um estudante de educação básica, o desenvolvimento de estratégias de ensino de fundamentos da engenharia para estudantes autistas.

A educação no teatro é tema dos artigos de May (2017) e Fletcher-Watson e May (2018). May (2017) se apropria do conceito de neurodiversidade para discutir a estética da comédia e evoca a necessidade de se compreender o humor autista em um modelo da diferença, e não do déficit. Fletcher-Watson e May (2018) relatam a experiência de um festival acessível de teatro e destacam, na fala dos permorfers autistas, que a criação de um espaço acessível e aberto às suas particularidades foi propício tanto para o fortalecimento do senso de solidariedade comunitária quanto para o engajamento com as políticas da neurodiversidade.

Mackenzie et al. (2012) se apropriam da perspectiva crítica para analisar as políticas voltadas às pessoas com necessidades especiais, evidenciando a falta de diálogo entre instituições e comunidade, assim como as dificuldades em se considerar a voz e a capacidade do público em questão na elaboração e efetivação das legislações. A acessibilidade à educação superior é tema dos artigos de Clouder et al. (2020), mediante revisão de literatura, e de Sarrett (2018), que realizou survey e grupo focal com estudantes universitários autistas.

Por fim, poderíamos localizar os dois artigos brasileiros em uma área intermediária entre esses dois momentos de produção internacional. No âmbito da educação, os estudos de Wuo et al. (2019) e Machado et al. (2019) discutem a produção do conhecimento sobre o autismo no Brasil, a tendência biomédica das produções e a emergência de apropriação de novos conceitos. Ao mesmo tempo, buscam esclarecer conceitos próprios do campo dos estudos críticos, necessários ao desenvolvimento de pesquisas e práticas educacionais.

 

Neurodiversidade e a identidade autista

Os estudos da deficiência (disabily studies [DS]) surgem nos anos 1970, em decorrência dos movimentos sociais de pessoas com deficiência, nos Estados Unidos e Reino Unido. Tendo como seus principais interlocutores intelectuais com deficiência da área das ciências sociais, os DS buscaram a construção de um modelo social da deficiência em contraposição ao modelo médico ou modelo da tragédia pessoal. Sob a perspectiva social, as dificuldades vivenciadas pelas pessoas com deficiência deixam de ser compreendidas como problemas individuais e orgânicos, deslocando-se para as barreiras impostas pelas sociedades. A partir da década de 1990, em articulação com os estudos feministas, as teorias raciais, os estudos decoloniais e com outros campos de estudos críticos e pós-críticos, os DS assumem novas perspectivas, levando em consideração as dimensões do cuidado, da interdependência, da interseccionalidade e da emancipação na compreensão da deficiência. A deficiência, até então pensada como uma tragédia particular, passa a ser vista como uma posição de diversidade corporal e funcional, como uma identidade social, cultural e política, como uma luta por garantia de direitos (Wuo et al., 2019). No âmbito dos estudos críticos do autismo, Jurecic (2007) e Tincani et al. (2009) reiteram que os DS contribuem para o desenvolvimento de práticas educacionais inclusivas, ao privilegiarem as múltiplas dimensões que compõem a vida do estudante e buscarem a participação dos diferentes atores envolvidos na educação de estudantes autistas – educadores, médicos, terapeutas, familiares –, além do reconhecimento da própria pessoa autista como participante de seu próprio processo de ensinar e aprender (Jurecic, 2007; Tincani et al., 2009). Para Sarrett (2018) e May (2017), os modos como a deficiência é concebida orientam as atitudes perante os estudantes autistas, podendo ora contribuir para sua inclusão, ora limitar sua participação e aprendizagem, em função de generalizações e visões estereotipadas que levam ao capacitismo.

No âmbito da educação, a concepção de deficiência que orienta o paradigma da neurodiversidade considera a multiplicidade dos modos de aprender nos diferentes sujeitos. Características como reconhecimento de padrões, processamento auditivo e cognitivo, interação social, formas de comunicação, regulação emocional e comportamentos físicos, estão diretamente relacionados aos modos como as pessoas neurodiversas desenvolvem novas habilidades e aprendem. Conhecer e compreender essas características, podem auxiliar os educadores nos processos educativos de pessoas com autismo (Armstrong, 2012b; Mackenzie et al., 2012) e neurodiversidades. Com isso, é possível resistir à hegemonia cultural e ideológica inerente ao poder político e econômico que circula no atual regime da verdade. A revisão sobre a concepção atual de deficiência pode contribuir para o desenvolvimento de novas teorias, práticas e políticas que reconheçam as diferenças como construções culturais e biológicas. Para que essas proposições se tornem presentes no contexto educacional, é necessária a elaboração de uma agenda pública de debates e discussões em diferentes esferas sociais, para que as legislações educacionais possam ser alteradas com base em uma reflexão mais abrangente do conceito de autismo, à luz do paradigma da neurodiversidade (Jurecic, 2007; Broderick & Ne’eman, 2008; Sarrett, 2018).

Em alguns dos trabalhos analisados, o autismo é definido como uma condição neurológica que faz parte central e integra a identidade cultural do indivíduo (Jurecic, 2007; Broderick & Ne’eman, 2008; Ehsan & Cardella, 2020). Esses estudos relatam que as características do autismo são frequentemente evidenciadas na primeira infância, como atipicidades na interação social e na comunicação, além da restrição e repetição de comportamentos restritos e repetitivos. Certas características do autismo estão relacionadas à capacidade de sistematização superior e à empatia diferenciada quando comparadas às dos neurotípicos. O autismo não afeta a mortalidade do indivíduo de forma alguma.

A explicação hegemônica do autismo, apresentada pelo Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, 5ª edição (DSM-5) (APA, 2013), é tensionada por autores de perspectiva crítica (Tincani et al., 2009; May, 2017; Machado et al., 2019; Wuo et al., 2019). De acordo com o DSM-5, o Transtorno do Espectro Autista (TEA) é definido como condição clínica ou patológica marcada por déficits na interação social e na linguagem. Utilizada como fonte de diagnóstico por profissionais da saúde, a definição do DSM-5 tende a padronizar os indivíduos, ocultando suas diferenças e subjetividades.

Com base em Canguilhem (2009), compreende-se que a ontologização do autismo, visto como entidade externa e maléfica que precisa ser eliminada, contribui para a estigmatização de pessoas autistas e o desenvolvimento de ações de normalização que limitam suas chances de vida. Alguns estudos relatam o sofrimento de pessoas autistas, com o passar dos anos, em razão das terapias comportamentais intensivas para treinar seus comportamentos de forma agressiva, buscando sua adequação aos comportamentos neurotípicos. A oferta de intervenções baseadas em evidências, particularmente em crianças pequenas, é o equivalente à coerção ou supressão de suas personalidades individuais (Broderick & Ne’eman, 2008; Tincani et al., 2009).

Os estudos críticos do autismo (CAS) buscam romper com o estatuto ontológico do autismo e compreendê-lo como uma rede de significados que se constrói a partir de suas múltiplas realidades. O autismo não é uma coisa, mas um debate sobre uma coisa (Davidson & Orsini, 2013; Chown, 2014). Em alguns dos estudos analisados, a neurodiversidade é definida como um conceito antropológico, que faz parte de um movimento social, político e acadêmico global. Com base nos CAS, os autores assumem que o cérebro possui variações neurológicas, tais como qualquer outra diferença humana (Machado et al., 2019; Wuo et al., 2019). Para Broderick e Ne'eman (2008), curar o autismo seria o mesmo que destruir sua identidade. Seria o mesmo que considerar o autista um alienígena doente, cujos pais e a sociedade deveriam responder com intervenções militares para evitar um possível contágio. Segundo Tincani et al. (2009), o autista não é deficiente, apenas neurologicamente diferente e o que se considera como déficits podem ser seus pontos fortes, a depender do ponto de vista.

Armstrong (2012b) e Clouder et al. (2020) afirmam que o termo neurodiversidade foi cunhado como um termo genérico, originalmente para definir o autismo em relação às suas várias condições neurológicas tradicionalmente patologizadas e associadas a um déficit. Mas o termo passou a incluir, além do autismo, a dispraxia, a dislexia, o transtorno de déficit de atenção e hiperatividade, a discalculia e a síndrome de Tourette. Para os autores, a neurodiversidade significa estar conectado de maneira diferente com o mundo, e não de uma maneira errada ou deficiente de ser.

Sob a bandeira da neurodiversidade, um grupo crescente de ativistas autistas demanda seu reconhecimento como identidades sociais e políticas. Os estudos de Jurecic (2007), Armstrong (2012b) e Mackenzie et al. (2012) relata que o movimento da neurodiversidade sinaliza para o mundo a libertação de uma prisão composta por expectativas negativas e o alcance de uma visão positiva acerca da pessoa autista. Nessa perspectiva, entende-se que ninguém é estritamente neurotípico, pois todos processamos informações neurológicas de modos diferentes.

Identificamos nos artigos a tendência à adoção do termo ‘estudante autista’, em vez de ‘estudantes com autismo’. De acordo com autores e ativistas do movimento da neurodiversidade, o uso da terminologia que adota a pessoa em primeiro lugar – pessoa com autismo, pessoa com TEA – leva à ontologização do autismo, compreendido como uma coisa ou um ser separado da pessoa. Por outro lado, o uso do termo ‘pessoa autista’ reconhece o indivíduo em sua totalidade, considerando o autismo como característica identitária, e não um atributo negativo, exteriorizado, que a pessoa carrega consigo (Sarrett, 2018; Fletcher-Watson & May, 2018).

Sarrett (2018) destaca a importância das questões identitárias nos estudos sobre o autismo, pois o desenvolvimento de uma identidade positiva em relação às neurodiversidades está associado ao sentimento de confiança que se apossa da pessoa quando esta se autodeclara autista, necessário para a garantia de direitos e serviços de acessibilidade na educação superior. Sarrett (2018) e Clouder et al. (2020) relatam que, na Educação Superior, ao vivenciar situações de estigmatização sobre o autismo em sala de aula, muitos estudantes autistas são desencorajados a autodeclarem sua condição. Segundo Goffman (1986, p. 38), a questão não é a manipulação da tensão gerada durante os contatos sociais, mas a manipulação da informação sobre as diferenças. Portanto, “exibi-lo ou ocultá-lo, contá-lo ou não contá-lo, revelá-lo ou escondê-lo, mentir ou não mentir, e, em cada caso, para quem, como, quando e onde”, relaciona-se ao estigma que se constrói a partir dos atributos pejorativos decorrentes dos estereótipos produzidos – neste caso, sobre o autismo.

O estudo de Wuo et al. (2019) evidencia que questões consideradas ‘prejuízos do autismo’, cujo impacto se faz sentir na escola, desconsideram os fatores de ordem social, como as barreiras pedagógicas, educacionais, comunicacionais e atitudinais no processo de escolarização dos estudantes autistas. As autoras ressaltam pesquisas que destacam que apesar dos limites que pessoas autistas apresentam, elas também possuem diversos talentos que propiciam sua aprendizagem escolar. Machado et al. (2019) ressaltam fatores como julgamentos estéticos, principalmente no âmbito da música e das artes visuais, bem como sua capacidade imaginativa para descrever acontecimentos e criar histórias com riquezas de detalhes.

Armstrong (2012b) preconiza que uma compressão das características comportamentais dos estudantes autistas é a melhor estratégia para evitar generalizações e desenvolver maneiras melhores de auxiliar o estudante autista. Para Jurecic (2007) e May (2017), é importante considerar que há modos particulares de comunicação entre pessoas neurodiversas, que se diferenciam das neurotípicas: piadas, ironias, sarcasmo e figuras de linguagem, largamente utilizadas na linguagem comum, nem sempre são compreendidas por pessoas autistas. O modo de ser e de se expressar do autista compõe sua identidade, marcada muitas vezes por sua dificuldade de manifestação em uma sociedade neurotípica. Sarrett (2018) assevera que, muitas vezes, o estudante autista não consegue expressar suas necessidades ou não sabe como defendê-las. Jurecic (2007), por sua vez, relata que certos grupos autistas preferem a comunicação escrita, utilizando uma lógica de prosa diferente, definida pela autora como uma escrita egocêntrica.

Clouder et al. (2020) afirmam que estudantes autistas sentem-se ansiosos ao interagir com outras pessoas e tendem a se isolar. Essa ansiedade social, medo da solidão, nervosismo e a falta de espaços livres de superestimulação são algumas das barreiras que estão relacionadas à socialização e aprendizagem de estudantes autistas. No estudo de Fletcher-Watson e May (2018), a sensibilidade auditiva e visual demonstra ser um fator pertinente à identidade autista. A pesquisa demonstrou que 50% dos estudantes autistas têm dificuldade em obter ou manter amizades, bem como em participar de eventos sociais, pelo fato de ocorrerem em locais barulhentos e aglomerados. Machado et al. (2019) relatam que muitos autistas usam brinquedos de agitação, porque produzem, de modo geral, um efeito de redução da ansiedade. Muitos autistas relatam que a agitação das mãos são uma experiência intensamente prazerosa. Ambas as pesquisas indicam que o processamento sensorial dos autistas apresentam algumas características em comum, com maior ou menor intensidade: (1) apreciação dos detalhes; (2) experiências sensoriais aguçadas; (3) conhecimento em domínios específicos; (4) facilidade em reconhecer padrões; (5) habilidades visuais específicas, que despertam interesses em artes visuais; (6) interesse por objetos inanimados.

De modo geral, as pesquisas mostram que as concepções hegemônicas do autismo, vinculadas ao modelo biomédico, evidenciam sua imagem negativa, orientando práticas e políticas educacionais que tendem à sua marginalização. As principais considerações a partir da análise dos dados dessa pesquisa foram: (1) a necessidade de criar uma imagem positiva do autismo, resistindo e transgredindo a imagem negativa; (2) a compreensão dos fatores que constroem uma representação desproporcional de pessoas neurodiversas; (3) a necessidade de evitar as generalizações sobre os estudantes autistas com base em preconceitos; (4) a importância do desenvolvimento de modos de acessibilidade que contribuam para o sucesso acadêmico de estudantes autistas com base em sua identidade; (5) a criação de ambientes que minimizem as imagens negativas e potencializem seus pontos fortes; (6) a formação de educadores que privilegie o conhecimento produzido sobre a identidade autista, reconhecendo os estereótipos ligados à noção de déficit decorrentes do modelo médico.

Os estudos aqui apresentados trazem uma perspectiva sobre o autismo que foge à concepção médica, comumente encontrada nos estudos educacionais sobre o tema. Notamos que as características presentes em pessoas autistas deixam de ser tratadas como déficits ou dificuldades e tornam-se parte da identidade autista. A qualificação positiva-negativa de tais características é acentuada conforme o ponto de vista, as atitudes e as ações educacionais realizadas. Compreender o autismo sob a perspectiva identitária contribui para o desenvolvimento de práticas e políticas educacionais anticapacitistas e a promoção da inclusão educacional dos diferentes públicos neurodiversos. Além disso, o estudo das formas de processamento de informações, com base no paradigma da neurodiversidade e dos CAS, evitam a estigmatização, a marginalização e a normalização de estudantes autistas nos diferentes meios acadêmicos (Kapp, 2020; Milton, 2013).

 

Acessibilidade

A acessibilidade é tema que perpassa os estudos sobre neurodiversidade e educação. Broderick e Ne’eman (2008), Tincani et al. (2009) e Sarrett (2018) declaram que melhorar o suporte educacional oferecido para os estudantes, bem como para suas famílias, pode aumentar a qualidade de vida de ambos. Entretanto, os autores discutem a qualidade desse suporte, uma vez que, por serem desenvolvidos sem a participação de pessoas autistas, os recursos de acessibilidade tendem a estar desalinhados com as necessidades dos estudantes.

Dentre os suportes identificados nos artigos, Sarrett (2018) sugere a adoção de recursos como mentoria, grupos de apoio e criação de espaços privados para acesso e aconselhamento. Quanto à mentoria, a autora recomenda que o mentor seja um outro estudante neurodiverso ou um professor capacitado, cuja função deve ir além das atribuições acadêmicas, a fim de que possa auxiliar o estudante em uma jornada de vida. Sarrett (2018) ressalta a importância dos espaços online para atendimento e interações, pois o autor cita pesquisas que indicam que alunos autistas preferem interações online a interações presenciais com mentores, colegas e entre si.

Os trabalhos analisados relatam que, na Educação Superior, a elaboração de programas de instrução individual, bem como a busca por métodos para ensinar aos estudantes as expectativas acadêmicas permite melhor comunicação dos estudantes acerca de suas próprias maneiras de saber. A imprevisibilidade dos programas impacta diretamente na gestão do tempo e na organização das atividades diárias de estudantes autistas (Jurecic, 2007; Sarrett, 2018; Fletcher-Watson & May, 2018).

As estratégias didáticas são consideradas recursos de acessibilidade educacional para estudantes autistas. O planejamento de aulas deve considerar as relações entre o particular e o geral, o concreto e o abstrato na construção dialógica dos conhecimentos. A diversidade de práticas pedagógicas no ensino – jogos, dramatizações, desenhos, canções e outras – contribui para a promoção da aprendizagem. A oferta de aulas e avaliações online também é citada como recurso que promove a acessibilidade da aprendizagem para estudantes autistas (Armstrong, 2012b; Mackenzie et al., 2012; Sarrett, 2018; Fletcher-Watson & May, 2018).

Os trabalhos também apresentam aspectos relacionados à organização física das instituições, como: salas de aula com diferentes formatos, para transmitir informações auditivas, táteis e visuais; redução de ruídos e mais suportes visuais; melhoria nas acomodações sensoriais e sociais; construção de lugares de fuga (espaços para a pessoa se retirar para não interagir com outros) com sinal de ocupado e fones de ouvido para redução de ruídos; uso de sociogramas (indicadores de interações positivas ou negativas), como crachás; tempo estendido para testes; prazo flexíveis para tarefas; intervalos entre as aulas; uso de tecnologia assistiva; flexibilidade na quantidade de créditos semestrais (Armstrong, 2012b; Sarrett, 2018; Fletcher-Watson & May, 2018).

Fletcher-Watson e May (2018) relatam que estudantes neurodiversos se beneficiam de abordagens de ensino interativas, atividades em grupo e intervenções com tutorias. A elaboração de uma programação participativa para a transição entre atividades, utilizando a mentoria, promove autoeficácia e desenvolve habilidades sociais em estudantes autistas. Um currículo inclusivo erradica potenciais barreiras no desenvolvimento acadêmicos dos estudantes. Nesse sentido, ressalta-se a importância do envolvimento dos profissionais da educação na gestão de um ambiente neurodiverso, bem como do desenvolvimento de habilidades e conhecimentos em todos os estudantes para o bom convívio em espaços que promovam o respeito às neurodiversidades. Para tanto, os autores destacam a importância da criação de atividades e eventos coletivos que possibilitem encontros entre estudantes neurotípicos, neurodiversos e seus familiares. O uso do stand-up comedy e do clown como ferramentas dramáticas para autistas é uma das possibilidades levantadas nos estudos de Mackenzie et al. (2012) e May (2017).

A oferta de serviços terapêuticos no espaço escolar é indicada como recurso de acessibilidade educacional nos estudos de Tincani et al. (2009) e Mackenzie et al. (2012). Contudo, as pesquisas ressaltam que as intervenções, principalmente na primeira infância, devem estimular habilidades em vez de coagir ou suprimir características individuais. O ensino estruturado e as terapias podem promover novas formas de comunicação e interação social, para que os estudantes atinjam seus verdadeiros potenciais (Tincani et al., 2009; Mackenzie et al., 2012).

O uso de tecnologias também aparece como um recurso de acessibilidade. A acessibilidade tecnológica não se limita ao uso de aplicativos ou equipamentos, abrangendo também tecnologias estruturais que contribuam para a criação de novas formas de organização do ambiente educacional, do currículo e do tempo escolar, voltadas à promoção da aprendizagem de estudante neurodiversos. Os estudos de Broderick e Ne'eman (2008) e Clouder et al. (2020) ressaltam que o acesso significativo às tecnologias de comunicação aumentativa e assistiva de forma autônoma ou facilitada são possibilidades de transformação do contexto educacional para o atendimento de estudantes neurodiversos. Os autores ressaltam que softwares auxiliares adicionais, como de transcrição, sistemas de leitura de textos, dispositivos de gravação (áudio e vídeo), bem como ferramentas para a construção de mapas mentais, dicionários interativos e perfis de usuários em roaming, podem contribuir para diversificar os processos de ensino.

Armstrong (2012b), Sarrett (2018) e Clouder et al. (2020) consideram que a utilização do Desenho Universal de Aprendizagem (DUA) pode contribuir para a remoção de barreiras às aprendizagens entre estudantes neurodiversos. A proposta é garantir um modelo que não se baseie em mudanças ou correções dos comportamentos do estudante, mas na criação de ambientes educacionais que correspondam aos diferentes estilos cognitivos.

Segundo Sebastián-Heredero (2020), o termo Desenho Universal de Aprendizagem foi cunhado a partir do conceito do Desenho Universal da Arquitetura e do Design de Produtos, e impulsionado nos anos de 1980 por Ronald Mace, da Universidade Estadual da Carolina do Norte. Seu objetivo é criar ferramentas e espaços físicos que possam ser utilizados pelo maior número de pessoas possíveis, como as rampas. Mas, além de focar na estrutura física, sua estratégia é analisar todos os aspectos da aprendizagem. Sua proposta foi elaborada por pesquisadores, neurocientistas e profissionais da educação, com o objetivo de proporcionar uma referência para entender os processos de elaboração de currículos que atendam às necessidades de todos os estudantes, minimizando barreiras presentes nos currículos atuais. O DUA sugere flexibilidade de objetivos, métodos, materiais e avaliações, permitindo que os educadores atendam a demandas diversas, a fim de fazer com que todos os estudantes se desenvolvam a partir de onde eles estão, e não de onde nós imaginamos que eles estejam. No estudo de Clouder et al. (2020), identificamos algumas propostas baseadas no DUA, como: instruções claras e em vários formatos; trabalho em grupo opcional; orientações de estudante para estudante; materiais de aprendizagem digitais flexíveis e acessíveis; abordagens de ensino variadas e flexíveis; gravação de todas as aulas; uso de tecnologias nas salas de aula, como laptops, canetas inteligentes e quadros multimídia; capacidade de acesso online para materiais de estudo com pelo menos um dia de antecedência da aula.

As mudanças nas práticas docentes, tendo como base as experiências dos estudantes neurodiversos, são indicadores de acessibilidade nos estudos de Jurecic (2007), Armstrong (2012b) e Tincani et al. (2009). Jurecic (2007) e Armstrong (2012b) também ressaltam que a ação docente deve partir do conhecimento sobre o estudante neurodiverso. Para Tincani et al. (2009), além de conhecer as concepções de deficiência, o professor também deve conhecer as diferentes culturas familiares dos estudantes. O diálogo entre educadores e familiares, bem como entre os educadores, buscando a partilha de saberes experiências, é destacado em Mackenzie et al. (2012). Sarrett (2018) também ressalta a necessidade de revisão nos materiais didáticos que abordam o autismo e outras neurodiversidades apenas pela perspectiva médica.

Wuo et al. (2019) refletem sobre os desafios na adoção de práticas pedagógicas inclusivas, a precariedade da formação docente e as concepções dos educadores sobre inclusão escolar. O professor é o participante principal nos processos que abordam as práticas pedagógicas, nas interações com o estudante, nas relações com a família, bem como nos processos de formação docente, na reestruturação das políticas educacionais e na construção de concepções sobre inclusão de estudantes autistas.

No âmbito das políticas educacionais, os investimentos financeiros que preveem a melhoria nos suportes aos estudantes, bem como às suas famílias e aos profissionais da educação, são considerados importantes recursos de acessibilidade (Mackenzie et al., 2012). As pesquisas relatam que a garantia de acessibilidade financeira depende do desenvolvimento de políticas educacionais que considerem a autonomia e a capacidade das pessoas autistas. Para tanto, é necessário rever as atuais concepções de diferença e deficiência, rompendo com as resistências à hegemonia cultural e ideológica que ilustram o poder político e econômico que circula no atual regime de verdade na sociedade. Explorar a batalha sobre o status de verdade e o papel político e econômico que ele desempenha é condição para se repensar a educação (Broderick & Ne'eman, 2008; Jurecic, 2007; Mackenzie et al., 2012).

Para Sarrett (2018), as leis e os decretos que promovem a garantia de direitos das pessoas com deficiência, inclusive as necessidades educacionais, precisam ser revistos, para que se possa melhorar a definição de seus termos, as formas de acesso e a distribuição financeira. O estudo de Broderick e Ne'eman (2008) defende que a melhoria na educação pública e no financiamento para estudantes com deficiência nos processos de transição educacional, bem como no apoio para vida no trabalho, ajudará a reduzir as dificuldades reais percebidas e impostas aos estudantes e às suas famílias. O trabalho de Mackenzie et al. (2012) ressalta que o poder público deve fornecer o suporte para o diagnóstico juntamente com a estrutura de saúde, educação e assistência social para as famílias, respeitando as opções de acesso, para que os serviços sejam adequados ao atendimento do estudante.

Nos artigos analisados, a ênfase dada à acessibilidade institucional no processo educacional, em contraposição aos obstáculos individuais, colabora para: a busca de (1) melhorias no suporte educacional para estudantes e suas famílias; (2) a elaboração de programas instrucionais e métodos diversificados de ensino; (3) o planejamento de aulas que atendam às necessidades dos estudantes; (4) as mudanças em estruturas físicas, flexibilização de horários, rotinas de estudos e formação de todos os profissionais que atuam nas instituições; (5) a participação ativa dos estudantes no planejamento e no desenvolvimento de ações que contribuam para sua permanência e aprendizagem.

 

Considerações finais

Nesta pesquisa, mostramos que, no âmbito da educação, a abordagem crítica do autismo é ainda escassa no Brasil e na América Latina, considerando-se os portais de busca e o período escolhidos para a pesquisa. Em âmbito internacional, a produção científica, embora ainda pequena, se comparada com estudos sobre autismo em outras perspectivas, é mais ampla e diversificada do que no cenário nacional. Dos 13 artigos analisados, apenas 2 foram publicados em periódicos nacionais.

A pesquisa revelou que o número de produções identificadas, embora ainda pequeno (13), mostra, mediante a análise aqui realizada, um campo de conhecimento em construção, que se articula com temas caros à educação, como ensino, aprendizagem, políticas educacionais, acessibilidade, entre outros. Destacamos também a diversidade de abordagens metodológicas e o foco característico dos estudos críticos na perspectiva de pessoas autistas.

Observamos que a variação dos tipos de pesquisa por ano indica o processo de um campo de conhecimento em construção. Inicialmente, estabelecendo-se os conceitos, confrontando-se teorias e definindo-se determinados modos de pensar. Uma vez que a teoria esteja consolidada, é possível realizar novas incursões metodológicas, buscando-se a aplicação de conceitos e teorias em determinadas realidades.

Na análise de nosso corpus, identificamos que o paradigma da neurodiversidade orienta-se pela noção de identidade autista e pela acessibilidade. A ênfase dada à potência de aprender das pessoas autistas e a busca por compreender sua realidade como uma diferença, e não como um déficit, rompem com a lógica capacitista e ontológica do modelo médico. Características como o humor, a escrita, a sociabilidade, a sensorialidade, o raciocínio lógico-matemático e a linguagem deixam de ser patologizadas, e as estratégias deixam de ser estandardizadas conforme modelos exclusivamente baseados em evidência. A pesquisa qualitativa e o olhar para as diferenças assumem lugar central nesses estudos, que buscam novas formas de construir uma educação que garanta ao outro, o diferente, uma infinidade de possibilidades de aprender e conviver. Nesse sentido, a educação de estudantes autistas, sob o prisma do paradigma da neurodiversidade, passa a ser pensada sob a ótica da acessibilidade e da criação de recursos próprios das instituições educacionais, com a participação dos estudantes no planejamento e na execução das ações. O deslocamento da busca por normalização, mediante métodos clínicos, para a ênfase na criação de recursos educacionais e institucionais, baseado na noção de identidade e neurodiversidade, contribui para uma nova ética da educação de pessoas autistas permeada por novas formas de compreensão e desenvolvimento de possibilidades educacionais, que buscam garantir o reconhecimento do estudante autista e de seus direitos educacionais.

 

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[i] Doutora em Educação: Psicologia da Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2009). Docente do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Regional de Blumenau (FURB).

[ii] Mestre em Educação pela FURB (2014). Doutorando em Educação pela FURB. Professor substituto da FURB.

[3] Don’t mourn for us’ no original.

[4] O Instituto para o Estudo de Pessoas Neurotípicas foi criado por ativistas autistas como uma paródia aos institutos voltados ao estudo do autismo (Blume, 1998).