Artigo
Seleção de
diretores em um Ciep: reflexões sobre burocracia de
alto escalão
Selección de administradores de un Ciep:
reflexiones sobre burocracia de alto nivel
Selection of school principals at a Ciep: reflections on high-level bureaucracy
Pamela Mota[i]
Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
http://orcid.org/0000-0002-0907-815X
Tereza Guimarães[ii]
Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
http://orcid.org/0000-0002-0161-8190
Amanda Moreira Borde[iii]
Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
http://orcid.org/0000-0002-0157-4706
Patrícia Mota[iv]
Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
http://orcid.org/0000-0001-9471-2137
Leonardo Cerqueira[v]
Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
http://orcid.org/0000-0002-1518-3028
Os
autores contribuíram igualmente na elaboração do manuscrito.
Recebido em: 22/06/2022
Aceito em: 30/08/2022
Publicado
em: 02/09/2022
Linhas
Críticas | Periódico científico
da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília, Brasil
ISSN: 1516-4896 |
e-ISSN: 1981-0431
Volume 28, 2022 (jan-dez).
http://periodicos.unb.br/index.php/linhascriticas
Referência
completa (APA):
Mota, P., Guimarães, T., Borde, A. M., Mota, P. & Cerqueira, L.
(2022). Seleção de diretores em um Ciep: reflexões
sobre burocracia de alto escalão. Linhas Críticas, 28, e43712. https://doi.org/10.26512/lc28202243712
Link alternativo:
https://periodicos.unb.br/index.php/linhascriticas/article/view/43712
Licença Creative
Commons CC BY 4.0.
Resumo: O estudo analisou os mecanismos de seleção de
diretores em uma cidade da região metropolitana do Estado do Rio de Janeiro por
meio das demandas que ancoraram a escolha dos gestores em um Centro Integrado
de Educação Pública (Ciep), no período de 2013 a
2018. De cunho qualitativo, a investigação utilizou legislações para a coleta
de dados e os resultados mostraram que, embora os instrumentos normativos
apontem a escolha do gestor por consulta pública pela comunidade escolar,
prevalece a indicação político-partidária como principal ferramenta para
elencar diretores escolares, legitimada por ato discricionário do burocrata do
alto escalão.
Palavras-chave: Seleção de diretores escolares. Educação em tempo integral.
Burocracia.
Resumen: El estudio analizó los mecanismos de selección de en
una ciudad em Rio de Janeiro a través de las demandas que posibilitaron la
elección de administradores en um Centro Integrado de
Educación Pública (Ciep), de 2013 a 2018. De naturaleza
cualitativa, la investigación utilizó leyes y resoluciones de la ciudad para la
recopilación de datos. Los resultados mostraron que, aunque los instrumentos
normativos apuntan a la elección del administrador a través de la consulta
pública de la comunidad escolar, la indicación del partido político prevalece
como la principal herramienta para listar directores escolares, legitimado por
un acto discrecional de un alto burócrata.
Palabras
clave: Selección de directores de escuela. Educación a tiempo completo.
Burocracia.
Abstract: The study analyzed the selection mechanisms for
principals in a city in the metropolitan region of Rio de Janeiro State through
the requirements that underpin the choice of managers at an Integrated Center
for Public Education (Ciep), in the period from 2013
to 2018. Being qualitative in nature, the research used legislation for data
collection and the results showed that although policy tools determine the
choice of managers by public consultation in the school community, political
and party-related determination prevails as the main tool to select school
principals, legitimized by discretionary acts of high-ranking bureaucrats.
Keywords: Selection of school principals. Full-time education. Bureaucracy.
Introdução
A gestão democrática configurada em uma legislação não aponta,
necessariamente, sua materialidade enquanto princípio. Segundo Esquinsani (2016), é necessário identificar os mecanismos
que acionam essa gestão, assim como os suportes que a garantem. A escolha de
diretores pode ser um mecanismo de gestão democrática, conforme discute Lima (2001),
tornando-se importante instrumento de investigação por revelar escalas nas
quais tal gestão pode ser compreendida. Nesse cenário, o objetivo deste
trabalho foi analisar os mecanismos de seleção de gestores escolares em uma
escola pública municipal da região metropolitana do estado do Rio de Janeiro,
doravante nomeada escola X[6], por
meio das demandas que ancoraram a escolha desses atores em um Centro Integrado
de Educação Pública (Ciep) municipal. Para tanto,
observamos a participação da comunidade escolar e, no contexto da prática,
interessamo-nos pelos alinhamentos ou desacordos relacionados à regulamentação
das políticas públicas municipais, seguindo a determinação da meta 19, no que tange
à gestão democrática, no art. 9 da Lei n.º 13.005/14 (Brasil, 2014), que
institui o Plano Nacional de Educação (PNE) 2014-2024.
Em 2014, o PNE, com 14 artigos e 20 metas, orienta que os entes
federados aprovem seus instrumentos normativos capazes de regulamentar a gestão
democrática da Educação Pública nos seus sistemas de ensino, em um período de
dois anos, conforme determinação da meta 19:
Assegurar condições, no prazo de 2 (dois)
anos, para a efetivação da gestão democrática da educação, associada a
critérios técnicos de mérito e desempenho e à consulta pública à comunidade
escolar, no âmbito das escolas públicas, prevendo recursos e apoio técnico da
União para tanto. (Brasil, 2014, s. p.)
Estabelece, também, estratégias para evitar práticas
patrimonialistas na escolha de gestores escolares ao que tange a sua nomeação,
podendo aplicar sanções financeiras perante o não exercício dos critérios
formulados:
Priorizar o repasse de transferências
voluntárias da União na área da educação para os entes federados que tenham
aprovado legislação específica que regulamente a matéria na área de sua
abrangência, respeitando-se a legislação nacional, e que considere,
conjuntamente, para a nomeação dos diretores e diretoras de escola, critérios
técnicos de mérito e desempenho, bem como a participação da comunidade escolar.
(Brasil, 2014, s. p.)
Todavia, isso não significa dizer que as regulamentações locais
estão alinhadas aos pressupostos macros. As particularidades e os contextos
peculiares do momento vivenciado desenham as políticas tão logo os atores se
apropriem do texto. Não obstante, sem o monitoramento das ações das unidades
federadas, práticas político-partidárias e com insípida participação da
comunidade podem persistir.
Desse modo, a pesquisa é relevante ao colaborar com o debate sobre
as formas de acesso dos diretores escolares, contribuindo na tessitura de um
panorama a respeito do que ocorre nos municípios fluminenses relacionado à gestão
democrática. Percebemos, portanto, o município por nós intitulado W, como ente
federado que escreve seus caminhos pelos processos de gestão, no âmbito de se
refletir acerca da “participação de todos os envolvidos na escola pública” (Amaral,
2015, p. 29).
Para tanto, realizamos uma pesquisa exploratória em documentos
municipais de domínio público. No Diário Oficial, no qual se apresentaram as
exonerações e nomeações indicadas neste estudo, observamos todo o processo que
culminou na nomeação de uma das docentes indicadas por uma lista tríplice (a
ser comentada mais à frente), iniciado pela exoneração de todos os diretores
das escolas públicas municipais em janeiro de 2017. Na ata produzida durante o
encontro dos representantes da comunidade escolar com o secretário J,
encontramos os detalhes de tal reunião, em que o chefe da pasta da educação no
município se compromete em atender parte das solicitações do grupo. Esse
documento se encontra disponível na secretaria municipal de educação da cidade
em voga e há uma cópia no Ciep investigado. Na
exploração desses documentos, encetamos um estudo interpretativista
dos dados, observando a atuação dos atores diante dos movimentos políticos para
o acesso ao cargo de diretor no município, como observado ao longo do artigo.
Quanto ao seu desenho, o artigo desenvolve-se em cinco momentos,
além desta parte introdutória: a tessitura da gestão democrática como
princípio, o percurso da municipalização e resistências pelo tempo integral, as
encenações políticas no município W, seguidas de questões relacionadas ao
burocrata da secretaria municipal de educação, considerado, aqui, como um
transeunte entre as burocracias de alto escalão e de nível de rua, e, por fim,
as nossas considerações.
A gestão
democrática como princípio
A gestão democrática surge como princípio brasileiro na Constituição
Federal do Brasil (Brasil, 1988), expressa no artigo 206, ofertada na forma da
lei e construída em regime de colaboração. Essa abrangência normativa foi
atenuada pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), Lei nº 9.394/96
(Brasil, 1996), ao apoiar o pressuposto de que no seu artigo 3º, inciso VIII,
“a gestão democrática do ensino público [ocorrerá] na forma desta lei e da
legislação dos sistemas de ensino”. Logo, implica a autonomia das entidades
federativas e, teoricamente, ratifica a ideia de que os sujeitos interessados
participarão do processo. Entretanto, a Carta Magna traz em seu escopo as ideias de democracia
representativa, no art. 1º, e de uma participação outorgada, no art. 14,
reverberando um contrassenso: na representação, o povo, como determina o parágrafo
único do art. 1º da Constituinte, é possuidor de “todo o poder” (Brasil, 1988,
s.p.) e o concede aos seus representantes para cumpri-lo em seu nome, enquanto,
na participação, os representantes optam por determinados poderes que serão
cedidos ao povo. Para nós, a ideia de uma democracia representativa, na qual a
conexão entre representantes e representados se atém tão somente à eleição,
enfraquece a ideia de gestão democrática aqui defendida. A participação
limitada ao cunho eleitoral pode acarretar ações ilegítimas e negligenciamento
de direitos pelas entidades legislativa e executiva e uma robustez de domínio
dirigido aos representantes.
Não rechaçamos a democracia representativa e
expomos a defesa de a eleição dos diretores pelos destinatários da política
como meio de representatividade da comunidade escolar; não obstante, deve haver
uma complementaridade por meio de uma democracia que compreendemos como
participativa. A respeito do predicativo “participativo”, Gugliano (2006, p.
272) o articula como “elemento central que nos permite compreender que tipo de
democracia é esta, como ela se desenvolve e porque se diferencia frente a
outras experiências semelhantes”. Nessa senda, destacamos a participação na
democracia, evidenciando outra que se diferencie da representativa, porém, sem
eliminá-la, complementando-a.
Santos e Avritzer (2002) indicam que a
conjugação entre a democracia representativa e a participativa ocorre pela
coexistência e complementariedade. A coexistência “implica uma convivência, em
níveis diversos, das diferentes formas de procedimentalismo,
organização administrativa e variação de desenho institucional” (Santos & Avritzer, 2002, pp. 75-76), logo, a democracia
representativa nacional coexiste com a democracia participativa local. Conforme
Bobbio (2000), para além de uma democracia representativa, ao ponderarmos sobre
o processo de democratização, é basilar atentar para aquilo que o autor
denomina como expansão do poder ascendente (do povo) e sua substituição
regular, garantindo que minorias possam ocupar cargos de decisão. Trata-se de
uma contraposição à exigência populista do monopólio moral da representação. A
escola é um desses espaços de representatividade e pensando em uma gestão
democrática, reiteramos a ideia de Lima (2018) de que as práticas democráticas
e participativas nos processos de tomada das decisões são uma maneira de
aprender a democracia. Portanto, para a gestão ser democrática, a participação deve ser
inerente ao processo, implicando a tomada de decisão pelos destinatários da
política, sendo:
[…] um processo político no qual as pessoas
que atuam na/sobre a escola identificam problemas, discutem, deliberam e
planejam, encaminham, acompanham, controlam e avaliam o conjunto das ações
voltadas ao desenvolvimento da própria escola na busca da solução daqueles
problemas. Esse processo, sustentado no diálogo, na alteridade e no
reconhecimento às especificidades técnicas das diversas funções presentes na
escola, tem como base a participação efetiva de todos os segmentos da comunidade
escolar, o respeito às normas coletivamente construídas para os processos de
tomada de decisões e a garantia de amplo acesso às informações aos sujeitos da escola.
(Souza, 2009, pp. 124-125)
Sob o prisma democrático, a ideia a movida nesta seção é orientada
pela epistemologia teórica de Lima (2014), de que a eleição pode rasurar as
estruturas de poder autoritário que circulam as relações sociais e as práticas
educativas e legitimar as deliberações, exercendo o poder decisório de forma
coletiva. Mais coesa – embora abarcada por uma multiplicidade de fatores, com
maior ou menor intensidade democrática, tais como os critérios de
elegibilidade, de definição de eleitor, dos processos eleitorais, da duração
dos mandatos, das competências a exercer – é dimensão pensada para e pela
democracia, mesmo considerando que conhecimento e competência técnica podem ser
mais formalizados por meio de concurso e que a nomeação em cargos
comissionados, em regimes democráticos, é frequente. Mesmo assim, o autor
defende a eleição e sua forma democraticamente superior e, de resto, mais
favorável à possível combinação entre práticas de democracia direta e práticas
de democracia representativa nas escolas.
A eleição talvez não seja sinônimo de escola
democrática, mas promove a expectativa para tal. Ela, tal como os dispositivos
legais, por si, não efetiva a gestão democrática, no entanto, de acordo com
Lima (2014), somada a outras instâncias como a participação na decisão e a
colegialidade – dimensão essa visualizada por meio dos conselhos escolares,
exemplificando um mecanismo que descentraliza o poder de decisão da figura do diretor-geral,
amplia a intensidade do processo. Dessarte, o modelo de democracia
representativa em que a comunidade escolar é convocada apenas para elencar o
seu representante, como já mencionado, afasta-se do que acastelamos por gestão
democrática, restringindo-a. Os representantes devem abrolhar visibilidade
pública de suas ações para que eles concebam as determinações da comunidade,
constituindo uma democracia na qual a participação é complemento à sua
representação (Santos & Avritzer, 2002).
Partilhamos também da proposta de Romão e Padilha (1997), que
visualizam a eleição para a direção escolar escorada em três fases:
elegibilidade, processo seletivo e eleição propriamente dita e, nas quais, a
comunidade deve participar de todas as etapas. Concordamos com o posicionamento
das pesquisadoras e aderimos à ideia de o processo seletivo ser uma maneira de
contemplar os critérios de mérito e desempenho que aparecem na meta 19 do PNE,
desde que estabelecidos pelos seus usuários e não os inibindo.
Não obstante, é necessário entender que a gestão democrática na prática se diferencia do que está
legalmente constituído. Em cenários que abrangem uma pseudoparticipação,
cunhada por práticas de participação passiva, absenteísmos e cerceamento
patrimonialista, a eleição do representante escolar perde significado
democrático e a colegialidade pode não possuir o poder deliberativo de gestão,
pois a real participação exige mais do que o acesso à informação e o direito de
ser informado.
Em relação ao nosso objeto de estudo, o processo de seleção de
diretores e a gestão democrática do município W, percebemos que suas lideranças
políticas já se aproveitavam das brechas legais da LDBEN em torno das não
definições a respeito da forma de escolha de diretores escolares, fazendo com
que a interferência política permitisse “que o clientelismo político tivesse,
na escola, um campo fértil para seu crescimento” (Mendonça, 2001, p. 88).
Portanto, os mecanismos de seleção da
função de diretor escolar são reveladores das concepções de gestão democrática
adotadas pelo sistema de ensino, como aponta Mendonça (2001). Por meio de
indicações políticas, é realizada a escolha dos gestores do município em
análise e “o gestor patrimonialista dificilmente tomará decisões com base na
objetividade da organização e gestão da unidade educativa, pois está comprometido
com as relações tecidas com os seus apoiadores e consequentes eleitores” (Esquinsani, 2013, p. 110). Ou seja, tal prática é meramente
subjetiva, sem regulamentação para admissão e com marcas de favorecimento
político.
Entretanto, o cenário pode se reconfigurar conforme o movimento
político orquestrado e, veremos, em recorte temporal, de 2013 a 2018, focalizando
o Ciep da cidade W, que a manifestação da comunidade
escolar fará com que ela se coloque em cena, enquanto protagonista, e rasure o
que estava posto na agenda municipal, gerando “espasmos democráticos” (Mendonça,
2001, p. 84), por intermédio de políticas de pertencimento, percebidas desde a
resistência da comunidade pela permanência do tempo integral ao percurso da
seleção de dirigentes da escola observada.
A seguir, conheceremos alguns movimentos do chão da escola que
trazem indícios de espasmos democráticos, sobretudo quando discutimos sobre
algumas políticas articuladas, principalmente, as que tratam do tempo integral.
O percurso da municipalização
e resistências pelo tempo integral
Ao definirmos o campo de nossa pesquisa em uma escola de tempo
integral, é necessário o esclarecimento das concepções de escola de tempo
integral e educação integral. No entanto, cabe registrar que uma dessas
terminologias não apresenta uma definição fechada e estanque. Baseados nos
estudos de Ana Cavaliere (2007), podemos inferir que Educação Integral ainda é
um termo em construção.
Isso ocorre porque não seria profícuo mensurar e definir esse
termo, tendo em vista a Educação Integral como a formação mais completa
possível dos sujeitos conforme define Coelho (2009). Daí resulta a dificuldade
em se definir esse campo de conhecimento, pois dizer o que forma integralmente
os sujeitos ainda é um movimento difícil. Como padronizar os saberes que
atravessam, por exemplo, os sujeitos que vivem no Sul e no Norte do nosso país
e dizer que isto ou aquilo os forma integralmente?
Nesse sentido, Cavaliere (2007) sinaliza que o tempo constituiria
uma estratégia para a oferta e consecução de uma Educação Integral, não obstante,
tempo não é a garantia de que isso aconteça, haja vista a possibilidade de se
oferecer, num horário ampliado, “mais do mesmo”, indicado por Coelho (2009).
Para Maurício (2009), isso vai de encontro ao acesso de oportunidades
educativas diferenciadas em um horário ampliado. Destarte, se nesse contar de
horas a mais os estudantes não vivenciarem processos significativos e
relevantes de formação ou, ainda, tiverem contato com as mesmas propostas que
não promovem avanços num horário parcial, é possível que não haja, mesmo como
tempo integral, contribuições para uma Educação Integral.
É importante destacar que o tempo integral é mensurado e
necessita, segundo o PNE 2014-2024 (Brasil, 2014), ser de 7 horas ou mais. Ou
seja, para que se configure tempo integral, o estudante precisa contar com 7
horas diárias ou mais em contato com práticas socioeducativas na escola ou em
parceria com outras instituições. Tal movimento provoca-nos à reflexão acerca
de um estudo relevante sobre as visões que se tem sobre o tempo integral.
Seriam quatro, a saber:
Visão Assistencialista - vê a escola de tempo
integral como uma escola para desprivilegiados, que deve suprir deficiências
gerais da formação dos alunos. Visão Autoritária - a escola de tempo integral é
uma espécie de instituição de prevenção do crime. Visão Democrática - o tempo
integral seria um meio de proporcionar uma educação mais efetiva do ponto de
vista cultural, com o aprofundamento dos conheci- mentos, do espírito crítico e
das vivências democráticas. Visão Multissetorial - a educação pode e deve se
fazer fora da escola. O tempo integral não precisa estar centralizado a uma
instituição. (Cavaliere, 2007, pp. 1028-1029)
Seria impossível pensar nesses processos e nessas práticas
socioeducativas sem abordar a gestão desses espaços. Como a gestão favorece o
diálogo entre esses processos e parcerias? Bordenave
(1994) nos ajuda a pensar sobre a representação e a participação dos usuários
da política na escola, sendo eles os principais sujeitos do processo político
e, como tais, não podem ter suas vozes negligenciadas na gestão escolar. A
participação não deve se restringir, por exemplo, à escolha do gestor escolar,
não impedindo que o gestor transite entre o patrimonialismo, o gerencialista e o burocrático (Silva & Bernado, 2017).
A respeito do Ciep, mote desta
investigação: ele faz parte de um conjunto de 506 escolas que foram criadas
pelo Programa Especial de Educação (PEE), conforme Bomeny
(2008), para funcionarem em Horário Integral[7]. O programa iniciou em 1983,
sob a direção do vice-governador do Estado do Rio de Janeiro e Secretário de
Ciência, Cultura e Tecnologia, o professor Darcy Ribeiro. Foi interrompido em
1987, reiniciado no segundo Governo de Leonel Brizola, em 1991, e extinto em
1994.
Estudantes, professores e outros profissionais permaneciam nesses
espaços em tempo integral. Esta dinâmica nos remete ao estudo desenvolvido por
Cavaliere (2009) sobre Escola em tempo integral e Alunos em tempo integral. No
caso do Ciep, a escola funcionava em tempo integral;
em contrapartida, já estudamos, nesta contemporaneidade, políticas públicas que
entraram em cena trazendo a proposta de alunos em tempo integral, uma vez que
permanecem em contato com oportunidades educativas durante 7 horas diárias em
espaços escolares e não escolares. A escola, neste caso, não funciona em tempo
integral. O Programa Mais Educação (Brasil, 2007) foi um exemplo desse
funcionamento multissetorial em que parcerias, com outros espaços não
escolares, estiveram presentes.
Embora o PEE tenha sido extinto na década de 1990, a comunidade
escolar do Ciep analisado percebeu que o tempo integral
atendia a algumas demandas daquele território e iniciou o seu primeiro
movimento transgressor, em 2013, ao reivindicar e traçar estratégias para que o
desmonte do PEE não se efetivasse naquele contexto, favorecendo a continuidade
do tempo integral até o presente momento. Inicialmente, a secretaria municipal
de educação da cidade W implementaria o turno parcial, findando o tempo integral
da unidade. A comunidade escolar, entretanto, exige a permanência da ampliação
da jornada e, após um encontro entre a secretaria municipal de educação e
responsáveis de alunos do Ciep, a reivindicação é
consolidada.
Ademais, a educação em tempo integral pode ser uma tentativa de
intensificar a gestão democrática tendo em vista que o tempo de permanência
maior de alunos e de professores no Ciep poderia
aumentar a participação desses atores nas decisões escolares, maximizando o poder decisório
dos usuários da política como uma ferramenta a viabilizar uma gestão escolar
compartilhada.
Pensando na ampliação do tempo no sentido de permanência dos
discentes e docentes na escola, o aumento de tempo diário tende a ser uma forma
de as instituições escolares poderem contribuir na formação crítica e para a
democracia (Cavaliere, 2007) dos seus destinatários, podendo a escola ser um
espaço de participação em sociedade pautada em uma perspectiva de educação
integral, cuja semântica seja atrelada à promoção da cidadania e dos direitos
humanos do aluno. Assim, mesmo diante de um cenário verticalizado, com
políticas chegando à escola sem, por vezes, a consulta daqueles que a
vivenciam, a participação da comunidade escolar pode ressemantizar
arranjos, catalisar decisões e fazer com que políticas permeadas pelo
patrimonialismo sejam reconstruídas no contexto da prática. Acreditamos que a participação
é a ferramenta a viabilizar uma gestão
escolar que se deseje democrática, conforme pontua a meta 19 do PNE, e
que a ampliação de tempo, indicada na meta 6 do respectivo plano, corrobora com
a participação dos sujeitos nas deliberações, conforme seja o período de
permanência desses agentes na escola.
Desse modo, ocorre ilação de uma partilha de poder, na qual uma
democracia itinerante é proporcionada à luz do maior tempo de permanência dos
indivíduos no Ciep. Nesse cenário, acreditamos que a
política educacional de tempo integral, apesar de não avalizar a gestão
democrática, pois o contexto da prática depende da atuação dos seus atores, é
uma proposta a induzir a gestão democrática, possibilitando um número maior de
vezes para os destinatários poderem participar das deliberações escolares,
aumentando as chances de os seus destinatários perceberem a participação como
poder e não como obrigação normativa.
Município W: o
campo da ação do burocrata de alto escalão
No final de 2012, na cidade W, inicia-se o processo de
municipalização do Ciep e, no ano seguinte, a ação é
materializada em uma trajetória que se insere nas perspectivas do regime de
colaboração entre os entes federados, numa ação já sinalizada pela Constituição
Federal (Brasil, 1988) e pela LDBEN (Brasil, 1996). Anteriormente ao processo
de municipalização, conforme sinalizamos, o Ciep já
atendia em tempo integral e tal oferta se manteve perante a resistência da
comunidade escolar em 2013.
De 2013 a 2017, a unidade foi dirigida pela gestora A, cujo acesso
à função adveio da indicação política, uma vez que em tal município persiste a prática
patrimonialista, perante ação do legislativo, que demarca o município em áreas,
das quais os vereadores se apropriam, como espaços eleitorais. No caso da
gestora A, sua indicação coube ao vereador Y, antigo no “comando” do bairro onde
se localiza a escola.
Em janeiro de 2017, por meio de publicação no Diário Oficial e em
função na mudança da Administração Municipal, todos os diretores das escolas
públicas municipais foram exonerados. O novo secretário de educação, que aqui
chamaremos de D, retornou alguns deles às suas funções, mas não foi o caso da
gestora A, que foi substituída pelo gestor Z. No entanto, em outubro de 2018,
muito em função da substituição do secretário de educação D pelo secretário J,
o diretor Z foi exonerado e mais uma vez a gestora A foi nomeada para a direção
do Ciep, por intervenção do vereador Y. Contudo,
dessa vez, a comunidade escolar protestou e exigiu a saída da referida gestora,
reivindicando ainda o retorno do gestor Z. Tal protesto gerou manifestações na
porta da escola, abaixo-assinados e solicitação de reunião com o secretário de
educação J.
No fim de 2018, o secretário J recebeu representantes de pais,
responsáveis, alunos, professores e funcionários da escola e, após ouvir suas
reivindicações e reclamações, deliberou sobre a impossibilidade do retorno do
diretor Z. No entanto, acolheu a solicitação de afastamento da diretora X,
garantindo sua exoneração logo que possível. Sinalizou ainda a possibilidade de
consulta à comunidade – consulta com semântica restrita, pois só participaram
os presentes naquela reunião – que deveria, naquele exato momento, elaborar uma
lista tríplice de candidatos à direção da Unidade Escolar. E assim foi feito:
três professoras foram “indicadas” e, na mesma semana, a diretora X foi
exonerada. O vereador Y convocou uma reunião com uma das professoras da lista
tríplice e comunicou que providenciaria sua nomeação, a acontecer dias depois.
Nos contextos desses episódios, caberiam várias reflexões, no entanto, no
espaço que nos cabe, optamos pelo debate sobre os limites participativos da
comunidade escolar dentro de um sistema patrimonial de seleção para diretores e
sobre a discricionariedade do burocrata, diante a entrega da política ao seu
destinatário. Nesse cenário, a eleição poderia ser um caminho para o aumento de
participação dos usuários por:
[…] ser um dos métodos que incita a um maior
comprometimento do eleito relativamente àqueles que o elegeram e, em última
instância, e no que à escola diz respeito, pode ser entendida como um instrumento
de luta contra o clientelismo e o autoritarismo. (Carvalho, 2012, p. 155)
Embora a eleição não seja garantia de gestão democrática, é uma
variável para além do participacionismo (Tragtenberg, 1989), cabendo aos sujeitos que fazem parte
dela participarem de fato, com poder decisório e de ação, considerando:
[…] uma dimensão central da gestão
democrática das escolas, não apenas pelos fenómenos de participação ativa que
são típicos dos processos de organização e mobilização democráticas, mas também
porque a participação verdadeira exige muito mais do que o acesso à informação
e o direito a ser informado, a publicidade democrática dos atos, as propostas e
sugestões, as auscultações e outros processos eventualmente despojados de poder
de decisão, que Maurício Tragtenberg (1989) designou
de “participacionismo”. Pelo contrário, só o poder de
decidir confere pleno sentido às práticas de governo democrático das escolas,
rompendo com encenações participativas, com rituais, processos e métodos
formalmente democráticos, mas a que falta substantividade democrática. (Lima,
2014, p. 1072)
Por outro lado, a eleição para gestores escolares não estaria
atendendo à letra da lei, já que o diretor é um cargo de confiança, como
exposto no art. 37, inciso V da Carta Magna (Brasil, 1988), ou seja, de livre
nomeação e exoneração do executivo. Desse modo, concordamos com Souza e Pires
(2018, p. 77), pois “As eleições dos diretores estão articuladas a uma luta que
remonta aos anos 1980, mas não só a legislação nacional as referencia,
como, ao contrário, há posicionamento legal contrário a elas”. Essas lacunas
permitem que, de forma antagônica, haja resquícios democráticos advindos do
incômodo da comunidade e uma permanência da prática político-partidária emanada
pelas infidelidades normativas (Lima, 1998) dos burocratas.
Ratificamos que a eleição seja a melhor forma de escolha do
diretor escolar, ainda que deva ser aprimorada para que o princípio democrático
se materialize no que tange à perpetuação da gestão escolar diante de um número
infinito de reeleições e reconduções e a influência patrimonialista dentro das
unidades escolares. Ainda que o patrimonialismo circunde o processo, e, por
vezes, oriente a indicação dos gestores, os destinatários da política, seguindo
seus valores subjetivos, podem eleger os gestores das unidades educacionais,
uma vez que a participação deles seja legalmente respeitada, alargando o
trabalho coletivo da comunidade escolar. A eleição não é livre de clientelismo,
contudo, é um caminho para atenuá-lo, tendo em vista a participação da
comunidade no poder decisório como uma forma de minimização da prática
patrimonialista. As “formas de
escolha de direção escolar que associem garantia de competência, compromisso
com a proposta pedagógica emanada dos conselhos escolares, representatividade e
liderança” (Gomes, 2015, pp. 143-144) podem ser um mecanismo que materializaria
ações educacionais mais democráticas e um recurso capaz de evitar práticas
patrimonialistas, ao que concerne à nomeação dos gestores.
O burocrata da
secretaria de educação: um transeunte entre as burocracias de alto escalão e de
nível de rua
O cargo de secretário de educação é ocupado pelo que Loureiro e Abrucio (1999) denominam de Burocrata de Alto Escalão
(BAE). Tal burocrata compreende cargos de alto nível na estrutura
organizacional de uma instituição, ocupando cargos de confiança gratificados, sendo
considerado como policymaker, ou seja, aquele que tem
responsabilidade sobre a política e decide acerca dela, acomodados no vértice
de onde fluem os desenhos da política em uma perspectiva top-down. Ademais, os BAEs
devem apresentar-se com responsabilidade técnica e política, influenciando o
sistema burocrático de forma significativa, pois são aqueles que decidem as
prioridades da agenda governamental, exercendo uma importante influência em sua
formulação, não se restringindo à formulação das políticas, mas exercendo
controle sobre elas. Seu papel desencadeia uma série de eventos que culminarão
na política implementada, nem sempre de acordo com seu desenho inicial.
São, portanto, agentes que no topo hierárquico da escala
burocrática se expõem tanto para a apreciação dos políticos que os nomearam,
quanto para a sociedade que deles cobra e exige. O BAE deve possuir saber
técnico para a formulação da política, além de estabelecer a articulação de
ideias e interesses em sua implementação, pois os burocratas:
[…] quando ocupam funções do alto escalão,
precisam atuar politicamente no sentido de escolher prioridades e levar em
conta interesses e valores, sejam eles referentes à lógica interna do sistema
político, sejam vinculados a determinadas orientações técnicas com maior
aceitação na sociedade. (Loureiro & Abrucio,
1999, p. 70)
Esses autores nos falam da linha tênue que separa a ação do
burocrata enquanto político e enquanto administrador. Eles garantem que ocorre
um hibridismo na ação desses agentes, ocasionando a “burocratização da política
e a politização da burocracia” (Loureiro & Abrucio,
1999, p. 19). Ou seja, o sujeito, enquanto desempenha seu papel político,
norteia o seu fazer pela técnica do burocrata; para logo depois, na figura do
burocrata, pontuar sua ação visando a interesses particulares ou clientelistas.
Desse modo, é possível perceber que o exercício do poder conferido
ao BAE não se assenta apenas no seu conhecimento técnico, uma vez que, na
prática, político e burocrata não se dissociam, mitigando quaisquer formas de
polarização, mediante à complexidade da função desses agentes.
Tal complexidade também diz respeito à atuação do burocrata, na
tomada de decisão, execução da política e na entrega da política ao seu
destinatário. Trata-se do ato discricionário no contexto burocrático. A
discricionariedade é descrita por Lotta (2010)
enquanto espaço em que os agentes atuam com certa autonomia decisória, no
contato direto com o beneficiário da política, sendo considerados, então, policymakers.
Refere-se, portanto, à liberdade da qual desfrutam os burocratas, que resulta
na ação discricionária. Nesse sentido, a discricionariedade opera na atuação
dos agentes da burocracia quando encenam as políticas públicas, a partir do
controle que lhes é imputado, acerca das políticas que circulam na esfera
administrativa. Os burocratas ocupam uma posição de decisão, a partir do modo
como interpretam normas, políticas e regras. Lotta
(2010, p. 38) esclarece que:
A discricionariedade desses agentes está em
determinar a natureza, a quantidade e a qualidade dos benefícios, além das
sanções fornecidas por sua agência. Assim, mesmo que dimensões políticas
oficiais moldem alguns padrões de decisão e normas comunitárias e administrativas,
esses agentes ainda conseguem ter autonomia para decidir como aplicá-las e
inseri-las nas práticas da implementação.
No processo burocrático, a discricionariedade se refere ao
julgamento que os burocratas fazem ao interpretar normas e regras impostas pela
política, mediante a margem de autonomia da qual dispõem para tomar decisões.
Algumas vezes, a discricionariedade é atravessada por certo grau de
arbitrariedade ou de individualidade, podendo estender as regras de acordo com
uma percepção muito particular da política.
Quanto a este processo, Weber (2004) assinala que a burocracia se
constitui em uma hierarquia organizada monocraticamente, dentro de uma ordem de
legalidade, treinamento, formalidade e submissão, em busca da eficiência no
serviço público. Nesse quadro, os cargos são organizados e os funcionários
devem executar suas funções com eficiência, exercendo sua autoridade legal.
Além disso, ele destaca, como atributos da burocracia: a agilidade, a precisão,
o conhecimento e a impessoalidade, dentro de um caráter racional, na esfera do
êxito dos processos administrativos. Ou seja, aponta a burocracia em um quadro
administrativo que apresenta a dominação legal como um modelo de organização da
administração pública.
Tal perspectiva weberiana de burocracia diz respeito a uma organização
sistematizada em prescrições e funções, racionalmente concebidas e executadas
por indivíduos, na busca pela máxima eficiência na realização do serviço
público administrativo, é formal e de natureza hierárquica, apresentando uma
pirâmide bem definida de controle. Esse modelo se configura como perspectiva
funcionalista e tecnicista, além de centralizar o controle da implementação em
um órgão catalisador, no qual a tomada de decisão está separada das ações que
visam à implementação, distanciando a esfera política da esfera administrativa.
Entretanto, na realidade por nós estudada, observamos as
fragilidades da burocracia weberiana, porque a figura do dirigente técnico e
neutro é suplantada pela indissociabilidade do ser social e político,
culturalmente situado, que mobiliza e combina competências técnicas e
políticas, em um hibridismo de concepções decorrentes das ações apreendidas na
gestão macro, na normatização dos sistemas de ensino, nas disputas na sociedade
e nas relações sociais vigentes, evidenciando a face técnico-política,
característica de uma administração político-burocrática.
Ao retomarmos os fatos que culminaram na indicação da professora B
para assumir a gestão da escola aqui analisada, deparamo-nos com a ação do BAE,
na figura do secretário de educação J, que diante da pressão de uma parcela da
comunidade escolar e ciente da cultura clientelista que perdura no município
para a seleção de diretores, entre as exigências feitas pelos agentes escolares
e a posição política patrimonialista exercida pelo legislativo, decide
solicitar aos presentes uma lista tríplice, da qual um nome seria escolhido e
nomeado por decisão do legislativo.
O que observamos foi que o BAE se apropriou de um espaço de poder,
em que possui certa liberdade para a ação, atuando em uma margem de autonomia
para tomar decisões, tendo em vista normas e regras, em deliberações
atravessadas por interpretações e interesses particulares. O burocrata, assim,
flexibiliza a política, ressignificando-a, de acordo
com as tensões que se colocam e a fim de responder a reivindicações postas. Sua
decisão ordinária, na ponta do processo, é o exercício da discricionariedade
que se dá nas entrelinhas da política. Portanto, a lista tríplice dá, por um
lado, uma satisfação à parcela da comunidade escolar que reivindica influenciar
na escolha do seu gestor e, por outro lado, não tira completamente das mãos do
legislador a decisão final. O burocrata aqui se imiscui com o político, pois
sua ação, de caráter operacional, atuando na solução de um problema, demanda um
posicionamento político em relação ao jogo que se estabelece na seleção de
diretores do município. O resultado da ação discricionária do BAE, que se
apropria de uma ação da burocracia de nível de rua, é um contentamento dos
reivindicadores que se satisfazem com uma trôpega participação e uma indicação
política mascarada de consulta pública à comunidade. A gestão democrática não
se estabelece: fatores como transparência e impessoalidade voltadas para um
processo de decisão baseado na participação e na deliberação pública são
ausentes no processo de escolha de gestor no Ciep
analisado. Empreendemos que se não houver fiscalização pela sociedade e
ocupação dela nos espaços formais de elaboração legislativa, os escolhidos por
ela podem se desvincular dos interesses coletivos preferindo os seus
individuais ou privilegiando apenas um grupo.
É importante destacar que o ato discricionário no caso específico
aqui descrito se aproxima da ação do Burocrata de Nível de Rua (BNR), por sua
interação diretamente com os destinatários da política. Desse modo, constatamos
que o burocrata pode não se fixar apenas no exercício de uma burocracia, mas
transitar por ela, conforme a situação que a ele se apresenta. Lipsky (1980) define esse profissional como o agente da
ponta do serviço que, na rotina de seu trabalho, estabelece critérios nas
brechas deixadas pelas diretrizes das políticas, agindo de acordo com sua
perspectiva. Guimarães et al. (2022, p. 5) afirmam que “os burocratas de nível
de rua, na interação com os cidadãos, reestruturam a política, fazendo
adaptações e ajustes que consideram necessários”. Sua intervenção na política
se traduz na ação que se estabelece na prática, na rotina, na execução das
estratégias traçadas. Esse desempenho é fundamental para a eficácia da política
pública, uma vez que o BNR detém a responsabilidade de colocar em cena a
política em sua execução final, numa ação direta com o seu público-alvo e desse
modo, molda as políticas, refaz seus contornos e restabelece o desenho inicial.
Seu papel é, portanto, eminentemente, político.
Um processo de tomada de decisão organizacional não se restringe à
utilização da racionalidade e envolve também uma dimensão política, que
interfere nas escolhas e nos processos subjacentes, informando o processo
deliberativo. O burocrata de alto escalão, aqui compreendido como um agente
político, utiliza o poder político para a tomada de decisão. Isso significa
que, apesar de poder ser compreendido, em tese, no contexto da burocracia
racional, sua ação acontece na esfera e na arena de disputas políticas. Estabelece-se,
assim, uma tensão entre o caráter técnico, advindo da burocracia racional-legal
weberiana, e a encarnação do governo como parte de poder político, no qual
protagoniza a tomada de decisão, constrangido mais pelo contexto político do
que por normas e regras. Nesse sentido, Lipsky (1980)
discute a burocracia de nível de rua, instância da qual, o Secretário J se
aproxima, pois, de acordo com o autor, é em tal burocracia que a política é
implementada a partir de ideologias, valores, contextos e posições sociais dos
agentes. A contradição que se coloca se materializa na perspectiva de que o
burocrata de alto escalão ignora a impessoalidade e a tradição racional-legal
para incorporar ao seu comportamento negociações que visam a um resultado
político, sendo essa tomada de decisão um processo no âmbito de um jogo de
interesses a fissurar o princípio democrático em torno da participação dos
alocutários da política.
Compreendemos esse movimento político em articulação com os
aspectos técnicos, o que nos conduz a considerar uma proximidade do burocrata
formulador de políticas do processo de implementação. Ou seja, o burocrata de
alto escalão se apresenta como a face do estado para o público-alvo, na tomada
de decisão, porque a burocracia de nível de rua, da qual o agente do estado se
utiliza para responder ao grupo reivindicador, é um espaço político, imbricado
de subjetividades.
Podemos refletir que a ação do burocrata de alto escalão não é
apenas um instrumento a serviço do governo, pois ele é um agente com iniciativa,
ação e subjetividade na implementação da política. De certo modo, esse
movimento, refletido na ação do Secretário J, implica a observância de
benefícios ou sanções, além de estabelecer a regulação do comportamento social,
a expressão e manutenção dos valores públicos, ampliando ou fragilizando
processos mais equânimes na implementação das políticas educacionais.
Lipsky
(1980) esclarece que os burocratas do nível da rua são aqueles que atuam na
ponta do processo, agindo no cotidiano da encenação política e, em seu contato
com os destinatários, recriam regras e procedimentos, de acordo com suas
percepções e valores. Por isso, o secretário de educação aqui retratado, ao
assumir posicionamentos junto aos receptores da política, transita entre o alto
escalão e o nível de rua. Há um hibridismo em sua atuação ao prestar o serviço
àqueles que vão usufruir da política e ao mesmo tempo, ele mantém como o
responsável por, em âmbito macro, dialogar com demais atores, no caso o
legislativo e o executivo, a fim de produzir o texto da política que culminou
na exoneração de um gestor e na nomeação de outro. Sua circulação por esses
contextos da burocracia revela que esses espaços não estão assim tão bem
demarcados e as burocracias estabelecem interseções quando o jogo político
assim o requer.
Considerações
finais
A gestão democrática do ensino público é um quesito constante nas
legislações nacionais e demais entidades federativas e o Plano Nacional de
Educação de 2014 ratifica esse preceito legal. Dentre os mecanismos de gestão
democrática, a escolha de diretores ganhou destaque no cenário da escola
investigada, pois apesar de a legislação macro esboçar estratégias a fim de
abranger a participação da comunidade escolar, ela é aproveitada como
subterfúgio de interesses individuais e clientelistas. Sob esta ótica, a forma
de eleger o gestor nas escolas, mesmo com o estandarte do princípio
constitucional da gestão democrática, baliza-se por dúvidas.
Embora realizemos uma discussão do modo como a gestão democrática
é esvaziada no município, a pesquisa apresenta uma limitação importante devido
ao fato de se relacionar a uma realidade local. Trata-se, portanto, de um
estudo que ilustra uma das inúmeras formas de perecibilidade da gestão
democrática e pode suscitar outras pesquisas que evidenciem realidades locais,
a fim de que um panorama complexo seja desenvolvido a partir de contextos
micros.
O caso estudado aqui, envolvendo uma escola do município W, a
possuir oferta do tempo integral, possibilita vislumbrar algumas questões que
se estendem a outros municípios, como a interferência dos agentes
representantes do legislativo e do executivo para a escolha dos gestores. Nessa
análise, percebemos a atuação do burocrata de alto escalão e o seu trânsito
pelas burocracias como promotoras de uma consulta pública pulverizada, na qual
uma pequena parcela da comunidade participa e cujo patrimonialismo se insere.
Entretanto, salientamos o movimento social da comunidade escolar
que resiste às intempéries e não julga procedente a troca de gestores do Ciep municipal, provocando a rearticulação de um roteiro
pré-estabelecido. Concluímos, portanto, que mesmo de maneira latente e diante
da egocentricidade dos burocratas de alto escalão, agendas patrimonialistas
podem ser ressemantizadas pelos destinatários da
política, cuja atuação promove educação integral e pertencimento à escola.
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[i] Mestra em Letras Vernáculas
pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2014).
[ii] Mestra em Educação pela
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (2019).
[iii] Doutora em Educação pela Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro (2022).
[iv] Doutora em Educação pela
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (2022).
[v] Doutor em Educação pela
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (2022).
[6] Os nomes da unidade de ensino, da cidade em análise, bem como dos
gestores envolvidos, serão intitulados por letras devido a questões de
confidencialidade, a fim de não expor a condicionamentos específicos ou à
influência de autoridades legislativa ou executiva municipais, os participantes
e pesquisadores em questão, de modo que não haja possível coação
patrimonialista.
[7] Os estudos e legislação recentes usam o termo Tempo Integral.