Artigo
Tensões e
resistências: estudo sobre representações religiosas e intolerância na web
Tensiones y resistencias: ensayo sobre
representaciones religiosas e intolerancia en la web
Tensions and resistences: essay on religious
representations and intolerence on the web
Matheus Henrique Alves[i]
Pontifícia Universidade Católica do Paraná
Curitiba, PR, Brasil
https://orcid.org/0000-0002-9608-1858
Evelyn de Almeida Orlando[ii]
Pontifícia Universidade Católica do Paraná
Curitiba, PR, Brasil
https://orcid.org/0000-0001-5795-943X
Os
autores contribuíram igualmente na elaboração do manuscrito.
Recebido em: 25/05/2022
Aceito em: 09/08/2022
Publicado
em: 12/08/2022
Linhas
Críticas | Periódico científico
da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília, Brasil
ISSN: 1516-4896 |
e-ISSN: 1981-0431
Volume 28, 2022
(jan-dez).
http://periodicos.unb.br/index.php/linhascriticas
Referência
completa (APA):
Alves, M. H., & Orlando, E. de A. (2022). Tensões e
resistências: estudo sobre representações religiosas e intolerância na web. Linhas
Críticas, 28, e43418. https://doi.org/10.26512/lc28202243418
Link alternativo:
https://periodicos.unb.br/index.php/linhascriticas/article/view/43418
Licença Creative Commons
CC BY 4.0.
Resumo: Neste trabalho se apresenta um exemplo de como a
recepção da diversidade religiosa no contexto da educação confessional católica
se manifesta nas redes sociais, utilizando como fonte os comentários na página
Pais Maristas em Defesa do Ensino Religioso, do Facebook. A análise se assenta
no reconhecimento da cultura escrita no contexto da web e, ancorando-se nas
teorias de Pierre Bourdieu como principal base epistemológica, apresenta os
posts e comentários da referida página enquanto práticas sociais que afetam o
campo da educação e o campo religioso, produzindo violências simbólicas e
tensionando disputas por posições e estratégias de dominação cultural.
Palavras-chave: Cultura escrita. Educação católica. Redes sociais.
Resumen: Este artículo presenta una nota preliminar de cómo se
manifiesta en las redes sociales la recepción de la diversidad religiosa en el
contexto de la educación confesional católica, utilizando como fuente los
comentarios en la página Pais Maristas em Defesa do Ensino Religioso, en
Facebook. El análisis parte del reconocimiento de la cultura escrita en el
contexto de la web y anclado en las teorías de Pierre Bourdieu como base
epistemológica principal, este estudio presenta las publicaciones y comentarios
de esa página como prácticas sociales que afectan el campo de la educación y el
campo religioso, produciendo violencia simbólica y tensando disputas por
posiciones y estrategias de dominación cultural.
Palabras
clave: Cultura escrita. Educación Católica. Redes sociales.
Abstract: This paper presents a preliminary note on how the
reception of religious diversity in the context of Catholic confessional
education is manifested in social networks, using as a source, the comments on
the Facebook page Pais Maristas em Defesa do Ensino Religioso. The
analysis is based on the recognition of written culture in the context of the
web and anchoring on Pierre Bourdieu's theories as the main epistemological
basis, this study presents the posts and comments on that page as social
practices that affect the field of education and the religious field, producing
symbolic violence and tensioning disputes over positions and strategies of
cultural domination.
Keywords: Written culture. Catholic education. Social media.
Introdução
O conjunto das postagens digitais pode
oferecer indícios que revelem um processo de autoeducação das famílias, uma vez
que, no ambiente virtual, “os espectadores tomam parte desse processo de
construção de sentido, que deverá ser entendido tanto numa perspectiva
histórica quanto sociológica” (Chartier, 2003, p. 12). No ambiente da web,
esses atores sociais não se inserem como meros espectadores passivos do
processo de comunicação e construção de sentido. Pelo contrário, eles tomam
parte nele, interagem, e, ao fazerem isso, convertem-se em autores, coautores e
disseminadores de narrativas, valores culturais e representações que se
expandem pela teia virtual e afetam o campo da educação. Nesse processo, é possível identificar as redes sociais virtuais como
campo de produções simbólicas que desvelam pelo texto eletrônico práticas
sociais que se reproduzem por meio das estruturas de dominação social. Há,
portanto, um jogo de tensões e resistências presente nas narrativas dos usuários
que coloca em disputa diferentes representações do mundo social. Nesse palco de
disputas e de exercício do poder simbólico, “pensado enquanto poder da
construção da realidade que tende estabelecer uma ordem, um sentido imediato do
mundo social” (Bourdieu, 2001, p. 9), também se perpetuam múltiplas expressões
de violência e intolerância que tendem a refutar, com veemência, visões
antagônicas à cultura dominante.
A constituição dessas violências que adentram
o campo educacional pelas redes sociais é por vezes potencializada pelo subterfúgio
do anonimato e dos heterônimos que conferem voz aos avatares da vida real numa
espécie de transporte identitário no mundo do ciberespaço. O que de certa forma,
acaba por naturalizar a sensação de liberdade de expressão irrestrita e
legitimar práticas de violência.
Essa abordagem também permite o reconhecimento
dos sentidos e significados aparentemente ocultos – ou pouco explicitados no
texto virtual –, os padrões estéticos e linguísticos, os silêncios e as
ausências, os projetos em disputa, as posições sociais e o núcleo de interesses
no qual se assentam, validam ou refutam as informações para determinados
grupos. Simões (2019, p. 201) destaca que: “As postagens nas páginas da rede
social Facebook também representam valores, atividades cotidianas e práticas
educativas que permitem o conhecimento institucional para além dos documentos
institucionais. As redes sociais virtuais são também feitas de produções e
sentidos”.
Pretendemos, portanto, por meio desse estudo,
apresentar indícios de que a iminente presença da diversidade religiosa no
contexto educacional católico tem acirrado tensões e disputas nesse campo,
colocando em questão em que medida essa receptividade se manifesta nas redes
sociais. Do mesmo modo sinaliza que a atual conjuntura sociopolítica tem
implicado no avanço de narrativas ultraconservadoras que são colocadas em
disputa no campo educacional e no campo religioso. Dessa forma, encontram nas
redes sociais um campo fértil para a mobilização das práticas de intervenção no
mundo social.
O trajeto percorrido ao longo deste trabalho o
delimita no campo da historiografia da educação e na história cultural, reconhecendo
o registro da escrita nas redes sociais, meio pelo qual a cultura escrita
resiste e se fortalece no mundo dos novos meios de comunicação (Chartier,
2001). Na busca pela referenciação da pesquisa diante do arquivo digital,
utilizamos a rede social Facebook, enquanto acervo, e as postagens e os comentários
como as principais fontes de pesquisa deste trabalho. Neste sentido, esta
pesquisa dialoga com um campo ainda incipiente na História da Educação, que é o
da mídia digital. Há no campo um investimento expressivo, desde meados dos anos
1980, de considerar os impressos como fontes e objetos de pesquisa. Todavia, de
lá para cá, outros suportes vêm adquirindo centralidade na cultura escrita e
precisam ser considerados no conjunto das práticas de leitura e escrita. O artigo
“Memórias postadas, histórias
compartilhadas: a educação rondoniense nas páginas do Facebook” (Simões,
2019) foi interlocução basilar para este estudo. O suporte de pesquisa aqui
apresentado é a página no Facebook Pais Maristas em defesa do Ensino
Religioso, sobre a qual se assenta a análise e o tratamento dos textos
virtuais. Como percurso metodológico, optamos pela análise de conteúdo das
escritas digitais da referida página. Analisar o conteúdo significa adotar um procedimento
de pesquisa que se situa em delineamento mais amplo da teoria da comunicação e
tem como ponto de partida a mensagem (Franco, 2003). Esta é submetida a um
conjunto de procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição de conteúdo
(Bardin, 1995). Nesse sentido, no transcurso da análise dos textos eletrônicos,
procuramos estabelecer correspondência entre as estruturas semânticas ou
linguísticas inerentes ao espaço virtual e às estruturas sociológicas, isto é,
condutas, representações e atitudes dos enunciados. Desse modo, buscamos também
identificar nessas narrativas padrões linguísticos, valores culturais,
receptividade às narrativas antagônicas, posição social ocupada pelos agentes
da comunicação, aderências e resistências ao discurso mobilizado, bem como
práticas que visam legitimar ou deslegitimar outras representações culturais e
religiosas presentes no campo educacional. Consideramos a natureza da fonte
utilizada uma vez que se trata de uma página pública, dentro do Facebook, de total
ausência de controle do pesquisador, em que seus posts podem ser apagados,
alterados e editados de forma a invalidar todo o processo de investigação.
Dessa forma, cabe destacar que, para a finalidade desta pesquisa, determinamos um
marco temporal para a coleta dos dados, sendo esses de janeiro de 2021 a agosto
de 2021. Nesse sentido, a investigação se deu a partir da fotografia dos
comentários da página ao longo desse período. Essas fotografias ou prints do
objeto em questão resguardam a pesquisa diante do fato de que as informações e os
pensamentos dos posts podem correr o risco de serem modificados após a análise
realizada.
Na análise também estabelecemos uma
aproximação com a teoria de habitus de
Bourdieu (1983), o que por sua vez permite que esses textos sejam analisados como
práticas sociais estruturadas por uma posição social na qual esses agentes
estão inseridos, gerando assim um sistema de disposições que acarreta sua forma
de perceber o mundo, suas preferências, seus gostos e aspirações, utilizando-se
de seu capital econômico e simbólico para travar uma disputa no campo religioso
e no campo educacional.
As estruturas
constitutivas de um tipo particular de meio (as condições materiais de
existência características de uma condição de classe), que podem ser
apreendidas empiricamente sob a forma de regularidades associadas a um meio
socialmente estruturado, produzem habitus, sistemas de disposições
duráveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas
estruturantes, isto é, como princípio gerador e estruturador das práticas e das
representações que podem ser objetivamente “reguladas” e “regulares” sem ser o
produto da obediência a regras, objetivamente adaptadas a seu fim sem supor a
intenção consciente dos fins e o domínio expresso das operações necessárias
para atingi-los e coletivamente orquestradas, sem ser o produto da ação
organizadora de um regente. (Bourdieu, 1983, p. 60)
Tensões políticas e religiosas no campo
educacional
O ano de 2016 foi marcado por um processo
eleitoral conturbado que posteriormente dividiu o país sobre a legitimidade ou
não do processo de impedimento da presidenta Dilma Rousseff. Desde então o país
tem enfrentado momentos de tensão e conflitos decorrentes de uma efervescência
política que tem polarizado opiniões e dividido a sociedade em posições
antagônicas. Em 2018, com a eleição de um governo de caráter ultraconservador,
acirraram-se ainda mais as disputas partidárias e os desentendimentos entre
lideranças políticas e religiosas que possuem diferentes leituras da realidade.
Essa conjuntura sociopolítica e religiosa
marcada pela polarização das ideias e pela fragilização da institucionalidade
democrática pelas vias da “[…] sempre velha e renovada recolonização imperial e
evangelização conservadora” (Santos, 2019, s.p.) tem também acentuado grandes
disputas no campo da educação.
Nesse cenário, tem-se assistido ao avanço de narrativas
cristãs ultraconservadoras emergindo no cerne dessa disputa. Alguns movimentos
religiosos têm ganhado força e repercussão, por exemplo, os movimentos de
natureza neopentecostal presentes entre católicos e protestantes que ocupam
cada vez mais o campo político e as grandes mídias.
Os “pentecostais novos” ou “neopentecostais”
são grupos surgidos nas últimas décadas que se originaram de igrejas
tradicionais cristãs de natureza protestante, as chamadas pentecostais, tais
como: Assembleia de Deus, Congregação Cristã do Brasil e outras advindas de
movimentos oriundos da Igreja Católica Romana, a exemplo da Igreja Rosa
Mística. Reconhecidas, dentre outras características, pelo forte apelo
emocional em seus cultos, por discursos conservadores e pela ênfase à teologia
da prosperidade. Nas últimas décadas, esses grupos têm se espalhado de maneira
exponencial por toda a América Latina, sobretudo no Brasil. A expansão das
igrejas evangélicas em território nacional tem tido grande destaque desde os
anos 50, mas é a começar da década de 1980 que esse crescimento se torna mais
acentuado, momento em que esse movimento religioso passa a conquistar
igualmente crescente visibilidade pública, espaço na tevê e poder político
partidário.
Eles se ancoram invariavelmente na conservação
dos valores da família heteronormativa e patriarcal e na manutenção da tradição
e do dogma cristão, de modo que travam lutas de representações que repelem e
confrontam toda e qualquer ameaça à hegemonia dessa perspectiva religiosa.
Compreendida por esses atores sociais como única via legitimamente verdadeira,
tentam impor aos grupos antagônicos sua concepção do mundo social.
No que tange à prática educativa, sabemos que
esta não está alheia à condição sociohistórica, tampouco se pode constituir por
uma pseudoneutralidade intocável:
Não há nem jamais houve prática educativa em
espaço-tempo nenhum de tal maneira neutra, comprometida apenas com ideias
preponderantemente abstratas e intocáveis. Insistir nisso e convencer ou tentar
convencer os incautos que essa é a verdade é uma prática política indiscutível
com que se pretende amaciar a possível rebeldia dos injustiçados. Tão política
quanto a outra, a que não se esconde, pelo contrário, proclama, sua
politicidade. (Freire, 1992, p. 78)
Nesse sentido, algumas pautas fronteiriças,
tais como: identidade de gênero, escola sem partido, educação domiciliar (homeschooling),
educação laica e fundamentalismo religioso, emergem no foco das disputas e nas
estratégias de manutenção das diferentes representações políticas e religiosas,
sendo essas de natureza mais progressista ou mais conservadora, que por sua vez
passam a ocupar o campo da educação. Sendo esse campo, segundo Bourdieu (1983),
espaço de posições sociais e de produção simbólica, palco de disputas entre
dominantes e pretendes.
No contexto da era digital e das múltiplas
possibilidades de comunicação – interação e conectividade que a época oferece
–, diversos especialistas têm salientado a consolidação da web como espaço de
produção de cultura, sentidos, práticas sociais e representações presentes no
tecido social.
Conforme salienta Bloch (2001, p. 48): “[…] a
diversidade dos testemunhos históricos é quase infinita. Tudo o que o homem diz
ou escreve, tudo o que fabrica, tudo o que toca, pode e deve informar-nos sobre
ele”. Assim, não se deve deixar de considerar a importância das redes sociais
enquanto valiosas fontes historiográficas, ainda que pouco exploradas em
trabalhos situados na História da Educação, além de mediadoras potentes de
produção de conhecimento e práticas educativas, nos quais:
Os usuários desempenham papéis indicadores de
parâmetros culturais que condicionam as ações cotidianas, as representações e
lugares. Cabe à tela, a capacidade de conceder um brilho à vida recriada no
espaço midiático, no qual produtores e receptores manejam a linguagem, com
vistas à produção de sentidos, demandando novas interpretações. (Simões, 2019,
p. 198)
Ao ampliarmos a análise da conjuntura
apresentada, tendo como pano de fundo o papel das redes sociais nessas
interações e produções de sentido, pretendemos também situar essas redes como
palco de disputa, bem como lócus estratégico para a disseminação e a
transmissão de valores culturais de determinados coletivos, grupos e correntes
ideológicas, os quais buscam ampliar o alcance e a adesão de seus
posicionamentos, muitas vezes em detrimento da deslegitimação, anulação e
cancelamento de grupos e posicionamentos ideológicos que lhes são antagônicos.
Todo documento é um monumento que deve
ser desestruturado, desmontado. O historiador não deve ser apenas capaz de
discernir o que é “falso”, avaliar a credibilidade do documento, mas também
saber desmistificá-lo. Os documentos só passam a ser fontes históricas depois
de estar sujeitos a tratamentos destinados a transformar sua função de mentira
em confissão de verdade.
No percurso historiográfico de desmistificação
do documento, considerando as redes sociais como suporte de
pesquisa, atentamos ao risco de analisar os comentários produzidos no Facebook segundo uma concepção
estritamente subjetiva, a qual os enquadraria como práticas organizadas de
maneira autônoma, consciente e deliberada pelos sujeitos, sem considerar os
efeitos estruturantes que as modelam. Tão pouco pretendemos aqui nos limitar a
uma perspectiva que as reduziria à mecânica de estruturas externas e
retificadas. A análise se dará de modo a promover a dialética entre as
estruturas sociais e a experiência subjetiva dos sujeitos; ou seja, como
essas experiências se organizam por princípios estruturantes que implicam
representações e ações desses agentes. Assim, o conceito de habitus emerge como uma possível ponte entre essas duas dimensões do mundo
social: a objetiva e a subjetiva, compreendido como fruto da incorporação da
estrutura social e da posição social de origem no interior de cada sujeito.
Essa abordagem nos permite identificar a prática dos sujeitos em função de sua
posição nas estruturas sociais, pois é essa posição de origem que o fará
emergir numa série de experiências e disposições que vão estruturando suas
ações em todas as situações. Assumir esse argumento como caminho de análise das
práticas sociais acarreta o entendimento de que a subjetividade dos sujeitos é
algo socialmente estruturado.
Portanto, o processo de análise e tratamento
dos textos nas redes sociais enquanto fonte histórica interpela ao pesquisador
o exercício de identificar de que maneira se manifestam implícita ou
explicitamente as posições sociais às quais pertencem os interlocutores da
mensagem, bem como suas redes de sociabilidade, e como são reproduzidas por
meio delas as estruturas de dominação social.
Representações sobre a educação católica nas
páginas do Facebook
O desafio de pensar as redes sociais como
sendo suporte de pesquisa e os comentários na web como tipologia de fonte para
investigação da cultura escrita no espaço virtual, conciliadas a grande
motivação pessoal de entender com maior profundidade a natureza das tensões
religiosas e as narrativas em disputa no contexto da educação confessional
católica, conduziram a um movimento de pesquisa que desdobrou no mapeamento de
dezessete páginas e comunidades virtuais que se mostraram possíveis objetos
para a pesquisa acadêmica.
Dentre elas, despertou-nos enorme curiosidade
investigativa uma página criada na rede social Facebook, denominada: Pais Maristas em Defesa do Ensino Religioso.
O título da página trazia consigo questionamentos implícitos que causavam
grande inquietação. Por que pais de alunos de uma tradicional escola
confessional católica precisariam criar uma página no Facebook para defenderem o ensino religioso nessa escola? O que
estaria incomodando esses pais a tal ponto? Quais representações esses pais
teriam sobre o ensino religioso? Quais tensões e disputas poderiam estar
contidas como pano de fundo dessa atitude? Haveria também pais contrários a
esse posicionamento?
A página Pais
Maristas em Defesa do Ensino Religioso foi criada em novembro de 2018 por
pais de alunos do colégio Marista São Luís, situado na cidade de Jaraguá do Sul-SC,
com o objetivo, expresso por seus autores, de reagirem ao modo equivocado que,
segundo eles, o colégio estaria conduzindo o ensino religioso mediante a adoção
de um material didático. O que, para esses pais, estaria induzindo os alunos a
um relativismo religioso ao abordar outras manifestações e tradições religiosas
e ao não enfatizar ou se restringir ao ensino dos fundamentos da fé católica,
atribuindo a esse material uma dimensão também catequética. Trata-se de uma
página pública uma vez que está nas redes sociais. Ela foi publicada por
iniciativa de algumas famílias que têm filhos e filhas matriculados nos
colégios da referida congregação e, apesar de se identificarem como “maristas”,
pelo próprio teor da página, não representam a voz da instituição, mas o
entendimento do que algumas pessoas que se identificam como “maristas” pensam
que deva constituir esse traço identitário.
A página contabiliza até a data do último
acesso para essa pesquisa, em 12 de agosto de 2021, 483 seguidores, 453
curtidas e 63 publicações, sendo que a última ocorreu em 09 de janeiro de 2020,
indicando inatividade da página nos últimos dois anos, embora permaneça
acessível.
Ao conferirmos o guia do módulo de
apresentação do material didático alvo da reação em questão, a fim de melhor
nos apropriarmos desse objeto que teria gerado tamanha mobilização por parte
dessas famílias, constatamos pelo objetivo descrito o seu enfoque
epistemológico, o qual propõe discutir a experiência religiosa presente nas
culturas e refletir sobre os problemas fundamentais da existência, deixando de
fazer qualquer menção direta ao ensino da fé católica.
O Sistema Marista de Educação – Ensino Religioso propõe, assim, discutir
a experiência religiosa presente nas culturas, pois nela os estudantes
encontram a possibilidade de refletir sobre os problemas fundamentais da
existência. O objetivo do Ensino Religioso é o desenvolvimento de estruturas
cognitivas, conhecimentos, conteúdos, saberes, experiências, valores,
linguagens e habilidades, entre outros, que promovam a compreensão,
interpretação e ressignificação da religiosidade e do fenômeno religioso em suas
diferentes manifestações históricas, linguagens e paisagens religiosas
presentes nas culturas e nas sociedades. (FTD Educação & União Marista do
Brasil, 2017, p. 2)
A representação do ensino religioso como campo
de doutrinação da fé católica – portanto, antagônica à episteme do material
didático adotado pela escola – pode ser observada em boa parte dos comentários
realizados na página virtual, sempre acompanhados de citações bíblicas, que
emergem como disposição dos agentes para justificar uma tomada de posição. Em
postagem realizada no dia 08 de janeiro de 2020, o administrador da página
demonstra sua indignação ao analisar um capítulo do material didático que
aborda em seu título: “A beleza da diversidade das tradições
religiosas”. Na postagem em questão, o administrador se expressa da seguinte
maneira: “Neste capítulo, está claro o objetivo de fazer com que as crianças de
9 anos acreditem que todas as tradições religiosas são iguais […] No verdadeiro
diálogo inter-religioso não se abre mão da verdade” (Pais Maristas em
Defesa do Ensino Religioso, 2020a, s.p.).
Na sequência cita o trecho bíblico extraído da carta de São Paulo aos
Colossenses, justificando sua
Outro aspecto observado é o nome da página que
destaca a identificação dos usuários com o colégio em questão, embora não
utilizem como referência a logomarca oficial da instituição educacional. O fato
de se identificarem como “pais maristas” em defesa do ensino religioso denota
uma posição social de origem e um conjunto de capitais simbólicos implícitos
que legitimam de algum modo sua prática.
Bourdieu (1996, p. 149) define capital
simbólico como sendo:
Qualquer tipo de capital (econômico, cultural,
escolar ou social) percebido de acordo com as categorias de percepção, os princípios
de visão, os sistemas de classificação, os esquemas classificatórios, os
esquemas cognitivos, que são, em parte, produto da incorporação das estruturas
objetivas do campo considerado, isto é, da estrutura de distribuição do capital
no campo considerado.
É, portanto, um capital que se sustenta no
conhecimento prático, na forma como as pessoas legitimam elementos de
diferenciação e legitimação dos indivíduos de uma classe.
Uma hipótese levantada é de que o fato de se autoidentificarem
como maristas confere a esses agentes um sentimento de pertença que extrapola a
relação econômica entre cliente e prestador de serviço. Fosse essa a única questão,
poderiam simplesmente resolvê-la com a escolha de outra escola para
matricularem os seus filhos. No entanto, essa possibilidade não é explicitada
em nenhum momento no curso das postagens. Ao contrário, sentem-se de alguma
forma guardiões ou reguladores daquilo que, segundo esses agentes, representa a
identidade da escola cristã, católica e marista. Eles o fazem de tal modo que
tentam mobilizar seus capitais simbólicos para exercer estratégias de dominação
cultural. Procuramos identificar, no conjunto das postagens eletrônicas, alguns
desses capitais acumulados, capazes de gerar sensação de autoridade para reivindicarem
ou se pronunciarem em nome da congregação.
O capital econômico, trata-se de um colégio
tradicional na cidade que possui uma das mensalidades mais elevadas do
município; e, por isso, ser reconhecido como marista confere status nos círculos
sociais. Em postagem realizada no dia 18 de abril de 2019, o perfil de autoria
da página realiza a seguinte publicação: “Quando os pais… consumidores… pagadores…
se unem… A doutrinação e os excessos não têm vez…” (Pais Maristas em
Defesa do Ensino Religioso, 2019a, s.p.).
Outro capital simbólico que pode ser atribuído
é o capital religioso que por sua vez não esteja desassociado do primeiro, uma
vez que esse também implica uma rede de sociabilidade no interior das
comunidades eclesiais. Assim, sendo a escola confessional representada como
extensão da própria igreja, o capital religioso e econômico acumulado por esses
agentes acaba por conferir certo poder simbólico para reivindicarem os projetos
religiosos que os representam. Em publicação realizada no dia 09 de julho de
2019, o perfil de autoria da página evoca diferentes instâncias hierárquicas no
interior da igreja católica numa tentativa de fazer ecoar as reivindicações do
grupo “Diocese de Joinville, Nunciatura Apostólica no Brasil, Vatican News,
CNBB – Conferência dos Bispos, Maristas… assim se dá a educação em um colégio
confessional???” (Pais Maristas em Defesa do Ensino Religioso, 2019b, s.p.).
Portanto, são produções simbólicas que devem
suas características “aos interesses das classes ou das frações de classe que
elas exprimem” e “aos interesses específicos daqueles que as produzem”
(Bourdieu, 1989, p. 13). Tais representações acerca do papel da família junto à
comunidade educativa, produzidas por meio da posição social ocupada por esse
grupo, acabam por legitimar em algum nível a ação interventora com a prática
educativa.
O Quadro 1 evidencia essa representação
mediante postagem realizada em 09 de janeiro de 2020, em que se explicita a
relação econômica apreendida como critério que a princípio, para esses agentes,
legitima a intervenção na prática educativa da escola quando destaca que “o seu
esforço para pagar pode estar levando a alma dele à condenação”. É importante
observar de igual modo que esse habitus é
incorporado no campo religioso onde as produções simbólicas se reproduzem por
meio de estruturas de dominação social, neste caso a religião atua como sistema
simbólico produzido e apropriado pelo conjunto do grupo. Segundo Bourdieu
(2001, p. 255): “Aqueles que incorporam o
habitus próprio ao campo estão em condições objetivas e subjetivas de
disputar o jogo e acreditar na importância dele”.
Quadro
1
Postagem da
página Pais Maristas em Defesa do Ensino Religioso
Postagem |
@paismaristasemdefesa |
ATENÇÃO
PAIS Como já mostramos é um ABSURDO e VERGONHOSO
o ensino religioso de um colégio católico confessional apresentar aos seus
alunos um material como esse! Pais fiquem de olho, pois na rede Marista se
tem relatos que tais livros sequer vão para casa, ou seja, você nem sabe o
que seu filho está estudando como verdade e seu esforço para pagar pode estar
levando a alma dele à condenação. |
Fonte: elaborado pelos autores com
base em Pais Maristas em Defesa do Ensino Religioso (2020b).
As redes sociais surgem como campo estratégico
de atuação para reivindicar essa posição. O Quadro 2 demonstra a primeira
postagem e comentários da página, descortinando de imediato o objetivo de sua
criação e sua intencionalidade.
O autor da publicação e administrador da
página destaca que serão publicadas informações de como um simples grupo de
pais começou a perceber o modo equivocado de como o ensino religioso vem sendo
desenvolvido no colégio.
A recepção da iniciativa por parte de outros
pais pode ser observada nos comentários da publicação. No comentário 2, a
usuária atribui a defesa do ensino religioso à defesa cívica do país,
conferindo pela primeira vez caráter político à página ao escrever: “O país nos
pertence! Bora defender nossos filhotes!”. Isso sugere que, para ela, a adoção
dessa abordagem do ensino religioso está permeada pela representação de um
ideário político. Já no comentário 3, a usuária ressalta que se o colégio é
Marista, Maria e Jesus devem estar em primeiro lugar e quem não concorda com
tal afirmação deve procurar outro colégio.
Outro indício do forte sentimento de pertença desses pais em relação ao
colégio e à postura de pouca receptividade à diversidade religiosa presente no
cerne da tensão por parte de algumas famílias.
Quadro 2
Primeira
postagem e comentários na página Pais Maristas em Defesa do Ensino Religioso
Postagem |
@paismaristasemdefesa |
A partir desta semana começaremos a publicar informações sobre o
modo como um simples grupo de pais maristas começou a perceber o modo
(equivocado) como o ensino religioso vem sendo desenvolvido no Colégio
Marista São Luís, em Jaraguá do Sul. |
|
Comentário
1 |
@julianaclarissa |
Com certeza Dr. Meu despertar crítico já ocorreu sobre esse
assunto. E é algo que não venho gostando. |
|
Comentário
2 |
@gislainetarga |
Excelente, pais!!! O país nos pertence! Bora defender nossos
filhotes!! |
|
Comentário
3 |
@rosaneveramaiapereira |
Eu sou a favor do ensino Religioso. Se o Colégio é Marista,
Maria e Jesus estão em primeiro lugar. Quem não concorda deve procurar outro
Colégio. Ou tu és quente ou frio. Morno te vomito. |
Fonte: elaborado pelos autores com
base em Pais Maristas em Defesa do Ensino Religioso (2018).
O conjunto de postagens posteriores que seguem
na página se constituem em uma análise realizada pelos pais sobre o material
didático do Ensino Religioso em questão, a saber, uma coleção de 5 volumes do
Sistema Marista de Educação, produzidos pelos autores Heloísa Silva de Carvalho
e Jorge Silvino da Cunha Neto, lançada e publicada pela editora FTD. Observando
certos padrões de questionamentos presentes nas postagens e comentários acerca
do conteúdo apresentado no material, conforme ilustrado no Quadro 3, notamos
maior ênfase à pouca aceitação a outras expressões e matrizes religiosas
presentes no material.
Quadro
3
Postagem sobre a
abordagem do material didático acerca das religiões de matriz africana na
página Pais Maristas em Defesa do Ensino Religioso
Postagem |
@paismaristasemdefesa |
Página 73 – Nesta página em se tratando de um colégio Católico
Confessional, é preocupante saber que crianças de 8 anos que ainda não
passaram pela catequese, tenham que decorar e estudar os nomes de orixás. Um material totalmente desnecessário para a idade das crianças e
que vem contra toda fé católica! |
|
Comentário
|
@josianysola |
Aqui em Ponta Grossa PR, meus filhos estão no
Marista, sou católica (praticante), são consideradas escola Confessional o Arautos
do Evangelho e a escola Sagrado Coração de Jesus, o Marista não se enquadra.
Só observo com o título. Concordo plenamente com o que foi postado. E na
última reunião que eu estive foi claro da parte pedagógica que o Marista não
quer ensino religioso católico, mas "mostrar todas as religiões para que
o aluno aprenda e respeite" e "a parte católica fica só a cargo da
Pastoral e das entre linhas". Pra não ser polêmica eu me calei, pois
entendo que respeito como católicos ensinamos em casa! |
Fonte: elaborado pelos autores com
base em Pais Maristas em Defesa do Ensino Religioso (2019c).
Essa resistência ganha ênfase quando se trata
da equiparação que o material apresenta entre as religiões de matriz africana e
o cristianismo. Observamos no Quadro 3 esse questionamento, quando a indignação
se dá pelo fato de que o nome e a natureza dos Orixás são abordados no capítulo
do livro que apresenta o Candomblé. Segundo o administrador da página: “É
preocupante saber que crianças de 8 anos que ainda não passaram pela catequese,
tenham que decorar e estudar os nomes dos orixás” (Pais Maristas em Defesa do Ensino Religioso, 2019c, s.p.).
Nesta outra postagem publicada em 2 de
novembro de 2019 (Quadro 4), a indignação se dá pelo fato de o material
apresentar obras de arte que expressam a relação do ser humano com outras
tradições religiosas. Na publicação deixam claro a posição de intolerância em
relação a outras denominações religiosas que pode ser observada com maior
ênfase em alguns trechos, por exemplo, ao se afirmar que somente a “arte sacra
cristã nos leva a contemplar o verdadeiro Belo que é Deus”, ao denominar as
outras expressões artísticas não cristãs como “arte pagã”, e ao se afirmar que
a “editora prefere relativizar o tema e jogar fora o que nos ensina o Catecismo
de nossa Igreja” (Pais Maristas
em Defesa do Ensino Religioso, 2019d, s.p.).
Quadro 4
Postagem sobre a
arte sacra na página Pais Maristas em Defesa do Ensino Religioso
Postagem |
@paismaristasemdefesa |
Neste módulo a
editora vem falar sobre a cultura dos povos. Utiliza das
artes sacras sem uma preocupação que um colégio católico deveria ter em não
igualar a arte cristã com a pagã. A arte sacra
cristã nos leva a contemplar o Belo, o verdadeiro Belo que é Deus, a nossa
ligação com Deus e seu Amor por nós. A arte sacra tem que nos levar a
Verdade, a contemplar a própria fonte da beleza que é o Criador. Mas a editora
prefere relativizar o tema e jogar fora o que nos ensina o Catecismo de nossa
Igreja. Vejamos o que
diz o Catecismo da Igreja Católica: “A catequese sobre a criação se
reveste de uma importância capital. Ela diz respeito aos próprios fundamentos
da vida humana e cristã, pois explicita a resposta da fé cristã à pergunta
elementar feita pelos homens de todas as épocas: “De onde viemos?” “Para onde
vamos?” “Qual é a nossa origem?” “Qual é o nosso fim?” “De onde vem e para
onde vai tudo o que existe?” As duas questões, a da origem e a do fim, são
inseparáveis. São decisivas para o sentido e a orientação de nossa vida e de
nosso agir.” |
Fonte: elaborado pelos autores com
base em Pais Maristas em Defesa do Ensino Religioso (2019d).
A análise da dimensão simbólica presente na
publicação demonstra que esses usuários
mobilizam sua posição social e um conjunto de sistemas simbólicos (discurso
religioso e político) para exercer um processo de dominação cultural no campo
educacional e religioso em disputa. Para tal, apropriam-se do suporte da rede
social virtual Facebook, apreendida enquanto lócus da prática de intervenção. Ressaltamos
à luz das teorias de Bourdieu (1989) que esses agentes agem a partir de um
conjunto de disposições estruturadas internamente e vinculadas à posição social
que ocupam, ou seja, trazem consigo uma herança cultural e um conjunto de
acessos que colocam em jogo visando à manutenção de tais posições.
Contudo, é possível também notar, no conjunto
das postagens eletrônicas, sinais de resistência e subversão à cultura
dominante, essas, à medida que surgiam, eram prontamente ignoradas pelo grupo.
Em postagem realizada no dia 24 de janeiro de 2020, a usuária N.C. critica o
fato de as religiões de matriz africana serem caracterizadas como seitas na
publicação do perfil de autoria da página: “Seitas de origem africana (umbanda
e candomblé) que absurdo ler isso em pleno século 21, que dó eu tenho do filho
de vcs que tem que crescer com pais tão preconceituosos” (Pais Maristas em
Defesa do Ensino Religioso, 2020c, s.p.).
Essa contraposição de narrativas entre os
grupos dominantes e os pretendentes que travam lutas, mais ou menos explícitas,
revelam a busca de estratégias para contestar o poder imposto. Ou seja, essa
tentativa de contestação e subversão das estruturas hierárquicas presentes no
campo religioso é o que Bourdieu (1983) classifica na estrutura do campo
religioso como subversão herética.
Interpretando
silêncios e ausências
O exercício do historiador na perspectiva da
História Cultural é também de interpretar os silêncios e as possíveis ausências
presentes no documento analisado como suporte de pesquisa. Nessa perspectiva, o
hiato de 2 anos provocado pela ausência de postagens na página que
anteriormente movimentava em média de 6 a 10 publicações mensais, sugerem ao
menos duas hipóteses. A primeira é a de que o colégio teria convencido esses
pais sobre a pertinência do material didático em questão levando a ampla
aceitação dele. A segunda hipótese é a de que o colégio teria cedido à pressão
e aos argumentos desses pais, bem como a eminente repercussão proporcionada
pela página e, dessa forma, cedido à adoção de outro material didático para o
ensino religioso que atenda as demandas apresentadas, o que nesse caso não mais
justificaria a efervescência de postagens e interações na
Na tentativa de validar ou refutar tais
hipóteses, saímos à procura de novas evidências. Em busca realizada na página
do Facebook do colégio, não foi encontrada nenhuma menção direta ao material didático.
No entanto, ao realizar a busca por ensino religioso, nos chamou a atenção uma
publicação realizada no dia 23 de julho de 2020, onde se relata que, durante
uma das aulas de ensino religioso, a mãe de um aluno do 2º ano do Ensino
Fundamental foi convidada a falar sobre o Islamismo, religião dos avós e pai do
aluno. Sugerimos, portanto, que o colégio não teria cedido à pressão das
famílias por uma abordagem estritamente católica para esse componente
curricular. Realizamos também no website do colégio a busca por ensino
religioso, no qual o usuário é direcionado à página de perguntas frequentes,
nesse espaço nos deparamos com a seguinte questão: “A grade curricular inclui
aulas de religião?”; e logo abaixo a resposta que indica a manutenção da
abordagem fenomenológica do material didático em questão, embora esse não seja
mencionado diretamente.
Dentro da proposta pedagógica Marista é
ofertado o Ensino Religioso. Transversal no currículo da área de Ciências
Humanas, esse ensinamento contribui para a educação integral, para a formação
de cidadãos, para a releitura do fenômeno religioso e para o desenvolvimento da
religiosidade. Ele está de acordo com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação,
[…]. (Colégios Maristas, 2022, s.p.)
Em nova análise do material didático para
Ensino Religioso do Sistema Marista de Educação publicado pela editora FTD, observamos
que o material foi submetido a um processo de revisão e, embora a inscrição
“material revisado” apareça sutilmente descrita na capa do material, a ficha
catalográfica não indica o ano em que a revisão foi realizada. A partir da análise
de conteúdo da edição revisada com enfoque nas páginas alvo do questionamento
das famílias, foi possível observar que a abordagem fenomenológica, bem como a
estrutura a partir dos módulos e capítulos subsequentes foram preservadas na
nova edição, mas com uma sutil alteração no conteúdo. Em alguns trechos observamos
que as palavras Umbanda e Candomblé são substituídas por tradições
afro-brasileiras. Em outros trechos pode se notar a substituição dessas referências
por outras tradições religiosas não africanas. No quadro abaixo se apresenta um
exemplo de como essas alterações foram realizadas ao se comparar o mesmo
conteúdo em edições distintas do material. Trata-se de um trecho extraído do
quarto volume da coleção Ensino Religioso, do capítulo 2, “Muitos
Instrumentos: Uma única sinfonia”.
Quadro 5
Alterações no material didático
Primeira
edição do material publicado em 2017 |
Módulo
2: A Igualdade na diferença Capítulo
2: Muitos Instrumentos: Uma única sinfonia Página:
47 |
Alguns símbolos são compartilhados por várias tradições
religiosas, como o fogo, por exemplo, que pode representar o Sol, fonte de
luz e calor, ou a iluminação divina, ou, ainda, a destruição, o renascimento
e a sabedoria. Os indígenas Krahô, do estado do Tocantins, têm uma forte
ligação com o fogo. Antes de iniciarem suas celebrações, sempre acendem uma
fogueira, ao redor da qual se sentem ligados uns aos outros e também à
natureza. Para eles, o fogo é um símbolo de união da aldeia. A água, que geralmente representa a purificação e a fonte da
vida, também é um símbolo sagrado para diversas religiões, como o Islamismo,
o Judaísmo, o Hinduísmo, o Cristianismo e o Candomblé. No Candomblé, durante a celebração das Águas de Oxalá, as
pessoas dessa tradição religiosa, vestidas de branco e com a cabeça coberta por
um pano branco, vão três vezes buscar água em uma fonte e a levam em jarros
até um lugar sagrado nas Casas de Candomblé dedicadas a Oxalá. |
|
Material
Revisado sem data informada na ficha catalográfica |
Módulo 2: A Igualdade na diferença Capítulo 2: Muitos Instrumentos: Uma única sinfonia Página: 47 |
Alguns símbolos são compartilhados por várias tradições religiosas,
como o fogo, por exemplo, que pode representar o Sol, fonte de luz e calor,
ou a iluminação divina, ou, ainda, a destruição, o renascimento e a
sabedoria. Os indígenas Krahô, do estado do Tocantins, têm uma forte
ligação com o fogo. Antes de iniciarem suas celebrações, sempre acendem uma
fogueira, ao redor da qual se sentem ligados uns aos outros e também à
natureza. Para eles, o fogo é um símbolo de união da aldeia. A água, que geralmente representa a purificação e a fonte da
vida, também é um símbolo sagrado para diversas religiões, como o Islamismo,
o Judaísmo, o Hinduísmo, o Cristianismo e as tradições afro-brasileiras. Nas tradições cristãs, a água está presente nas cerimônias de
batismo. Em algumas tradições protestantes, a pessoa que está sendo batizada
tem o corpo inteiro mergulhado na água como representação de seu renascimento
espiritual. Esse ritual é uma confirmação de fé em Jesus Cristo. |
Fonte:
Carvalho e Cunha Neto (2017).
Ressaltamos que o conteúdo aqui utilizado para
evidenciar a natureza das alterações realizadas pela congregação frente ao
material didático foi também alvo de reivindicação das famílias na página
virtual.
Em publicação realizada em 08 de janeiro de
2020, o perfil de autoria da página reage ao conteúdo do material.
Mais uma vez o
livro, através dos símbolos e rituais, procura igualar as religiões e até
seitas pagãs, o que certamente confunde a criança que está no início de sua
formação religiosa. Tudo isso para um colégio confessional CATÓLICO e aí pais vocês
sabiam disso? Olharam os livros de seus filhos? Acompanharam de perto?” (Pais
Maristas em Defesa do Ensino Religioso, 2020d, s.p.)
Mediante essa constatação, sugerimos que a
abordagem das religiões de matriz africana no material didático emerge como
principal foco de tensão junto às famílias que contestam sua legitimidade no
âmbito do ensino religioso. Nesse sentido, atenuar ou até mesmo diminuir sua
incidência no material pode ter sido uma saída encontrada pela congregação para
diminuir o conflito com essas famílias e, ao mesmo tempo, não renunciar ao
material em questão.
Considerações finais
Este artigo acena como estudo que visa, em
primeiro plano, reafirmar o valor da escrita nas redes sociais virtuais
enquanto tipologia de fonte pouco explorada, que, ao mesmo tempo, reúne um
vasto repertório de análise, atribuindo novos signos, códigos linguísticos e
estilísticos, significados e níveis de interação inerentes do espaço virtual
que ajudam a contar a história do tempo presente, implicando profundamente na
forma de como a educação é transmitida e assimilada por meio da cultura escrita
no espaço da web. Portanto, não podem mais ser desconsideradas na
historiografia da educação e no papel que desempenham na ressignificação e
resistência da cultura escrita.
Em outro plano, destaca o papel desempenhado
pelas redes sociais como via para a produção de cultura e sentidos que afetam o
campo da educação na perspectiva política, cultural, econômica e religiosa.
Concebemos aqui o campo educacional como espaço
de reprodução e de legitimação da dominação exercida pelas classes dominantes.
Assim, a cultura consagrada e transmitida pela
instituição escolar não se dá a partir de uma pseudoneutralidade intocável ou
fundamentada em uma verdade objetiva inquestionável. Ela seria constituída
também de forma arbitrária a partir do interesse dessas classes, embora esse
caráter arbitrário seja socialmente reconhecido como cultura legítima.
Neste sentido, esse estudo apresenta as redes
sociais virtuais, mais especificamente a página Pais Maristas em Defesa do
Ensino Religioso, enquanto locais onde se reproduzem as práticas que tendem
a afetar o campo educacional a partir da mobilização de sistemas simbólicos que
podem ser estratificados no conjunto dos textos eletrônicos. Identificar,
portanto, nessas narrativas eletrônicas, a posição social ocupada por esses
agentes, bem como as disposições interiorizadas que estruturam suas
representações sobre a educação católica e o ensino religioso, permitirá também
reconhecer os projetos educacionais colocados em disputa e o jogo de dominação
cultural que culmina invariavelmente na reprodução de violências simbólicas no
interior desse campo.
Referências
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Franco, M. L. P. B. (2003). Análise de Conteúdo. Plano Editora.
Freire, P. (1992). Pedagogia da esperança:
um reencontro com a pedagogia do oprimido. Paz e Terra.
FTD Educação, & União Marista do Brasil (2017). Ensino
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Le Goff, J. (2003). História e Memória (5. ed.). Editora da
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Pais Maristas em Defesa do Ensino Religioso (2018, novembro 13).
Primeira postagem e comentários na página. Facebook: @paismaristasemdefesa.
https://www.facebook.com/paismaristasemdefesa/posts/pfbid0fDhrD6oHtr9UgvsXcaAMpzzjE2g4w7SFAzU84sADiCpUmCpRAjqgZFE4jTnj9AD6l
Pais Maristas em Defesa do Ensino Religioso (2019a, abril 18). Pais
pagadores e consumidores reinvidicam. Facebook: @paismaristasemdefesa. https://www.facebook.com/paismaristasemdefesa/posts/pfbid0TeyA6BqBezQpYreuJzHfBudYyvR2oMuVTgy4zuFBgiUt1YD8mwUPEp1sHSUJp6HTl
Pais Maristas em Defesa do Ensino Religioso (2019b, abril 18). Apelo
as instancias eclesiais. Facebook: @paismaristasemdefesa. https://www.facebook.com/paismaristasemdefesa/posts/pfbid0benRRgYvbrDnHQy7vBigpZGhAhhALDCegtx9itA6zC6p9Yrts4uvWpvVDmguPtV3l
Pais Maristas em Defesa do Ensino Religioso (2019c, outubro 27).
Postagem sobre a abordagem do material didático acerca das religiões de
matriz africana. Facebook: @paismaristasemdefesa. https://www.facebook.com/paismaristasemdefesa/posts/pfbid04xQfK9tQMZtG7mbWCKoxVSV2JrXxb6YGKSscEKmntccBhcXyEX7PdYYpzP7czj4pl
Pais Maristas em Defesa do Ensino Religioso (2019d, novembro 02).
Postagem sobre a arte sacra. Facebook: @paismaristasemdefesa. https://www.facebook.com/paismaristasemdefesa/posts/pfbid026H5CaCp2e2QejWfA6GWMvTjhQzgtJo53yiQWAKWnCxKCFXMai6YctRtP3cUXo8MVl
Pais Maristas em Defesa do Ensino Religioso (2020a, junho 08). A
beleza da diversidade das tradições religiosas. Facebook:
@paismaristasemdefesa. https://www.facebook.com/paismaristasemdefesa/photos/a.578847126026986/579589879286044
Pais Maristas em Defesa do Ensino Religioso (2020b, junho 09). Atenção
pais. Facebook: @paismaristasemdefesa. https://www.facebook.com/paismaristasemdefesa/posts/pfbid02U9YmrC4KeifAqmfGQqqt2DknJ8hh7zobvmymPbH4FRsstACpXcaniCvxgryqLwFYl
Pais Maristas em Defesa do Ensino Religioso (2020c, janeiro 24). Sinais
de resistência e subversão nos comentários.
https://www.facebook.com/paismaristasemdefesa/posts/pfbid0JGfYkrbLpjampQQo6hB32jnXQFvZ7x2cmtTKsD5R8bRThSbedsDJk7K64B9SUaPMl
Pais Maristas em Defesa do Ensino Religioso (2020d, janeiro 08). Muitos
Instrumentos: Uma só sinfonia. Facebook: @paismaristasemdefesa. https://www.facebook.com/paismaristasemdefesa/posts/pfbid0XQdC2721u3Wk36a3uSt1oyjp95UEpst17TjB2PvgsqdWQZ6boysRhm8V4KHjoXSUl
Santos, B. de S. (2019). E agora, Brasil? O sul. https://www.sul21.com.br/opiniaopublica/2019/07/e-agora-brasil-por-boaventura-de-sousa-santos
Simões, R. F.
(2019). Memórias postadas, histórias compartilhadas: A educação rondoniense nas
páginas do Facebook. Revista de História e historiografia da Educação, 3(8),
198-220. http://doi.org/10.5380/rhhe.v3i8.64513
[i] Pós-Graduado em Gestão de
Processos Pastorais pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (2015).
Mestrando em educação pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná.
[ii] Doutora em educação pela
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2013). Professora titular da
Pontifícia Universidade Católica do Paraná.