Artigo

Nós, de Salim Miguel: mediações de leitura no Ensino Médio

Nós, de Salim Miguel: mediaciones de lectura en la Educación Secundaria

Nós, by Salim Miguel: reading mediations in High School


Lívia Perenha Vetter[i]

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Catarinense

Camboriú, SC, Brasil

livia.vetter@ifc.edu.br

https://orcid.org/0000-0003-2377-8264

Adair de Aguiar Neitzel[ii]

Universidade do Vale de Itajaí

Itajaí, SC, Brasil

adairneitzel@gmail.com

https://orcid.org/0000-0003-0096-5892

Contribuição na elaboração do texto: autora 1: autora de todas as seções; autora 2: orientação, revisão e consolidação do texto.

Recebido em: 08/07/2022

Aceito em: 10/10/2022

Publicado em: 13/10/2022

Linhas Críticas | Periódico científico da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília, Brasil

ISSN: 1516-4896 | e-ISSN: 1981-0431

Volume 28, 2022 (jan-dez).

http://periodicos.unb.br/index.php/linhascriticas

Referência completa (APA): Vetter, L. P., Neitzel, A. de A. (2022). Nós, de Salim Miguel: mediações de leitura no Ensino Médio. Linhas Críticas, 28, e44012. https://doi.org/10.26512/lc28202244012

 

Link alternativo:

https://periodicos.unb.br/index.php/linhascriticas/article/view/44012

Licença Creative Commons CC BY 4.0.


Resumo: Neste artigo, discute-se como estudantes se relacionam com obras literárias quando sua mediação prioriza a experiência estética e artística. Foi uma pesquisa-intervenção de abordagem qualitativa, cujo instrumento de coleta de dados foram narrativas escritas pelos estudantes, produzidas durante um grupo focal, analisadas segundo a abordagem da reversibilidade de Barthes (1997). Como resultados, sinaliza-se que as narrativas dos alunos evidenciaram que a leitura do literário se deu como experiência estética e que o ensino da literatura no Ensino Médio, ao fazer uso das listas de livros a serem lidos no exame do Vestibular, pode dar-se pela fruição.

Palavras-chave: Ensino Médio. Mediação de leitura. Vestibular.

Resumen: En este artículo, se discute como los estudiantes se relacionan con obras literarias cuando su mediación prioriza la experiencia estética y artística. Fue una investigación-intervención de enfoque cualitativo, cuyo instrumento de coleta de datos fueron narrativas escritas por los estudiantes, producidas durante grupo focal, analizadas según el enfoque de reversibilidad de Barthes (1997). Como resultados, se señala que las narrativas de los alumnos evidenciaron que la lectura de lo literario se dio como experiencia estética y que la enseñanza de la literatura en la Educación Secundaria, al hacer uso de las listas de libros a ser leídos en el examen de selectividad, se puede dar por la fruición.

Palabras clave: Educación Secundaria. Mediación de la lectura. Examen de Selectividad.

Abstract: In this paper, it is discussed how High School students relate to literature books when their mediation prioritizes the aesthetic and artistic experience. This was an intervention research of qualitative approach, whose data collection instrument were narratives written by the students, produced during a focus group, analyzed according to Barthes’s (1997) reversibility approach. As results, it is pointed out that the students’ narratives showed that that literature reading took place as an aesthetic experience and the teaching of literature in High School, when making use of the lists of books to be read in the university entrance exam, can be through fruition.

Keywords: High School. Reading mediation. University entrance exam.




Introdução

[…] a palavra é o núcleo central de tudo, tem som, tem sabor, tem cheiro, tem cor. (Miguel, 2017, p. 68)

Iniciamos este artigo[3] com um fragmento da obra literária Nós, de Salim Miguel (2017), porque, por meio dele, queremos trazer à baila a potência da palavra literária, pois esta é a temática desta pesquisa: a experiência da leitura do literário na escola pelo viés estético e artístico. Entendemos que, quando a leitura do literário afeta o leitor, quando o atravessa, ele passa a estabelecer relações produtivas com o texto, interlocuções que ampliam suas percepções e podem tornar este texto encarnado em si. Para Heidegger (2015) e Larrosa (2016), a experiência é sempre um percurso individual, pessoal, único, e, por isso, eles usam o verbo “fazer”. Para ambos, quando a leitura ocorre como acontecimento, o leitor faz uma experiência pela leitura.

Para os filósofos, é preciso que a informação dê lugar para a experiência, reivindicando-a, a fim de fazê-la soar de outro modo, compreendendo-a como movimento singular, individual, como algo que nos acontece, algo sensível e particular, subjetivo como a própria vida, fugaz e provisória, passional. Fazer da leitura do literário uma experiência implica deixar-se tergiversar pelo texto, embrenhar-se por sua subjetividade, uma leitura que possibilita ir além do entendimento inteligível da linguagem textual empregada, penetrando em níveis mais profundos do texto, que possibilitam ao leitor ser sujeito da própria experiência. Esse conceito trazido por Heidegger (2015) e Larrosa (2016) depende da relação que o leitor estabelece com o texto e, por isso, não se confunde com a informação sobre o texto.

Fazer uma experiência com o texto não requer do leitor apenas a mobilização de suas competências linguísticas; por isso, é entendida como uma experiência estética que provoca os sentidos. Lembramos que o termo “estética” vem do grego aisthesis, que está relacionado à estesia, indicando a “[…] capacidade do ser humano de sentir a si próprio e ao mundo num todo integrado” (Duarte Júnior, 2010, p. 13). Uma leitura do literário como experiência estética aponta para a leitura pelo viés da emoção, da intuição, da sensibilidade e dos sentidos.

Além de ser uma experiência estética, a leitura do literário é uma experiência artística tendo em vista que a literatura é arte, um produto humano. Por meio dos estudos de Barthes (2013), compreendemos que, por ser um objeto artístico, com elementos conotativos, não referenciais, metafóricos, a literatura promove a ruptura com o fascismo da língua, subvertendo seu sentido pelo estrelamento das suas unidades de leitura (lexias). O trabalho com o texto literário, nessa perspectiva, possibilita deslocamentos sobre a língua e seus sentidos, promovendo um jogo com os signos, comum aos objetos artísticos, não só possibilitando que o leitor conheça e interprete a visão sobre determinados aspectos abordados nas obras, a partir dos jogos propostos pelo autor, mas provocando-o a produzir sua própria visão de mundo.

Entendemos que mediações do literário podem evidenciar a função estética e artística da literatura quando os professores não a percebem como um código meramente usual da linguagem comunicativa, mas, sobretudo, quando exploram a capacidade de promover o saber pelo sabor, pela experiência sensível, desenvolvendo no leitor percepções estéticas, culturais e simbólicas, um movimento que parte do saboroso para o provocativo. Segundo Barthes (2013, p. 10), “[…] as palavras não são mais concebidas ilusoriamente como simples instrumentos, são lançadas como projeções, explosões, vibrações, maquinarias, sabores: a escritura faz do saber uma festa”. Assim, o sentido das coisas também faz parte da literatura, já que os livros podem provocar novos olhares sobre o mundo, repercutindo, ressoando e suscitando questões no leitor instigado a estabelecer relações diversas durante o processo de interpretação e de interação com a obra.

Calvino (2006) compreende que a leitura do literário pode promover a sensibilidade da percepção, dos sentidos, dos afetos, das reflexões e até mesmo das atitudes por ela acionadas, proporcionando insubstituíveis conhecimentos à medida que o leitor se permite ao diálogo com as entrelinhas do texto. Um diálogo que pode se iniciar na família ou na escola, na leitura solitária e silenciosa ou em grupo, mas é preciso que seja uma leitura como acontecimento, uma leitura que mobilize afetos, que possibilite a nutrição estética, que promova a fruição. Para Neitzel et al. (2020), a nutrição estética é percebida como o movimento de sentir e de pensar o mundo de forma integrada, por meio da sensibilidade (que nunca está apartada da razão), do sensível e do inteligível. A leitura do literário pode oportunizar a nutrição estética quando o texto é mediado como arte, respeitando sua função artística e estética. Contudo, para isso, é necessário que ela seja mediada adequadamente para sensibilizar para a apreciação estética e artística.

Esta pesquisa alinha-se aos pressupostos teóricos discutidos por Ramos et al. (2020, p. 6) que acentuam o caráter estético e artístico da literatura, o qual necessita ser reforçado nas escolas públicas como “[…] uma forma de conhecimento específica e como tal deve estar presente no currículo escolar”. A literatura pode aguçar sensibilidades e, portanto, pode colaborar na educação sensível do leitor. Uma mediação que oportuniza ao aluno adentrar o texto pelas suas fugas, buscando não apenas desvelar o enredo, mas dialogar com o texto, questionar e deslocar-se de suas certezas, ampliar olhares, é uma mediação emancipadora, permanente, problematizadora e libertadora, como enfatizam Ramos et al. (2020).

Entretanto, nem sempre essa compreensão perpassa o trabalho do ensino da literatura nas escolas ou nos institutos federais, principalmente no Ensino Médio que centra as atividades literárias nas obras solicitadas para o Vestibular. Domingues (2017) desenvolveu uma pesquisa no 3º ano do Ensino Médio, em um Instituto de Educação público de Santa Catarina, com o objetivo de verificar se a leitura do literário em salas de aula permite a efetiva participação do leitor (aluno e professor), mobilizando a sua subjetividade, possibilitando a atuação e/ou a formação de um leitor do literário. Como resultados, a pesquisadora aponta que a leitura fruitiva ainda tem pouco espaço no Ensino Médio, sendo confundida com o ensino de movimentos literários e as características das obras. Domingues (2017) constatou, ainda, que não há uma clareza conceitual por parte dos professores de Língua Portuguesa acerca de como se constitui um leitor do literário e que muitos deles não se mostraram leitores.

Desde a década de 1980, as pesquisas sobre leitura no Brasil, focadas na problematização da formação de leitores, constatam a dificuldade de a escola escolarizar o texto literário adequadamente, forjar leitores e não os afastar da leitura, como atestam as pesquisas pioneiras no Brasil, como as de Bordini e Aguiar (1993), Lajolo (1982), Perrotti (1986), Yunes (1999), Zilberman (1986), entre outras – pesquisas sustentadoras de várias políticas de leitura no país, como o Programa Nacional de Incentivo à Leitura (PROLER). Apesar das dificuldades concernentes à formação de leitores, há muitos movimentos nas escolas que buscam sinalizar possibilidades de explorar a função estética e artística da literatura, como a pesquisa de Hentchen (2022). A pesquisadora promoveu uma investigação junto aos alunos do Ensino Médio de um colégio particular de Santa Catarina, no contraturno, para tentar compreender como fazer experiências literárias pode potencializar a educação estética na cena cultural escolar. A pesquisadora identificou que a experiência depende da mediação sensível do professor, que oportunize ao aluno exercitar sua liberdade, expor suas impressões, suas ideias e seus devaneios das obras literárias. Além disso, Hentchen (2022) constatou que o afetamento pelo texto depende de sua potência estética e, também, de como o leitor se estende em direção ao texto e se deixa tocar por ele.

Sobre a temática da formação do leitor do literário no Ensino Médio pelo viés da apreciação estética e artística, Piske e Neitzel (2020) investigaram como as licenciandas do curso de Letras, bolsistas do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID), promoveram a mediação de leitura do literário em uma escola pública de Ensino Médio, na cidade de Itajaí, Santa Catarina, Brasil, que não possuía listas de obras literárias para o Vestibular. Ao observarem como os futuros professores de Letras mediaram o texto literário, as autoras verificaram que as mediações foram pautadas na exploração do texto literário pela via da fruição, e as práticas leitoras promovidas na escola buscaram provocar a sensibilidade e educar esteticamente, “[…] tornando a literatura algo possível de ser apreciada” (Piske & Neitzel, 2020, p. 6). Foi uma investigação que revelou que há uma preocupação com os cursos de Letras de algumas instituições superiores em oferecer uma formação, aos futuros professores, que oportunize a mediação de leitura de forma adequada.

Segundo Pareja (2021), mediações adequadas são aquelas proposições que possibilitam a estesia, que levam o estudante a compartilhar suas descobertas com o grupo, que o provocam a ruminar o texto, desafiando-o a emancipar-se intelectualmente, um convite a fazer uma experiência. “A mediação adequada tem, portanto, o poder de afetar o leitor. Ser afetado e afetar-se pela arte literária depende da relação íntima que se estabelece entre obra e leitor” (Pareja, 2021, p. 85).

A discussão da exploração da função estética e artística da literatura em sala de aula, fazendo ou não uso de listas de obras indicadas para o Vestibular, é pertinente, tendo em vista que a leitura é um ponto fundamental na emancipação do sujeito e de sua postura frente ao mundo. Nem todas as instituições de Ensino Médio, sejam públicas ou privadas, fazem uso de listas de obras literárias. Contudo, não estamos criticando essas listas, pois compreendemos que essas indicações de leituras são importantes e podem agregar valor às aulas de Língua Portuguesa quando mediadas adequadamente. Dessa forma, o foco não está nas listas de obras, mas na forma como elas são mediadas, pois, mesmo o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) não solicitando a leitura de obras literárias, em sua fundamentação teórico-metodológica, ele trabalha com a possibilidade de apresentação e de interpretação de uma mesma situação por meio de textos de diferentes naturezas, relacionados, dentre eles, à literatura e às artes.

Neste artigo, discutimos como os estudantes do Ensino Médio se relacionam com obras indicadas pelas listas do Vestibular, quando sua mediação prioriza a experiência estética e artística com o texto literário. Entendemos que a mediação do literário para alunos do Ensino Médio, que estão em fase de preparar-se para o Vestibular, não pode perder seu caráter de fruição, pois, sendo a literatura arte, independentemente do nível em que é trabalhada, necessita provocar o leitor a desejar o texto, a perceber suas fugas, de que plural é feito. Barthes (1993, p. 22) ajuda-nos a compreender a fruição como uma relação com o texto que nos coloca “[…] em estado de perda, aquele que desconforta (talvez até um certo enfado), faz vacilar as bases históricas, culturais, psicológicas, do leitor, a consistência de seus gostos, de seus valores e de suas lembranças, faz entrar em crise sua relação com a linguagem”. A intenção era superar a antiquada e desnecessária dicotomia, que, ainda hoje, povoa o imaginário de alguns estudantes, entre textos interessantes versus leituras obrigatórias para a sala de aula ou para o Vestibular.

 

Percurso metodológico

O objetivo geral deste artigo é discutir como estudantes do Ensino Técnico Integrado ao Médio, do Instituto Federal Catarinense (IFC), campus Camboriú, se relacionam com obras indicadas pelas listas do exame do Vestibular da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), quando sua mediação prioriza a experiência estética e artística com o texto literário. Esclarecemos que a lista de obras indicadas pela UFSC é trabalhada na disciplina de Língua Portuguesa, pois a maioria dos formandos do Ensino Médio do IFC presta esse Vestibular, tendo em vista também as ações afirmativas das Instituições de Ensino Superior (IES) nos processos seletivos.

Optamos por uma abordagem qualitativa de pesquisa-intervenção devido ao grupo envolvido no processo da pesquisa ser composto pelos próprios sujeitos pesquisados e pelos sujeitos pesquisadores em seus ambientes cotidianos da prática escolar. A pesquisa no âmbito do Mestrado acadêmico foi desenvolvida no IFC, com alunos de quatro turmas – Hospedagem, Controle Ambiental, Informática e Agropecuária – do terceiro ano do Ensino Técnico Integrado ao Médio, no qual os alunos ingressam por meio de processo seletivo aberto a todos os interessados, oriundos, em sua maioria, de escolas públicas por reserva de vagas.

O livro selecionado para o trabalho em sala de aula foi Nós, de Salim Miguel (2017), tendo em vista que esse autor é líbano-catarinense, e essa obra possui uma potência estética e artística que poderia ser amplamente explorada em sala de aula. A pesquisa teve início com as quatro turmas, durante as aulas de Língua Portuguesa. Uma das pesquisadoras participou ativamente das mediações desenvolvidas no campus Camboriú, durante três encontros de uma hora e 50 minutos cada, sendo um encontro por semana com cada uma das turmas, nos horários das aulas de Língua Portuguesa, nos quais foram propostas e desenvolvidas mediações de leitura diversas. Ao final dos três primeiros encontros, teve-se a oportunidade de explicar a pesquisa e convidar os alunos leitores para participarem de um Grupo Focal, com o objetivo de colher suas narrativas acerca de como eles se relacionaram com a obra Nós, de Salim Miguel, indicada pela lista do exame do Vestibular da UFSC.

O grupo focal foi organizado por meio de um encontro presencial, no IFC, com 12 alunos e alunas do terceiro ano do Ensino Médio, com 16, 17 e 18 anos de idade, que se sentiram curiosos e instigados tanto pela leitura literária quanto pela pesquisa realizada durante as mediações desenvolvidas com as quatro diferentes turmas técnicas do Ensino Médio (Hospedagem, Informática, Controle Ambiental e Agropecuária). A participação desses jovens estudantes deu-se voluntariamente, por meio de convite, e o encontro aconteceu em horário extraclasse. Os participantes foram referenciados pelos nomes dos personagens fictícios da obra lida: Eu, Tu, Ela, Um Outro, Ele, Ninguém, Nós.

O encontro com o grupo focal foi organizado em três momentos:

l  apresentação dos objetivos e procedimentos da pesquisa, assinatura e recolhimento dos Termos de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE);

l  mediações literárias com experiências leitoras, detalhadas em Vetter (2018);

l  discussões sobre a experiência leitora dos presentes a partir de provocações estésicas compartilhadas;

l  escrita de narrativas sobre as impressões e as subjetividades suscitadas, trazendo à tona os acontecimentos, as interferências e as forças experienciadas com a leitura da obra.

Para fazer a análise do corpus coletado, fez-se pertinente uma abordagem que contemplasse as diversas formas de manifestação dos textos e dos discursos construídos nesse percurso, conferindo dinâmico movimento às estruturas geradas pela interferência e pela percepção dos leitores (tanto dos alunos, como da pesquisadora). Barthes (1997), na obra S/Z, constrói o conceito da reversibilidade a partir do movimento textual, concebendo a ideia de que nenhum discurso se constrói sozinho, de modo que percepções, leituras, apreensões, experiências, conhecimentos e conexões configuram a pluralidade e a movência do texto, capazes de provocar significações e sensações que abrem e despertam o olhar para a expansão de caminhos múltiplos, percorrendo as entrelinhas de distintas descobertas. Dessa forma, utilizamo-nos dessa abordagem da reversibilidade de Barthes (1997) para a análise dos dados coletados, articulados à fundamentação teórica, uma abordagem que não estabelece categorias de análise.

O lócus de produção de dados – o IFC, campus Camboriú – foi devido a uma das pesquisadoras ser docente efetiva nessa instituição pública de Educação Superior, Básica e Profissional, pluricurricular e multicampi, vinculada ao Ministério de Educação (MEC), e especializada na oferta de educação profissional e tecnológica nas diferentes modalidades de ensino. No Projeto Pedagógico dos Cursos Técnicos Integrados ao Médio dessa instituição, evidencia-se a compreensão da literatura como expressão da palavra como arte, reconhecendo os recursos da linguagem literária, suas literariedades que a diferenciam de outras linguagens, bem como do conhecimento dos contextos histórico e sociocultural da produção literária brasileira.

 

Era para Vestibular, mas aconteceu a experiência

Quem é este? É um amigo, puxem cadeira, sentem. […]. Foi bom vocês aceitarem. (Miguel, 2017, p. 70)

Em Nós, Miguel (2017) fala sobre permitir-se puxar a cadeira, referindo-se ao aceite de nós, leitores, uma vez que este amigo pode, também, ser compreendido como o convite feito pelo mediador, o encontro viabilizado com o livro, a obra aberta às interferências de cada um de nós, leitores. Caberia ao mediador, portanto, promover o diálogo com o texto literário, artístico, denso e ampliador de visões, das maneiras de sentir e de pensar.

A literatura, após o Modernismo, vem sendo marcada pela ruptura da linearidade, uma proposta que explora a ideia da escrita como jogo, montagem. O autor arma a estrutura movediça do texto e o leitor insere-se nesse jogo, um processo que desacomoda o leitor porque o texto se constrói no ato de leitura. A fragmentação do enredo dá-se por diversas vias, não apenas por media res ou, ainda, por ultima res, o que marcaria o romance moderno como uma narrativa com a transposição de blocos do início para o fim ou para o meio do romance. Não, o texto é fragmentado por anacronias mais complexas, muitas vezes em forma de prolepses, outras, de analepses, textos que Neitzel (2009) intitula de hipertextuais.

Como o romance de Miguel (2017), Nós, que joga com esses recursos de multilinearidade, com o intuito de que os alunos entrassem em contato com o conceito de leitura não-linear, a pesquisadora que acompanhou os trabalhos em classe e a professora responsável pelas turmas propuseram uma mediação em que os alunos se dividissem em grupos e discutissem o que entendiam por linearidade e não-linearidade em narrativa. Os alunos deveriam trazer exemplos de livros, de filmes e de séries que conhecessem nesse estilo de composição.

Apesar de os alunos citarem exemplos de filmes e de séries não-lineares, eles acreditavam não terem tido a experiência de leitura de livros com narrativas não-lineares, atestando a preferência da escola por leituras literárias lineares. Esse foi o apelo-convite para que os alunos adentrassem na obra Nós (Miguel, 2017), como uma oportunidade de conhecerem um enredo não-linear, o que exigiria deles que ficassem atentos aos verbos, aos pronomes e à tessitura da narrativa da leitura iniciada em casa.

A obra Nós, de Miguel (2017), possui muitos embriões de hipertextualidade, e uma de suas marcas é a quebra da linearidade do enredo. Como os alunos já haviam sinalizado que esse tipo de literatura era uma novidade, a mediação de leitura começou com uma provocação: a aula iniciada pelo fim, remetendo a uma quebra lógica e cronológica associada à narrativa não-linear. Uma aula que se iniciou pelos agradecimentos, pelas trocas de impressões das leituras individuais, e, só depois, a pesquisadora apresentou-se, explicando a sua presença e a intervenção durante as mediações do livro, que ainda se desenvolveriam.

A dinâmica da aula invertida oportunizou a alguns o estabelecimento de relações com a leitura da obra em andamento, como nos relata o Tu:

Naquele dia durante as mediações, no primeiro dia, quando começaram a aula pelo final, nos agradecendo por cada contribuição, a nossa turma pirou (risos), lembro que, por alguns segundos, ficamos em choque, sem entender nada, nos olhando e nos perguntando mentalmente o que estava acontecendo, até que começamos a relacionar aquela sensação com a sensação de leitura do livro e muita coisa começou a se conectar, achei aquilo um insight genial! (Tu, 18 anos, estudante)

Aquela introdução/finalização de aula levou a um rico diálogo de impressões da leitura individual que cada um fez ao longo da semana. Essa mediação possibilitou que o romance fosse percebido pelas suas possibilidades de trocas entre o autor e os leitores, dando lugar não apenas a percursos interpretativos distintos, como também a intervenções na obra por meio da pluralidade e da articulação a outros textos feitas por Miguel (2017), possibilitando um exercício de coautoria aos leitores.

Para que o exercício de coautoria ficasse mais explícito aos alunos, a pesquisadora solicitou que eles exercessem seu processo criativo na produção de narrativas conjuntas escritas e orais, baseadas na leitura em andamento e compostas pela construção de, pelo menos, duas personagens, um lugar e um enredo que os entrelaçassem. Mesmo diante de indicações da pesquisadora acerca de questões de estrutura da narrativa, os estudantes não perderam o desejo pelo texto, porque a mediação potencializou a relação do texto com o leitor. Ainda que, inicialmente, os estudantes tenham se mostrado tímidos e intimidados, logo se envolveram no processo de escrita criativa e compuseram interessantes histórias, socializadas ao final com os demais.

As falas do Eu e do Ninguém permitem-nos refletir sobre como o desenvolvimento desse senso de autonomia e de comprometimento se amplia conforme o aluno se sente parte da construção de sentidos do texto, percebendo-se capaz de, ao mesmo tempo, compreender usos linguísticos em contextos de fruição literária, permitindo-lhe percorrer diferentes texturas do texto.

Penso que aquela dinâmica de experiência autoral que a professora fez com a gente em aula foi fundamental. Eu acho que a gente sempre desconfia da nossa capacidade, do que a gente tá entendendo, é como se estivéssemos acostumados a vir alguém e dizer que a gente entendeu errado, e ali nós fomos os autores, fomos criativos e percebemos que podemos confiar em nossa criatividade também. (Eu e Ninguém, 17 anos, estudantes)

Mais do que aprender a confiar na nossa criatividade, vocês nos ensinaram a concatenar ações usando os elementos da língua portuguesa, e depois, fazendo a leitura em casa, isso fez toda diferença na compreensão. Percebi o quanto o uso dos pronomes faz diferença na leitura de Nós. (Ninguém, 17 anos, estudante)

Quando a mediação convida os estudantes a se tornarem confiantes no processo de construção de sentidos e no uso da própria criatividade, eles desenvolvem o autônomo compromisso com o trabalho coletivo de leitura, lendo para se sentirem a par da experiência leitora. Ao fazê-lo, os alunos foram orientados a atentarem aos aspectos estruturais e composicionais da tessitura de seus textos quanto ao uso dos verbos – para a construção das ações, da temporalidade –, das preposições, das conjunções e dos pronomes – para a noção de espaço, de sequência, de coesão e de coerência internas do texto.

Os usos linguísticos nos contextos de criação permitiram-lhes percorrer por camadas mais profundas do texto, proporcionando o contato com uma linguagem ampliadora do repertório linguístico dos estudantes, de forma a oportunizar novas potencialidades e experimentações de uso da língua no contato com as ambiguidades da linguagem e seus múltiplos arranjos, como nos relata o Nós:

Eu me sinto muito valorizada por existir uma pesquisa de Mestrado interessada por nosso real processo de leitura durante as aulas regulares de literatura, pois isso sempre foi meio que uma pedra no sapato da aula de português, você tinha a aula de português e ali no meio o professor tinha que encaixar a tal literatura, daí a gente se questionava o porquê e sempre ficava implícito que era porque cai no Vestibular, mas agora isso caiu por terra, eu aprendi a ver sentido em usar as noções de gramática para compreender o texto e para escrever e sou grata por isso. (Nós, 17 anos, estudante)

Essas narrativas demonstram que, quando os estudantes são convidados a observarem as unidades de leitura da obra e suas literariedades, sua relação com o texto se faz pelo viés do jogo, da fruição, elementos necessários para uma experiência estética e artística. Expressões como “fomos autores”, “fomos criativos”, “ver sentido no texto”, “fazendo a leitura em casa”, “eu aprendi a ver sentido” evidenciam que o traçado da leitura os conduziu a experiências capazes de aproximá-los do texto e de si mesmos, refinando suas percepções não apenas sobre o texto, mas acerca do seu contexto, movimento que se revela na fruição.

A mediação proposta levou o grupo a perceber as especificidades que diferenciam um texto literário de outros gêneros aos quais possam estar acostumados, possibilitando o acesso a textos densos e ampliadores da visão do mundo, das maneiras de sentir e de pensar. Quando a mediação promove interações entre texto e leitor e entre leitor e seus pares, a partir das quais esses jovens se permitem preencher os vazios do texto, o leitor apropria-se textualmente dos sentidos construídos pelos diversos agentes da linguagem, da sensibilidade e da imaginação que efetivam caminhos de entendimento do texto.

Para que a leitura literária se torne uma experiência estética e artística, é necessário deixar de abordá-la como um pretexto, pois, para que essa leitura plural e rica em possibilidades seja fruitiva, faz-se necessário fazer a experiência na leitura, o que implica que ela seja entregue e não se resuma a atividades de interpretação ou ao estudo da língua. Contudo, a fruição dá-se na relação entre obra e leitor, e esta, para além do deleite, exige uma investigação que atravesse o texto, as suas fissuras e os seus vazios. O depoimento de Ninguém, a seguir, encaminha-nos a pensar que ele se afetou pela obra e, talvez, algo tenha acontecido interiormente, tocado sua subjetividade e possibilitado uma experiência.

Eu não sou uma pessoa que tem o hábito de ler. Se eu costumo ler, estou lendo mais parte de jornal que são simplesmente notícias ou uma crônica que você lê e é aquilo. Então, a hora em que eu li esse livro, foi justamente o livro que mais me prendeu até hoje. O último livro que eu li, por exemplo, era de opinião política de um cara, era ele dando a opinião dele e você digerindo tudo aquilo. E a hora que eu vi esse livro eu só o queria para o Vestibular, realmente, tirar as informações dele e acabou. Foi um livro que eu não cheguei a um entendimento pontual, então eu não sei o que eu vou responder no Vestibular (risos). Toda hora que eu descobria uma coisa eu ficava: meu deus! Eu ficava com vontade de voltar, de realmente ler de novo, coisa que eu não costumava ter e agora já estou pensando em procurar outro livro nesse estilo. (Ninguém, 17 anos, estudante)

Para esses estudantes, a literatura parece um acontecimento por muitos motivos, dentre eles, porque, quando nela penetram, conforme descreve Petit (2009), se tornam mais hábeis no uso da língua, conquistando uma autonomia intelectual que os possibilita explorar a experiência humana, atribuindo sentidos e valores poéticos à leitura. A autora, com seus estudos acerca da sociologia da leitura, convida-nos a pensar que não nos tocamos apenas pelos sentidos da literatura, mas também com todo o sentido que produzimos por meio da literatura, na relação com o texto, o que Petit (2009, p. 23) denominou de “apropriações singulares”. A pesquisadora ressalta que os textos literários, por trabalharem intensivamente com as metáforas, levam o leitor a uma leitura e a um relato de si mesmo, e, quando mediadas adequadamente, por meio desse seu caráter metafórico, provocam a curiosidade pelo mundo real, pela atualidade e pelas questões sociais.

Se a experiência de leitura, no sentido atribuído por Larrosa (2009, p. 6), não consiste apenas em “[…] entender o significado do texto, mas em vivê-lo”, a leitura, portanto, exigiria um tipo de afinidade vital entre o leitor e o livro para que possa tornar-se um acontecimento, quer por meio da figura do mediador, quer pela própria relação com o livro como objeto propositor. Nesse sentido, promover provocações e diálogos para que esse tipo de afinidade floresça no encontro com os livros literários, compreendidos como objetos estéticos e artísticos que a escola tem a seu dispor para explorar sua força criadora, leva o professor, na figura do mediador, a pensar a leitura do literário em sala de aula como um objeto propositor da experiência dos sentidos, um provocativo convite à entrega, ao jogo e à fruição.

 

Nós reescrito por nós

[…] é imprescindível recriar. Estou aqui é para ajudar a desfazer os nós […]. (Miguel, 2017, p. 68)

Metalinguisticamente, Eu, personagem na trama de Miguel (2017), nos dá as pistas não só do jogo a ser trilhado por cada leitor da obra, mas também do jogo reversível e criativo a que nos propusemos trilhar também como pesquisadoras.

Assim, na abordagem desta pesquisa, a leitura do texto literário, na qualidade de texto de fruição, suscita níveis de leitura para além do mero e prazeroso entretenimento, convergindo componentes da própria reescritura, configuradora de novas tessituras textuais, de modo que os desdobramentos de significação experienciados possam ser incorporados à vivência cotidiana. Essa leitura passa, dessa forma, ao nível de reescritura, na medida em que se torna capaz de preencher as lacunas, ampliar percepções, sentidos e dar voz a significados silenciados, conforme nos relata o estudante Um Outro:

Articulando esses trechos do livro ao todo (às mediações, à obra como um todo, às telas, aos nós por nós desatados), enquanto eu lia, e quando eu terminei de ler o livro a primeira vez, a sensação que tive é que não tinha tudo no livro que precisava para resolver de fato a trama. Então eu fui pesquisar, criar relações… É a primeira vez que eu leio um livro e ele me dá a curiosidade suficiente para ir pesquisar a vida do autor para tentar fazer relação com o livro. Até então todo livro que eu lia tinha um começo, meio e final. A trama estava resolvida ali para mim e eu tirava a minha conclusão disso. E é o primeiro livro que eu leio que me força a descobrir o final sozinho. Não é algo dado pelo autor, é algo que a gente mesmo reescreve. (Um Outro, 17 anos, estudante)

A experiência de uma leitura hipertextual o leva a perceber-se um leitor capaz de preencher lacunas e a tecer relações textuais, provocada pela curiosidade e pelos encantamentos com que a obra afetou esse leitor, levando-o, pela primeira vez, a buscar e a construir sentidos e sensações na relação com uma obra literária. Partindo, portanto, do pressuposto de que a leitura do literário, para afetar o leitor, necessita ser um texto potente que o leva a fazer uma experiência estética e artística nas salas de aulas ou em outros espaços pensados também como ambientes leitores, percebemos o quanto esse aluno se deixou afetar pelo texto, trazendo-o para si, criando e estabelecendo relações próprias, dando vazão para a fruição.

A mediação de leitura pode potencializar a exploração do texto em sala de aula quando possibilita o diálogo entre os alunos, quando dá espaço para as suas impressões, percepções e sensações construídas com a leitura da obra. Durante a mediação, os alunos sugeriram que cada grupo construísse uma perspectiva do romance pelo óptica de um dos personagens, entrecruzando todas as perspectivas ao final.

Tratando-se de um romance cheio de nós e enigmas, compreendemos o desejo dos alunos de jogar com as possibilidades de olhar para, pela e sobre a trama das vozes narrativas que os convidavam ao jogo literário. Então, os grupos puseram-se a trocar percepções sobre as personagens, sobre suas trajetórias, características físicas e psicológicas, curiosos quanto à forma como se movimentavam na história, sobre como transformavam os percursos de leitura.

Cada uma dessas personagens nomeadas por uma suposta pessoa do discurso, em uma metonímica relação com o próprio título da obra, Eu, Tu, Ela, Um Outro, Ele, Ninguém e Nós, formam personagens, pessoas do discurso e vozes distintas, emaranhadas ao longo de Nós, de Miguel (2017). O entrecruzamento, sugerido pelos alunos, os levaria a perceber que, em todos os capítulos, quaisquer das personagens estavam sempre intimamente intrincadas às demais, e justamente esse elemento tornava os nós ainda mais justos.

Por trazer à baila mais do que uma história cheia de enigmas, Nós é um texto artístico cuja beleza está, também, e principalmente, na força estética e artística da construção do texto, nas trajetórias de experiências de leitura, nas singularidades da tessitura narrativa, no jogo instituído entre o leitor e a obra. Quando Ela e Ele conseguiram abdicar das relações que já traziam consigo, para então as reanunciarem ampliadas pelos sentidos, abriram-se para entrar no jogo com a obra literária, para construírem uma experiência pensante com a linguagem, como sinaliza Heidegger (2015), na qual o sujeito fruidor produz plurissignificações por meio dessa potência criadora que é a obra.

Esse livro é bem diferente do tipo de literatura que costumo ler, então eu sinceramente não tinha entendido nada, mesmo a professora tendo falado para não nos preocuparmos apenas em entender. Eu confesso que tive a expectativa de que as professoras nos explicassem e esclarecem tudo na aula. Só depois de nos aprofundarmos em grupo, eu consegui criar significados próprios. (Ela, 17 anos, estudante)

Eu também tive essa expectativa, mas quando a gente se sentou em grupo e recapitulou o que cada um tinha percebido, sentido e entendido, eu consegui ver como aquela personagem (Tu) estava presente em muito mais coisas ao longo do livro do que eu tinha percebido antes. A personagem fazia parte de quase tudo. (Ele, 16 anos, estudante)

No momento que o estudante Um Outro percebeu que o autor renuncia a uma descrição física, sequencial e adjetivada da personagem, alternando, inclusive, entre os gêneros e os tipos textuais para fazê-lo, o leitor compreendeu, também, outras vias de chegar a essa caracterização, e o fez a ponto de senti-la.

Pegamos o personagem Ninguém, e eu pensei que a gente tinha se dado mal, porque esse não é bem um personagem típico. No capítulo que o autor descreve o Ninguém, tem duas definições de dicionário, dois poemas e duas notícias de jornal. Foi aí que percebi que o autor não o descreveu, mas fez o leitor senti-lo. (Um Outro, 17 anos, estudante)

Esse aluno abdicou até mesmo do cômodo encadeamento coeso e estruturado da prosa para adentrar a linguagem poética proposta. Não se trata apenas de resolver ou desvendar racionalmente os mistérios da trama de Miguel (2017), pois a obra literária, as pessoas envolvidas, bem como o próprio espaço escolar desempenham juntos papéis mediadores de um processo de autonomia e de criatividade desencadeadoras de atividades tanto intelectuais quanto afetivas. Essas atividades conduzem à reflexão, à fruição, alargando nossas potencialidades intelectuais, assim como a percepção de nós mesmos e do outro, como relata Ninguém:

No início, eu estava muito angustiada por não ter entendido quem era o mandante do assassinato, mas depois das mediações e de toda a troca de ideias em sala, eu ampliei tanto a minha maneira de perceber a história, que já nem me preocupo mais com quem é o assassino, o mandante, no caso. (Ninguém, 18 anos, estudante)

As interações e as discussões durante as mediações em sala de aula permitiram a abertura de diálogos inesperados e espontâneos, ampliando a “[…] socialização dos saberes e das perspectivas pessoais de cada fruidor” (Martins & Picosque, 2012, p. 33), uma vez que o processo fruitivo dos leitores se vincula, também, à capacidade de dialogar com a obra e, posteriormente, sobre a obra. Isso nos leva a pensar sobre o trabalho com a mediação do texto literário, a pesquisar e a colher dados, afetos, expressões e questionamentos que possam contribuir com a nossa e a jornada de todos que acreditam no quanto a leitura do literário pode nos mobilizar por meio do sensível e do inteligível.

Nesse sentido, Martins (2014, p. 260) alerta-nos sobre a mediação nos demandar, em sua ação, “[…] um consciente estado de vigília no estar entre muitos”, ação capturada pelo próprio Ninguém ao transcender e ampliar as diferentes percepções compartilhadas. O estar entre no texto permitiu-nos conhecer as esquinas da obra, do não se saber o que encontrar pelo caminho das dobras das frases, das páginas dos capítulos, das contribuições que foram tão genuinamente se tecendo a cada curva lida-percorrida.

 

Considerações finais

Não estou morta, não estou morta, não estou, não… (Miguel, 2017, p. 78)

Assim como Ela, a personagem assassinada na trama de Nós, de Miguel (2017), que surge ao final da narrativa ecoando em cada um reflexões e questionamentos a serem desvelados pós-leitura, articulando à sua morte caminhos múltiplos de permanecer viva no imaginário do leitor, aqui desejamos, também, reverberar em pesquisas, reflexões e práticas que contribuam para o exercício da docência, no que diz respeito a mediações de leitura do literário.

Este estudo permitiu-nos tecer algumas considerações relacionadas à mediação do literário a partir da compreensão do texto como material que se coloca diante do leitor para o rompimento com o já determinado, para a ampliação do olhar, pela construção de diálogos e pelos encontros que levam o estudante ao encantamento ou ao estranhamento, ao questionamento, à dúvida, à inquietação. Trouxemos à baila a concepção de leitura como um movimento que encaminha o leitor a múltiplas direções, as quais o possibilite perceber a obra literária como parte de uma teia de sentidos, tanto para quem a cria como para quem se volta à experiência leitora.

Esta pesquisa propôs-se a discutir como os estudantes do terceiro ano do Ensino Médio, em uma instituição pública de ensino integral e em maioria oriundos de escolas públicas, se relacionam com obras indicadas pelas listas do Vestibular, quando sua mediação prioriza a experiência estética e artística com o texto literário. As narrativas dos alunos evidenciaram que eles ainda não se consideravam leitores e, devido à intensa carga horária das aulas integrais, argumentavam não sobrar tempo para leituras literárias. Todavia, por meio das mediações propostas em sala de aula, tornaram-se curiosos e instigados, sentiram-se confiantes no processo de construção de sentidos. Constatamos que os estudantes adentraram as diversas camadas do texto literário, jogando com a obra, fazendo interlocuções com o autor e com os colegas, questionando o texto e usando a própria criatividade, desenvolvendo, assim, a autonomia de leitura. Esse movimento evidencia que a relação que estabeleceram com o texto é de fruição, que houve uma percepção que não se limita ao contato com o enredo e os personagens, mas uma investida nos sentidos conotativos, no revozeamento do texto, nas suas dobras, desvendando sua potência artística e estética.

As reflexões feitas ao longo das mediações com o livro permitiram aberturas quanto às possibilidades de trocas entre o autor e os leitores, oportunizando que estes pudessem analisar os critérios estéticos e artísticos da obra literária indicada pela lista do Vestibular, mantendo-se atentos às intervenções na obra. Essas intervenções constituíram-se por meio da articulação a outros textos trazidos por Miguel (2017), o que possibilitou um exercício de montagem e coautoria entre os alunos, que incentivou o processo de criação pela leitura.

Suas narrativas revelaram que as mediações possibilitaram o desenvolvimento de senso de autonomia, e que os alunos se sentiram parte da construção de sentidos do texto, compreendendo que os usos linguísticos nos contextos de fruição literária permitiram-lhes percorrer por texturas mais profundas do texto, percebendo-se capazes de contribuir e de serem ouvidos. Os estudantes sentiram-se curiosos quanto à forma como se movimentavam na história e sobre como transformaram os percursos de leitura por meio das trocas de percepções sobre as personagens, as trajetórias, as características físicas e psicológicas.

Colhemos, em suas narrativas, dados que demonstram que as interações e as discussões durante as mediações em sala de aula permitiram a abertura de diálogos inesperados e espontâneos, de modo a ampliar os diálogos com a obra e, posteriormente, sobre a obra. As mediações de leitura do literário oportunizaram encontros entre alunos e obra possibilitadores de contatos artísticos e culturais, suscitando, nos estudantes, experiências estéticas com e pelo texto literário, a partir das quais o leitor pode reivindicar papel ativo à medida que estabelece novas relações consigo mesmo e com o mundo.

No que diz respeito à construção formal da obra, pudemos, ainda, observar que a percepção de Nós como uma literatura hipertextual se mostrou uma oportunidade de aprendizagem estésica e artística do mundo por meio da saborosa e íntima relação experienciada pela leitura da obra literária, à medida que os encontros entre os estudantes e a obra viabilizaram a construção de relações múltiplas entre a leitura do literário e a educação sensível.

Esta pesquisa trouxe à baila que o ensino da literatura no Ensino Médio, ao fazer uso das listas de livros a serem lidos no exame do Vestibular, pode dar-se pela fruição, e a sua leitura pode promover a autonomia e a criatividade, pois a leitura, quando se dá pela experiência, é um ato intelectual, mas também afetivo e sensível. Suas narrativas apontam que as atividades de leitura os conduziram à reflexão e à fruição, exercícios essenciais para a ampliação tanto das potencialidades intelectuais quanto da percepção de si mesmos e do outro. Por meio do diálogo entre os envolvidos, possibilitaram-se trocas, múltiplas manifestações e provocações que oportunizaram encontros entre obra e leitor.

 

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[i] Mestre em Educação pela Universidade do Vale de Itajaí (2019). Professora efetiva de Língua Portuguesa no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Catarinense.

[ii] Doutora em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina (2002). Professora do Programa de Pós Graduação em Educação da Universidade do Vale de Itajaí.

[3] Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI), sob o número 2.713.653 e financiada pelo Programa de Bolsas Universitárias de Santa Catarina (UNIEDU) e pelo Instituto Federal Catarinense (IFC).