Artigo
"Princesa
Mononoke" (1997): análise do filme e aplicação na Educação
Ambiental
"Princesa Mononoke” (1997): análisis de la
película y aplicación en Educación Ambiental
"Princess Mononoke" (1997): movie analysis
and application in Environmental Education
Ana Paula da Silva Amaral Soares[i]
Universidade Federal Fluminense
Niterói, RJ, Brasil
https://orcid.org/0000-0002-6026-9672
Jessica do Prado Valeriano[ii]
Universidade Federal Fluminense
Niterói, RJ, Brasil
https://orcid.org/0000-0003-0388-8693
Tate Aquino de Arruda[iii]
Universidade Federal Fluminense
Niterói, RJ, Brasil
https://orcid.org/0000-0002-8795-862X
Os
autores contribuíram igualmente na elaboração do manuscrito.
Recebido em: 05/07/2022
Aceito em: 11/10/2022
Publicado
em: 18/10/2022
Linhas
Críticas | Periódico científico
da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília, Brasil
ISSN: 1516-4896 |
e-ISSN: 1981-0431
Volume 28, 2022
(jan-dez).
http://periodicos.unb.br/index.php/linhascriticas
Referência
completa (APA):
Soares, A. P. da S. A., Valeriano, J. do P., & Arruda, T. A. de.
(2022). "Princesa Mononoke" (1997): análise do filme e
aplicação na Educação Ambiental. Linhas Críticas, 28, e43974. https://doi.org/10.26512/lc28202243974
Link alternativo:
https://periodicos.unb.br/index.php/linhascriticas/article/view/43974
Licença Creative Commons
CC BY 4.0.
Resumo: O presente estudo busca analisar o filme de
animação “Princesa Mononoke” quanto a alguns de seus temas centrais -
dentre eles a ecologia, a influência antrópica na natureza e a espiritualidade
- como forma de introduzir estes conceitos em sala de aula para estimular
discussões e debates sobre Educação Ambiental. Ao trazer para o ambiente
escolar um artefato midiático oriental destinado ao público juvenil – conquanto
maduro e gráfico no que concerne seu enredo –, pretende-se abrir espaço para
expandir horizontes e realidades, além de permitir a criação de pontes entre
diferentes culturas, promovendo uma reflexão aprofundada sobre os impactos do
homem no meio ambiente.
Palavras-chave: Educação Ambiental. Natureza. Cinema.
Resumen: El presente estudio busca analizar la película de
animación "La princesa Mononoke", en relación con algunos de
sus temas centrales - entre ellos la ecología, la influencia antrópica en la
naturaleza y la espiritualidad - como una forma de introducir estos conceptos
en la clase para estimular discusiones sobre Educación ambiental. Al traer al
ámbito escolar un artefacto mediático de origen oriental destinado al público
joven - aunque maduro en cuanto a su trama -, se pretende abrir espacio para
expansión de horizontes y realidades, además de permitir la creación de puentes
entre diferentes culturas, promoviendo una reflexión profunda sobre los
impactos del hombre en el medio ambiente.
Palabras
clave: Educación ambiental. Naturaleza. Cinema.
Abstract: The present study aims to analyze some of the central
themes in the animation film “Princess Mononoke”, such as ecology, the
anthropic influence in nature, and also spirituality, as a means of introducing
these concepts on a classroom to stimulate debates on environmental education.
By bringing a media artifact such as the aforementioned eastern film to the
school – although it is a mature and graphic choice of media, it is intended
for the young audience – we look forward to create a space for expansion of
ideas and to broaden cultural realities, and also allow the connection of
multiple cultures, promoting a deep reflection on the impact mankind has on our
environment.
Keywords: Environmental Education. Nature. Cinema.
Introdução
A Educação Ambiental nasce como uma
ciência focada na discussão do equilíbrio entre sociedade, natureza e
desenvolvimento, em um contexto pós Segunda Guerra Mundial (Scotto et al.,
2007). Ela se caracteriza como um processo de aprendizado que possibilita
refletir o mundo sob uma ótica de sustentabilidade ambientalista, muito
centrada na discussão de valores, como o ato de pensar ecologicamente. Dito
isso, pode-se assumir, então, que uma das premissas da Educação Ambiental está
em compreender as múltiplas experiências individuais e suas relações com o
ambiente (Carvalho, 2006).
Participam ativamente deste processo
educativo os discursos midiáticos: a forma como o mundo é retratado e escrito
através dos vários meios de comunicação da sociedade moderna (Schwantes &
Ribeiro, 2017; Henning et al., 2018). A mídia da atualidade – com seu amplo
alcance e capacidade de penetração social - tem o poder de influenciar a forma
pela qual as mais distintas camadas da sociedade enxergam, percebem e sentem o
mundo, e também sua forma de se relacionar com ele. A mídia, em suas múltiplas
facetas, transmite recortes da realidade travestidos em discursos prontos e,
muitas vezes, perigosos, que para observadores despretensiosos podem ser
aceitos e absorvidos como verdades absolutas. Quem melhor e mais apto dos que
as mídias para vender verdades? Comumente os vetores de comunicação populares
como mídias de consumo para entretenimento– a exemplo de filmes, séries e
músicas - acabam por ser um dos únicos veículos de transmissão da temática ambiental
à população, e por consequência o mais efetivo. Em circulação neste universo
estão temas como: consumo de água, lixo e reciclagem, desmatamento, gases do
efeito estufa e aquecimento global, entre outros. A relevância destes eixos
temáticos não está em discussão, mas sim como eles estão sendo retratados pelas
mídias e incorporados pelo público. Por vezes, a banalização do discurso
ambiental acaba por levar a um efeito oposto do almejado, causando enfado ao
público jovem, que enxerga o universo ecológico com monotonia e desinteresse.
Um estudo realizado por Silva et al.
(2021) analisou o conhecimento prévio de uma turma de educação básica de uma
escola pública em Minas Gerais quanto a suas percepções sobre o tema de
Educação Ambiental, percebendo que muitas das noções gerais dos alunos se
baseavam no senso comum, sendo muitas vezes superficiais e generalistas. Os
autores discutem sobre a importância de uma educação crítica no âmbito
ambiental, que permita aos alunos criarem um vínculo pessoal de interesse sobre
o tema ao percebê-lo em seu contexto social. Assim, a formação global do
sujeito crítico, entendida pelos autores como de grande importância, pode
começar através da percepção pessoal dos indivíduos dentro de sua realidade
atual, - a exemplo da realidade de sua vizinhança, cidade e país – e aos poucos
ampliar-se conforme a formação crítica é desenvolvida, ao fugir-se das
metodologias de ensino consideradas tradicionais, e baseadas em sistemas como
os de memorização de soluções imediatistas a modelos de problemas
pré-definidos, que nada instigam nos alunos, pelo contrário: apenas trazem
aversão ao estudo, estimulando uma mímica vazia de repetições de conceitos logo
esquecidos.
Neste sentido, atualmente muitos
pesquisadores em Educação Ambiental têm se dedicado a analisar artefatos
culturais midiáticos, a fim de observar quais discursos estão sendo
popularizados e entender o que há por trás de suas narrativas (Veiga-Neto &
Costa, 2004; Janke et al., 2005; Machado, 2008; Lisboa, 2012; Wortmann et al.,
2012; Lorenzon et al., 2014; Marcello & Ripoll, 2016). Cardoso et al.
(2021) realizaram um trabalho com alunos de ciências biológicas no qual
apresentaram o filme Wall-E, cujas temáticas centrais trazem as ideias
contemporâneas de sustentabilidade e saúde em sociedade, e em seguida
estimularam discussões com os alunos. Os autores ainda destacam a importância
de animações como o filme em questão na educação, uma vez que este tipo de
mídia traz leveza e ludicidade no processo de aprendizagem através da problematização
ilustrada e dinâmica de conceitos cotidianos já presentes e conhecidos pelos
alunos, porém muitas vezes intocados quanto à prática da reflexão, uma
habilidade que precisa ser instigada pelo docente em cada aluno.
O contexto ambiental global da atualidade
não é, de forma alguma, favorável a humanidade como um todo. A situação
política global, somada aos efeitos e consequências mundiais de um capitalismo
tardio, atinge diretamente o meio ambiente, que se defende de maneiras
imprevisíveis e muitas vezes catastróficas para a humanidade – vide a
ocorrência de fenômenos como enchentes e secas provocados por desequilíbrios
ambientais provenientes da exploração desenfreada da natureza, e que trazem
grandes riscos à vida nas cidades (Moreno & Ravache, 2021). A árdua tarefa
de minimizar os impactos ambientais está nas mãos de seus causadores: os seres
humanos, e para isso é necessário que o conhecimento ecológico se propague por
todas as camadas sociais. Nas escolas é muito importante que haja uma Educação
Ambiental eficiente, e discursos prosaicos – a exemplo de Jogue lixo no lixo e os famosos Reciclar,
reduzir e reutilizar - muitas vezes já são triviais, falhando em
sensibilizar a juventude. Novas abordagens para discutir questões ambientais em
sala de aula são extremamente importantes, e utilizar do recurso de uma mídia
como o cinema para entreter, ao mesmo tempo em que se ensina tem se demonstrado
um importante mecanismo.
Elencado com base em um roteiro
proposto por Schwantes e Ribeiro (2017), que perpassa por oito perguntasbase
para se pensar uma análise de um artefato cultural midiático, o presente
trabalho se propõe a analisar qualitativamente o longa-metragem de animação Princesa Mononoke (Miyazaki, 1997), buscando entender quais
conceitos de Educação Ambiental são abordados no filme - tanto explícita como
implicitamente, quais tipos de discursos podem ser observados, bem como de que
forma aspectos socioculturais estão entremeados à narrativa e podem ter
influenciado na escolha de seus elementos.
O Artefato Cultural Midiático: Princesa Mononoke
Princesa
Mononoke é uma animação
japonesa em longa-metragem produzida pelo renomado Studio Ghibli, sob roteiro e direção de Hayao Miyazaki. Lançado no
Japão em 12 de julho de 1997, sob o título original もののけ姫 (Mononoke
Hime, em japonês romanizado, ou Princess
Mononoke, em inglês), e no restante do mundo dois anos mais tarde, Princesa Mononoke é um filme de
aventura/fantasia voltado ao público juvenil, apresentando uma atmosfera mais
sombria, madura e por vezes violenta em relação às demais animações da
franquia.
Aclamado pelo público, o filme
retrata a jornada de um jovem príncipe (Ashitaka), condenado por uma maldição
enquanto salvava seu vilarejo do ataque de um furioso Deus-javali
(originalmente o deus Nago, acometido
pelo mesmo mal de Ashitaka, virando um Tatarigami
(Deus da maldição, na tradução direta do japonês), em busca de sua cura. Sua
aventura rumo ao oeste revela um forte desequilíbrio entre seres humanos e a
natureza: Deuses ancestrais estão perdendo seu hábitat devido aos avanços da
atividade mineradora na região, passando a travar batalhas com os seres humanos
para garantirem sua sobrevivência. É neste cenário que se encontra a personagem
que dá nome ao filme, a jovem Princesa
Mononoke (San). Resgatada quando jovem por deuses lobos, San possui uma
dualidade peculiar: sua essência é humana, mas sua alma e coração pertencem aos
deuses. Quando Ashitaka chega ao seu destino, passa a vivenciar a realidade de
San e dos deuses ancestrais, assim como dos humanos que exploram minério de
ferro no local, criando um conflito muito maior do que a maldição que
originalmente o assolava.
A escolha deste artefato cultural
midiático para análise se deu a partir do conhecimento prévio pelas autoras de
que a relação ser humano-natureza está fortemente presente no filme,
aparecendo, também, em diversos outros títulos da franquia Studio Ghibli, uma produtora
japonesa que sempre traz uma sensibilidade particularmente especial a temas da
natureza humana, espiritual e emocional.
Instrumentos Norteadores da Análise
Optou-se por realizar uma análise
qualitativa do artefato cultural midiático. O filme, previamente assistido
pelas autoras, foi revisto sob uma nova ótica, agora atenta a elementos que
evidenciassem abordagens da Educação Ambiental. Os objetivos do trabalho foram:
I) Entender quais conceitos de Educação Ambiental são abordados no
longa-metragem, tanto explícita como implicitamente, II) Quais tipos de
discursos podem ser observados no filme, e III) De que forma aspectos
socioculturais estão entremeados à narrativa e podem ter influenciado na
escolha de seus elementos.
Seguiu-se o roteiro proposto por
Schwantes e Ribeiro (2017) para a análise do filme Princesa Mononoke, o qual aborda oito perguntas direcionadoras em
termos de análises de artefatos culturais midiáticos voltadas à Educação
Ambiental. São elas:
1) Que tipo de artefato cultural é
esse?
2) Quais as estratégias de
veiculação desse artefato?
3) A quem ele se endereça?
4) Qual a sua estrutura básica?
5) De que ele trata?
6) Quem fala através dele e de que
lugar?
7) O que ele ensina sobre meio ambiente?
8) O que ele silencia?
Cabe salientar que a análise do
artefato midiático que se segue busca esmiuçar o conteúdo do filme discutido em
prol de resgatar o que foi apresentado no início deste manuscrito: como os
eixos temáticos da Educação Ambiental são retratados nas mídias e podem ser
incorporados pelo público, quais discursos estão sendo nelas veiculados e o que
há por trás de suas narrativas. Além disso, não objetivamos alcançar uma
verdade absoluta. O texto em questão é apenas uma possibilidade de olhar frente
a inúmeros outros olhares, sempre refletindo diferentes realidades e percepções
de mundo para um mesmo cenário. Dito isso, partiremos agora para a análise do
artefato.
A partir do roteiro de questões
norteadoras de Schwantes e Ribeiro (2017), podemos classificar Princesa Mononoke (Miyazaki, 1997) como um
artefato midiático cinematográfico, que pode ser categorizado nos gêneros de
animação, fantasia, drama, aventura e ação. O conteúdo do filme é de ficção
histórica, e seus meios de divulgação são através do cinema, da televisão e,
mais recentemente através de serviços de streaming.
No Brasil, o longa tem classificação indicativa não recomendada a menores de 12
anos, o que o destina a um público-alvo infanto-juvenil e de jovens adultos.
Isso se justifica pela complexidade e profundidade temática do enredo maduro da
história, e da existência de cenas com violência imprópria aos olhos do público
infantil.
A estrutura básica do filme pode ser
dividida em três atos principais. O primeiro ato abre o filme com uma imagem do
Japão feudal e uma narração que explica o conflito entre a natureza ilustrada
na tela, e os seres humanos. Neste ato, o filme nos apresenta seus
protagonistas e começa a pincelar suas histórias e personalidades. O tema
central do filme começa a ser delineado em torno da relação Homem-Natureza,
através da jornada de Ashitaka na busca pela cura de sua maldição. O segundo
ato do filme se desenrola com a iniciativa do protagonista em seguir sua
jornada, o que nos leva ao meio do filme, no qual Ashitaka tenta mediar o
conflito entre os grupos antagonistas da história - constituídos de um lado por
mineradores que estão destruindo a floresta para aumentarem os lucros e, do
outro, os Deuses, criaturas protetores da floresta e San (Princesa Mononoke), que se torna objeto de
afeição do Ashitaka - que travam uma guerra entre si, e busca ganhar a
confiança de San. A tensão cresce, e culmina no confronto de Lady Eboshi, líder
da mineradora com o Espírito da Floresta, que é decapitado por ela e se
transforma num Deus da Morte, causando a morte da floresta e trazendo grande
desespero e lamento aos protagonistas que tentavam protegê-la. Esse ponto
trágico da história marca o fim do segundo ato, levando o espectador a refletir
sobre a ganância do ser humano ao matar um Deus e destruir a floresta. A partir
de então, se inicia o terceiro ato, no qual os protagonistas San e Ashitaka
reganham força e determinação para impulsionar suas histórias, o que nos conduz
ao final do filme suavemente. O filme encerra com uma mensagem de esperança,
através da imagem de grama crescendo onde um dia viveu o espírito da floresta,
morto pelo conflito com os Humanos, mas agora se transformando numa fagulha de
nova vida e recomeço. Princesa Mononoke
se encerra em um novo início, com o brotamento de otimismo e luz na forma de
uma nova floresta nascendo.
A partir da descrição da estrutura
do enredo do filme nesses três atos, podemos responder à pergunta O que este filme nos ensina sobre o
meio-ambiente? ao classificar suas temáticas centrais como o ambientalismo
e a relação entre ser humano e natureza. O filme constantemente ilustra
maneiras contrastantes de interrelações entre o Homem e o meio-ambiente, seja
através da devastação e exploração, seja através da aliança e proteção.
Para responder à questão de quem fala através do filme, podemos
olhar com mais atenção para o seu estúdio produtor. O Studio Ghibli é conhecido
mundialmente por seus filmes de temática sentimental e ambientalista. Um
exemplo anterior a Princesa Mononoke
é Nausicaa do Vale do Vento, de 1984,
que também explora fortemente uma mensagem anti-bélica e temáticas de natureza
em seu estado apocalíptico e pós apocalíptico. Um dos eixos deste e muitos
outros filmes idealizados pelo diretor Hayao Miyazaki é o papel do indivíduo no
coletivo da transformação do planeta, e o desequilíbrio da relação homem-natureza
causado por uma fragmentação do corpo, do espírito e do meio-ambiente (Morgan,
2015). Os filmes do Studio Ghibli nos contam histórias sobre o mundo real,
através do fantástico, de visuais exuberantes e trilhas sonoras poderosas.
Miyazaki fala através de suas produções culturais, e conversa com o
telespectador sobre a importância da natureza e sobre os perigos da ganância
humana, sempre com uma perspectiva eco-ambientalista. Assim, seus filmes
ensinam o amor e o carinho para com a Terra, e buscam sensibilizar o público a
explorar seus sentimentos e a conexão do espírito humano com o natural,
temáticas pertinentes à cultura japonesa, mas que também tem lugar no mundo
ocidental. Princesa Mononoke nos
ensina a nos enxergar como parte do meio-ambiente, e não apenas em meio a ele.
Essa visão é essencial ao desenvolvimento de um pensamento crítico do
capitalismo, do consumismo e da exploração desenfreada de recursos naturais da
atualidade. Em termos do que o artefato cultural em questão silencia, pode-se
discutir que apesar de bem estruturado e completo no que diz respeito à
mensagem que se propõe a transmitir, muitas temáticas pertinentes à educação
ambiental não são abordadas no filme, não por serem propositalmente ignoradas,
mas por falta de espaço ou congruência com a história em si. Aspectos relativos
à temas como extrativismo e exploração de outros tipos de recursos, fora os
claramente abordados no filme (como o minério de ferro), ficam por fora do
longa, mas de nenhuma forma isso prejudica a mensagem da história.
Análise do Filme
A conservação ambiental é um tema
extremamente relevante em 2022, e o filme Princesa
Mononoke, de 25 anos atrás, já demonstra com muito foco e crítica as ações
humanas no meio ambiente, utilizando como recurso o desenho animado e a ficção.
A trama, ainda em suas primeiras cenas revela:
Em tempos idos houve uma terra
coberta por florestas e onde, em épocas há muito passadas, viviam os espíritos
dos deuses. Então, homem e bicho viviam harmoniosamente. Mas com o passar dos
tempos a maioria das grandes florestas fora destruída. As que se salvaram eram
guardadas por animais gigantescos, súditos do grande espírito da floresta, pois
esses eram os dias de deuses e de demônios. (Miyazaki, 1997)
Desde o início do filme, a temática
da importância do estabelecimento de um equilíbrio harmônico entre Homem e
Natureza – entidades quase antitéticas quanto as suas existências, que se
interseccionam no caos: criando assim, uma relação de poder e domínio que
impreterivelmente causa fatalidades em ambos extremos –, é abordada com
clareza. Observamos que Homem e Natureza competem por espaço e poder. O filme
utiliza de alegorias do misticismo para compor uma imagética que traduz o
desmatamento na morte do espírito da floresta como um todo, e não apenas de
seus habitantes individuais, sejam eles animais, plantas, fungos ou quaisquer
outras criaturas inocentes da condição de ser Humano – ou seja, ser
intrinsicamente corrupto pela gana de explorar e construir, desmatar e matar.
Cobos (2012) cita Foucalt para discutir relações de poder intimamente ligadas a
ideologias e seus embates no filme Princesa
Mononoke, e afirmam que o exercício do poder é o “governo” de homens sobre
outros homens, e que a liberdade e o poder não são mutuamente exclusivos – pelo
contrário, a liberdade seria uma condição da existência de poder, e a
escravidão – no extremo oposto da liberdade - não seria uma relação de poder, e
sim uma relação física de coerção.
O longa-metragem consegue abordar a
temática ambiental de uma maneira muito particular, através de sua ligação com
divindades - os denominados espíritos da natureza, em suas mais diversas formas
– capazes de conquistar os sentimentos de carinho e empatia do telespectador,
que acaba por se encontrar envolto pela magia do enredo ao mergulhar cada vez
mais na trama, que cativa ao trazer atenção para a questão da preservação
ambiental.
Relembrando o enredo, a história
conta sobre a vida de um príncipe, que ao se deparar com um monstro o mata e é
amaldiçoado. Dentro dele encontram o motivo da maldição: uma esfera de ferro. A
partir daí, o príncipe Ashitaka parte de seu vilarejo buscando a cura de sua
maldição e tentando entender de onde veio a esfera, posteriormente descobrindo
ser de uma aldeia cujo interesse em minerar vem destruindo a pouca floresta
preservada que ainda resta em seus arredores. O protagonista tenta então,
durante toda a história, unir o lado da natureza, defendido também por uma
humana, que foi criada por lobos e se entende como uma – a Princesa Mononoke –, com o lado dos seres humanos. Ao final, o
príncipe amaldiçoado consegue de certa forma atar e remendar esses dois lados
tão antagônicos, porém a floresta nunca voltará ao seu estado original após
tamanha destruição e influência antrópica.
Eixos Temáticos Observados
De acordo com o artigo Os filmes e os estudos de educação ambiental,
escrito por Lorenzon et al. (2014),
podemos classificar o filme com base em sua representação naturalista,
globalizante e antropocêntrica. Na naturalista o ser humano ou não faz parte do
meio ambiente ou tem uma influência negativa nele. Podemos observar alguns
aspectos dessa representação no filme quando praticamente todos os seres
humanos pensam apenas nas riquezas e bens próprios que vão adquirir, esgotando
o meio ambiente o máximo que podem, e não pensam sobre toda a vida que nele
está presente (e que também o constitui). É perceptível para o observador que
apenas o príncipe e a menina-loba se importam com o meio ambiente nesta
narrativa, dentre todos os outros humanos ali representados. A Princesa Mononoke inclusive se refere
aos seres humanos com ódio e diz não se considerar humana, por acreditar também
que todo ser humano tem uma natureza ruim e carrega consigo a destruição
inerente. Quanto à representação globalizante, - que é descrita como a forma
pela qual o homem estabelece uma relação recíproca com a natureza e faz parte
dela - esta pode ser observada no início do filme, na imagem da aldeia
“escondida” de onde o príncipe veio, a qual respeita a natureza e tem uma
relação harmônica com a mesma, e, também, ao final do filme quando a líder da
exploração de ferro (Lady Eboshi) alega que passará a conduzir sua aldeia de
forma mais consciente. A representação antropocêntrica, nesse caso, acaba não
aparecendo tanto no filme. Ela é descrita como se os recursos naturais tivessem
a utilidade apenas para a sobrevivência do homem.
Em razão de o filme ser ambientado
em uma época muito antiga - o período feudal conhecido como Muromachi da
história japonesa, equivalente aos anos 1337-1573 (Hall & Takeshi, 1977) –, mais grupos
humanos viviam em vilarejos e relativamente próximos à terra, sendo a extração de ferro a principal
forma de exploração antrópica de recursos naturais demonstrada no filme. Apesar
disso, a exploração é tratada como um conflito em relação à forma de uso dos
recursos naturais pelos seres humanos. O longa também demonstra as espécies
(mesmo que através da ficção) comportando-se de maneira realista, como fica
evidente na cena que um dos lobos pretende comer o alce ou o menino, ou quando
espantam primatas, evidenciando sua real natureza, porém sem os tornar vilões
por isso. Isso ajuda a desconstruir a noção infantil de que todos os animais na
natureza são amigos e aliados do ser humano (e por isso, reduzidos a uma
caricatura imatura e antropocêntrica que não condiz com a realidade) que muitos
filmes com personagens animais tentam relatar.
Relações Socioculturais
A narrativa de Princesa Mononoke metaforiza o espírito místico da natureza em
deuses animalescos como o Shishigami
– representado por um cervo com longas galhadas –, figuras que demonstram a
distância entre o homem e o meio ambiente. Acompanhada de uma dessas entidades
– Moro, a loba branca -, San se separa dos humanos, sobrepondo seu desprezo
pela própria espécie à sua condição humana. Tendo sido criada por lobos, San
nutre especial carinho por sua família selvagem, e vive para proteger seu lar
da devastação de sua própria espécie. O conflito interno entre o ódio pela
humanidade dentro de si mesma e a dificuldade de aceitação de sua própria
identidade tornam San uma personagem muito complexa, que enxerga a si própria
como loba. Após conhecer Ashitaka, que busca o equilíbrio entre a natureza e a
humanidade, San começa a se aproximar do lado humano profundamente enterrado e
escondido sob o couro que veste sobre a pele.
Um paralelo ainda pode ser traçado
com a famosa obra The Jungle Book: O
livro da selva, de Rudyard Kipling (1894), que narra a história de Mowgli,
um menino criado por lobos que cresce temendo a raça humana, mas acaba por
aceitar sua condição ao final da história, passando a viver em uma aldeia com
seus semelhantes. A história de Mowgli é baseada nos muitos casos de crianças
ferais, que por sua vez são registrados inclusive na mitologia romana, que cita
Rômulo e Remo – que se crê serem fundadores de Roma –, irmãos que, deixados à
própria sorte quando bebês, foram amamentados por uma loba (Bremmer &
Horsfall, 1987).
A história de Princesa Mononoke traz um grande misto de culturas, e diferentes
interpretações podem ser feitas a partir da mensagem ambiental e espiritual que
ela carrega. É provável que em todo folclore e mitologia se encontre alguma
conexão, mesmo que rasa, com os sentimentos deste longa-metragem. Ártemis, na
mitologia grega representa a selva e os animais, de forma semelhante à Oxóssi,
na cultura do Candomblé.
Nogari Júnior (2019) desenvolve uma
análise da obra Viva o povo brasileiro,
de João Ubaldo Ribeiro, estabelecendo conexões entre representações de
divindades africanas aos deuses gregos olimpianos, traçando um paralelo entre a
guerra de Ilíada e a batalha do Tuiuti, que na narrativa do romance de João
Ubaldo conta com a participação dos orixás. Ambas essas entidades anteriormente
citadas estão relacionadas à caça, aos animais selvagens e à provisão de
alimento e sustento aos seres humanos, sendo por eles adorados nestes sentidos,
o que vai ao encontro dos princípios de San. Fugindo da subserviência à
humanidade, as entidades espirituais de Princesa
Mononoke servem primariamente à natureza, prezando por seu equilíbrio.
O curupira – entidade famosa de
nosso folclore nacional – representa algumas similaridades com a protagonista
San. Segundo Sousa (2007), o curupira é um ser fantástico protetor das matas e
das nascentes brasileiras. Esta criatura extremamente inteligente, sagaz e
ardilosa é conhecida por enganar caçadores e os induzir ao erro, levando-os a
se perderem em meio à floresta. O curupira pode reproduzir sons como assobios e
deixar pegadas e rastros ao contrário, uma vez que suas pernas são invertidas,
de forma a causar confusão nos mal-intencionados que adentram seus territórios,
e assim proteger a mata da maldade do homem que busca explorá-la.
Já a Caipora, por sua vez, é outra
entidade do folclore brasileiro que habita as florestas, e ela também apresenta
similaridades interessantes com a princesa da animação do Studio Ghibli aqui estudada. A Caipora também é guardiã da vida
selvagem e, segundo as lendas populares, viaja pelas florestas montando em uma
espécie de porco-do-mato (conhecidos regionalemente como queixada ou caitetu),
semelhantemente a San, que por vezes viaja longas distâncias montada em Moro, a
loba branca. É interessante observar como o folclore adapta temáticas comuns à
distintas sociedades à realidade ambiental de cada cultura, conquanto isso
possa parecer improvável devido à enorme distância geográfica que cria
barreiras entre sociedades como a de populações tradicionais brasileiras e
japonesas. Apesar de essas culturas só terem tido a chance de se encontrarem
recentemente na longa história da humanidade, as semelhanças em aspectos de
seus folclores e culturas pré-datam esse encontro. A temática da defesa da
natureza, de entidades protetoras e deuses capazes de enfrentar o Homem é um
eixo comum a muitas culturas e sociedades, e por isso, talvez, se veja
refletida em tantas histórias populares e lendas. No Japão costumavam existir
duas espécies de lobo que já são consideradas extintas desde o século passado
(Knight, 1997). Estes lobos eram considerados deuses, que conferiam proteção a
viajantes. O porco do mato, por sua vez, já reflete a biodiversidade brasileira
e as representações dos povos que com eles convivem.
Um outro ponto interessante que pode
suscitar muitas discussões em sala de aula e que pode ser percebido no filme
diz respeito a questões de gênero, inclusão de grupos sociais ostracizados e
discussão de estigmas. Na mineradora de ferro, coordenada por uma figura
feminina, Lady Eboshi, é possível observar a reintegração de prostitutas e
leprosos no mercado de trabalho, bem como a igual divisão de tarefas e
representatividade entre mulheres e homens. Num contexto de guerras, lutas e/ou
batalhas, muitas vezes cenários exclusivos de homens e representados como tal
na maioria das mídias, Princesa Mononoke
aparece como um ponto fora da curva. A liderança feminina no filme é muito bem
representada através da dualidade das personagens de San e Lady Eboshi, cujas
construções de ideais diferem, ao mesmo tempo em que ambas personagens
convergem na força e determinação.
Utilização
do filme como um instrumento pedagógico da Educação Ambiental
O simples uso de filmes como
conteúdo educacional em sala de aula não estabelece um diálogo imersivo com os
alunos, de forma que se faz necessária a utilização de alguma estratégia
pedagógica que estimule interação e discussão. Essa estratégia de ensino deve
ser capaz de dialogar com os conhecimentos prévios dos alunos, trazendo à tona
suas vivências e sentimentos e construindo um sentido real para o que lhes foi
apresentado. Essa associação e construção de significado fazem parte da
aprendizagem significativa (Pelizzari et al., 2002). De acordo com Ferrés
(1996), o racional e o reflexivo devem fazer parte do ponto de chegada, não de
partida. Assim, o uso de um artefato cultural midiático vai além do conteúdo,
por gerar nos alunos uma sensibilização prévia ao tema estudado, antes de serem
abordados os conteúdos escolares relativos à educação ambiental. Ele defende
que o método compreensivo leve os
alunos à reflexão através da emoção gerada pelo veículo midiático.
A partir da análise do artefato
cultural Princesa Mononoke (Miyazaki,
1997) aqui apresentado e discutido, concluímos que ele pode ser uma ferramenta
favorável ao ensino e à discussão de Educação Ambiental em escolas. A partir
dele podem-se elaborar atividades pedagógicas com metodologias ativas que visem
a incentivar o aprendizado ativo de forma lúdica, tornando o aluno o protagonista
do seu processo de ensino-aprendizagem (Diesel et al., 2017).
O público-alvo desta atividade seria
de alunos do 1º ano do Ensino médio, a duração seria de 4 tempos de aula, e os
recursos necessários seriam: projetor de vídeo, papel, caneta e acesso à
internet.
A proposta de atividade seria a de
organizar uma releitura de cenas do filme após a exibição do longa em sala de
aula, e a reimaginação de aspectos da história transpostos diretamente do Japão
feudal para um cenário mais moderno brasileiro. Essa atividade poderia ser
realizada em congruência com o desenvolvimento de matérias das disciplinas de
geografia e história do Brasil, como o período colonial e seus desdobramentos
geográficos, e também em interdisciplinaridade com professores de Redação e
Literatura.
Assim, os alunos seriam instruídos a
organizar pequenos scripts com base
em trechos originais do filme, adaptando elementos culturais originais à suas
realidades cotidianas. Dessa forma, a cidade de ferro retratada no filme
poderia dar lugar a cidades históricas do Brasil onde ocorreram atividades como
o ciclo do ouro, da borracha, e até a pecuária. O minério de ferro explorado no
filme poderia representar outros recursos naturais do território brasileiro; a
exemplo das nascentes de rios, minérios naturais do solo, metais preciosos como
o ouro, plantas de grande interesse econômico como a cana de açúcar e o café,
dentre outros. Os personagens do filme poderiam também ser traduzidos à
história brasileira, sob a forma de colonos europeus, coronéis, donos de
fazendas, e até figuras históricas conhecidas da história do país. As
populações tradicionais do filme poderiam espelhar e conversar com grupos como
os cangaceiros, caiçaras, populações nativas indígenas, povos escravizados,
dentre outros. Por fim, poderia também se traçar mais interdisciplinaridade com
a disciplina de Biologia através da reimaginação da fauna e flora fantásticos
do filme, e no estudo de animais e plantas nativos do Brasil para compor o
cenário do roteiro adaptado.
Os scripts desenvolvidos em grupos
pelos alunos poderriam ser adaptados para pequenas peças, a serem exibidas
durante o horário de aula e avaliadas quanto à criatividade, adaptação do
roteiro e participação. Os alunos poderiam se dividir em atores, roteiristas e
diretores e executar uma pequena produção teatral para ilustrar a mensagem
central do filme, traduzida para a realidade do mundo em que vivem. Ao fim da
atividade, os alunos teriam um período para discutir o que gostaram nas
adaptações dos outros grupos, e o que sentiram que aprenderam com o estudo do
filme.
Conclusões
A Educação Ambiental retratada
através de mídias atuais e populares como o cinema - aqui, especificamente
figurada no filme de origem japonesa Princesa
Mononoke – poderia ser um instrumento excepcional de ensino, colaborando
muito para que os alunos consigam transfigurar sua existência pessoal a uma
perspectiva social amplificada no contexto de suas realidades ímpares, através
da empatia proporcionada pelo encanto com o cinema, o fantástico e a arte em
suas vertentes visuais, musicais e sentimentais. Dessa forma, destacamos, como
Cardoso et al. (2021), o papel particular de animações neste processo
educacional crítico que busca, no íntimo, tocar as paixões e curiosidades do
público juvenil, e transportá-lo para outros mundos que refletem os seus de
tantas maneiras.
Essa proposta se mostraria
interessante em superar, de certa forma, as dificuldades do ensino ambiental
relacionadas às diferentes perspectivas de percepção do meio ambiente e aos
diferentes valores e hábitos de cada indivíduo. O cinema, como veículo de
informação, ainda possui a vantagem de introdução dinâmica e expressa às novas
culturas, a exemplo do filme aqui abordado, cuja origem é oriental. Ao se
trazer um recurso de mídia cinematográfico para sala de aula, outra vantagem
está no sentido da apresentação guiada um material exótico e novo aos alunos,
que provavelmente não faria parte de seus repertórios ou interesses
convencionais do dia-a-dia. Uma vez que os filmes são apresentados em sala de
aula, é possível facilmente prender a atenção dos estudantes e, assim, abordar
questões importantes e necessárias para um debate crítico, como, por exemplo, a
Educação Ambiental, cada vez mais necessária.
Como são riquíssimas fontes de
conteúdo, filmes ainda podem ser explorados interdisciplinarmente, permitindo
fomentar discussões que ultrapassam até mesmo o sinal que anuncia o fim da
aula, e sendo ampliadas para além de uma única matéria. A exemplo do filme
discutido neste artigo, muito se poderia aproveitar quanto a seu conteúdo em
aulas de Biologia, História, Geografia, Filosofia, Sociologia e Literatura.
Este tipo de aprendizado vinculado às temáticas que irradiam a outras áreas do
conhecimento são essenciais ao desenvolvimento do aluno, no que tange a sua
capacidade de ensaiar, interpretar a ficção e transpor este estudo à sua
realidade fora dos muros da escola, onde o mundo não se divide em caixas
figurativas disciplinares, e onde as ciências humanas, exatas e biológicas se
mesclam cotidianamente em nós tendo em vista que os alunos precisam ser estimulados
a destrinchar e compreender em sua totalidade.
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[i] Bacharel e Licenciada em
Ciências Biológicas pela Universidade Federal Fluminense (UFF) (2019 e 2021).
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Ciências e Biotecnologia da UFF.
[ii] Mestra em Patologia pela UFF
(2021). Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Biociências da UFF.
[iii] Bacharel em Ciências Biológicas
pela UFF (2018).