Artigo
Narrativas de
professoras durante a pandemia: a modernidade/colonialidade
no sentir
Narrativas de docentes durante la pandemia:
modernidad/colonialidad en el sentir
Teachers' narratives during the pandemic:
modernity/coloniality in feeling
Nayara Stefanie
Mandarino Silva[i]
Universidade Federal do Paraná
Curitiba, PR, Brasil
https://orcid.org/0000-0002-4713-6242
Recebido em: 07/10/2022
Aceito em: 30/11/2022
Publicado
em: 05/12/2022
Linhas
Críticas | Periódico científico
da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília, Brasil
ISSN: 1516-4896 |
e-ISSN: 1981-0431
Volume 28, 2022 (jan-dez).
http://periodicos.unb.br/index.php/linhascriticas
Referência
completa (APA):
Silva, N. S. M. (2022). Narrativas de professoras durante a
pandemia: a modernidade/colonialidade no sentir. Linhas
Críticas, 28, e45347. https://doi.org/10.26512/lc28202245347
Link alternativo:
https://periodicos.unb.br/index.php/linhascriticas/article/view/45347
Licença Creative
Commons CC BY 4.0.
Resumo: Há pouca reflexão acerca das emoções em estudos
realizados sobre educação, aprendizagem e ensino (Zembylas,
2006), uma vez que a modernidade/colonialidade as nega como parte da produção de conhecimento. Neste texto,
destaco o período de fechamento das escolas devido à covid-19. Proponho como
objetivo analisar narrativas de professoras sobre os desdobramentos da
covid-19, com foco nas emoções descritas em diálogo com os estudos decoloniais. Nesta pesquisa narrativa de abordagem
qualitativa, as narrativas são analisadas a partir de estratégias de conexão.
Por fim, os resultados indicam relações entre as emoções, as noções
modernas/coloniais e os efeitos da pandemia.
Palavras-chave: Emoções. Professoras. Decolonialidade. Narrativas.
Resumen: Hay poca reflexión sobre las emociones en los estudios
realizados sobre educación, aprendizaje y enseñanza (Zembylas,
2006), ya que la modernidad/colonialidad las niega
como parte de la producción de conocimiento. En este texto, destaco el período
de cierre de escuelas debido al Covid-19. Propongo como objetivo analizar las
narrativas de los docentes sobre las consecuencias del Covid-19, centrándome en
las emociones descritas en diálogo con los estudios decoloniales. En esta
investigación narrativa con enfoque cualitativo, se analizan narrativas a partir
de estrategias de conexión. Finalmente, los resultados indican relaciones entre
las emociones, las nociones modernas/coloniales y los efectos de la pandemia.
Palabras
clave: Emociones. Maestras. Decolonialidad. Narrativas.
Abstract: There is little reflection on emotions in studies
carried out in the areas of education, learning, and teaching (Zembylas, 2006), given that modernity/coloniality denies
them as part of knowledge construction. In this text, I highlight the period of
school closures due to covid-19. I aim to analyze teachers' narratives about
the unfolding of Covid-19, focusing on the emotions described in dialogue with
decolonial studies. In this narrative research with a qualitative approach,
narratives are analyzed based on connection strategies. Finally, the results indicate
relationships between emotions, modern/colonial notions, and effects of the
pandemic.
Keywords: Emotions. Teachers. Decoloniality. Narratives.
Início de uma
história
De acordo com Grosfoguel (2007; 2016), a
construção de conhecimento a partir da filosofia moderna, baseada
principalmente nas ideias propostas por René Descartes, está centrada em um
indivíduo que, sendo objetivo e neutro, consegue alcançar a verdade.
Nesse sentido, Descartes defende o dualismo ontológico, segundo o qual a mente
está separada do corpo, sendo independente dele. Além disso, o método do
solipsismo poderia revelar o conhecimento supostamente verdadeiro, isto é, o
indivíduo, em um monólogo interior, pode alcançar essas certezas que explicam a
realidade.
Para Descartes, “a certeza do conhecimento só é possível na medida
em que se estabelece um ponto de observação inobservado, anterior à experiência
que, devido a sua estrutura matemática, não pode ser colocado sob dúvida”
(Castro-Gómez, 2007, p. 82, minha tradução). Com isso, o corpo, a localidade e
as emoções foram desconsideradas no processo de construção de conhecimento.
Consequentemente, uma razão descorporificada
foi estabelecida como válida e posta numa posição de destaque em uma hierarquia
que inferioriza e invisibiliza outras formas de ser/conhecer. Nesse processo,
as emoções perderam visibilidade em locais como a universidade e a escola,
sendo atribuídas a seres tidos como irracionais, como mulheres e pessoas
negras (Arias, 2010).
Ahmed (2014) observa que o modelo Darwiniano coloca as emoções
como um resquício do humano primitivo. Mais recentemente, elas são tidas como
ferramentas, meios para alcançar objetivos.
Essas noções têm reflexos nos estudos (não) sendo desenvolvidos,
que ignoram as emoções ou, no contexto da educação, as abordam com relação a
motivação, como obstáculos ou como uma dimensão a ser controlada no processo de
ensino-aprendizagem (Barcelos, 2015; Barcelos et al., 2022). bell hooks (1999) ainda lembra que, no contexto educacional,
professores e alunos são tidos como mentes descorporificadas.
Nesse sentido, os corpos e as emoções vêm sendo ignorados nesses cenários,
ainda que sejam uma parte importante dos processos educativos.
Com a emergência da covid-19, a necessidade do afastamento físico
e o consequente fechamento das escolas, as emoções dificilmente puderem ser
ignoradas, ainda que a maior parte das pesquisas sobre o assunto nas áreas de
Educação e Linguística Aplicada não os discuta, conforme um levantamento que
discutirei mais a frente neste texto.
Considerando a problemática proposta, delineio como problema a
pouca reflexão acerca das emoções em estudos realizados sobre educação, aprendizagem
e ensino (Zembylas, 2006), destacando aqui o período
de fechamento das escolas. Esse ponto é refletido no pouco número de estudos
sobre o assunto e revela a importância de retomar os corpos e suas emoções na
produção de conhecimento. Nesse sentido, proponho como objetivo analisar
narrativas de professoras sobre os desdobramentos da covid-19, com foco nas
emoções descritas em diálogo com os estudos decoloniais.
Parto destes estudos porque entendo que a colonialidade
constitui a escola e a nossa existência, além de marcar os modos como nos
relacionamos uns com os outros e com a natureza, atravessando, portanto, nosso
sentir. Além disso, ressalto que não objetivo criar generalizações com relação
às emoções de professores; volto-me, na verdade, a casos específicos e
situados, em um movimento de trazer corpos e emoções de volta às reflexões
sobre/na educação. Acredito que, para pensar uma educação diferente, é
necessário que olhemos para nossos corpos e sentimentos.
Emoções, pandemia e colonialidade
Em 1997, Schumann (1997)
aborda afeto[2]
e cognição a partir da neurobiologia, enfatizando a motivação de aprendizes de
línguas. Nesse sentido, as emoções parecem ser aspectos que se relacionam com o
sucesso ou fracasso no processo de aprendizagem e, por isso, é necessário
entendê-las para despertar emoções favoráveis à motivação dos estudantes.
Similarmente, Arnold e Brown (1999, como citado em Arnold, 2011, p. 11, minha
tradução) definem afeto como “aspectos da emoção, sentimento, humor ou atitude
que condiciona o comportamento”. Novamente, o afeto é entendido como podendo
ser positivo ou negativo para o sucesso do aprendizado. Arnold (2011) ainda faz
referência à hipótese de Stephen Krashen referente ao
“filtro afetivo”, que define as condições emocionais mais favoráveis ao sucesso
do aprendiz.
Muitos estudos, assim como os últimos
mencionados, trazem à tona as emoções tanto silenciadas em nome da razão
perante a lógica moderna/colonial; no entanto, o fazem reproduzindo essa mesma
lógica, pautando-se em dualidades (emoções negativas a serem evitadas e
positivas a serem encorajadas) e frequentemente centrando aspectos psicológicos
individuais[3]
– o que associo ao solipsismo comentado por Grosfoguel
(2016). Com a modernidade/colonialidade, a
mente/intelecto é o elemento mais importante e controla o corpo (e as emoções)
para determinados fins, tornando-o “uma coisa instrumental voltada a
proporcionar um dia produtivo de trabalho [e/ou estudos]” (Shahjahan,
2014, p. 494, minha tradução).
Além disso, as emoções, enquanto
associadas ao primitivismo (oposto ao modernismo), são frequentemente
atribuídas ao outro do moderno/colonial, uma vez que a “[…] razão tem lugar,
pois era e segue sendo euro-gringo-cêntrica; tem cor (ibid),
pois a razão é branca; e tem gênero pois é hegemonicamente masculina” (Arias,
2010, p. 114, minha tradução). Essa noção parece ser refletida nos estudos
sobre as emoções, que recorrentemente enfocam o outro - mulheres, imigrantes
etc. – (ver o levantamento de Benesch, 2012). No
entanto, ao mesmo tempo, estudar as emoções desse outro é necessário, uma vez
que elas são construídas – e, portanto, constituídas pela gramática
moderna/colonial. Nesse sentido, esse esforço de olhar para as emoções desses
corpos pode possibilitar a identificação da lógica moderna/colonial e abrir
espaço para contestação e ação política (Oliveira & Oliveira, 2022).
Benesch (2012) aponta
também abordagens socioculturais no que diz respeito às emoções, compartilhando
alguns estudos cujo foco se volta para docentes. Referindo-se a Ahmed (2014),
ela explica que muitas pesquisas nesse grupo estão alinhadas a uma perspectiva outside-in, ou seja, pautando-se na ideia de
que as emoções seguem o movimento de fora (social) para dentro (individual).
Ahmed (2014) sugere um caminho não dual
(social ou individual). As emoções são entendidas como relacionais e:
[…] criam o
próprio efeito das superfícies e fronteiras que nos permitem distinguir um inside [de dentro] e outside
[de fora] antes de tudo. Então, emoções não são simplesmente algo que “eu” ou
“nós” temos. Em vez disso, é através das emoções, ou como respondemos a objetos
e outros, que superfícies ou fronteiras são criadas: o “eu” e o “nós” são
moldados pelo, e até assumem a forma do, contato com outros. (Ahmed, 2014, p.
10, minha tradução)
Nesse sentido, emoções não são uma
propriedade que o indivíduo ou o coletivo possuem, algo a ser passado. E,
embora sejam relacionais, elas não são experienciadas da mesma forma por todas
as pessoas, estando sempre em tensão. Ahmed (2014), portanto, discute as
emoções em relação a objetos e corpos, sendo que elas movem por e aderem a eles
– ela propõe, então, o termo sticky (pegajoso,
em uma tradução livre).
Considerando a discussão de Ahmed (2014) e
estudos feministas, Benesch (2012, p. 44, minha
tradução) ressalta que as “[…] emoções são corporificadas (sensações e
sentimentos); elas estão sempre mudando (nós somos movidos), não são estáticas
ou monolíticas; e elas são socialmente construídas (nossa interpretação delas
podem depender das interpretações prévias de outros), não privadas, internas ou
cognitivas.”.
Similarmente, após um levantamento de
definições para emoções, Barcelos (2015, pp. 309-310, minha tradução) conclui
que elas são “[…] construídas discursivamente e vistas como processos, que são
moldados e moldam o contexto sociocultural. Como tal, elas são interativas,
dinâmicas e formam uma rede complexa”. Ahmed (2014) propõe ainda que elas são
políticas, explicando que a negação das intensidades das emoções no sistema
social possibilita a sua existência e as imposições de forma de ser.
Zembylas (2006),
também considerando uma perspectiva política, afirma que as relações de poder
atravessam a forma como experienciamos emoções, que são disciplinadas
por meio de regras emocionais. Estas limitam as possibilidades de ser de
docentes por negar possibilidades outras ao disciplinar corpos. No entanto, as
emoções podem gerar espaço para resistência política.
Pensando especificamente na educação, “as
emoções dos docentes são integradas a cultura, ideologia e relações de poder da
escola, por meio das quais certas regras emocionais são produzidas para
constituir as emoções e subjetividade dos professores” (Zembylas,
2006, p. 36, minha tradução). Nesse sentido, explorar as emoções de docentes e
discentes pode levar à identificação de como a modernidade/colonialidade
constituem nosso ser/sentir e como as regras e relações da/na escola
perpassam/são perpassadas por esses processos.
A partir de 2020, muitas escolas pararam
de funcionar presencialmente devido à covid-19, uma vez que docentes e
discentes poderiam ser vetores da doença (Arruda, 2020), no caso da
continuidade das atividades presenciais. Diante desse cenário, algumas escolas
adotaram o ensino remoto emergencial; outras, porém, seguiram com as atividades
interrompidas pelas limitações da desigualdade de acesso a tecnologias digitais
(Brasil, 2021).
No decorrer da pandemia, diversos estudos
vêm sendo realizados. Porém, poucos deles abordaram as emoções. Em um
levantamento realizado no Portal de Periódicos da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), com as palavras-chave
escola e covid-19, foram encontrados 42 resultados que abordam as implicações
da pandemia no ambiente escolar. Os textos foram agrupados por tema em:
Letramento midiático (1); Ação e política educacional (3); Cidadania global
(1); Currículo (1); Educação Especial e Inclusiva (1); Ensino remoto (4);
Formação de professores (4); Funcionamento da escola (4); Gestão escolar (3);
Impactos da pandemia (16); Materiais didáticos (1); Uso de tecnologias digitais
(3).
Não busquei realizar um levantamento
exaustivo, mas brevemente vislumbrar os focos dos estudos. A organização dos
grupos se deu pela ênfase da pesquisa, uma vez que os assuntos se entrelaçam.
Como indiquei acima, o grupo com mais textos foi Impactos da pandemia. No que
concerne às emoções, somente 6 dos 42 textos as abordaram diretamente de alguma
forma (Saraiva et al., 2020; Echarri et al., 2021; Gomes
& Machado, 2021; Elisondo & Barrera, 2022; Menezes & Gil, 2022; Paes & Fresquet, 2022), apesar de somente um deles (Echarri et al., 2021) discutir emoções como tema
principal.
Echarri et al. (2021) compartilham um
projeto realizado em um museu; seu propósito foi o de desenvolver nos alunos inteligência
emocional, para que pudessem administrar suas próprias emoções durante a
pandemia. Nesse sentido, as emoções são abordadas como algo a ser
controlado/administrado pela mente (razão), em acordo, portanto, com a
separação moderna/colonial.
As pesquisas
de Gomes e Machado (2021) e Paes e Fresquet (2022) mencionam emoções, embora elas não
sejam exploradas, decorrentes das incertezas da pandemia, como a preocupação, a
saudade e a ansiedade, ressaltando a importância da escola como um ambiente
acolhedor e amoroso. Similarmente, apesar de não ser o foco do estudo, Elisondo e Barrera (2022) apontam
emoções predominantes nos discentes, que se sentiram sobrecarregados,
estressados, frustrados, ansiosos, angustiados, desamparados, confusos,
desmotivados e isolados.
Saraiva et al.
(2020, p. 17) exploram especificamente a exaustão dos professores, chegando à
conclusão de que “a docência nos tempos de pandemia é uma docência exausta,
ansiosa e preocupada”. As autoras ainda apontam que mecanismos
disciplinares vêm sendo reforçados, com a ênfase em conteúdos disciplinares e a
vigia constante aos docentes e discentes. Elas destacam também a desigualdade
de acesso a tecnologias digitais e os impactos nas relações de professores com
o tempo, uma vez que as demandas são de que estejam sempre disponíveis para
estar em contato com alunos e familiares.
Com a necessidade de fechar as escolas,
houve uma busca por soluções. O uso das tecnologias, então, surgiu como uma
forte possibilidade de continuar atividades escolares. No entanto, como afirmam
Williamson et al. (2020), há interesses mercadológicos na indústria das
tecnologias educacionais, cujos atores veem na crise uma oportunidade de
negócios. Em outras palavras, algumas empresas podem ver o ensino remoto “como
um protótipo rápido de educação como um serviço privado e uma oportunidade de recentralizar sistemas decentralizados por meio de
plataformas” (Williamson et al., 2020, p. 109, minha tradução). O
neoliberalismo, nesse sentido, enfatiza o acúmulo de capital, aproveitando-se,
inclusive, de momentos de crise. Essa lógica individualista, quantificadora e
hierárquica perpassa as relações com/na escola.
O neoliberalismo resulta do capitalismo,
cuja existência se deve à colonialidade. Quijano (2000) explica que o capital e o mercado passaram a
ser centrais na articulação em volta do trabalho (e da exploração), com a raça
sendo a categoria na qual as relações de inferioridade e superioridade se
articulam. A divisão do trabalho e distribuição de recursos, portanto, partem
desse critério – o que levou à concentração de recursos na Europa. Considerando
esse processo histórico, a distribuição de recursos é desigual, podendo ser
constatada em comparações internas (dentro de um país) e externas (entrepaíses).
A pandemia evidenciou essa desigualdade de
diversas maneiras. No caso da educação, ela foi discutida quando a opção de
adotar tecnologias digitais no ensino foi considerada e, em muitos casos,
concretizada, tanto com a falta de acesso total quanto com a ausência da
possibilidade de acesso de qualidade (Arruda, 2020; Williamson et al., 2020)
por muitas pessoas.
Uma série de emoções decorrem desse
momento, considerando-se essas questões. Entendo que muitas delas são
constituídas pela colonialidade/modernidade. Abordo
aqui alguns pontos principais para dar suporte a esse argumento. Apesar de
explicar noções coloniais e então apontar emoções que podem emergir, não quero
afirmar que as emoções resultam do problema em questão, pois compreendo que os
limites entre emoções como causa ou consequência não estão bem definidos. Penso,
nesse sentido, que elas são ambos ao mesmo tempo.
A modernidade/colonialidade
se pauta na ideia de linearidade, havendo a ideia de um ponto de partida e um
ponto de chegada. Essa lógica constitui, inclusive, nossa noção de tempo. A
partir da ideia de que existe um passado, primitivo, e um caminho em linha reta
a ser seguido em direção ao progresso, a Europa, especialmente, se tornou esse
ponto de chegada, simbolizando o desenvolvimento (Mignolo,
2011). Diante disso, o tempo é visto como algo a ser utilizado ou perdido a fim
de alcançar o objetivo, a chegada. Na escola, esse ponto se refere à totalidade
de conhecimentos que o aluno adquire (de forma linear, progressiva, do mais fácil
ao mais difícil), os quais são separados em partes menores (disciplinas,
unidades, conteúdos). Em acordo com a noção moderna/colonial de que o todo deve
ser dividido em partes e reorganizado a partir de uma lógica matemática para
ser compreendido (Castro-Gómez, 2007). Com a pandemia, fica a sensação de que
tempo está sendo perdido e o conteúdo que o aluno deveria saber (para
progredir) não está sendo ensinado. Portanto, emoções como a ansiedade, a
culpa, e a preocupação, em razão da sensação de estar ficando para trás
emergem e nos levam a querer manter o sistema em funcionamento e seguir em
frente (dentro da linearidade em questão).
Além disso, a modernidade/colonialidade oferece uma série de garantias: você pode ser
feliz, alcançar estabilidade e segurança, se seguir as regras do sistema e
conquistar tudo isso com seu esforço individual (meritocracia). Nesse sentido,
a felicidade fica ligada ao desenvolvimento econômico e a uma série de ações
que um indivíduo deve realizar para ser digno de tal sentimento (Ahmed,
2010). A defesa da felicidade, como explica Ahmed (2010), passa a ser uma
justificativa para os mais diversos atos e ataques. Eu acrescentaria que isso
também se aplica a outras “garantias” da modernidade/colonialidade,
como as já mencionadas estabilidade e segurança – as quais vejo como também
relacionadas à construção discursiva da felicidade. O outro lado dessas
promessas é a exploração da natureza e de outros seres humanos e não humanos,
em um processo inerentemente violento (Quijano, 2000;
Cajigas-Rotundo,
2007). Considerando especificamente a escola, a promessa é de “um sistema de
conhecimento universalmente único e relevante que oferece certeza,
previsibilidade, consenso” (Stein & Silva, 2020, p. 552, minha tradução),
em um ambiente em que há um determinado grau de controle. A pandemia e seus
impactos nesse contexto revelaram (e ampliaram) a instabilidade, as incertezas
e a impossibilidade de controle completo, o que também pode desencadear as
emoções apontadas nas pesquisas mencionadas (Saraiva et al., 2020; Echarri et
al., 2021; Gomes & Machado, 2021; Elisondo & Barrera, 2022; Menezes & Gil, 2022; Paes & Fresquet, 2022).
Nas narrativas discutidas neste texto,
serão exploradas as emoções de professoras diante do isolamento físico e
decorrente fechamento das escolas, com a adoção do ensino remoto emergencial.
Antes de seguir com a análise, porém, apresento os caminhos metodológicos que
percorri na realização desta pesquisa.
Caminhos metodológicos
Tendo em vista meu objetivo de analisar
narrativas de professoras sobre os desdobramentos da covid-19, com foco nas
emoções descritas, esta pesquisa segue uma abordagem qualitativa. Em acordo com
Phakiti e Paltridge (2015),
com essa abordagem, não há a busca por controlar o contexto da pesquisa, além
de o envolvimento da pesquisadora ser compreendido como parte da investigação.
Entendo também que as leituras são múltiplas e localizadas (Ferreira et al.,
2002); por isso, não busco revelar uma “verdade” por trás do material empírico
da pesquisa. Dialogo com as narrativas, compreendendo
que minhas interpretações são igualmente locais e, portanto, não são universais
ou generalizáveis.
Além disso, trata-se de uma pesquisa
narrativa, que, de acordo com Barkhuizen (2016, p. 4,
minha tradução), refere-se a “uma maneira de fazer pesquisa que foca nas
histórias que contamos sobre nossas vidas. Essas histórias são sobre nossas
experiências de vida; o significado que construímos dos eventos que vivemos ou
imaginamos em nossas vidas futuras”. Em outras palavras, as narrativas refletem
como processamos acontecimentos e as sensações que eles nos despertam. No
contexto do ensino e aprendizagem, essas histórias concernem as experiências
vividas e imaginadas de professores e alunos (Barkhuizen,
2014). Portanto, considerando meu objetivo de explorar as emoções de
professoras no contexto da pandemia, entendo as narrativas como um caminho
apropriado a seguir.
A pesquisa narrativa vem sendo usada para
pensar a escola, a educação e a formação de professores em diversos estudos brasileiros,
entre os quais destaco: Murta et al. (2020), que enfatizam as narrativas como
forma de ouvir vozes marginalizadas; Ferreira e Bengezen
(2020), Mariani e Monteiro (2016), Nascimento e Henriques (2021), Ponciano e
Lima (2021) e Reisdoefer e Lima (2021), que compreendem
esse tipo de pesquisa como uma possibilidade para (re)pensar
a formação docente e a educação de diferentes perspectivas; além de Lopes et
al. (2017), que defendem a pesquisa narrativa como forma de resistência a algumas
políticas educativas.
Assim como as pesquisas mencionadas
anteriormente, não vejo as narrativas como somente um instrumento de geração de
dados a partir dos quais posso encontrar uma verdadeira história – como
praticado convencionalmente em muitas pesquisas (Webster & Mertova, 2007). Diferentemente, compreendo que elas
ressaltam as múltiplas leituras (e emoções) relacionados a um evento,
destacando a situacionalidade de cada experiência.
Nesse sentido, abordo as narrativas como intrinsicamente ligadas ao contexto (Barkhuizen, 2014): a covid-19, causando o isolamento físico
e o fechamento das escolas, que levou à adoção do ensino remoto emergencial; e
a modernidade/colonialidade que nos constitui e
perpassa nosso narrar e sentir.
No que diz respeito a geração de material
empírico, fiz um levantamento na rede social Instagram, buscando perfis que
postassem narrativas de professores dentro do período da pandemia (de 2020 ao
momento de escrita deste texto – setembro de 2022). Utilizei, para tanto, as
palavras-chave: professores, narrativas, pandemia e covid-19, tanto
separadamente quanto combinadas de diferentes maneiras. Uma conta foi
selecionada, a qual não revelarei para preservar a identidade das pessoas que
escreveram as narrativas, uma vez que, em muitos casos, suas contas estão
marcadas nas publicações enquanto em outros foram usados nomes fictícios a
pedido dos autores. Essa decisão foi atravessada por conflitos e complexidades,
pois considerei que poderia ser cobrado que o perfil fosse revelado como uma
garantia de que o material empírico realmente foi encontrado nesse local
virtual. Por outro lado, ao expor a conta, eu estaria também expondo as autoras
das narrativas cujas contas estavam marcadas nas postagens. Acabei decidindo
proteger as identidades das narradoras, apesar de os textos terem sido
divulgados de forma aberta ao público.
O objetivo da conta no Instagram era
justamente o de disseminar narrativas de professores. O projeto teve início em
2020, mas acabou passando a explorar não somente questões relacionadas a
pandemia. Foram selecionados 17 textos de diferentes professoras que evidenciavam
emoções de forma explícita; todos eles, coincidentemente, foram escritos por
mulheres. Para me referir a cada um deles, uso números de 1 a 17.
Considerando as questões de ética (Celani, 2005), além de optar por não revelar o usuário da
conta ou usar os nomes das autoras para preservar suas identidades, pedi
autorização para usar as narrativas nesta pesquisa, pois, apesar de serem
textos públicos, disponíveis on-line, entendo que eles não foram escritos para
fins acadêmicos.
No que diz respeito à análise dos textos,
utilizei estratégias de conexão, as quais exploram relações, tendo em vista que
foco nas emoções enquanto relacionadas ao contexto pandêmico e à modernidade/colonialidade. Esse tipo de estratégia, com foco em
relações de contiguidade, “envolve a justaposição no tempo e espaço, a
influência de uma coisa sobre outra ou relações entre partes do texto; sua
identificação envolve realmente ver conexões entre as coisas, em vez de
similaridades e diferenças” (Maxwell & Miller, 2008, p. 462, minha
tradução). Optei, dessa maneira, por destacar, no processo de análise, em
diversas cores as partes das narrativas referentes a emoções que se conectavam
a um aspecto do contexto e alguma noção moderna/colonial, o que me levou a
criação de grupos. Por isso, no tópico seguinte, organizo a análise em tópicos
que concernem relações específicas que construí com base nas minhas leituras
das narrativas.
Emoções em narrativas
Neste tópico, discuto as narrativas a
partir de alguns grupos, pensados a partir das relações com o contexto, com a
modernidade/colonialidade e entre partes da história.
Explorar essas relações, no entanto, não significa dizer que as emoções estão
relacionadas apenas à modernidade/colonialidade.
Essa afirmação simplificaria algo que é complexo; minha busca, diferentemente,
é por complexificar as emoções. Os sentimentos, na verdade, existem para além
dessa modernidade/colonialidade.
Na análise, surgiram os seguintes grupos:
em busca do avanço por meio de um caminho linear; preocupação com a volta: dá
para recuperar o progresso?; lidando com o inesperado,
medo e ausência de controle; todo tempo é útil? todo o trabalho é trabalho?;
afetividade e saudade: lembranças da escola; e partilhar as aflições no
caminho.
Em busca do avanço por meio de um caminho linear
Em uma das narrativas (Narrativa 6), a
autora pensa em como a palavra cair passou a significar algo diferente com
o formato remoto. Primeiro, ela destaca que o emocional se tornou mais evidente
- o que aparece também em outras narrativas. Como explica
Louro (2000), o corpo (e acrescento as emoções) foi desconsiderado na
escola por muito tempo, sendo lembrado apenas para fins disciplinares. O foco
na mente e o entendimento do corpo como algo a ser disciplinado/controlado reflete
a divisão moderna/colonial entre mente e corpo, com ênfase na primeira
(Maldonado-Torres, 2007a). Com a covid-19, as emoções passaram a ser uma
preocupação, uma vez que se trata de um momento marcado por perdas, mudanças e
sentimentos intensos.
Narrativa 6: o
que vejo é o físico dando lugar ao emocional […] “Cair da aula” simboliza,
de um jeito icônico, a nossa fragilidade diante das limitações dos recursos
tecnológicos – ou da total falta deles. A mim, parece
demostrar o quanto ainda temos que avançar para ter suporte e redes que não
nos deixem “travados”, que não nos deixem “cair”. O cair, no ensino
remoto, tem outro tipo de prejuízo e desconforto. Faz perder o fio do
raciocínio, desconcentra todo o grupo, desanima, desmotiva. (Excerto da
Narrativa 6, parte do conjunto de material empírico, meus destaques)[4]
A autora segue com a ideia de que ficamos
frágeis ao precisar das tecnologias e que é necessário que elas avancem para
garantir a estabilidade da conexão. Entendo que aqui há a busca pelo progresso
(avanço), que levaria ao cumprimento da promessa moderna/colonial de
estabilidade – a qual, de acordo com Mignolo (2011),
foi inclusive um dos pilares da sociedade europeia, após a Guerra dos Trinta
Anos. O não cumprimento dessa promessa pelas tecnologias (que acaba sendo
projetado para um futuro imaginado), alinhado à interrupção da linearidade, se
relaciona ao desconforto, ao desanimo, à falta de motivação.
Preocupação com a volta: dá para recuperar
o progresso?
Em uma outra narrativa, a professora
relata a sua preocupação com o retorno das aulas após o período de isolamento
físico. Essa preocupação se relaciona com a possibilidade de “rever o que foi
mal planejado” (Narrativa 2).
Narrativa 2:
Desde o primeiro momento em foi anunciada a possibilidade de um retorno
presencial escalonado, preocupei-me em colaborar com o plano da volta às
atividades na escola de Educação Infantil da qual faço parte. Esboçar um
retorno das crianças aos espaços da Educação Infantil pode ser visto como
possibilidade de rever o que foi mal planejado.
(Excerto da Narrativa 2, parte do conjunto de material empírico, meus
destaques)
É recorrente que a educação remota
emergencial seja discutida como diferente da educação à distância, pois não
conta com planejamento cuidadoso (Arruda, 2020; Hodges
et al., 2020). Nesse sentido, ela acaba dificultando o cumprimento das
exigências de conteúdo para o ano letivo. Partes do conhecimento (Castro-Gómez,
2007) não são trabalhadas e é como se os alunos fossem ficar prejudicados
porque não somente a linearidade não foi seguida, mas os componentes necessários
para a completude do conhecimento não foram ensinadas/aprendidas.
Então, a preocupação que fica é a de recuperar o progresso interrompido. Essa
emoção pode estar relacionada tanto à sensação de que os discentes estão sendo
prejudicados e que algo deve ser feito para mudar a situação quanto às pressões
externas (cobranças) que visam ao funcionamento escolar, enquanto instituição
moderna/colonial.
Lidando com o inesperado, medo e ausência
de controle
Em seis narrativas, emoções como medo
(Narrativas 4, 5, 9 e 14), desânimo (Narrativa 8), insegurança (Narrativa 5),
ansiedade (Narrativa 11) e culpa (Narrativa 8) aparecem ligadas ao inesperado,
à falta de preparação para lidar com o momento (causado pela covid-19) e à
sensação de ausência de controle, especialmente no que diz respeito ao que os
alunos estão (ou não) fazendo diante das atividades propostas.
A questão do controle (e da possibilidade
de prever e se preparar para algo) perpassa nossas relações não somente entre
seres humanos, mas com o mundo e outros seres. Como explica Maldonado-Torres
(2007b, p. 145, minha tradução):
[…] a partir
de Descartes, a dúvida com respeito a humanidade de outros se converte em uma
certeza, que se baseia na alegada falta de razão ou pensamento nos colonizados/racializados. Descartes fornece à modernidade os dualismos
mente/corpo e mente/matéria, que servem de base para: 1) converter a natureza e
o corpo em objetos de conhecimento e controle.
Nesse sentido, a partir do conhecimento verdadeiro
do qual tudo que é outro é objeto, seria possível prever, entender e controlar.
O sujeito moderno/colonial usando sua mente/razão poderia, portanto, exercer
controle em diversos âmbitos, começando por si mesmo: suas emoções, seu corpo,
seu tempo. Na escola, especificamente, há a ideia de que é possível ter algum
controle sob o processo de aprendizagem por meio do planejamento, da preparação
para tudo e da vigilância para que os passos pensados estejam sendo cumpridos.
Com a covid-19, a sensação de poder planejar e estar preparado para algo deu
lugar à instabilidade, imprevisibilidade e, com isso, o medo e a insegurança.
Devido ao pouco espaço, reproduzo aqui
trechos de duas narrativas. A Narrativa 4 evidencia essas questões, com a
professora explicando que, em vez das práticas familiares da escola, ela
precisa lidar com algo inédito (para o qual não houve preparação), enfrentando
seus medos. Não ter retorno com relação às atividades que ela propõe é colocado
como uma dificuldade. No entanto, ela aponta que esse retorno acontece, mas de
forma diferente do esperado, de modo alinear no decorrer do ano.
Narrativa 4:
estou exercendo a formação de forma inédita, como todos os professores, enfrentando
medos e, muitas vezes, encarando também a rejeição por parte de algumas
famílias, além da ausência dos métodos e propostas próprias da escola, já
tão familiares. […] Enfatizo que é uma dificuldade ficar sem retorno das
famílias sobre a forma como as propostas estavam sendo realizadas, embora eu
tenha perguntado se estavam de fácil compreensão, se estavam dentro de suas
possibilidades, tenha tentado explicar com escrita simples, com imagens,
colocando vários exemplos, diversos materiais para a mesma proposta. Muitas
vezes, ficamos às cegas em relação ao que está sendo de fato realizado em
casa. […] No entanto, percebo que o retorno aconteceu de outras maneiras,
pois as crianças falaram sobre suas emoções, seus sentimentos, enviaram
áudios, e vídeos para mim, não no momento daquela “tarefa”, mas no decorrer do
ano letivo. (Excerto da Narrativa 4, parte do conjunto de material
empírico, meus destaques)
Similarmente, a Narrativa 14 demonstra o
medo emergente da sensação de não poder exercer algum controle sobre o processo
de aprendizagem, de não saber se “estão dialogando com aquilo que você deseja”
(Excerto da Narrativa 14, parte do conjunto de material empírico).
Todo tempo é útil? Todo o trabalho é
trabalho?
Nesse caso, o tempo (em seu entendimento
moderno/colonial) se relaciona ao 1) cansaço das docentes e 2) à culpa, ao medo
e à preocupação com relação ao estado emocional dos alunos.
De acordo com Shahjahan
(2014, p. 492, minha tradução), a noção de tempo moderna/colonial em pauta é
“linear, constante e irreversível”, com a possibilidade de desperdício, uma vez
que está separado do corpo. Na lógica neoliberal, o tempo se torna uma commodity
em escassez, pois deve ser aproveitado completamente para produção, com tarefas
úteis.
Em oito narrativas, as relações com o
tempo, nos termos da modernidade/colonialidade,
revelam a busca por usar esse tempo de forma útil, respondendo às
demandas do trabalho, o que leva ao cansaço, já que, diante da escassez de
tempo, são sacrificadas as ações voltadas ao nosso corpo – como o descanso e a
preguiça (Shahjahan, 2014). Essa relação é ainda mais
tensionada no caso das mulheres, como mostra o trecho da Narrativa 17, uma vez
que o trabalho doméstico (frequentemente atribuído a nós na sociedade
patriarcal, moderna/colonial) não considerado útil é acumulado às
demandas recorrentes e urgentes emergentes com o home office.
Narrativa 1:
Estamos em 2020, a escola está fechada e as crianças estão em casa. Nós,
professores, estamos exaustos. Trabalhamos por horas. Os grupos dos
aplicativos fervilham mensagens, a vida parece urgente ao tempo em que fomos
obrigados a parar (Excerto da Narrativa 1, parte do conjunto de material
empírico, meus destaques).
Narrativa 17:
O stress me domina. Acumular funções docentes em “home office” com as
demandas da casa em “office home” parece ressaltar minha incompetência como
profissional, mãe e mulher. (Excerto da Narrativa 17, parte do conjunto de
material empírico, meus destaques)
Narrativa 8:
Há dias em que sair da cama é difícil. Realizar as tarefas escolares já não tem
o mesmo prazer de antes. Não sou eu a única a estar nessa situação. Colegas
“choram” nos grupos de conversa. Falas descompensadas são sentidas nas reuniões
remotas. Assim como parece que a carga está muito mais pesada para nós,
professores, nossos alunos também estão passando por uma descarga emocional
enorme. E, diante dessa sensação, somos o “porto seguro” para eles.
[…] Escolhi me manter disponível e em contato diário com eles via
mensagem ou ligações, muitas vezes até fora do horário de expediente, mas
priorizando o contato individual. Temi criar nova fonte de exclusão.
(Excerto da Narrativa 8, parte do conjunto de material empírico, meus
destaques)
Além do cansaço e do estresse, as
narrativas revelam uma preocupação com o emocional dos alunos, um senso de
responsabilidade pelas emoções e progresso dos discentes, como evidenciado pela
Narrativa 8, considerando tanto o impacto emocional da covid-19 quanto as
questões relacionadas a desigualdade de acesso a tecnologias. Com isso, todo o
tempo desses professores é mobilizado para que estejam disponíveis para os
discentes, tanto tirando dúvidas como ajudando-os a processar suas próprias
emoções. Nesse caso, o que Arlie Hochschild
denominou emotion work
foi intensificado. Emotion work refere-se às demandas emocionais de um emprego,
que são socialmente mediadas, com esforços por parte do trabalhador para
administrar tanto suas próprias emoções quanto as dos seus
colegas/clientes/alunos (Benesch, 2012). Com a covid-19
e a intensificação de emoções, além de precisarem se esforçar mais na tentativa
de controlar seus sentimentos, os docentes se viram diante da necessidade de
auxiliar os alunos no processo de lidar com suas emoções, sendo seu porto
seguro. Como uma parte do trabalho frequentemente não reconhecida, o emotion work
contribui com o cansaço dos professores e com ansiedade de não ter tempo
suficiente para estar disponível para todos.
Afetividade e saudade: lembranças da
escola
Sete narrativas abordam a saudade da
escola, caracterizada como local de vínculos e afetos. Apesar de a afetividade
ser preterida com a modernidade/colonialidade para
dar lugar ao foco completo na mente/razão, as autoras da narrativa lembram como
a escola é um lugar em que vínculos se formam e momentos de afeto são
compartilhados.
Narrativa 1:
só uma coisa não muda: a afetividade que inunda a sala de aula e
as lembranças que a escola pode produzir em nossa trajetória e na vida das
nossas crianças. […] estou fazendo uma opção nesse momento, por compartilhar
boas lembranças – as doces pipocas de aprendizado e afeto […]. Quanta
saudade eu tenho de estar com as crianças! (Excerto da Narrativa 1, parte
do conjunto de material empírico, meus destaques)
Narrativa 7: O
distanciamento me faz supor que nesse momento, depois de tantos dias, de tantas
mudanças e muitas incertezas saber que se pode contar com o olhar atento e
carinhoso de pessoas que estão fisicamente distantes pode ser mais
importante que uma organização de horários de atividades ou a cobrança por
lições realizadas. (Excerto da Narrativa 7, parte do conjunto de material
empírico, meus destaques)
Embora a maioria das narrativas fale do
encontro físico na escola, o qual é lembrado com saudade, dada a interrupção
pela covid-19, há os casos em que as autoras falam da manutenção e da criação
de vínculos sensíveis e afetuosos, ainda que os corpos estejam distantes
fisicamente, como mostra o excerto da Narrativa 7.
Acredito que o movimento de trazer as
emoções para a escola e a construção de conhecimentos é importante no processo
de transformar esse espaço e abrir caminhos para imaginarmos uma escola otherwise (Escobar, 2007), paradigmas outros, não
constituídos pela modernidade/colonialidade.
Partilhar as aflições no caminho
Três narrativas ressaltaram a importância
de partilhar com os colegas e de caminhar junto, embora não se saiba para onde.
Nesse sentido, para navegar em meio à onda de insegurança, medo e instabilidade
trazida à tona pela covid-19, a união com os pares é uma possibilidade.
Narrativa 10:
Entre lives e encontros on-line, poder partilhar
com outros docentes as angustias e algumas alegres descobertas desse
momento nos encoraja a seguir […] Uma das professoras usou a metáfora de
estarmos atravessando uma ponte, sem saber o que terá do outro lado. Sabemos,
no entento, quem está de mãos dadas, atravessando
conosco. E isso importa. (Excerto da Narrativa 10, parte do conjunto de
material empírico, meus destaques)
Narrativa 14:
o medo estava / está li, mas não pode nos mobilizar. O medo tem que
impulsionar cada vez mais novas certezas e, ao partilhar dessa aflição
com os meus pares, fomos nos fortalecendo e buscando caminhos, apoiadas nas
próprias habilidades e inspirando umas às outras. (Excerto da Narrativa 14,
parte do conjunto de material empírico, meus destaques)
Dessa maneira, diante das emoções
relacionadas à covid-19 e à modernidade/colonialidade,
parece ter sido preciso recuperar a sensibilidade e se afastar dos princípios
de hierarquização e competitividade modernos/coloniais para dar lugar a
afetividade e colaboração. Com isso, foram sendo abertos “espaços para Corazonar a partir da insurgência da ternura, que
permitam colocar o coração como princípio do humano, sem que isso signifique
ter que renunciar à razão, pois se trata de dar afetividade à inteligência” (Arias,
2010, p. 116, minha tradução).
Um desfecho para
outros começos
Neste artigo, analiso narrativas de
professoras, com foco nas emoções e suas relações com a pandemia, causada pela
covid-19, e as noções modernas/coloniais. A partir de estratégias de conexão,
construí grupos: em busca do avanço por meio de um caminho linear, no
qual a instabilidade (de conexão via tecnologias digitais) é associada ao
desconforto diante da promessa moderna/colonial de estabilidade; preocupação
com a volta: dá para recuperar o progresso?, incluindo a preocupação
relacionada a busca pelo desenvolvimento do aluno com base na ideia de
progresso linear e total da modernidade/colonialidade;
lidando com o inesperado, medo e ausência de controle, nesse caso,
emoções como medo e insegurança emergem em um processo que revela a
instabilidade e a ausência de controle, contrariando as promessas
modernas/coloniais; todo tempo é útil? todo o trabalho é trabalho?, no
qual o cansaço é intensificado com a colonialidade do
tempo, o qual é mobilizado em tarefas consideradas úteis e entra em conflito com
as atividades não reconhecidas, como as da esfera doméstica, havendo também
aumento dos esforços relacionados ao emotion
work; afetividade e saudade: lembranças da
escola, o qual revela a compreensão da escola como um lugar perpassado por
afeto, que gera saudades, mas que continua sendo um espaço de estabelecimento
de laços, ainda que virtualmente; e, por fim, partilhar as aflições no
caminho, que também ressalta a afetividade e a importância das parcerias
para caminhar em direção a um lugar incerto.
Nesse sentido, as emoções de desconforto,
ansiedade, medo etc. reportadas em outras pesquisas (Saraiva et al., 2020;
Gomes & Machado, 2021; Elisondo & Barrera, 2022; Paes & Fresquet,
2022) também perpassam as narrativas discutidas neste texto, sendo, no entanto,
relacionados não somente ao contexto da covid-19, mas também à modernidade/colonialidade. Além disso, são narradas emoções como
saudade e admiração, havendo destaque para a importância dos vínculos e
parcerias, o que indica a afetividade ou, nos termos de Arias (2010), o corazonar como uma possibilidade de fortalecimento
coletivo no caminho em direção ao desconhecido e inimaginável.
Pensar as emoções como relacionadas à
modernidade/colonialidade nos possibilita aprender
com todas elas, especialmente as mais desconfortáveis. Esse é também um
movimento de as trazer de volta à construção de conhecimento e questionar a
separação colonial de mente/razão e corpo/emoção.
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[2] Entendo emoção e afeto como intimamente conectados. Em acordo com
Ahmed (2010, p. 231, minha tradução), compreendo que “eles são contíguos; eles
deslizam um para o outro; eles aderem e entram em coesão, mesmo quando eles
estão separados”.
[3] Ahmed (2014), referindo-se a estudos de abordagem cognitiva,
denomina esse modelo como “inside-out”,
isto é, as emoções partem da mente do indivíduo (inside)
e são expressados fora (out).
[4] Os trechos das narrativas foram reproduzidos exatamente como
foram escritos pelas autoras.