Artigo
Autismo e
práticas de cuidados durante a pandemia de Covid 19
Autismo y prácticas de cuidado durante la pandemia
de Covid-19
Autism and care practices during the Covid-19 pandemic
Joyce Carolina de Freitas[i]
Pontifícia Universidade Católica do Paraná
Curitiba, Paraná, Brasil
joycfreitas@educacao.curitiba.pr.gov.br
https://orcid.org/0000-0003-0659-6485
Ana Paula Boff[ii]
Universidade Federal de Santa Catarina
Florianópolis, SC, Brasil
https://orcid.org/0000-0002-6568-0006
As
autoras contribuíram igualmente na elaboração do manuscrito.
Recebido em: 26/04/2022
Aceito em: 21/09/2022
Publicado
em: 03/10/2022
Linhas
Críticas | Periódico científico
da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília, Brasil
ISSN: 1516-4896 |
e-ISSN: 1981-0431
Volume 28, 2022
(jan-dez).
http://periodicos.unb.br/index.php/linhascriticas
Referência
completa (APA):
Freitas, J. C. de, & Boff, A. P. (2022). Autismo e práticas de
cuidados durante a pandemia de Covid 19. Linhas Críticas, 28,
e43037. https://doi.org/10.26512/lc28202243037
Link alternativo:
https://periodicos.unb.br/index.php/linhascriticas/article/view/43037
Licença Creative Commons
CC BY 4.0.
Resumo: O objetivo deste estudo é analisar a efetividade
dos laços familiares desenvolvidos durante a pandemia de covid-19 por parte de
famílias com pessoas com Transtorno do Espectro Autista, considerando as
relações de cuidado destinadas a esse público. Por meio de uma pesquisa
qualitativa, foram aplicados dois instrumentos de coleta de dados aos
familiares participantes. Os dados apontam para uma sobrecarga materna, a
dificuldade de lidar com a pessoa com autismo em casa sem apoio e a interrupção
e/ou oferta precária de tratamentos, acompanhamento psicológico e atendimento médico
no contexto pandêmico. Evidenciou-se, assim, a necessidade de ações
governamentais de suporte e apoio a essas famílias.
Palavras-chave: Práticas de cuidado. Pandemia de covid-19. Transtorno
do Espectro Autista.
Resumen: Este estudio tiene como objetivo analizar la
efectividad de los lazos familiares desarrollados durante la pandemia de
covid-19 por familias de personas con Trastorno del Espectro Autista,
considerando las relaciones de cuidado dirigidas a este público. A través de
una investigación cualitativa, se aplicaron dos instrumentos de recolección de
datos a estos familiares. Los datos apuntan a la sobrecarga materna, la
dificultad de lidiar con la persona con autismo en casa sin apoyo y la
interrupción y/o oferta precaria de tratamientos, seguimiento psicológico y
médico en el contexto de la pandemia. Así, se evidenció la necesidad de
acciones gubernamentales para apoyar a estas familias.
Palabras
clave: Prácticas de cuidado. Pandemia de covid-19. Trastorno del Espectro
Autista.
Abstract: This study aims to analyze the effectiveness of family
ties developed during the covid-19 pandemic by families with individuals with
Autism Spectrum Disorder, considering the care aimed at this public. Through qualitative
research, we applied two data collection instruments to the family members. The
data point to maternal overload, difficulty of dealing with the autistic person
at home without support, and interruption and/or precarious offer of treatments
and psychological and medical follow-up in the pandemic context. Thus, it is
clear that government actions to support these families are necessary.
Keywords: Care practices. Covid-19 pandemic. Autism Spectrum
Disorder.
Introdução
A partir da publicação do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos
Mentais em 2013, do original em inglês Diagnostic and Statistical Manual of
Mental Disorders (DSM-5) (American Psychiatric Association [APA],
2014), o Transtorno do Espectro Autista (TEA) foi reconhecido como um
transtorno do neurodesenvolvimento caracterizado por déficits persistentes na
capacidade de interação social recíproca e comunicação, além de uma série de
padrões de comportamento, interesses ou atividades restritos, repetitivos e
inflexíveis que são claramente atípicos ou excessivos para o indivíduo em idade
e contexto sociocultural.
O transtorno se inicia na primeira infância, mas as características citadas
podem se manifestar tardiamente (Who-Fic Foundation, s.d.). Ademais,
pessoas que se inserem ao longo do espectro exibem funcionamento intelectual e
habilidades de linguagem muito diversas, podendo apresentar a necessidade de
três níveis de suporte: autismo nível 1 de suporte (exige apoio), autismo nível
2 de suporte (exige apoio substancial) e autismo nível 3 de suporte (exige
apoio muito substancial) (APA, 2014). Assim, observa-se uma correlação entre o
diagnóstico de TEA e o contexto social no qual esse indivíduo está inserido,
pressupondo que é a sociedade/comunidade que deverá subsidiar maior ou menor suportes
médico, educacional e psicossocial, dependendo das características apresentadas
por ele.
Nessa perspectiva, embora a pessoa com TEA possa manifestar comportamentos
que são propensos ao isolamento social, interesses por temas específicos,
dificuldades na área de linguagem, especificidades no processamento de
informações sensoriais, dentre outros, cada ser humano é único e desenvolve a
sua subjetividade a partir dos contextos sociocultural, familiar, econômico em
que está inserido. Dessa forma, a sua singularidade ultrapassa os limites de um diagnóstico
médico (Orrú, 2020). Por isso, os acompanhamentos familiar, educacional e
terapêutico desde a tenra idade e direcionados às potencialidades e
dificuldades de cada indivíduo, torna-se uma demanda social e uma questão de
dignidade humana. Ou seja, a família e o poder público têm responsabilidade no
que tange à atenção integral às necessidades da pessoa com TEA (Brasil, 2012).
A partir da Lei n. 12.764, de 27 de dezembro de
2012, que institui a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com
Transtorno do Espectro Autista, indivíduos com TEA foram considerados pessoas
com deficiência para todos os efeitos legais (Brasil, 2012). Buscando
compreender o TEA sob a perspectiva do modelo social de deficiência, Silva et
al. (2019, p. 194) explicitam que “[…] a diferença neurológica é caracterizada
como lesão e as condições normocêntricas que colocam a pessoa com autismo socialmente
em desvantagem são caracterizadas como produtoras da experiência de
deficiência”. Nesse sentido, não se desconsideram as singularidades advindas do
transtorno, mas entende-se que assim como outras deficiências, o autismo é
produzido socialmente em sociedades balizadas por um ideal dominante de
normalidade (Silva et al., 2019). Isso implica conceber que o TEA não é um
problema, mas sim uma constituição humana diversa que demanda recursos sociais
e médicos específicos. Isto é, ele pressupõe:
[…] a oferta de recursos
sociais e de saúde em prol da promoção da qualidade de vida não apenas do ponto
de vista biomédico, mas também em relação às mudanças ambientais necessárias
para garantir a convivência e a inclusão plena das pessoas com autismo. (Silva
et al., 2019, p. 196)
Além da oferta de recursos sociais e de saúde,
dependendo das singularidades de cada indivíduo, podem ser necessários cuidados
ao longo da vida, como auxílio para atividades da vida diária (higiene,
alimentação, locomoção). Essa demanda evidencia a premência de se entender o
cuidado e as relações de interdependência humanas como uma questão de direitos
humanos (Kittay, 2011).
Há ainda outra manifestação
que ocorre no cotidiano de pessoas com essa condição, especialmente para
aquelas que requerem nível de suporte 2 ou 3, trata-se do alto nível de
estresse. Nesse caso, tendem a se automutilar, externar colapsos nervosos,
desconforto físico ou emocional em decorrência da sobrecarga sensorial (Orrú,
2020). Esses comportamentos se tornam notórios quando decorrem alterações
inesperadas na rotina diária, tais como as que foram impelidas pela pandemia de
covid-19. Com a iminência desta pandemia, sabe-se que a rotina de milhões de
pessoas foi alterada em nível global e os impactos do contexto pandêmico ainda
repercutem nos diversos âmbitos sociais — na economia nacional e internacional,
no baixo rendimento escolar dos estudantes, dentre outros. No caso específico
do autismo, torna-se necessário ampliar a compreensão dos desdobramentos desse contexto
nas práticas de cuidado direcionadas a esse público.
A covid-19 é uma doença
infecciosa causada pela síndrome respiratória aguda grave do coronavírus 2, do original
em inglês Severe Acute Respiratory Syndrome Coronavírus 2 (SARS-CoV-2).
Os primeiros casos da infecção foram notificados em Wuhan, na República Popular
da China em dezembro de 2019, em poucos meses atingindo uma escala global e acarretando
na pandemia de covid-19, que perdura até o ano de 2022 (Organização
Pan-Americana da Saúde [OPAS], 2020). A pandemia alterou de forma drástica a
vida de famílias no mundo todo, sobretudo a partir do ano de 2020, quando houve
o fechamento das escolas e os estudantes passaram a assistir aulas no formato
assíncrono, sem poderem se deslocar de suas casas. Para garantir a saúde
coletiva, uma série de medidas como isolamento social, uso de máscaras e higienização
das mãos com álcool em gel foram requeridas à população (OPAS, 2020).
Com base no exposto, as pesquisas que versam
sobre as implicações desse período na vida de pessoas com TEA possuem temáticas
diversificadas. Algumas dessas investigações, por exemplo, se referem à rotina
de crianças com TEA e suas famílias durante a pandemia de covid-19 (Cardoso et
al., 2021), aos impactos gerados e às possibilidades de cuidado relativas à
Atenção Psicossocial junto a essa população e suas famílias (Fernandes et al.,
2021). Ainda, os estudos endereçam os efeitos do isolamento social no
comportamento de crianças e adolescentes com autismo (Givigi et al., 2021) e à
saúde mental e/ou qualidade de vida de pais de pessoas com TEA durante a
pandemia (Medrado et al., 2021).
Para Fernandes et al. (2021,
p. 3), crianças e adolescentes com TEA apresentam maior vulnerabilidade em
relação à covid-19 não por serem mais suscetíveis ao vírus, mas “[…] devido às
características próprias do quadro clínico que fragilizam a compreensão do
cenário pandêmico, assim como as medidas de controle e proteção, expondo-os a
maiores riscos de contaminação”.
Nesse sentido, atentando-se às
especificidades desse público e o baixo número de pesquisas sobre o tema, este
artigo tem como objetivo analisar a efetividade dos laços familiares
desenvolvidos no contexto do isolamento social causado pela pandemia de covid-19,
por famílias de pessoas com TEA, considerando as relações de cuidado destinadas
a esse público.
Este trabalho se justifica
pela importância de se aprofundar a compreensão sobre as práticas de cuidado às
pessoas com TEA, traçando um paralelo entre a ética do cuidado e as relações de
interdependência (Kittay, 2011; Fietz & Mello, 2018) entretecidas entre
esses sujeitos e suas famílias, no período compreendido entre março de 2020 a
agosto de 2021.
Referencial teórico
No Brasil, há um discurso
dominante em relação às pessoas com deficiência/autismo que se aproxima da
caridade e da compaixão, ocasionando a segregação social e a invisibilidade das
demandas e necessidades desse público (Fietz & Mello, 2018). Em muitas
ocasiões, o desdobramento dessa realidade é a sobrecarga das famílias,
especialmente das mães, que se veem isoladas (Fávero-Nunes & Santos, 2010;
Zanatta et al., 2014; Lima & Couto, 2020; Cardoso et al., 2021) e
desamparadas das políticas públicas que deveriam resguardar os direitos desse segmento
(Orrú, 2020). E esse é um cenário possível, pois o processo de regulamentação e
aplicação das leis brasileiras ocorre de forma lenta ou burocrática. Outrossim,
mesmo diante de legislações que estão alinhadas aos preceitos dos direitos
humanos, como a Lei Brasileira de Inclusão (Brasil, 2015), observa-se que as
posturas sociais de enfrentamento contra o preconceito e a opressão sofrida por
pessoas com autismo, nem sempre acompanham a promulgação das leis (Lima et al.,
2020).
A sobrecarga e o isolamento
social dos familiares de pessoas com TEA precede a pandemia de covid-19 (Lima
& Couto, 2020). Nesse sentido, o estudo de Lima e Couto (2020) apresenta
que os sentimentos de solidão, desgaste e de busca incansável dessas famílias
por serviços de acompanhamento psicossocial aos filhos já eram demandas
focalizadas na literatura antes do contexto pandêmico (Fávero-Nunes &
Santos, 2010; Zanatta et al., 2014). Contudo, dentre os anos de 2020 e 2022, o
confinamento em casa e, de forma associada, a adoção de medidas restritivas que
alteraram a dinâmica dos atendimentos presenciais nas áreas da educação, saúde
e assistência social acentuaram os sintomas do TEA (Givigi et al., 2021). Esse cenário
representou para muitos desses indivíduos um agravamento em seus quadros de
saúde mental, relacionados à frustração e ansiedade, assim como problemas
comportamentais (Givigi et al., 2021).
Lima e Couto (2020) discutem,
ainda, que há certo consenso entre os estudos brasileiros sobre os fatores que
incidem na experiência da sobrecarga. Dentre eles, citam-se a destinação quase
exclusiva da mãe (figura feminina) como responsável pela prática do cuidado e a
ausência de suportes familiar e social.
De modo análogo, Fernandes et
al. (2021) discorrem sobre os impactos gerados pela pandemia de covid-19 para
crianças e adolescentes com TEA, expondo possibilidades de cuidado
fundamentadas na Atenção Psicossocial junto a essa população e suas famílias.
Além do cuidado propriamente dito ao público com TEA, os autores salientam a
necessidade do cuidado aos familiares dessa população, considerando que “[…]
lidar cotidianamente com as dificuldades advindas do TEA pode estar gerando um
sofrimento intenso a quem cuida” (Fernandes et al., 2021, p. 9). Similarmente,
para Medrado et al. (2021), algumas pessoas com TEA requerem cuidados em tempo
integral, o que causa impactos psicológicos negativos em seus genitores,
somando-se às rotinas diárias de cuidado, o home office, a necessidade
de acompanhar as aulas remotas dos filhos em idade escolar, as tarefas
domésticas, dentre outras demandas cotidianas.
Por sua vez, a partir de uma
pesquisa de revisão sistemática, Cardoso et al. (2021) investigaram sobre a
rotina de crianças com TEA e suas famílias durante a pandemia de covid-19. As
autoras focalizam que o isolamento social resultou tanto em impactos negativos quanto
positivos para essas crianças. Os negativos dizem respeito à alteração de
comportamento e nas rotinas preestabelecidas antes do período pandêmico,
acarretando em ansiedade e estresse para os envolvidos. Os impactos positivos
se referem à proximidade entre essas crianças e suas famílias, que passaram a
ter mais contato durante a pandemia.
Nesse ínterim, a categoria do cuidado é central na teoria feminista da
deficiência, estudada por autoras como Kittay (2011) e Fietz e Mello (2018). O
cuidado nessa perspectiva é entendido como uma prática social, emocional e uma
categoria moral.
Kittay (2011) concebe o cuidado como uma questão de justiça social que está
para além das dimensões individual e familiar. O cuidado é “[…] um princípio
ético e moral da própria condição humana, com base na premissa da
interdependência que rege as relações humanas” (Fietz & Mello, 2018, p.
116). Assim, destaca-se que não são
apenas as pessoas com TEA que demandam cuidado, uma vez que :
[…] toda pessoa compartilha a
necessidade de ser cuidada da mesma forma que se constitui como cuidadora em
vários momentos da vida. Ocorre que o cuidado constitui-se de várias formas, assumindo
muitas versões e, por conseguinte, pode incorrer em efeitos diversos tanto para
quem cuida quanto para quem é cuidado. (Fietz & Mello, 2018, p. 117)
Contudo, isso não significa
desconsiderar a necessidade do cuidado e da garantia do bem-estar físico,
mental e emocional, das/para pessoas com TEA nível 3 de suporte, por exemplo,
que demonstram divergências expressivas nas habilidades de comunicação social
verbal e não verbal e dificuldade em lidar com a mudança ou outros
comportamentos restritos e/ou repetitivos (APA, 2014). Pessoas com autismo,
sobretudo as que apresentam condições mais severas, demandam cuidados ao longo
da vida, portanto, “[…] presumir a vulnerabilidade das pessoas com deficiência
e não incluí-las enquanto parte ativa das relações de cuidado, está
intrinsecamente ligado a situações de abuso ou distorções que venham a ocorrer”
(Fietz & Mello, 2018, p. 134).
Para Kittay (2011), na maioria
das teorias hegemônicas de justiça, a dignidade está associada à capacidade de
ter autonomia. Assim, a necessidade de cuidado em nossa sociedade se relaciona
erroneamente a um estigma ou uma condição de inferioridade daquele que ‘precisa
ser cuidado’, pois se pressupõe a independência como uma norma (Kittay, 2011;
Fietz & Mello, 2018). A autora afirma que “na medida em que a deficiência
requer um cuidador para a pessoa com deficiência viver sua vida, o cuidado (e o
cuidador) é estigmatizado por dependência” (Kittay, 2011, p. 51).
O termo ‘cuidado’ pode
representar um trabalho, uma atitude ou uma virtude, conforme assevera Kittay
(2011, p. 52), como trabalho visa “[…] manter os outros e a nós mesmos quando
estamos em estado de necessidade”; como atitude “[…] denota um vínculo afetivo
positivo e investimento no bem-estar do outro” (Kittay, 2011, p. 52). Como
virtude, “[…] o cuidado é uma disposição manifestada no comportamento de cuidar
(o trabalho e atitude) […] relações de afeto facilitam o atendimento, mas a
disposição pode ser direcionada tanto a estranhos quanto à íntimos” (Kittay,
2011, pp. 52-53).
Igualmente, Fietz e Mello
(2018) expõem que o trabalho de cuidar, especialmente quando realizado pela mãe
ou por alguma outra figura feminina, é desvalorizado e invisibilizado. Assim, o
cuidado como narrativa ética não pode ser desassociado de uma perspectiva de
gênero.
Tendo como referência que a
prática do cuidado, especialmente de pessoas com TEA, é realizada por mães e/ou
outras pessoas do sexo feminino (Cardoso et al., 2021; Givigi et al., 2021),
Givigi et al. (2021) salientam que essas mães participam de forma mais
expressiva até mesmo de pesquisas e estudos acadêmicos sobre o autismo comparadamente
ao número de pais (homens). Esse dado ratifica que, historicamente, há
pressupostos sociais baseados em crenças religiosas e acordos morais que
associam o cuidado e os assuntos relacionados ao TEA à figura feminina,
desresponsabilizando pais e demais figuras masculinas de assumirem a
co-responsabilidade nesses processos.
O conceito de interdependência
se encontra relacionado ao de cuidado, visto que o ideal de independência cada
vez mais exaltado em sociedades neoliberais é uma ficção para pessoas com e sem
deficiência (Kittay, 2011). Nessa perspectiva, Kittay (2011) expõe que todas as
pessoas estão sujeitas naturalmente a períodos de dependência, seja na primeira
infância, no envelhecimento e/ou em situações atreladas ao contexto de vida.
Ela defende a interdependência como inerente ao ser humano e traz à tona o conceito
da ética do cuidado. Nessa direção, “reconhecer a dependência como constituinte
da condição humana e desestigmatizar a necessidade de cuidado deve ser crucial
para garantir o bem-estar e a dignidade das pessoas com deficiência e
seus(suas) cuidadores(as)” (Fietz & Mello, 2018, p. 135).
Kittay (2011) defende ainda
uma ética pública do cuidado, ou seja, que ele se estende para além das
relações íntimas e familiares, sendo uma obrigação e responsabilidade da
sociedade em geral. No que tange às ações de cuidado às pessoas com TEA e
suas famílias, Fernandes et al. (2021) apontam algumas possibilidades para o
contexto de isolamento social, tais como: profissionais da saúde viabilizarem
espaços de escuta e acolhimento remotos para as famílias, por meio de atendimentos
individuais, coletivos, por aplicativos de mensagem, dentre outros.
Ademais, é indispensável a
confecção de materiais informacionais ao público em geral, destacando as
implicações da pandemia de covid-19 na vida de pessoas com TEA. Esses materiais
também versam sobre “[…] a importância das redes de solidariedade e de apoio a
essas famílias, ressaltam as particularidades das pessoas com TEA, visando o
respeito e a garantia dos seus direitos” (Fernandes et al., 2021, p. 4). Em
razão disso, evidencia-se a urgência de ações governamentais de suporte e apoio
a essas famílias.
Por fim, entende-se que o
acesso aos serviços psicossociais para usuários com TEA e as práticas de
cuidado perspectivadas como ações intersetoriais a esse público são fatores imprescindíveis
para atenuar a sobrecarga das famílias, promovendo qualidade de vida para todos
os envolvidos (Lima & Couto, 2020).
Metodologia
O levantamento de dados
envolveu doze famílias com um ou mais integrantes com TEA, residentes no município
de Curitiba, Paraná (PR). Essas famílias frequentavam o atendimento
psicopedagógico clínico privado e social no “Centro de Especialidades Emiliano
Perneta”, localizado no centro de Curitiba-PR, no qual um dos autores deste
artigo atua.
O contato com os participantes
para participar deste estudo ocorreu por meio de e-mail convite enviado
individualmente para cada família, no período de dezembro de 2021 a janeiro de
2022. Após o aceite e a assinatura do Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido, os partícipes receberam um formulário via Google Forms,
contendo doze questões. Tais questões buscaram identificar como se
desenvolveram os laços afetivos durante os 24 meses de convivência na pandemia
da covid-19. As informações advindas dos questionários foram nomeadas como
etapa 1.
Após o levantamento inicial de
dados, sentiu-se falta de questões relativas à realidade de cada grupo
familiar. Nesse sentido, observou-se que eram necessárias maiores evidências, dessa
maneira, duas das doze famílias foram convidadas para uma nova etapa da
pesquisa, que compreendeu a realização de uma entrevista presencial, contendo
cinco questões abertas e cinco questões dicotômicas. O critério utilizado para
essa seleção foi ter mais de uma pessoa com TEA no grupo familiar.
Algumas das perguntas da
entrevista foram: “Como foi que essa família se organizou diante do impedimento
de seguir a sua rotina diária em consequência da medida de urgência em saúde”,
ainda “Como foi dar esse suporte psicoeducacional e manter os laços afetivos”?
Para fins de análise dos dados, identificou-se a entrevista com as duas
famílias como etapa 2.
O questionário, segundo Gil
(1999, p. 128), pode ser definido “como a técnica de investigação composta por
um número mais ou menos elevado de questões apresentadas por escrito às
pessoas, tendo por objetivo o conhecimento de opiniões, crenças, sentimentos,
interesses, expectativas, situações vivenciadas etc.”
Foi necessário gravar as
entrevistas e, posteriormente, degravá-las para não perder a essência dos
relatos. Contudo, ainda assim, foi preciso tirar algumas dúvidas com os
participantes. Destaca-se que as famílias leram o que foi escrito e autorizaram
a divulgação das informações. A fim de manter os preceitos éticos em pesquisa,
os participantes não foram identificados.
Para dar respaldo às análises,
as respostas foram agrupadas de acordo com as aproximações e interpretadas
de acordo com o método hermenêutico, que foi utilizado, em particular, nas
categorias de contextualização, apreensão e interpretação, citadas por Gadamer
(1998). Para Ferrarotti (1983 como citado em Goldenberg, 2005, p. 36), cada
indivíduo singulariza em seus atos a universalidade de uma estrutura social,
sendo possível “ler uma sociedade através de uma biografia conhecer o social partindo-se
da especificidade irredutível de uma vida individual”.
Ainda, Minayo (1996 como
citado em Szymanski, 2002, p. 65) define a hermenêutica como “a busca de
compreensão de sentido que se dá na comunicação entre os seres humanos”.
Na etapa 2, as famílias foram
identificadas como X e Y. Nos Quadros 1 e 2, apresentam-se as caracterizações
dos participantes envolvidos na etapa 2:
Quadro 1
Caracterização da família X
Participantes |
Idade |
Pessoa com Tea |
Mãe |
46 |
Não |
Pai |
41 |
Não |
Masculino |
15 |
Sim |
Feminino |
14 |
Sim |
Fonte: os autores.
Quadro 2
Caracterização da família
Y
Participantes |
Idade |
Pessoa com Tea e outras deficiências |
Mãe |
43 |
Não |
Pai |
44 |
Não |
Masculino |
9 |
Sim |
Masculino |
14 |
Sim |
Feminino |
21 |
Transtorno Déficit de Atenção e Hiperatividade |
Masculino |
3 |
Em investigação de autismo |
Fonte: os autores.
No Quadro 3, são apresentadas as etapas executadas:
Quadro 3
Etapas da análise do conteúdo
a partir do questionário e das entrevistas presenciais
Fase 1 – Pré- análise |
Os dados dos questionários foram sistematizados de acordo com a
incidência nas respostas. As entrevistas foram gravadas, posteriormente
degravadas e salvas em um arquivo de Word, para serem validadas pelas
entrevistadas. Foi realizada uma leitura flutuante do conteúdo obtido. |
Fase 2 – Exploração do Material |
Após a validação dos dados quantitativos, as duas entrevistas
presenciais foram transcritas, lidas e marcadas com grifos nas partes que
apresentavam semelhanças. A partir desses grifos, criaram-se categorias e
subcategorias de análises para as falas. |
Fase 3 – Tratamento dos resultados |
As categorias de análise estabelecidas para a etapa 1 foram as seguintes:
famílias que se isolaram totalmente durante a pandemia/ famílias que se isolaram
com rede de apoio/ famílias que precisaram de ajuda externa, intervenção do
estado/ famílias que não puderam se isolar por fatores diversos. Após a
análise, as respostas foram categorizadas, identificando-se sua incidência. As categorias de análise estabelecidas para a etapa 2 foram as segintes:
ausência do Estado e falta de rede apoio, laços de cuidado que ultrapassam a
dimensão afetiva. |
Fonte: os autores.
Para analisar os dados
coletados nas entrevistas, a pesquisa contou com o método de análise de
conteúdo proposto por Bardin (2011, p. 15), que “[…] é um conjunto de
instrumentos de cunho metodológico em constante aperfeiçoamento, que se aplica
a discursos (conteúdos e continentes) extremamente diversificados”. Bardin
(2011) destaca três fases fundamentais para realizar essa análise, quais sejam:
pré-análise, exploração do material e tratamento dos resultados. Destaca-se que
as falas dos entrevistados foram transcritas na íntegra.
As respostas dos questionários
(etapa 1) foram analisadas e categorizadas. Essa análise originou quatro
categorias e quatro subcategorias, as quais possibilitam compreender os laços
familiares desenvolvidos durante o contexto pandêmico. A seguir, exibem-se os
dados da pesquisa e as análises correspondentes.
Resultados e Análises
O perfil sociodemográfico das
famílias participantes demonstra que os questionários foram respondidos pelas
mães sem exceção, essa informação constava na identificação do formulário. Esse
dado se coaduna com as pesquisas de Lima e Couto (2020) e Givigi et al. (2021).
O perfil das crianças autistas foi predominantemente masculino, sendo onze
meninos e uma menina, o que também é corroborado pela literatura (Orrú, 2020;
Givigi et al., 2021).
No que tange às atividades
laborais, em três das famílias, os pais estavam desempregados, enquanto a mãe
era a chefe da casa em duas. As seguintes profissões foram informadas:
empresários, árbitro de futebol, gerente de banco, marceneiro, faxineira,
dentista. Uma das famílias recebe o Benefício de Prestação Continuada
(BPC), que é pago
pela previdência social, visando garantir um salário mínimo mensal para pessoas
que não possuem meios de prover à própria subsistência ou de tê-la provida por
sua família.
No Quadro 4, apresentam-se as
respostas obtidas no questionário online e as suas respectivas
incidências de acordo com cada categoria analítica.
Quadro 4
Categorias de análise e
respostas dos participantes referentes à etapa 1
Categoria |
Subcategoria |
Incidência |
Famílias que se isolaram totalmente durante o isolamento previsto em decreto |
Classe econômica |
Aulas síncronas (3) Aulas assíncronas (9) |
Famílias que se isolaram com rede de apoio |
Atendimentos Externo/especialistas |
Com plano de saúde (4) Sem plano de saúde (8) |
Famílias que precisaram de ajuda externa, com intervenção do Estado |
Ensino remoto |
Escola municipal (7) Escola estadual (2) Escola privada (3) |
Famílias que não puderam se isolar devido a fatores diversos |
Atuação permanente dos pais |
Exigência com os estudos (1) Os pais inseridos no grupo de amigos dos filhos (0) Pais motivadores (1) Pais com jornada maior de 8 horas diárias (10) |
Fonte: os autores
A fim de focalizar o que foi
contemplado em cada categoria, expõe-se abaixo uma síntese dos principais
apontamentos realizados pelos participantes. Na sequência, exibem-se os trechos
selecionados nas respostas abertas do questionário.
a.
Famílias que se isolaram totalmente durante o isolamento previsto em
decreto. Observou-se que mesmo com as
orientações dos órgãos de saúde salientando a necessidade de distanciamento
social, as famílias agiram de formas muito diferentes uma das outras, sendo o
fator econômico preponderante nos comportamentos adotados por elas. A
exemplo: pais que puderam contar com a continuidade dos serviços de saúde em
casa por meio de assistência e aulas online.
b.
Famílias que se isolaram com rede de apoio. Novamente, evidenciou-se uma discrepância no aspecto
socioeconômico. Famílias que tinham plano de saúde foram assistidas com sessões
de psicologia cognitiva comportamental, fonoaudiologia e terapia ocupacional
voltadas às Atividades de Vida Diária, garantindo a continuidade dos tratamentos
das pessoas com TEA. Isso possibilitou uma melhor saúde mental para seus
familiares que se mantiveram ativos e sob orientação dos especialistas. Já os
que não tinham, ficaram quase dezenove meses sem nenhum tipo de rede de apoio,
o que gerou nessas famílias desgastes e desmotivação para outras necessidades
emergenciais. Há relatos de familiares que precisaram de fármacos para
conseguir melhor atendê-los.
c.
Famílias que precisaram de ajuda. Essa foi a mais apontada, pois das famílias participantes
só um indivíduo com TEA é maior de idade e não necessitava de cuidado familiar,
os demais são assistidos por suas famílias em todas as áreas. Nesse aspecto,
sete famílias precisaram de auxílio do município para que os seus filhos
tivessem acesso ao ensino remoto, assistissem às videoaulas e participassem das
atividades complementares. Duas precisaram de auxílio da rede estadual e as que
estavam matriculadas na escola privada foram assistidas dia a dia por aulas
síncronas, alterando apenas a configuração geográfica da escola.
d.
Famílias que precisaram de ajuda externa com intervenção do Estado. Há relatos de que as farmácias do estado do PR
realizaram a entrega do medicamento em casa, que os laboratórios coletaram
sangue em casa e que, em caso de extrema emergência, as Unidades de Pronto
Atendimento (UPAS) atenderam prioritariamente as pessoas com deficiência.
e.
Famílias que não puderam se isolar por fatores diversos. Associação às atividades laborais dos pais.
A partir dessas informações,
constatou-se que o fator socioeconômico influenciou as práticas de cuidado
destinadas às pessoas com TEA, dentre elas, a manutenção dos atendimentos
especializados por parte das famílias que puderam custear financeiramente esses
atendimentos. Esse fato favoreceu a qualidade de vida desses sujeitos e dos
familiares envolvidos.
Outrossim, evidenciou-se que
das doze famílias, as pessoas com TEA foram cuidadas especificamente pela
mulher da casa, a “mãe”, em outros poucos com ajuda do pai e em quatro casos
com auxílio remoto de especialistas em saúde. Os dados corroboram a literatura
no sentido de que, culturalmente, o cuidado é encarado como tarefa materna
(Fávero-Nunes & Santos, 2010; Zanatta et al., 2014; Lima & Couto, 2020;
Cardoso et al., 2021).
Nessa linha de reflexão, Fietz
e Mello (2018, p. 120) apontam que :
[…] o tipo de cuidado
empregado por estas mães são aqueles que ministraram durante toda a vida de
seus filhos, durante as quais foram sempre as principais responsáveis, contando
com quase nenhum suporte estatal ou até mesmo de uma rede familiar mais
presente.
Em razão disso, o tom das
narrativas foi de solidão, frustração e falta de suporte familiar e social,
demonstrando a rotina desgastante e de sobrecarga dessas mulheres que passaram
a atender, cuidar, banhar e ensinar seus filhos. Lima e Couto (2020, p. 223)
explicitam que o tema da sobrecarga é complexo, envolvendo fatores como
“dificuldades em lidar com as manifestações sintomáticas dos filhos, solidão na
tomada de responsabilidade pelos cuidados diários, precariedade de acesso aos
serviços de saúde, dentre outros”.
Essa questão pode ser observada no relato a seguir:
Teve dias que eu precisava
tomar remédio, tipo um ansiolítico para aguentar, um dia [nome da criança]
gritou tanto, tanto que minha vontade era sair correndo e nunca mais voltar. Na
outra vez, ele se desorganizou e me mordeu nos braços quando eu tentava conter,
depois de passado quase uma hora desse episódio ele dormiu eu me olhava no
espelho e a marcas não me doíam tanto, quanto saber que eu não pude fazer nada
para ajudá-lo, é desesperador, usei muito remédio nesse período. (P1)
No excerto acima, destaca-se, ainda, a
necessidade de medicação da mãe. É notório que isso decorre de uma total
solidão materna no cuidado diário. Conforme Lima e Couto (2020), situações como
essa convocam a rede psicossocial a construir respostas efetivas às
necessidades de cada família, desenvolvendo redes locais intra e intersetoriais
que contribuam com a qualidade de vida dos envolvidos. Convém destacar que é
direito da pessoa com TEA “o acesso a ações e serviços de saúde, com vistas à
atenção integral às suas necessidades de saúde, incluindo […] o atendimento
multiprofissional” (Brasil, 2012, s.p.).
A seguir, a participante P2 faz menção à
escolarização do filho com TEA, sinalizando a dificuldade que ele apresenta em
relação à alteração da rotina:
Nesse momento dei graças a
Deus de meu filho não ir mais a escola, pois ele é muito resistente a quebra da
rotina para nós teria sido um inferno essas mudanças todas, mas sabe um dia
[nome da criança] que nunca foi agressivo, do nada puxou a toalha da mesa, a
mãe ficou nervosa, eu não sabia quem socorrer primeiro, a mãe ficou sem ar e
ele gritava me ajuda […] me deu um desespero de pensar como vai ser quando eu
não estiver mais, aí me bateu um choro que não conseguia mais parar. É muito
triste essa doença. (P2)
Givigi et al. (2021) ponderam
que antes da pandemia, as famílias passavam muitas horas sem obrigações diretas
com seus filhos, as alterações bruscas no período pandêmico causaram sofrimento
à pessoa com autismo e sobrecarga aos pais. Ademais, o processo
educacional das pessoas com TEA nesse período apresentou expressivos desafios
às famílias. A fragilidade — e a ausência em alguns casos — do acompanhamento
pedagógico realizado pela escola, fez com que as famílias acumulassem mais essa
função: ficarem responsáveis pela mediação escolar. Cabe destacar que para muitos núcleos
familiares, a escola proporciona, em alguma medida, a divisão de tarefas e a
atenção aos estudantes com TEA.
Além disso, realizar o
acompanhamento pedagógico e terapêutico de forma remota requer boas plataformas
online e recursos tecnológicos, tais como computador e internet,
o que foi um obstáculo para muitas famílias. Associado a isso, os profissionais
e os usuários precisaram aprender a interagir por meios desses recursos (Givigi
et al., 2021).
Ainda, no trecho acima, a mãe relaciona o TEA a uma doença, o que é
inadequado, pois ele se refere a um transtorno do neurodesenvolvimento (APA,
2014). Silva et al. (2019) asseveram que associar o autismo a uma doença
decorre do modelo médico da deficiência, no qual as diferenças humanas são
tratadas como déficits, desvios da natureza. Esse modelo acarreta a patologização dessas
diferenças, pressupondo uma cura ou lhes impondo uma pretensa
normalidade.
Na sequência, a participante
P5 expressa que precisou conciliar o cuidado aos filhos, com o trabalho
autônomo e as aulas assíncronas:
Nós não paramos aqui, meu
filho mais velho tinha as aulas pela manhã eu saía com [nome da criança] fazer
as entregas, minhas clientes foram muito importante na minha vida nesse
período, pois elas, sabiam que era meu ganha pão, tinha dia que eu estava tão
exausta que entrava no chuveiro e não tinha força para sair. Eu fazia as
encomendas a noite quando eles estavam dormindo e durante a aula do menino se
não ela não deixava ele em paz. (P5)
A partir dos dados
supracitados, apresenta-se a seguir a análise da etapa 2. Para tanto, mediante
a entrevista com as duas famílias participantes, os seguintes dois eixos
interpretativos foram elencados: ausência do Estado e falta de rede apoio,
laços de cuidado que ultrapassam a dimensão afetiva.
Ausência do Estado e falta de rede de apoio
Uma das famílias entrevistada
é composta pela mãe, a cuidadora principal, a filha com TEA de 14 anos e o
irmão de 15 anos. A fonte de renda da família é a venda de enxoval de cama
fabricado por seu irmão, antes da pandemia de covid-19, a filha ia um período
para a escola especial e a mãe entregava e fazia as cobranças. A partir do
contexto pandêmico, a mãe relata que:
Vivemos o inferno na Terra: um
dia tínhamos só o dinheiro para as compras básicas eu estava péssima, porque
eles em casa comiam o triplo do normal, saímos na rua de casa para que ela
tomasse um ar e ela não quis entrar chorava e gritava sem motivos aparentes, e
ela entrou em crise quebrou o vidro do carro, as ruas estavam vazias e eu não
tinha força para colocá-la para dentro, ela pegou nos meus cabelos e eu caí,
tive vontade de não me levantar mais, ficamos ali por uns 30 minutos, ela
correndo de um lado para o outro até autorregular-se, e ninguém, ninguém para
ajudar, é desesperador. (Mãe, família X, 2022)
Com base nessa fala,
observa-se que o isolamento/desamparo familiar, social e estatal que muitas
famílias de pessoas com TEA vivenciam cotidianamente se acentuou com a
pandemia. Especificamente no contexto pandêmico, identificou-se que uma das
proximidades no percurso dessas famílias foi o abandono do Estado velado de
autocuidado com a população em geral.
Destarte, a forma como o
isolamento social foi realizado no Brasil, sem um planejamento estratégico e
convergente entre as instâncias federais, estaduais e municipais, acarretou
prejuízos ao desenvolvimento das pessoas com TEA que precisaram interromper
atendimentos especializados. Isto é, sem rede de apoio, essas famílias ficaram
em situação de fragilidade (Givigi et al., 2021), visto que ao não se
implementarem políticas públicas para acolhimento das necessidades dos
indivíduos com autismo e de seus familiares, o exercício dos seus direitos e
das liberdades fundamentais foi negligenciado, contrapondo-se ao que garante a
Lei Brasileira de Inclusão (Brasil, 2015).
A seguir, a mãe da família X evoca
o quanto se sentiu sozinha. Outrossim, a cada relato, os participantes
expressavam a dor e o abandono que sentiram durante esse período:
Quando eu era jovem, sonhava
em ter filhos queria jantares com os amigos ser aquela mãe parceira, aqui na
minha casa hoje, não posso ir ao banheiro sozinha, tudo depende de nós, o
telefone toca e eu perco a respiração, queria poder participar de um grupo de
apoio, sair sozinha nem que fosse para ir ao mercado. Como nós as mães dos
especiais somos sozinhas. (Mãe, família X, 2022)
Os dizeres da participante se
coadunam com o exposto por Lima e Couto (2020), que salientam que o afastamento
ou o rompimento de laços sociais e familiares tendem a acentuar a experiência
de solidão e, em contrapartida, de sobrecarga. A participante, ainda, se refere
ao filho como especial, destaca-se que essa expressão não é mais
utilizada para se referir às pessoas com TEA ou outras deficiências.
Na sequência, o pai (família
Y) aborda o que, nas palavras dele, foi o pior dia de sua vida:
Um dia depois de meu filho ter
um surto em que ele quebrou tudo que pode, eu e minha esposa tivemos que subir
em cima dele para medicar, ele com as mãozinhas toda machucada, com de sangue
(choro)abri a porta do quarto e quis que ele não existisse para passar por tudo
aquilo. Daí pergunto quem se importa conosco, ninguém, quem quer saber como me
sinto, o importante é fingir que está tudo bem. (Pai, família Y, 2022)
Corroborando com Fernandes et
al. (2021), entende-se que a rotina é um elemento protetivo para as pessoas com
TEA, como a rotina estabelecida foi radicalmente alterada com o isolamento
social, tanto essas pessoas quanto os seus familiares vivenciaram situações de
sofrimento, estresse e ansiedade. Os autores asseveram que países como França e
Espanha, que adotaram lockdown, garantiram a partir de medidas legais
que famílias de pessoas com TEA pudessem sair de casa, recorrendo a ambientes
abertos e sem aglomeração, uma medida de cuidado para amenizar e prevenir o
sofrimento desse público. Com relação ao exposto, entende-se que
[…] para além das estratégias
de cuidado que envolvem ações diretas às crianças e adolescentes com TEA e suas
famílias, é importante refletir de forma mais ampliada sobre o papel do governo
e políticas públicas nesse momento, visando a garantia dos direitos das pessoas
com TEA em tempos de pandemia, de modo a amenizar as dificuldades das crianças
e adolescentes que vivenciam esta condição e suas famílias frente ao atual
cenário. (Fernandes et al., 2021, p. 7)
Outrossim, Medrado et al.
(2021, p. 519) destacam que a diversidade de fatores que perpassa o TEA requer
ações multifatoriais, ou seja, “[…] não apenas profissionais da saúde e
pesquisadores da área devem agir e se adaptar, como também entidades públicas,
instituições de ensino, grupos de apoio e a sociedade com um todo devem ser
mobilizados”.
Compreende-se que cada família
enfrentou como pôde o quadro pandêmico. Contudo, a ausência de ações
governamentais intersetoriais gerou impactos negativos às famílias e ao
desenvolvimento das crianças e adolescentes com TEA, sobretudo considerando os
aspectos sociais e educacionais que foram diretamente afetados pela pandemia de
covid-19.
Laços de cuidado que ultrapassam a dimensão afetiva
As famílias participantes
estruturaram pilares de cuidado primário, diferenciando-se pela base da luta
por garantias de direito aos seus filhos. Nesse sentido, este estudo entende
que os laços de afeto dizem respeito à experiência de sentimento, das emoções e
das consequências desses sentimentos, que os pais trazem à tona quando o
assunto é o ato de cuidar das pessoas com TEA. Aqui, cabe ressaltar que por
mais negação que as famílias possam demonstrar, esse sentimento de revolta
interna, de se sentirem desamparados, não altera o sentimento afetuoso como
pais cuidadores.
Todavia, observam-se a notória vulnerabilidade e
o desgaste nas narrativas, pois as práticas de cuidado não podem estar
circunscritas apenas no âmbito individual/familiar. Tendo como referência as teóricas feministas da deficiência (Kittay, 2011;
Fietz & Mello, 2018), a ética do cuidado envolve uma dimensão
pública/social, além de se constituir como uma ação familiar/individual,
portanto, não necessariamente precisa haver afeto para haver cuidado.
Em outras palavras, as práticas de cuidado não derivam (ou não deveriam
derivar) apenas do contexto familiar. Nesse processo, independentemente do
vínculo entre cuidador e pessoa cuidada, é premente reconhecer a
interdependência como uma condição humana, desestigmatizando as noções de
cuidado como algo que inferioriza o ser humano (Fietz & Mello, 2018).
Ainda, discorrendo sobre o TEA, o pai comenta:
Eu penso que todo mundo já pensou em querer ter filho e/ou quis ter, não
escolhemos o autismo, e quando ele vem perdemos tudo, até a própria vida. (Pai, família Y, 2022)
A partir dessa fala,
entende-se que as práticas de cuidado destinadas ao público com autismo
ultrapassam as dimensões afetivas e partem para o contexto mais amplo em que as
percepções sobre esse transtorno enfatizam os desafios do convívio cotidiano
e/ou as idiossincrasias que distinguem autistas de não autistas (Lima &
Couto, 2020). Infere-se que havendo uma rede de apoio consolidada a partir de
políticas públicas efetivas, as percepções sociais sobre o TEA poderiam ser
diferentes, menos estigmatizantes e excludentes. Afinal, como assinala o participante
“não escolhemos o autismo”, mas ele faz parte da variação humana, pressupondo
que cabe à sociedade como um todo construir relações humanas fundamentadas no
acolhimento das diferenças e no respeito às diversas formas de aprender e estar
no mundo (Silva et al., 2019).
Por fim, depreende-se que mesmo nas adversidades
vividas por essas famílias, os laços não se desfizeram, pois o cuidado é
inerente às relações humanas. O cuidado pressupõe levar o bem-estar ao outro,
portanto, não basta haver uma intenção de cuidar, na perspectiva da ética do
cuidado, o foco precisa estar nos efeitos que essas práticas produzem (Fietz
& Mello, 2018). Ou seja, possibilitar atenção, bem-estar e participação
efetiva entre aquele que cuida e a pessoa que recebe o cuidado.
Considerações finais
Os resultados da pesquisa
apontam para os seguintes aspectos: a) as crianças e os adolescentes com TEA
participantes deste estudo necessitam de acompanhamentos terapêutico e
psicopedagógico constantes, por isso, a interrupção e/ou a oferta precária dos
serviços durante o isolamento social acentuou crises de ansiedade e episódios
agressivos desses sujeitos, b) o fator socioeconômico influenciou as práticas
de cuidado destinadas às pessoas com TEA, dentre elas, a manutenção ou não
desses atendimentos, c) a ausência e/ou fragilidade das políticas públicas para
atenção ao público com autismo e suas famílias ampliou a sobrecarga materna.
Convém esclarecer que esse dado não é resultado direto do contexto pandêmico,
pois a literatura já evidencia que as mães, mulheres, são historicamente
responsáveis por essas práticas de cuidado (Fávero-Nunes & Santos, 2010;
Zanatta et al., 2014; Lima & Couto, 2020; Cardoso et al., 2021), contudo,
durante o contexto pandêmico essa sobrecarga foi intensificada, d) por fim,
evidencia-se a necessidade de ações governamentais por meio de políticas
públicas que garantam suporte e apoio a essas famílias.
Em suma, os dados aqui
apresentados indicam que os laços familiares estão associados às discussões
sobre interdependência e à ética do cuidado (Kittay, 2011; Fietz & Mello,
2018). Nesse sentido, embora modelos ideais não existam, é necessário dar
visibilidade a essas cuidadoras por meio de políticas públicas efetivas que
garantam a qualidade de vida das cuidadoras, bem como daqueles que estão aos
seus cuidados.
Nesse contexto, o reflexo
dessas garantias precisa ser experienciado na família, que é parte da vida das
pessoas com TEA, mas não deveria ser a totalidade. Sendo assim, depreende-se
que é mister estruturar serviços intersetoriais públicos e gratuitos que
assegurem dignidade humana às pessoas com TEA e a seus familiares.
Dentre as limitações deste
estudo estão questões como: a dificuldade de estabelecer contato inicialmente
com as famílias, o desconhecimento e/ou uso paulatino dos recursos tecnológicos
por parte de alguns partícipes, a possibilidade de incompreensão por parte de
algumas famílias sobre as perguntas presentes no questionário e tempo
disponível para responder ao questionário e participar da entrevista. Apesar
dessas limitações, buscou-se conduzir o estudo explicando as etapas e tirando
as dúvidas dos participantes, assim como agendar a entrevista de acordo com a
disponibilidade de cada grupo familiar.
Por fim, esta investigação
abre uma possibilidade para que pesquisas futuras investiguem as implicações do
isolamento social decorrente da pandemia de covid-19 no desenvolvimento
cognitivo e emocional de crianças, adolescentes e adultos com TEA, nos
diferentes contextos em que estes sujeitos estão inseridos, como a escola e os
serviços terapêuticos. Outrossim, sugerem-se temas que ampliem a compreensão da
comunidade acadêmica e de famílias de pessoas com TEA sobre as práticas de
cuidado, tendo como pressupostos a ética do cuidado e as relações de
interdependência (Kittay, 2011; Fietz & Mello, 2018).
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