Artigo
O
currículo-imagem do videoclipe: educando olhares para diferenças de gênero e
sexualidade
El currículo-imagen del videoclip: educando miradas
sobre diferencias de género y sexualidad
The curriculum-imagem of the
music video: educating eyes on gender and sexuality differences
Alcidesio Oliveira da Silva Junior[i]
Universidade Federal da Paraíba
João Pessoa, PB, Brasil
https://orcid.org/0000-0002-5536-064X
Recebido em: 16/07/2022
Aceito em: 22/08/2022
Publicado
em: 24/08/2022
Linhas
Críticas | Periódico científico
da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília, Brasil
ISSN: 1516-4896 |
e-ISSN: 1981-0431
Volume 28, 2022 (jan-dez).
http://periodicos.unb.br/index.php/linhascriticas
Referência
completa (APA):
Silva Junior, A. O. da. (2022). O currículo-imagem do videoclipe:
educando olhares para diferenças de gênero e sexualidade. Linhas Críticas,
28, e44188. https://doi.org/10.26512/lc28202244188
Link alternativo:
https://periodicos.unb.br/index.php/linhascriticas/article/view/44188
Licença Creative
Commons CC BY 4.0.
Resumo: O que pode uma imagem? Inspirado em Deleuze e
Guattari e nas teorias pós-críticas de currículo, objetivo, por meio de uma
cartografia, compreender como o videoclipe Viðrar
vel til loftárása, da
banda Sigur Rós, proporciona uma experiência estética
na educação do olhar para as diferenças de gênero e de sexualidade. Concluo
argumentando que o currículo-imagem não apenas reconhece nossa capacidade de
compreender cognitivamente o mundo ao nosso redor, com suas lógicas e medidas,
mas também entende que os afetos são fundamentais para que possamos adentrar na
superfície da alteridade, reconhecendo as diferenças, nutrindo-nos de uma
participação mais criativa nas relações com o outro.
Palavras-chave: Currículo. Educação Estética. Videoclipe. Filosofia da Diferença.
Gênero.
Resumen: ¿Qué puede hacer una imagen? Inspirado en Deleuze y
Guattari y las teorías proscriticas del currículo, objetivo a través de una
cartografía comprender cómo el video musical Viðrar
vel til loftárása
de la banda Sigur Rós
brinda una experiencia estética en la educación de la mirada sobre las
diferencias de género y sexualidad. Concluyo argumentando que el
currículo-imagen no solo reconoce nuestra capacidad de comprender cognitivamente
el mundo que nos rodea, con sus lógicas y medidas, sino que comprende que los
afectos son fundamentales para que penetremos en la superficie de la otredad,
reconociendo las diferencias, nutriéndonos de una participación más creativa en
las relaciones con los demás.
Palabras
clave: Currículo. Educación Estética. Videoclip. Filosofía de la diferencia. Género.
Abstract: What can an image do? Inspired by Deleuze and Guattari and post-critical theories of curriculum, I aim,
through a cartography, to understand how the music video Viðrar
vel til loftárása by
the band Sigur Rós provides an aesthetic experience
in the education of the look at gender and sexuality differences. I conclude by
arguing that the curriculum-image not only recognizes our ability to
cognitively understand the world around us, with its logics and measures, but
also understands that affections are fundamental for us to penetrate the
surface of otherness, recognizing differences, nurturing us to participate more
creatively in relationships with others.
Keywords: Curriculum. Aesthetic Education. Music video.
Philosophy of Difference. Genre.
Introdução
As imagens na contemporaneidade têm ganhado um novo tônus na
disputa pelos significados que permeiam as relações sociais, especialmente se
temos como cenário cultural uma proliferação de plataformas de criação e
divulgação midiáticas que extrapolam os tradicionais centros difusores de
informação. No que Susan Sontag (1977) chamou de
mundo-imagem uma composição efêmera e intensiva de visualidades promove estilos
de vida, corpos ideais e desejos de consumo que alimentam a sede por novidade,
substrato do capitalismo pós-industrial.
Nesta rede de captura pós-moderna, não consumimos apenas produtos
ou serviços, mas também ideais, hábitos e modos de ser que, celebrados pelas grandes
marcas e artistas contemporâneos/as, nos lançam aos processos de subjetivação,
nos tornando quem somos, produzindo o que almejamos, o que valorizamos ou
depreciamos. Ao descrever a “sociedade dos consumidores”, Zygmunt Bauman (2008, p. 30) nos fala da íntima relação entre o
fortalecimento do capitalismo contemporâneo e a mercantilização da vida, o que
tem acarretado uma colonização do espaço de interação entre sujeitos. Para Bauman (2008, p. 24), nesta sociedade dos consumidores, “[…]
o que se supõe ser a materialização da verdade interior do self é uma
idealização dos traços materiais – ‘objetificados’ – das escolhas do
consumidor”.
As imagens e a sociedade do consumo, como tenho apontado nestes
primeiros parágrafos, têm profundas relações, pois, ao mesmo tempo em que somos
expostos/as à uma cultura visual cada vez mais presente no nosso cotidiano –
tendo em vista, reitero, não apenas a capacidade de desfrutar das imagens, mas
de produzi-las e divulgá-las em massa –, consumimos, ainda que não de forma
passiva, as representações que são reforçadas na televisão, no cinema, nos
videoclipes, nas redes sociais, nos aplicativos de paquera, na publicidade… Nestes
mesmos espaços, estereótipos de gênero, de raça, de classe, de etnia, de
sexualidade são construídos, o que possibilita que olhares sejam embaçados
para as experiências com as diferenças, para as vivências não normativas com o
outro.
Entendendo que precisamos construir novas formas de lidar com as
imagens, algumas perguntas ressoam nestas linhas: O que pode uma imagem? De que
forma ela possibilita um encontro com a alteridade? Como as experiências e as formações
intensivas com as imagens propiciam uma educação do olhar para as
diferenças de gênero e sexualidade? Tais perguntas não teriam a mesma força se
eu não compreendesse, junto a Deleuze e Guattari (1992), que a arte é um “bloco
de sensações” que produz não apenas afetos, mas perceptos, ou seja, novas
impressões do mundo. Por meio da arte, somos deslocados/as do nosso estado
naturalizado, do nosso senso comum. Esta movência em meio às práticas
artísticas celebra a nossa transitoriedade, nossa capacidade fluida de
habitarmos territórios fronteiriços, o que se mostra potente para a afirmação
de uma vida mais desejante, menos presa às formas já pensadas. Ao olhar para as
imagens, não para o texto da canção do videoclipe escolhido para esta
cartografia, desejo caminhar entre os signos que carregam ainda mais
ambiguidade e espaço para fissuras na interpretação de cada olhar. Como já
dito, vivemos em uma sociedade atravessada por representações construídas não
apenas pelos signos verbais, mas também pelas imagens, sendo um dos aspectos
mais notórios para a construção de impressões de mundo. Sendo assim, entendendo
a relevância para o campo da educação dos textos escritos, penso que as imagens
são camadas de multiplicação de sentidos que podem e devem ser ainda mais
exploradas, visto que “não cumprem apenas a função de informar ou ilustrar, mas
também de educar e produzir conhecimento” (Sardelich,
2006, p. 459).
Assim, por meio de uma cartografia inspirada na Filosofia da
Diferença, busco compreender como um videoclipe, artefato cultural que tomo por
currículo-imagem, pode proporcionar uma experiência estética na educação
do olhar para as diferenças de gênero e de sexualidade. O vídeo Viðrar vel til loftárása (Sigur Rós, 2008)[2],
da banda islandesa Sigur Rós[3],
dirigido por Arni & Kinski, será meu intercessor,
pois tem provocado, desde o seu lançamento, uma série de inquietações
produtivas para pensarmos em outros modos possíveis de masculinidade. A escolha
do videoclipe se deu não apenas por elementos autobiográficos, visto que o
mesmo esteve presente nas minhas primeiras inquietações quanto às questões de
gênero e sexualidade na adolescência em um contexto religioso, mas também pelo
impacto daquelas imagens até os dias de hoje, expressando-se nos diversos comentários
de internautas no videoclipe publicado no YouTube, ainda que este tenha sido
lançado em 2001 nos canais de televisão dedicados à música.
No Brasil, com o avanço das pautas religiosas fundamentalistas,
especialmente conduzidas pela bancada neopentecostal nas mais diferentes
instâncias políticas da sociedade, temos visto ataques sucessivos à comunidade LGBTQIA+,
sendo uma tentativa recorrente de silenciamento e apagamento de existências
plurais que fogem à heteronormatividade. Falar de uma experiência estética que
possibilite a desnaturalização de olhares atravessados pelas regulações de
gênero e de sexualidade, conforme pensado através do videoclipe de Sigur Rós, nos posiciona neste lugar de afetação que pode nos
impulsionar a outras maneiras de olhar para o/a outro/a. A narrativa de Viðrar vel til loftárása toca o relacionamento entre dois garotos em
uma Islândia atravessada pelo fundamentalismo religioso, onde outras formas de
gênero e de sexualidade são inimagináveis. Dessa forma, organizo o texto em
três momentos de forma a descrever a potência da cartografia como metodologia
no campo da educação, o referencial teórico que atravessou a pesquisa e a
apresentação do videoclipe com seus vetores de força e políticas de
subjetivação.
Desenhando rosas no gelo: cartografias
na/da educação
A arte e a
educação são campos de profunda implicação com a pesquisa
cartográfica. Em ambos, vivenciamos experiências de transformação que podem nos
mobilizar por entre territórios existenciais seguros, da ordem da recognição, do plano identitário, em meio aos encontros com
o coletivo, com as diferenças, com as singularidades de nossa própria
existência, sendo esta sempre projeto das forças e
formas que dão contornos ao mundo. Sendo campos de conexão intensiva, a arte e
a educação também podem ser tomadas por outro caminho, em uma lógica despontecializadora: espaços de representação do mesmo, de
privilégio de modelos já prontos, manutenção de hierarquias e ordenações
disciplinares. Neste embate entre forças, que nos revigoram por meio dos
devires, e formas, que nos enquadram para nos tornamos objetos de fácil
reconhecimento, a pesquisa cartográfica nos lança ao estranhamento dos modos
objetivos, neutros e assépticos que guiam a ciência, dando espaço aos caminhos trilhados
pelo/a pesquisador/a no decurso do ato de conhecer, lançando luz “[…] sobre
processos em que sujeito e objeto definem-se mutuamente, um em função do outro”
(Barros & Barros, 2013, p. 374).
Para Virgínia Kastrup
e Eduardo Passos (2013, p. 264), a cartografia “[…] é um método de investigação
que não busca desvelar o que já estaria dado como natureza ou realidade
preexistente”, partindo do pressuposto de que “[…] o ato de conhecer é criador
de realidade, o que coloca em questão o paradigma da representação”. Como o
acompanhamento do fluxo de subjetividades, a cartografia trata-se de “um modo
de pesquisar que não se separa do plano de criação” (Pozzana,
2013, p. 326), o que implica uma impressão do mundo inventiva a ser
textualizada ou materializada em múltiplas expressões pelo/a pesquisador/a no
seu contato com o campo, com o material de pesquisa, que nunca é um dado ou uma
informação neutra e objetiva, retirado do mundo existente, mas fruto de
encontros, de andanças e miradas intensivas.
A cartografia é
o desenho de um mapa de forças e formas, “um conjunto de linhas diversas
funcionando ao mesmo tempo […] os elementos constitutivos das coisas e dos
acontecimentos” (Deleuze, 2013, p. 47). Para tanto, é importante traçarmos como
corpos, relações e situações são processados em todos os seus movimentos,
podendo se dar, segundo Deleuze e Guattari (2012a), em linhas que se
encontram e se apartam de acordo com os variados acontecimentos: linhas
duras ou molares, amparadas em estratificações familiares e territoriais, linhas
maleáveis ou moleculares, que expressam certa desterritorialização ou
variação, e as linhas de fuga, que alcançam uma desterritorialização
absoluta, rompidas, então, de todas as formas imaginadas. Longe de limites
muito rígidos, “[…] as três linhas não param de se misturar” (Deleuze &
Guattari, 2012a, p. 77), apontando para os processos de criação das nossas
subjetividades em contato com os seres humanos e não-humanos que povoam a
terra.
Nossos relacionamentos, as práticas de si,
os desejos, as brincadeiras, assim como o trabalho, a escola, a igreja, a
cultura são (e)feitos de linhas duras, maleáveis e de fuga que servem como
elementos de composição para a pesquisa cartográfica, pois criam a nossa
estadia no mundo em toda a sua variação, seja ela afirmativa, seja destruidora
da vida que pulsa em nós. Para Costa e Amorim (2019, p. 915), “a linha
torna-se, pois, a possibilidade nascedoura de uma
confluência, de uma dobra. Como atravessadora do fora-dentro, a linha risca o
vir a ser da dobra, arriscando-se uma mudança de qualidade ou mesmo de
direção”. Dialogando com os autores, podemos perceber que os processos de
subjetivação nos mais diferentes espaços educativos se dão como uma modulação
entre um interior criado rumo a um exterior percebido, e um exterior que nos
afeta, gerando individualidades em trânsito.
Em uma compreensão pós-moderna, o sujeito,
diferentemente das teorias tradicionais da educação pautadas na metafísica e na
racionalidade moderna, torna-se feitura do mundo, criação da história com todas
as suas contradições e resistências. Esta concepção de sujeito descentrado de
universalizantes e essencialismos torna-se fundamentalmente política, pois esta
“[…] não se faz no terreno do dado, do fixo, do absoluto, do transcendental,
mas justamente no terreno do questionável, do variável,
do ordinário, do imanente” (Gandin et al., 2002, p.
11). Uma política que se concretiza não apenas em relações estruturantes ao
nível macro, mas nas relações cotidianas, nas lacunas que se fazem entre corpos,
narrativas, práticas de assujeitamento, mas também de resistência. Por este
viés não hegemônico, tomo a política não na ordem do consenso, da
homogeneidade, mas do dissenso, um duplo que revoga a lógica representativa (Rancière, 2009). Ainda segundo Jacques Rancière
(2009, p. 60), os enunciados políticos “[…] introduzem nos corpos coletivos
linhas de fratura, de desincorporação”, o que evidencia a forças das políticas
de resistência que são cartografadas nas múltiplas linhas que compõem o social,
o cultural e, por fim, o subjetivo.
Para Michel Foucault (1995), toda relação
de poder guarda também espaço para resistência. Caso não, um estado de
dominação se instaura, com vontade de perpetuação pela violência. Acompanhando
o filósofo, entendo a potência da cartografia justamente no desenho destas
variações que rompem com os poderes que almejam instituir verdades únicas sobre
os nossos fazeres no mundo. Esta resistência, segundo Marlucy
Paraíso (2016, 389), é “[…] uma força, focada, localizada, resultado de
agenciamentos que aumentam a potência dos corpos”, reverberando acontecimentos
do desejo que fazem frente aos fascismos cotidianos, aqueles que se revelam nas
práticas subjetivadoras.
Portanto, mais do que interpretação, o que
a cartografia propõe é uma experimentação (Hur, 2021), ou seja, “um
procedimento de multiplicação de sentidos e inaugurador de novos problemas”
(Barros & Barros, 2013, p. 375). Se, nos métodos tradicionais de pesquisa,
o que inclui os aplicados nas investigações educacionais, o corpo do/a
pesquisador/a é ignorado, sendo pretensiosamente silenciadas suas
subjetividades e experiências, na pesquisa cartográfica, os resultados sempre
são singulares, já que são produtos da relação do/a pesquisador/a com o campo,
proporcionando uma tradução dos afetos que daí surgem. No videoclipe em
questão, emergido de minha experiência adolescente com a música e com as
questões de gênero e de sexualidade e com os tabus em um contexto religioso
fundamentalista, desejo cartografar as linhas na composição de outras formas de
masculinidade por meio de Jónsson[4],
personagem principal da narrativa, entendendo que tais movimentos são
pedagógicos, pois produzem capturas, atravessamentos e mobilizam subjetivações
nas nossas formas de olhar para o outro.
Movimentos intensivos e artísticos por meio das imagens
Trato as imagens como superfícies de
inscrição de significados para além do campo da representação, pois dão espaço
para uma interpretação que foge ao jogo da descoberta de verdades únicas. De
acordo com as nossas experiências de vida, cada imagem se abre às infinitas
possibilidades de reinscrição, afetando-nos de muitas
formas diferentes ao recorrerem ao nosso baú particular de memórias e
sensações. Para Georges Didi-Huberman (2018, p. 163),
as imagens são “movimentos e tempos, irrefreáveis e imprevisíveis”, saindo do
nosso controle racional, adentrando nos labirintos de um eu em constante
fratura, decompondo-se a cada encontro.
Não são fáceis as definições muito
delimitadas de imagem, pois estamos falando de uma organização visual de
sentidos e percepções que vão bem além dos aspectos generalizáveis da ciência
hegemônica. Nisto, dialogo com Emmanuel Alloa (2015,
p. 07) quando diz que “[…] somos perpetuamente superexpostos às imagens,
interagimos com elas, mas se alguém nos pedisse para explicar o que é uma
imagem, teríamos dificuldade de fornecer uma resposta”. Também segundo Didi-Huberman (2008, p. 15, grifos do autor), “não podemos
dizer: a imagem é isso ou aquilo. Pode-se apenas dizer: esta imagem trabalha
assim ou assim, transforma isto ou aquilo, se transforma nisto ou
naquilo”. Estas reflexões nos levam a pensar na potência não de conceituações
estreitas, mas do fazer com a imagem, do rememorar diante da imagem, das
afecções intensivas proporcionadas neste encontro. Não há uma ontologia da
imagem que poderia defini-la de uma maneira única ou até mesmo com base em um
caráter anterior a sua operacionalidade. Ela é puro devir
e trabalha como uma ação visualizada/visualizante do/no
mundo. A imagem seria o que a instantaneidade do acontecimento nos revela com
todas as suas dores, alegrias, paixões, dissabores, nos ensinando em meio aos
deslocamentos efetuados pela fruição.
Historicamente marcada por diversas
funções e características, como as de falseabilidade das aparências, segundo
Platão, ao se referir às artes, e de projeção no encontro com o divino na Idade
Média, a imagem sempre operou em um campo político onde as relações de poder
podem ser dar de forma mais acentuada, como na sua utilização massiva por
líderes autoritários, como Adolph Hitler e Benito Mussolini, na composição de
suas performances de conquista, ou vendida com sutileza, como nas políticas de
desejo nos aplicativos de paquera na contemporaneidade (Silva Junior, 2020). Penso
que uma “mecânica do poder” (Foucault, 2014) pode se instaurar na disciplinarização
do nosso olhar, já que a disciplina, para Michel Foucault, é “uma anatomia
política do detalhe” (Foucault, 2014, p. 137) que vai consumindo aos poucos as
amplitudes do movimento, encerrando o corpo, controlando os gestos, silenciando
as vozes, cronometrando as marchas da história e enquadrando a vida. A imagem,
neste aspecto, torna-se uma visibilização do controle engendrado pelas mais
diversas forças que buscam reger o mundo, controlar as representações e os mais
distintos modos de falar sobre o mundo. Dessa forma, para Rancière
(2009, p. 15, grifo do autor), a “partilha do sensível” se torna uma batalha
política, pois é “o sistema de evidências sensíveis que revela, ao mesmo tempo,
a existência de um comum e dos recortes que nele definem lugares e
partes respectivas”, ou seja, a distribuição, no espaço, de quem pode falar,
visibilizar, produzir narrativas sobre o mundo, o que dialoga diretamente,
segundo o filósofo francês, com a produção e a distribuição da arte nos mais
diversos momentos da história.
Por outro lado, a imagem também pode ser
uma esfera de ampliação de possíveis, adentrando nas malhas de poder na invenção
de outras narrativas que produzam borramentos de
fronteiras identitárias, deslocamentos, trânsitos, fluidez e devires. Se é
usada pelos grupos hegemônicos para regular a vida em sociedade, também é
potência de anunciação dos virtuais, elementos para uma experiência sensível
consigo e com o outro. Para Raniere et al. (2020, p. 21), “todas as imagens são
ao mesmo tempo percepção, motricidade e afecto”, o
que nos diz sobre a sua compreensão complexa, mas, ao mesmo tempo, extensa para
retrabalharmos os olhares que lançamos sobre o mundo por meio da arte.
Ao falar de videoclipe, considero-o como
“uma camada performática sobre a canção que o origina, possibilitando o
reconhecimento de corporalidades que se traduzem em disposições audiovisuais”,
segundo Thiago Soares (2014a, p. 337), sendo também “materializações de gestos,
formas de dançar e agir dos corpos dos artistas que os originam” (2014a, p. 337).
Nesta camada performática de imagem e som, há uma reiteração de discursos que,
ao mesmo tempo em que naturalizam relações já postas, simplificando-as na sua
banalidade, também propõem novas combinações, contribuindo para debates e
questionamentos ao que já está consolidado. Os videoclipes, que se fortalecem
nos anos de 1980 com o advento da Music Television
(MTV) nos Estados Unidos, para a promoção dos/as artistas, propõem aos/às
seus/suas fruidores/as modos diversos de se localizarem no mundo (Janotti Jr. & Alcantara, 2018), fornecendo “[…] material
simbólico para que indivíduos forjem identidades e modelem comportamentos
sociais extensivos aos propostos pelas instâncias da indústria musical”
(Soares, 2014b, s.p.). Daí a importância de pensarmos
nestes artefatos culturais como potentes pedagogias, especialmente se
consideramos sua imensa propagação em tempos de internet, onde há uma
circulação e reutilização massiva das imagens produzidas e disponibilizadas nas
redes sociais (Sá, 2019).
Tais apontamentos do pedagógico podem ser
ilustrados em pesquisas como as de Godoi et al. (2021) e Silva e Souza (2021).
Analisando o videoclipe AmarElo do rapper
Emicida, Godoi et al. (2021) destacam como estas narrativas imagéticas aliadas
às músicas podem inscrever determinados significados, compondo-se como
pedagogias culturais. Ao abordar os discursos de resistência, superação e
empoderamento de sujeitos periféricos, AmarElo
é um manifesto pela vida, segundo os autores, impulsionando mudanças
necessárias na atual sociedade. Reverberações sentidas também quando Silva e
Souza (2021, p. 75) apontam que, quanto aos videoclipes, “tais imagens
contribuem para a formação de identidades e representações das relações
sociais”. Analisando The Light, da cantora HollySiz,
as autoras nos provocam a pensar nas possibilidades de uso dos videoclipes em
sala de aula como caminhos para a desconstrução de normatividades de gênero e
de sexualidade, ampliando o que entendemos como pedagógico para os diferentes
artefatos culturais.
Como aqui não estou falando de qualquer
imagem, mas especificamente sobre as imagens artísticas dos videoclipes nos
diferentes suportes de expressão, destaco a politicidade
de seu movimento e a invenção de novos perceptos e afetos (Deleuze &
Guattari, 1992), pois “[…] a eficácia política da arte está na maneira como ela
recoloca as relações, o que nos permite construir relações diferentes” (Raniere
et al., 2020, pp. 27-28). Por mais que a racionalidade moderna tente, a todo
custo, impor formatos identitários para um reconhecimento fácil, baseado em
classificações que suprimem as diferenças, e isso inclui a fruição por meio das
imagens, ao artistarmos o conhecimento, somos
convocados/as à outra experiência, esta política, que intensifica a crítica
sobre o mundo, embora não definida por projetos futuros acabados, mas por
construções de cotidianos mais desejantes e por isso mesmo mais
revolucionários.
Falo aqui de uma artistagem
da relação com as imagens, inspirada em Sandra Corazza
(2013). Para ela, a artistagem na educação, e aqui
estamos falando de uma educação do olhar, como veremos no próximo ponto,
diz respeito ao “[…] inexperimentado, o
imperceptível, o impensável, o inominável, o indizível, o inimaginável, o intolerável”
(Corazza, 2013, p. 138). Encontrar com as imagens em
um processo artistado diz respeito ao abrir-se
aos múltiplos possíveis atravessamentos que podem nos levar a outras
geografias, politizando nossa presença no mundo e nos fortalecendo diante dos
afetos tristes e desafirmadores que insistem em nos
derrubar.
Educação do olhar por meio do currículo-imagem
Ao artistarmos
nossa relação com as imagens, uma ruptura se abre na esfera da representação,
nos lançando à magia do imprevisível, mobilizando nossos olhares para além dos
clichês, dos contornos dados como certos, como seguros. Para Didi-Huberman (2017, p. 16), as imagens nos fazem tomar posição
e nos situar no tempo, “[…] o que supõe mover-se, e constantemente assumir a
responsabilidade de tal movimento. Esse movimento é tanto de ‘aproximação’
quanto ‘afastamento’: aproximação com reserva, afastamento com desejo”. A
mobilidade provocada pelas imagens nos lança a um mergulho na relação
estabelecida com elas, dando-se de forma intensiva, contagiando nossas
subjetividades com outras impressões do mundo, nos arrancando dos territórios
até então inabaláveis.
Com este
panorama da relação com a imagem, podemos falar de uma educação do olhar
que supere as limitações impostas pelo paradigma da representação,
sustentado na verdade, na reflexão do ideal e na identidade, privilegiando a
ontologia do ser aos devires próprios das forças que movem os processos de
criação (Silva, 2001). Compreendo a educação do olhar – também pensada
como educação do/pelo sensível ou estética – como uma abertura
não apenas cognitiva, mas também intuitiva, perceptiva, emocional para o mundo
que nos cerca, cuja presença se torna intensiva, logo, aberta à experimentação pela
nossa potência criadora. Estética não apenas como um campo específico da
filosofia que se debruça sobre o belo ou sobre a arte, mas a forma como
experimentamos manifestações sensíveis que “[…] contribuem não apenas para a
nossa cognição, mas também para a nossa humanização” (Vidal & Silva, 2015,
p. 72).
A educação do olhar afirma toda a
complexidade do estar diante de imagens, conforme Márcia Tiburi.
De acordo com a filósofa, o ver está ligado à uma funcionalidade
biológica do nosso corpo, ao sentido físico da visão; já o olhar carrega
uma dimensão estética, demorada e contemplativa. Para Tiburi
(2004, s.p.), “[…] ver é reto, olhar é sinuoso. Ver é
sintético, olhar é analítico. Ver é imediato, olhar é mediado […] ele [o olhar]
sempre se dá no tempo, mesmo que nos remeta a um além do tempo”. Estas
proposições nos ensinam que a educação do olhar por meio das imagens é potente
para impulsionar movências subjetivadoras que nos
tornam outros/as no momento da experiência estética, visto que esta possibilita
uma atenção diferenciada para o que anteriormente fora descartado do nosso
campo de visão ou percepção. Conforme Fabiana Vidal e Rossano Silva (2015, p.
72), “nossas experiências estéticas são ampliadas quando nos propomos a ampliar
nossos conhecimentos e as possibilidades de ver, vivenciar e experienciar tanto
a arte como aspectos do nosso cotidiano”.
Inspirado nas teorias pós-críticas de
currículo, “[…] que favorecem o reconhecimento de que no mundo contemporâneo
novas configurações culturais têm concorrido com a escola pelo privilégio sobre
a educação das pessoas” (Maknamara & Paraíso, 2013,
p. 42), compreendo que um currículo se manifesta em diferentes outros espaços,
dentre eles, nas mídias produtoras de imagens, ensinando modos de vida,
favorecendo experimentações, compondo com diferenças. Um currículo que é “por
natureza, rizomático, porque é território de
proliferação de sentidos e multiplicação de significados” (Paraíso, 2010, p.
588), abrindo fendas para processos de subjetivação, nos
educando de determinadas formas e não de outras, em linhas infinitas de
poder.
Os mais diferentes artefatos produtores/produtos
de visualidades, como o cinema, os videoclipes, as novelas, as séries de
televisão, a indústria da moda, entre tantos outros, operam como currículos-imagem
na medida em que proporcionam experiências de dilatação dos sentidos, propiciando
encontros com outras formas de vida, como virtuais a serem atualizados por uma existência
nutrida pela potência de criação. Para Antonio Carlos
Rodrigues Amorim (2020, p. 418), no currículo-imagem “estamos mais próximos a
um vazio entre excitação perceptiva e a resposta sensorial-sensível”, sendo
produto/produtor de momentos de afecção que atravessam o nosso corpo como ondas
vibratórias que convocam ao desfazimento de formas instituídas, rompendo com
ideias fixas.
Por meio do currículo-imagem, somos
convidados/as – seduzidos/as – irresistivelmente a pensarmos de outra forma
sequer imaginada. Somos impelidos/as a dançarmos de outro jeito, a compormos
com outras notações as músicas que vibram no nosso entorno. Se podem ser
instrumentos de dominação pela força imagética na captura dos olhares, estes
currículos-imagem também podem se tornar acoplamentos maquínicos
na invenção do novo por meio de múltiplos agenciamentos. Se tornam, pois,
“novas clivagens entre outros dentros e outros
foras” (Guattari, 1992, p. 115, grifos meus), linhas desejantes que
celebram desencontros, desconstruções, deslocamentos,
sempre ativando a vida que pulsa para além das normalizações doentias.
O currículo-imagem nos ensina não por meio
de inscrição não problemática da visualidade, mas por meio do choque do
pensamento, da emoção, do arrepio, da lágrima que percorre o rosto, elementos,
por vezes, ignorados da ciência hegemônica, mas que se revelam parte da
dimensão complexa instituidora de cada sujeito. No videoclipe Viðrar vel til loftárása, como veremos no próximo ponto, os
caminhos estão abertos para a experimentação da alteridade e do pensamento da
diferença, educando o nosso olhar para abrirmos mão de moralismos construídos
pela heteronormatividade do nosso tempo. Como resposta sensorial-sensível
ao mundo (Amorim, 2020), o currículo-imagem é puro devir.
O devir de Jónsson…
A melancolia da música de Sigur Rós se enamora com a palidez das imagens que surgem ao
longo do videoclipe Viðrar vel til loftárása (Sigur Rós, 2008)[5].
Em câmera lenta e colorido com um filtro azul-acinzentado, cujo efeito é a tristeza
e a expressão do frio islandês, o vídeo nos apresenta Jónsson,
nosso protagonista, guiando um carrinho com duas bonecas para a beira de um
lago (0′7″). Pelo estado dos brinquedos, vemos que talvez o rapaz as tenha encontrado
jogadas em um canto qualquer, sendo um caminho possível para a afirmação de sua
existência, de seus desejos enquanto um garoto com paixões destoantes em um
país luterano como a Islândia. Se um/a artista “acrescenta sempre novas
variedades ao mundo” (Deleuze & Guattari, 1992, p. 227), um bloco de
sensações começa a se formar no corpo deste pesquisador na fertilização das
forças que emanam daquelas cenas, pois “ver não é também, às vezes, ver através
das lágrimas, das emoções em geral?” (Didi-Huberman,
2018, p. 162).
As imagens nos mostram um pouco da
vivacidade desejante e as aberturas possíveis aos modos de gênero que nos são
ensinados desde a mais tenra idade. Por mais que estejamos enquadrados/as em
uma “cristalização existencial” (Rolnik, 1989, p. 27)
de gestos, movimentos, rituais, repetições estilizadas que dão forma a nossa
entrada e estadia no mundo, arranhões também podem ser produzidos no fino
cristal das nossas identidades, provando-as perenes, instáveis, pura ficção da
linguagem. Ao erguer as bonecas para o alto, enchendo-as de uma rara luz que
cruza a atmosfera gélida daquele inverno sem fim, Jónsson
grita, quieto, para o mundo, a fantasia do seu bem viver, a imaginação sem
forma, mas com força, que dá uma nova tonalidade a sua existência. Por
não esgotar a potência do novo apenas nas grandes transformações estruturais e
visíveis, aponto, na micropolítica do gesto, a sua própria revolução por ser
capaz de chamuscar os fios bem traçados que nos imobilizam. Nesta cena, um acontecimento
se evidencia, “[…] novas composições produzindo diferenças, origem de pequenos
abalos sísmicos nas figuras vigentes” (Rolnik, 1996,
p. 118).
Trato o devir como uma política de
desmoronamento das formas homem-mulher (assim como tantas outras) que
desenham, por meio dos seus binarismos, comportamentos legítimos e aceitáveis
de ser e estar no mundo. Como não é da ordem da semelhança ou da identificação
(Deleuze & Guattari, 2012b), devir algo é um trânsito que se coloca
sempre nas fronteiras, produto sempre informe das trocas de matérias intensivas
que se remexem nos encontros entre pessoas e seres da natureza, animados ou não,
pois “[..] devir não é reivindicar um estado já codificado e identificado;
tampouco é chegar a alcançar um estado predefinido e reivindicado por meio da
cópia, do adestramento ou da imitação” (Jódar &
Gómez, 2002, p. 35). Com o devir-boneca, Jónsson
embaralha as normas de gênero e de sexualidade, performatizando
outra coisa não esperada para o seu corpo, revirando a “aparência de
substância” (Butler, 2018), que se naturaliza nos atos performativos. Como
construções da linguagem que são animadas por meio da nossa carne, as
identidades de gênero e de sexualidade, entre elas, as que se configuram na
performance de masculinidade, são possíveis de serem revisitadas a todo
momento, basta que uma afirmação desejante entre as normas delimitadas se
evidencie. Neste ponto, dialogo com Judith Butler (2014, p. 260), quando diz
que “[…] a norma na sua temporalidade necessária está aberta para um
deslocamento e uma subversão desde seu interior”.
Com base em Deleuze e Guattari (2012a),
entendo que somos constituídos/as por linhas que se alternam em movimentos nada
inertes, “segmentarizados por todos os lados e em
todas as direções” (Deleuze & Guattari, 2012b, p. 92). Linhas estas que
advém da religião, da cultura, do trabalho, dos programas de televisão, da
educação escolar, dos relacionamentos amorosos e sexuais, enfim, dos mais
distintos enlaces da nossa vida social desde o surgimento da vida. Me referindo
especificamente à produção do gênero e da sexualidade, não podemos ignorar que
tais categorias, por vezes pensadas como fechadas, são submetidas ora a
regulações e disciplinas, na tentativa de manter a norma e invisibilizar as
diferenças, ora a aberturas, a devires, nos encontros com signos que
desconfiguram os contornos oclusos das identidades. Aí entra a força da arte,
em especial do currículo-imagem, na produção de fissuras ao legitimado, ao
facilmente reconhecido por estar inserido em modelos pré-organizados.
Para Deleuze e Guattari (1992, p. 227), todo artista é “mostrador de afectos, inventor de afectos,
criador de afectos”, sendo afecção um processo de
encarnação de um ato criador, de uma mudança que nos desloca de geografias
conhecidas para a imprevisibilidade do acontecimento. Neste caminho, percebo
que três linhas vão compondo as produções de gênero e de sexualidade no
videoclipe de Sigur Rós a partir do devir-boneca de Jónsson.
Nas primeiras cenas, vemos que, em meio às
linhas flexíveis da experimentação de gênero de Jónsson,
ou seja, dos pequenos desvios, rachaduras e mutações nas existências (Deleuze
& Guattari, 2012a; 2012b; Costa & Amorim, 2019), uma vontade de
forma a partir de linhas duras se destaca, pois, ao ver a vida que
pulsa na transposição de gênero de Jónsson brincando
com suas bonecas, seu pai, observando de longe, corre ao seu encontro para
estabelecer a ordem, arrancando os artefatos das mãos do garoto (1′49′′). Ali
vemos que um currículo-forma se manifesta não na afirmação dos desejos,
da vida, mas no enclausuramento e na morte. Segundo Deleuze e Guattari (2012b,
p. 112), a linha dura “opera a organização dual dos segmentos, a
concentricidade dos círculos em ressonância, a sobrecodificação
generalizada”. Na agitação provocada pelas vibrações entre corpos que insistem
em criar novidades de vida, as linhas duras são aquelas que anseiam pelo
território, pelas camadas seguras, pelo atendimento às expectativas da cultura
dominante, não afeitas às modificações cabíveis ao trânsito da existência.
Para Costa e Amorim (2019, p. 917), as
linhas duras “operam por linearidades (em linhas retas) […] blocos mais ou
menos duros [que] criam códigos para cada território assumido em vida”. Vemos a
valorização de binarismos – homem e mulher –, cujas características vão
se diferenciando ao longo da vida. O devir-boneca de Jónsson
se torna impossível para uma vida com abrangência das linhas duras, tornando-se
escárnio e digno de repulsa. O videoclipe nos mostra que os distintos
currículos-imagem são poderosas pedagogias de gênero e de sexualidade (Louro,
2001) que organizam nossos corpos visando o atendimento à heteronormatividade:
gestos, vestimentas, brincadeiras, cores, desejos, calcando-se em
diferenciações baseadas na biologia e, por isso, tendo uma vontade de
naturalização. As linhas duras são formas de disciplinas cujo foco é o controle
de cada detalhe do nosso corpo (Foucault, 2014), ainda que não submetidas ao
grau zero de resistência, sendo imersas em águas agitadas no confronto pelos
clamores da vida.
As linhas flexíveis, por vezes delicadas
ou discretas em sua anunciação, não se apresentam apenas nas cenas iniciais do
devir-boneca de Jónsson, mas nos olhares de um garoto
que via todo o acontecimento trágico que findou com o pai jogando as bonecas no
profundo lago. Aqueles olhares, compassivos e, como veremos, apaixonados,
operam como luzeiros no cinzento inverno relacional que ali se manifestava, duro,
gélido, impossível. Tal linha é percebida por meio de uma cartografia que “[…]
acompanha os movimentos invisíveis e imprevisíveis da terra – aqui, movimentos
do desejo –, que vão transfigurando, imperceptivelmente, a paisagem vigente” (Rolnik, 1989). O fruto daquele olhar se manifesta em outra
cena, quase ao final do videoclipe (3’35″), quando, antes de uma partida de
futebol, espaço propício para a construção das masculinidades hegemônicas ou,
como bem argumenta Daniel Welzer-Lang (2001, p. 462),
na “casa dos homens” que contribuem para que os meninos se tornem homens, o
rapaz entrega nas mãos de Jónsson as bonecas que
haviam sido lançadas no lago por seu pai.
As imagens nos mostram não apenas a força
dos encontros que aumentam a nossa potência de existir, que nos enchem de
afetos alegres, mas uma atmosfera de cuidado, de proteção, de amor que vai
ganhando corpo junto à música. O currículo-imagem não apenas alcança a nossa
razão e nosso intelecto, mas compõe junto a forças difíceis de serem traduzidas
por palavras, mas que nos tocam na dimensão sensível, atmosférica. Para Inês
Gil (2002, p. 95), “a atmosfera é imanente ao mundo e toca profundamente o
nosso afecto. Está em toda parte, impalpável,
dificilmente definível, para alguns mesmo irrepresentável”. Cada detalhe do
currículo-imagem educa o nosso olhar, pois nos convoca a uma experiência
estética que nos desloca dos centros de regulação, das disciplinas da
visibilidade que trabalham por sobrecodificação.
Esta atmosfera, “portadora espacial de um
estado de espírito” (Böhme, 2017, p. 08), vai
desembocar no acontecimento pulsante após um gol de Jónsson
na partida de futebol. Fecundo pelo reconhecimento do seu devir-boneca, Jónsson expande a sua presença no mundo por todos os lados,
como se fosse a liberação de energia solar no inverno mais rigoroso de sua alma.
Em câmera lenta, aquele esperado gol é apenas o efeito produzido pela
aceleração dos seus movimentos intensivos de tomada do mundo e de si mesmo. A
festa explode por todos os lados, seja entre seus amigos da partida, seja entre
pais e mães que assistem ao jogo do lado de fora. Outra linha se apresenta,
pois Jónsson entende que “[…] devemos inventar nossas
linhas de fuga se somos capazes disso, e só podemos inventá-las
traçando-as efetivamente, na vida” (Deleuze & Guattari, 2012b, p. 83, grifo
meu).
Ali, abafando os gritos de alegria do
público e surpreendendo a todos/as, um beijo é a prova do amor entre os dois
rapazes, o sinal de que outras existências são possíveis em meio às tentativas
de sufocamento daquilo que pulsa como novidade (5’24’’). São linhas de fuga
capazes “[…] de promover rupturas radicais, abrindo o território para novas
configurações” (Costa & Amorim, 2019, p. 927). Enquanto se beijam, imagens
dos garotos surgem trazendo-nos a delicadeza e o cuidado envolvidos na história
que estavam construindo juntos e que ali ganhava a explosão necessária para que
os dois se afirmassem no puro desejo. Embora, no final do videoclipe, Jónsson e o amado sejam apartados por seus familiares, em
uma cena onde vemos mais uma vez a enunciação do fundamentalismo religioso,
acredito nas faíscas que foram liberadas naquela atmosfera e que ensinam não
apenas a atualidade do poder disciplinar, das formas rígidas que se fortalecem
na liberação dos afetos tristes, mas também que o desejo sempre é mais intenso,
já que é capaz de atos corajosos que visam alcançar a sua plenitude, a energia
máxima de sua realização.
Para concluir…
O videoclipe Viðrar
vel til loftárása (Sigur
Rós, 2008), da banda islandesa Sigur Rós, serviu-me como ativador, ou como intercessor,
utilizando-me mais uma vez das palavras de Deleuze (2013), para pensar na
possibilidade da educação do olhar por meio da experiência estética com a
imagem. Por entender que somos educados/as de múltiplas formas, não apenas nos
espaços formais de educação, e que também há uma dimensão das nossas subjetividades calcada no sensível, não apenas na
racionalidade, podendo ser explorada para a formação de novas relações consigo
e com o outro, lancei-me ao videoclipe, este artefato cultural de ampla
circulação desde a sua massificação midiática nos anos de 1980. Com foco na
cartografia das imagens de Viðrar vel til loftárása, acredito
nas múltiplas possibilidades de análise deste artefato cultural que poderia
também ser compreendido em seus signos linguísticos, com foco na canção do
videoclipe. Dito isso, abrem-se possibilidades para além da leitura de imagens
aqui proposta e que torna os encaminhamentos deste texto circunscritos em uma determinada
perspectiva teórica e metodológica, servindo de inspiração para que outros/as
pesquisadores/as adentrem em novas searas de exploração das camadas do
videoclipe.
O currículo-imagem é um produto estético
que não apenas reconhece nossa capacidade de compreender cognitivamente o mundo
ao nosso redor, com suas lógicas e medidas, mas também entende que os afetos
são fundamentais para que possamos adentrar na superfície da alteridade,
reconhecendo as diferenças, nutrindo-nos de uma participação mais criativa nas
relações com o outro. Jónsson, o protagonista do
videoclipe, nos mostra como somos constituídos/as por linhas, por segmentaridades que dão contornos a nossa existência, seja
por meio da cultura e suas linhas duras, territoriais, seja por meio das
linhas flexíveis e suas criativas variações ou até mesmo por meio das linhas
de fuga, quando rompemos com violência as formas que insistem em nos sufocar.
Ao experienciar novas formas de masculinidade, Jónsson
cria outras linhas performativas de gênero e de sexualidade, habitando
territórios que destoam da heteronormatividade. Entre bonecas e partidas de
futebol, no meio de uma Islândia coroada pela religiosidade fundamentalista, a
relação homoafetiva entre os rapazes da história é como feixes intensos que
celebram outras vidas possíveis, o que nos provoca a pensarmos no quanto as
diferenças de gênero e de sexualidade abordadas nos mais diversos artefatos da
cultura, as chamadas pedagogias culturais que dialogam diretamente com o currículo-imagem
na expansão do pedagógico, são experiências que deslocam nossos olhares de uma
naturalidade reiterada pela cultura.
A experiência estética através do
currículo-imagem nos coloca em uma zona de problematização constante. Nada de
respostas fáceis ou a mesmidade da representação, mas novidade e invenção
celebradas pela arte com todos os seus devires sensíveis. A emergência de uma
potência do imprevisível no trânsito das subjetividades. A cartografia destas
imagens nos aponta que uma ética precisa nos conduzir. Não aquela formulada em
preceitos universalizantes e generalistas, mas uma que dê conta de um trabalho
particular do indivíduo sobre si mesmo, arriscando mover-se entre territórios
seguros e para longe destes quando necessário, sabendo-se conhecedor não de
futuros bem marcados, mas da energia pulsante que é puro desejo, puro alcance
virtual a ser atualizado.
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[i] Mestre em Educação pela
Universidade Federal da Paraíba (UFPB) (2020). Doutorando em Educação pela UFPB.
[2] O videoclipe
(7’05’’), acessado no canal do Sigur Rós pela
plataforma YouTube, tem, até o momento, 1.157.453 visualizações (Acesso em 18 ago.
2022).
[3] Surgindo em 1994 nas terras gélidas da Islândia, o Sigur Rós (“Rosa da Vitória” em islandês) tornou-se uma das
bandas mais emblemáticas do chamado post-rock, marcado pela
experimentação sonora, pela utilização de orquestras e de sintetizadores e pela
desconstrução do rock (Fletcher, 2011).
[4] Dou o nome de Jónsson para um dos garotos do videoclipe, já que em nenhum
momento sabemos como ele se chama. Como muitas canções da banda são composições
autobiográficas do vocalista Jón, resolvo fazer esta homenagem
a ele, pois, na Islândia, os sobrenomes de meninos que terminam com “-son” fazem referência à filiação da criança. Logo, Jónsson é o “Filho de Jón”.
[5] O título “Bom clima para um bombardeio aéreo” (tradução do
islandês) é uma referência ao comentário irônico de um jornalista do tempo na
TV islandesa durante a guerra de Kosovo.