Artigo
A educação
sobre drogas no Brasil diante do novo ordenamento legal
La educación sobre las drogas en Brasil frente al
nuevo orden jurídico
Drug education in Brazil in light of the new legal
order
Maria de Lourdes da Silva[i]
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Rio de Janeiro, RJ, Brasil
https://orcid.org/0000-0003-1188-9469
Francisco Coelho[ii]
Fundação Oswaldo Cruz
Rio de Janeiro, RJ, Brasil
https://orcid.org/0000-0003-1522-2995
Contribuição
na elaboração do texto: Autora 1 - argumentos, discussão e reflexões; escrita;
revisão. Autor 2 - argumentos, discussão e reflexões; escrita.
Recebido em: 02/03/2022
Aceito em: 02/06/2022
Publicado
em: 08/06/2022
Linhas
Críticas | Periódico científico
da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília, Brasil
ISSN: 1516-4896 |
e-ISSN: 1981-0431
Volume 28, 2022 (jan-dez).
http://periodicos.unb.br/index.php/linhascriticas
Referência
completa (APA):
Silva, M. de L. da, & Coelho, F. (2022). A educação sobre
drogas no Brasil diante do novo ordenamento legal. Linhas Críticas, 28,
e42176. https://doi.org/10.26512/lc28202242176
Link alternativo:
https://periodicos.unb.br/index.php/linhascriticas/article/view/42176
Licença Creative
Commons CC BY 4.0.
Resumo: O atual cenário político brasileiro é marcado
por regulação governamental às práticas educativas sobre drogas, de orientação
proibicionista, que pouco estimulam o pensamento crítico. Este artigo traça
interlocuções entre cinco documentos oficiais brasileiros, para analisar
limitações legais e perspectivas da Educação sobre Drogas no Brasil à luz do
novo ordenamento legal. É uma pesquisa documental, qualitativa, que
problematiza orientações às práticas preventivo-educativas às drogas no âmbito
da educação. Observamos crescente declínio dos espaços de debate e negociação,
com orientações drogacêntricas e belicosas, pouco
afeitas ao debate, aos contextos, às pessoas e suas vulnerabilidades.
Palavras-chave: Base Nacional Comum Curricular. Temas Contemporâneos
Transversais. Educação sobre Drogas. Leis sobre
Drogas.
Resumen: El escenario político brasileño actual está marcado
por la regulación gubernamental de las prácticas educativas prohibicionistas
sobre las drogas que no estimulan el pensamiento crítico-reflexivo. Este
artículo traza diálogos entre cinco documentos oficiales, analizando las
limitaciones legales y perspectivas de la Educación sobre Drogas en Brasil,
frente al nuevo orden jurídico. Trata de una investigación cualitativa,
documental, que problematiza orientaciones para las prácticas
preventivo-educativas en el contexto de la educación. Observamos una
disminución creciente de los espacios de debate y negociación, con
orientaciones drogocéntricas y belicosas, poco
habituados al debate, los contextos, las personas y sus vulnerabilidades.
Palabras
clave: Base Nacional Común Curricular. Temas Contemporáneos Transversales.
Educación sobre Drogas. Leyes de Drogas.
Abstract: The current Brazilian political scenario is marked by
government regulation of prohibitionist educational practices on drugs that do
not stimulate critical thinking. This article traces dialogues between five oficial brasilians documents,
analyzing legal limitations and perspectives of Drug education in Brazil in
light of the new legal order. It is a documental, qualitative research that
problematizes guidelines for preventive-educational practices on drugs in the
context of education. We observe a growing decline in spaces for debate and
negotiation, with drug-centric and bellicose orientations, little used to
debate, contexts, people and their vulnerabilities.
Keywords: Common
National Curriculum Base. Contemporary Educational Themes. Drug Education. Drug Laws.
Introdução
As repercussões sobre as recentes
reformas havidas no campo educacional têm aflorado anseios e indagações sobre
os rumos dados à educação e à sua função social. A discussão sobre as mudanças
legais indica mobilização e posicionamentos da sociedade sobre a ausência de
debates no processo, reforçando recusas e resistências. No atual governo,
diferentes documentos oficiais relativos à educação básica e ensino superior,
incluindo a formação docente, foram modificados. Tanto a Base Nacional Comum
Curricular (BNCC) (Brasil, 2018) e seus Temas Contemporâneos Transversais (TCT)
(Brasil, 2019a) quanto as novas Diretrizes Curriculares para Formação de
Professores da Educação Básica da Formação Inicial (BNC da Formação Inicial)
(Brasil, 2019b) e da Formação Continuada (BNC da Formação Continuada) (Brasil,
2020) trazem impactos ao sistema educacional ao enfatizarem o caráter
hierárquico, excludente, retrógrado, privatista e mercantil destas novas
normativas. Elas interrompem um processo de interação social gerado no bojo de
debates educacionais entre Estado e sociedade, conformado durante a
reorganização da sociedade após a Ditadura Militar brasileira e realizado por
meio do diálogo entre forças representativas plurais, organizadas do campo
educacional.
As Diretrizes Curriculares Nacionais da
Formação Inicial e Continuada em Nível Superior (DCNs)
(Brasil, 2002a) para os profissionais da Educação básica, revistas e ampliadas
em 2015, quando adquiriram caráter mais abrangente e democrático, representavam
essa era de diálogo — nada fácil, mas significativo e construtivo. Elas
apontavam a importância de assegurar formação de qualidade com valorização do
trabalho docente e condições adequadas para sua efetivação, articulando os
diferentes níveis educacionais (básico, graduação e pós-graduação). As DCNs reverberavam os Parâmetros Curriculares Nacionais
(PCN) (Brasil, 1998) e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB)
(Brasil, 1996), que são expressões normativas de uma conjuntura política onde a
mobilização social e o debate demarcaram consensos possíveis em torno de
projetos educacionais democráticos e condizentes com as demandas sociais por
uma educação capaz de implicar justiça e equidade sociais. No atual cenário de crise
do capital, advindo da correlação de forças empenhadas por projetos societários
neoliberais e neoconservadores, cujas estratégias redefinem o papel do Estado,
temos acompanhado um processo de intensificação da privatização dos bens e
serviços públicos, aniquilando políticas sociais e trazendo profundas
implicações ao processo democrático e ao projeto de país.
Neste caminho, observamos uma política
de asfixia à educação pública, seja com isenção de impostos, com aplicação
direta de recursos públicos no setor privado, ou ainda com a redução do valor designado
à educação na dotação orçamentária anual geral (Silva, 2005). Ao mesmo tempo,
dá-se ênfase à discussão sobre uma “educação de qualidade”, entendida, no atual
cenário pandêmico, como aprendizagem e intensificação do uso das Tecnologias de
Informação e Comunicação (TIC). Deste modo, o setor privado pode figurar como
exemplar, enquanto o setor público atualiza significados relativos ao
dispêndio, à ineficiência, ao despreparo de seus profissionais e a toda
campanha de menosprezo em curso, relativa ao serviço e ao funcionalismo
públicos. Este processo tem avançado drasticamente nos últimos cinco anos. O
privatismo se faz aliado ao crescimento de uma pauta conservadora na defesa da
família, da moral cristã e das liberdades individuais — princípio liberal
fundamental na construção do contraponto às expressões coletivas da sociedade
civil organizada, geradoras da força de oposição com capacidade para enfrentar
a progressão do neoconservadorismo, conforme Peroni
et al. (2019).
O
alinhamento do Estado às diretrizes educacionais empresariais se pode ver na
recente política de formação de professores do atual governo federal,
consonante às agências internacionais e às diretrizes do Consenso de
Washington. Peroni et al. (2019) destacam que já nos anos 1990 o
empresariado brasileiro decidiu intervir na lógica organizacional da educação e
na definição dos currículos e conteúdos, deixando a gestão direta, o controle
dos espaços e do corpo de funcionários a cargo do Estado, mas interferindo nas
finalidades da educação e no seu papel social, ampliando o processo de
mercantilização da educação. Destacam as autoras:
Verificamos que a
decisão de participar de forma mais contundente da direção e execução das
políticas educacionais já havia se iniciado naquela época, de forma organizada,
pelos empresários, que propunham participar ativamente da elaboração das
políticas educacionais, influenciando mais as políticas do que gerindo escolas
diretamente. (Peroni et al., 2019, p. 38)
As autoras sinalizam os múltiplos direitos
reivindicados no processo de democratização à época, materializados, em parte,
na Constituição Federal (Brasil, 1988) e na LDB (Brasil, 1996). Neste escopo
estão a gestão democrática da educação básica (educação infantil, fundamental e
média), a gratuidade da educação pública nos estabelecimentos oficiais, entre
outros. Entretanto, elas entendem que o avanço do capitalismo acaba por propor
um conjunto de estratégias para retomar o aumento das taxas de lucro, reduzindo
direitos com graves consequências para a construção da democracia e da
efetivação dos direitos sociais, materializados em políticas públicas,
ameaçando a educação como nós a consolidamos: pública, gratuita, obrigatória e
laica.
Entendendo os rumos tomados pela
conjuntura internacional a partir do final do século XX, desde quando se
agudiza a tendência à guinada global de orientação neoliberal, como ponto de
inflexão para as políticas educacionais que coadunam o projeto de
aprofundamento desta etapa de desenvolvimento do capitalismo com seus meios de
efetivação, Maria Abádia da Silva (2005) destaca que
este projeto visa transformar os serviços públicos prestados pelo Estado em
serviços privados, em negócios controlados pelas elites econômicas nacionais e
subordinados aos ditames do mercado internacional através da privatização.
Destaque especial é dado pela autora ao empenho da elite nacional em
estabelecer regulação para a educação, mediada pelas leis deste mercado,
enredando o desmonte do Estado nacional e das políticas sociais, como saúde e
previdência social, educação. Segundo ela, ao mesmo tempo em que a privatização
da educação é promovida pelo Estado, este “aperfeiçoa novas formas de
clientelismo, especialmente nas relações com as entidades privadas na esfera
educacional: fundações, institutos de ensino, empresários de equipamentos e
informática, editoras, empreiteiras, empresas de propaganda oficial e empresas
do setor de alimentação escolar” (Silva, 2005, p. 260).
Entre a agenda das lutas sociais e as
urgências do mercado, a questão da educação sobre as drogas acabou preterida,
sem que à questão se estendam as reivindicações reclamadas. A atual discussão
das frentes de resistência à conjuntura do campo educacional não agrega o tema
da educação para as drogas à pauta em defesa. Este debate tem passado ao largo
das frentes de resistência ao desmonte e descaracterização da educação
brasileira, que também impõem retrocessos à política nacional de drogas e à
educação para as drogas. O que passa ao largo, mais uma vez, é o modo como as
drogas — substâncias com potencial para alterar as funções do Sistema Nervoso
Central — e os regimes de psicoatividade — atividades
sociais ordinárias, aceitas e legitimadas, coletivas ou individuais, com potencial para
alterar o funcionamento do Sistema Nervoso Central — participam da vida em
sociedade e, de forma estruturante, das estratégias neoliberais e conservadoras
para domar as crises e ajustar a sociedade aos seus projetos.
No conjunto de normativas educacionais que entraram em vigor
recentemente, já citados, o debate sobre o tema das drogas foi reduzido à quase
nulidade frente ao que tínhamos na vigência da LDB original, dos PCN e do
Decreto n.º 4.345 (Brasil, 2002b), em que pese as limitações destas normas. O
tema não foi extinto da educação escolar, ele passou reduzido da
transversalidade à base curricular do conteúdo mínimo, sofrendo uma refração de
sentidos, dada pela reformulada aderência ao tema da saúde. Ele sai do campo de
possibilidades propostas nos projetos políticos pedagógicos das unidades
escolares para a obrigatoriedade dos conteúdos no interior de alguns
componentes curriculares, atravessado pela concepção geral de desempenho e
aprendizagem da BNCC.
Soma-se a estas normativas o Decreto-lei 9.761 (Brasil, 2019c), Nova
Política Nacional sobre Drogas (PNAD), e temos um conjunto de normas que trazem
sérios retrocessos ao tratamento dado à temática não somente no campo
educacional, mas também na saúde, na assistência, no jurídico. No campo
educacional, a ambiência democrática para os debates e escolhas quanto a abordagem do tema pela instituição escolar estavam
asseguradas na conjuntura anterior, promovida pelas normativas então vigentes,
agora superadas. Isto não significa que o debate transcorresse largamente ou
que os profissionais da educação a ele se dedicassem, significa que o espaço
para discussão sobre o tema estava assegurado legal e democraticamente. A
suspensão dos dispositivos legais que asseguravam tal ambiência democrática em
favor de outra que silencia sobre o tema favorece abordar pequena parcela da
questão de modo generalista, aderido às abordagens de evitação e punição.
A proposta deste
estudo é analisar como as normativas educacionais recentes abordam o tema
álcool, medicamentos, e outras drogas, e repercutem nas ações
preventivo-educativas do campo educacional. Consideramos a importância de tais
documentos por definirem formas de pensar, estimular práticas e comportamentos
relativos à questão. Neste caminho, intencionamos operar discussão à luz dos
questionamentos sobre as formas pedagógicas de abordagem ao tema até aqui
havidas, o lugar da educação formal nestes debates e os modos como a legislação
educacional atual se apropria da questão, considerando os sentidos e
significados estabelecidos sobre o tema na cadeia de interação social (Bakhtin,
1988).
Percursos da educação sobre drogas —
breves notas
A educação sobre drogas se configura
desde o início como parte das políticas de saúde voltadas à prevenção e ao
tratamento da dependência. Desde quando as drogas passaram a ser uma questão de
saúde pública e não apenas um problema jurídico-criminal, as propostas de
prevenção às drogas ganharam força. No Brasil, a chegada do tema na educação
formal, atendendo ao alinhamento do país à política de “Guerra às Drogas” dos
Estados Unidos, ocorre em 1971, pela Lei n.º 5.726 (Brasil, 1971a), regulamentada pelo Decreto n.º 69.845
(Brasil, 1971b) e pela Lei de Drogas n.º 6.368 (Brasil, 1976). A abordagem do tema
nas escolas começa em componentes curriculares específicos (Educação Moral e
Cívica, Ciências Físicas e Biológicas), mas não exclusivamente, estando o tema
acessível aos professores dos demais componentes, assim como à coordenação e à
direção escolares (Brasil, 1971b, s.p.).
Desde então, surgiram diferentes modelos
educativos de prevenção que, em linhas gerais, se enquadram em duas grandes
chaves de abordagens às drogas, quais sejam, a “guerra contra as drogas” e a
“prevenção que convive com a diferença” (Carlini-Cotrim,
1998; Placco, 2011; Sodelli,
2013). A partir dos anos 1990, os debates sobre a educação para as drogas se
intensificaram, trazendo novos olhares, questionamentos e possibilidades.
Fazendo um retrospecto não sistemático dos trabalhos que marcaram aquela virada
de milênio, quando as vozes sobre a falência da Guerra às Drogas ficaram mais
altas e fortes, temos Júlio Groppa Aquin (1998) com seu trabalho “A escola e as novas demandas
sociais: as drogas como tema transversal”, onde exalta o caráter “até certo
ponto revolucionário” (Aquino, 1998, p. 98) dos PCN, ao colocar o tema entre os
temas transversais da escola, na coletânea “Drogas nas escolas – alternativas
teóricas e práticas”, organizada por ele. Na mesma coletânea, Beatriz Carlini-Cotrim problematiza o conceito de prevenção numa
perspectiva histórica para chegar à caracterização do papel do Estado na
proposta neoliberal dos Estados Unidos e Inglaterra daquele final de milênio:
Na proposta neoliberal, as políticas de
proteção aos indivíduos vulneráveis social e economicamente vêm sendo extintas,
a privatização de serviços estatais é crescente e a tônica da retórica política
insiste em atribuir somente ao indivíduo a responsabilidade por seu próprio
sucesso, abstraindo o papel do Estado de garantir direitos básicos e universais
como saúde e educação. (Carlini-Cotrim, 1998, p. 24)
Em 2005, Miriam Abramovay e Mary Castro
apresentaram resultados de pesquisa sobre drogas com estudantes de 14 capitais
do Brasil. Esta versão resumida condensa trabalho maior, publicado em 2002, a
partir da análise de vários indicadores. Os dados trouxeram um retrato
importante do modo como o tema perpassa o cotidiano escolar e sobre como pensam
e se comportam os jovens com relação à questão. As autoras defendem a escola
como espaço legítimo para abordagem do tema, dada sua importância como locus de formação. Defendem não somente o tema como
parte do projeto pedagógico das escolas como ainda a possibilidade de uma outra
escola, capaz de proteger a comunidade e ressignificar a vida em sociedade a
partir de uma nova abordagem às drogas. Em 2005, Acselrad
caminha sua construção de uma educação para a autonomia, com base nos
pressupostos de Paulo Freire, aprofundando a problematização do conceito de
prevenção em suas “verdades e ilusões” (Acselrad,
2005, p. 187). Em 2013, Acselrad apresentou sua
proposta de educação para autonomia com base em Paulo Freire. No começo dos
anos 2010, a pedagogia de Paulo Freire norteava as propostas na educação para
as drogas, como o modelo de redução de danos libertadora, defendidos por Sodelli (2011; 2013) e Moreira et al. (2015), entre outros.
Albertani (2011) lembra-nos dos pressupostos
subjacentes às propostas pedagógicas, com proposições de formação humana
distintas para cada modelo formativo. Em 2014, O Centro de Referência em
Pesquisa, Intervenção e Avaliação em Álcool e Outras Drogas da Universidade
Federal de Juiz de Fora (CREPEIA/UFJF) reuniu, numa coletânea, estudos de
professores e pesquisadores (Ronzani & Silveira,
2014), resultantes de projeto e curso para educadores a distância sobre
prevenção ao uso de drogas, desenvolvido pela Universidade de Brasília (UnB).
Com foco na prevenção, o trabalho problematiza o conceito e discute suas
potencialidades e impasses, propondo caminhos à prática no âmbito da educação.
Mais recentemente, Francisco Coelho (2019) se empenhou no desenvolvimento de
uma abordagem pedagógica pela Redução de Danos (RD) em curso para professores
da educação básica. Em comum, estes estudos trazem críticas às abordagens
proibicionistas e perspectivas e possibilidades de adoção da RD em suas
variações, no cotidiano do espaço escolar, dando ênfase aos aspectos
contextuais dos usos de drogas, à valorização do professor como figura de
autoridade para tratar do tema, e aos subsídios da saúde e dos direitos humanos
no compartilhamento de conceitos-chave para a abordagem escolar, como
prevenção, vulnerabilidade, cuidado e atenção, entre outros.
Estes trabalhos resultam de uma
ambiência democrática, sustentada por um ordenamento legal favorável ao debate,
ao aprofundamento das investigações sobre as dificuldades e problemas relativos
ao tema na educação. No cenário atual, notamos orientação para tratar apenas
uma pequena parte deste debate na escola em componentes curriculares
específicos, exclusivamente, criando obstáculos formais ao
tratamento do tema pelos demais componentes, o que dá mostras de como o país
recrudesce na política proibicionista às drogas, indo na contramão do que faz o
mundo neste momento. Inúmeros são os países que, por expedientes diversos, têm
optado por caminhos alternativos à repressão, à punição e à guerra. Fatores
econômicos — como a última grande crise do capital, em 2008 — e conhecimentos
produzidos nas mais diversas áreas da ciência suscitaram reflexões e debates
acerca dos encaminhamentos da política de proibição às drogas em seus territórios.
Só nas Américas, Canadá, México, Argentina, Colômbia, Uruguai, Chile, Peru,
Porto Rico, Equador, além de vários estados americanos, descriminalizaram
recentemente o uso medicinal da Cannabis
e mantêm discussões quanto às estratégias para regulamentar produção,
distribuição, comercialização e consumo da substância. Tais políticas ensejam
um debate social amplo, embora nada fácil, em cuja pauta postulam discussões
sobre o sistema jurídico-penal, o acesso à saúde, à assistência e onde a
educação para as drogas tem um papel a cumprir.
Mas se a ambiência antiproibicionista
ganha fôlego em algumas regiões em razão das questões acima mencionadas, esta
luta não é nova. No campo científico, o paradigma referente ao caráter
biopsicossocial das drogas se conforma no contraponto à concepção de que as
drogas, por si mesmas, são capazes de explicar a dependência, porque seus
efeitos, invariavelmente maléficos, tornam vício todo e qualquer consumo. O
marco para o aporte biopsicossocial do consumo de drogas são os trabalhos de
Claude Olievenstein. Segundo o autor, a construção da
sociedade ocidental foi fundamentada na razão do consumo como “escolha” do
indivíduo (aspas nossas). Em sua análise da juventude parisiense usuária de
drogas dos anos 1960, ele destaca as formas de um discurso que se configura
pelo consumo de drogas, ato visto como sintoma das insatisfações com a
sociedade de então. Naquela “revolução da droga” (Olievenstein,
1988, p. 7), o que se viu foi a associação do consumo de drogas com as
transgressões e críticas ao establishment. O toxicômano era, por escolha
própria, um sujeito à margem da sociedade, um transgressor, um marginal (Olievenstein, 1988), mas ao buscar compreender as questões
que o conduziam àquela situação, o autor lançou mão de variadas questões. Com
ele, o entendimento da toxicomania não se faz estreitando o foco a apenas um
objeto. A compreensão do fenômeno passa a considerar além da droga, as questões
pessoais dos usuários, os diferentes contextos e situações de uso. Ele entende o consumo de drogas como fenômeno social,
tornando necessário considerar não apenas a droga em si, mas outros fatores que
influenciam o consumo, como a subjetividade do indivíduo e o ambiente, formando
a tríade sujeito-substância-ambiente social. Tais aportes foram decisivos à
compreensão das complexidades dos fenômenos do consumo abusivo e da
dependência.
A ambiência teórica dos anos 1970 deu
lastro ao princípio da RD, nascida na saúde como estratégia para minimizar a
disseminação de doenças infectocontagiosas, sobretudo AIDS e Hepatite. Neste
quadro, o caráter preventivo ganha força ante as disposições curativas e se
constitui numa abordagem terapêutico-educativa, hoje considerada a forma mais
humanizada de abordar a questão. O caráter interdisciplinar da RD acentua o
espaço das Ciências Humanas no estudo do tema. Estes saberes ampliaram o escopo
das discussões no campo científico em sua interface com a vida social concreta,
alteraram o percurso dos significados e sentidos sociais sobre o álcool,
medicamentos e outras drogas em circulação e têm interferido nas políticas
públicas, dando voz às demandas sociais que propõem formas mais dignas de lidar
com essas questões na sociedade.
Cabe reconhecer a limitada participação
da Pedagogia, Ciência da Educação, no debate sobre as drogas. Entendemos que
ela se constitui no mais reticente campo das Ciências Humanas a dedicar atenção
ao estudo dos problemas relacionados ao tema. Quando a Educação comparece nos
debates, ela está capitaneada pela saúde, a partir de onde se constroem os
fundamentos para a atenção básica e a prevenção às drogas. Trata-se de uma
educação instrumental, relativa às técnicas, às metodologias, à gestão e à
logística organizacionais. A Psicologia colabora de forma diferenciada com
vasta produção sobre o tema. A destacar, a junção da tendência pedagógica
libertadora com a RD, conforme já visto. Na educação escolar, as
abordagens sobre drogas estão chanceladas como assunto da área da saúde e das
ciências psis, a partir de onde se desenvolve
interlocuções com projetos de vida, escolhas pessoais, responsabilidades
pessoal e coletiva etc. Em que pese a amplitude de possibilidades da saúde e do
espaço que ela ocupa na educação desde há muito, fora desta chave não se
concebe escola e professores tratando o tema.
Os trabalhos de Adade
(2012), Figueiredo (2017) e Hari (2018) apontam que a maior parte das
iniciativas que abordam a problemática do uso e do abuso de drogas tem sido
orientada pelo enfoque da proibição. Adade (2012)
justifica que, supostamente, este fenômeno resulte do resquício da
popularização do discurso repressivo, alimentado pelo imaginário popular de que
o consumo de drogas induzia seus usuários à violência. Isto corrobora com a
percepção de Hari (2018), que vê a macroinfluência da
política repressiva estadunidense de Guerra às drogas.
Para estender a reflexão pedagógica à
análise crítica dos currículos e conteúdos da
educação escolar sobre drogas em circulação há algumas décadas, buscamos dois
aspectos: 1 - problematizar seus enraizamentos, motivações e finalidades para
compreender os processos operados na seleção destes saberes, assim como o papel
que têm desempenhado as ciências que organizam e legitimam tais escolhas; 2 -
analisar o papel interativo da educação escolar e não escolar no fluxo das interações
pessoais, sociais, institucionais.
Metodologia
Tratamos de
realizar um estudo qualitativo, apoiado em documentação oficial, examinando e
traçando interlocuções entre cinco documentos oficiais, a saber: a Lei de
Drogas n.º 11.343 (Brasil, 2006), o Decreto-lei 9.761
(Brasil, 2019c), os PCN sobre saúde, a BNCC e seus TCT, já mencionados. Embora
tenhamos nos apoiado brevemente em apresentar as DCN e
outros documentos legais nas seções anteriores, eles servirão apenas de
parâmetros e não como objeto de análise do estudo.
Consideramos com
Bakhtin (1988) os discursos normativos como uma manifestação específica da
linguagem, organizada para cumprir função precisa de estabilizar sentidos e
valores. Enquanto texto, propõem manter certa concepção ideológica através de
seus enunciados. No entanto, os textos, como as falas, se inscrevem na cadeia
de interação social comunicativa e como manifestação da linguagem, como
composição da língua e seus signos, ele se constitui como prática social viva.
Os seus sentidos não podem ser fixados, abstraídos das situações e contextos
concretos de apropriação pelos participantes da sociedade. Na interação social
verbal ou textual (o que importa aqui é o conteúdo do discurso e não sua
forma), os participantes de uma situação concreta atualizam sentidos e
significados à vida e à existência humanas. No ato de fala, prática social
concreta, a realidade material dos falantes participa do jogo de forças que
interfere na produção de sentidos da organização social, a base concreta da sociedade,
suas classes, sua economia, estão dialeticamente imbricados à produção dos
sentidos, ao sistema de valores, à moralidade, à ética. A este caráter
ideológico do signo e do discurso cabe atualização na dinâmica da interação
social comunicativa, na dimensão mutável que a constitui. A língua é viva e em
seus falantes as refrações de sentidos não cessam — como também não cessam seus
reflexos.
Nas próximas
seções organizaremos os resultados dos estudos e análises documentais em dois
momentos, a saber: a Educação sobre drogas nos debates legais atuais: mudança
de paradigma na Legislação; e a BNCC e os TCT: onde está a Educação sobre
drogas que estava aqui?
A Educação sobre drogas nos debates legais atuais: mudança de
paradigma na Legislação
A Lei de Drogas
n.º 11.343 (Brasil, 2006) vem substituir a Lei de drogas n.º 6.368 (Brasil,
1976), conhecida como a mais repressiva e punitiva das leis sobre a matéria já
feita no Brasil, fruto da Ditadura Militar e profundamente ligada aos ditames
daquela conjuntura. A lei substituta, n.º 11.343 (Brasil, 2006), emerge sob os
auspícios da ambiência democrática que vivia o Brasil no início do milênio.
Ganha ênfase a abordagem da Redução de Danos e as orientações preventivas na
educação. Assim, no capítulo I, do título III, sobre a prevenção, em seu art.
19, sobre atividades de prevenção ao uso indevido, atenção e reinserção social
de usuários e dependentes de drogas, temos:
X - o estabelecimento de políticas de
formação continuada na área da prevenção do uso indevido de drogas para
profissionais de educação nos 3 (três) níveis de ensino;
XI - a implantação de projetos
pedagógicos de prevenção do uso indevido de drogas, nas instituições de ensino
público e privado, alinhados às Diretrizes Curriculares Nacionais e aos
conhecimentos relacionados a drogas. (Brasil, 2006)
Enfatize-se a
autorização legal para que os professores abordem o tema a partir de incentivo
à formação continuada sobre o tema para os profissionais da educação. A criação
de projetos escolares de prevenção ao uso indevido de drogas, incluindo a
educação de jovens e adultos, estava na base das condições legais dadas aos
profissionais da educação no manejo do tema álcool, drogas e medicamentos.
O Decreto n.º
9.761 (Brasil, 2019c) vem substituir o Decreto n.º 4.345 (Brasil, 2002b), que
instituía a Política Nacional Antidrogas, conforme a designação da época. Este
decreto põe fim à RD, substituída pela retomada de uma política exclusivamente
proibicionista e abstinente, que tem como correlata a volta da internação
involuntária das pessoas que sofrem com o uso problemáticos ou com a
dependência:
2.8. As ações, os programas, os
projetos, as atividades de atenção, o cuidado, a assistência, a prevenção, o
tratamento, o acolhimento, o apoio, a mútua ajuda, a reinserção social, os
estudos, a pesquisa, a avaliação, as formações e as capacitações objetivarão
que as pessoas mantenham-se abstinentes em relação ao
uso de drogas. (Brasil, 2019c, s.p.)
No decreto
descrito, a palavra internação não aparece. Em seu lugar, o termo “acolhimento”
processa o eufemismo de uma proposta concatenada por uma lógica que expõe o
caráter gradativo e abrangente das etapas sucessivas da política adotada:
“prevenção, tratamento, acolhimento, recuperação, apoio e mútua ajuda,
reinserção social” ou “a assistência, a prevenção, o cuidado, o tratamento, o
acolhimento, o apoio, a mútua ajuda, a reinserção social” (Brasil, 2019c, s.p.).
O atual decreto
mantém a prevenção (no sentido da evitação) como ação preeminente, sendo este o
eixo estruturante sobre o qual se desenvolvem as ações educativas, tomadas como
parte disciplinar no conjunto das medidas preventivas. A expressão “educação
preventiva” guarda a estreita extensão por onde se desdobra o sentido da
educação aqui evocado, irremediavelmente dependente e submetido à lógica da
evitação e do impedimento enquanto ações e princípios organizadores da saúde e
como expressão de suas interferências, há muito naturalizadas, no campo
educacional (Correia, 2019, p. 5).
É preocupante constar
entre os objetivos da atual Política Nacional sobre Drogas:
3.14. Educar, informar, capacitar e
formar pessoas, em todos os segmentos sociais, para a ação efetiva e eficaz nas
reduções de oferta e demanda, com base em conhecimentos científicos validados e
experiências bem-sucedidas, adequadas à realidade nacional, apoiando e
fomentando serviços e instituições, públicas ou privadas atuantes na área da
capacitação e educação continuada relacionadas ao uso, ao uso indevido e à
dependência do tabaco e seus derivados, do álcool e de outras drogas. (Brasil, 2019c, s.p.)
Para compreender
alguns dos endereçamentos da proposta exposta no excerto acima, vale observar a
distinção entre “educar, informar, capacitar e formar” que, ao propor distinção
entre as ações enumeradas, elimina sentidos correntes do ato de educar. Tendo
que ter significado desigual às outras ações mencionadas, o signo educar vai
conformando, ao longo do decreto, sentidos como instruir, ajustar, disciplinar.
Outro endereçamento possível do excerto está na vinculação da educação
continuada com os setores público ou privado, dando mostras do caráter
neoliberal do Estado, não apenas no trânsito dos recursos públicos para o setor
privado, no desmonte das políticas sociais estatais, mas na caracterização da
educação como mercadoria.
Além da
transferência das políticas sociais para o setor privado, financiado pelos
recursos públicos, destaca-se a abordagem centralizada no indivíduo, para quem
se dirigem as iniciativas de desestimular o uso, promover abstinência e
conscientizar sobre os riscos do uso/abuso/dependência:
4.2.2. Dirigir ações de educação preventiva, inclusive em
parcerias públicas ou com entidades privadas sem fins lucrativos, de forma
continuada, com foco no indivíduo e em seu contexto sociocultural, a partir da
visão holística do ser humano, e buscar de forma responsável e em conformidade
com as especificidades de cada público-alvo:
a) desestimular seu uso inicial;
b) promover a abstinência; e
c) conscientizar e incentivar a diminuição dos riscos associados
ao uso, ao uso indevido e à dependência de drogas lícitas e ilícitas. (Brasil,
2019c, s.p.)
As evidências
científicas e o conhecimento técnico estão na base das informações e formações
a serem realizadas, dando respaldo e lisura aos procedimentos legais, tomados
como desinteressados e isentos. Esta concepção atravessa o documento, como se
vê no item 5.2.1: “desenvolver e disponibilizar banco de dados, com informações
científicas atualizadas, para subsidiar o planejamento e a avaliação das
práticas […]”; sobre pesquisas e avaliações, no item 7.2.2: “incentivar e
fomentar a realização de pesquisas básicas, epidemiológicas, qualitativas e de
inovações tecnológicas […]” (Brasil, 2019c, s.p.).
O trecho a seguir
traz outras questões para pensar os sentidos da educação sobre drogas no
decreto em tela:
4.2.17. Propor a inclusão, na Educação
básica, média e superior, de conteúdos relativos à prevenção do uso de drogas
lícitas e ilícitas, com ênfase na promoção da vida, da saúde, na promoção de
habilidades sociais e para a vida, formação e fortalecimento de vínculos,
promoção dos fatores de proteção às drogas, conscientização e proteção contra
os fatores de risco. (Brasil, 2019c, s.p.)
Destacamos a
inclusão da questão como conteúdo regular de componentes curriculares
específicos, deixando de estar atrelada transversalmente aos projetos políticos
pedagógicos. Outro destaque refere-se aos sentidos do signo “promoção”, aqui
relacionado à vida, à saúde, às habilidades sociais para a vida, aos fatores de
proteção e conscientização. Vê-se aqui o desenho de uma proposta educativa que
se efetiva por metodologias de modelagem que têm por base fundamentos
construtivistas, como propõem as hoje chamadas metodologias ativas e seus
fomentos comportamentalistas. Outro ponto importante é a relação que guarda o
termo promoção com as questões do indivíduo e das escolhas que ele faz
(Monteiro & Bizzo, 2015), apreendidas em
expressões como “habilidades para a vida”, “fortalecimento de vínculos”,
“conscientização e proteção” (Brasil, 2019c, s.p.).
Há aqui certa compreensão processual da promoção da saúde, como se vê em
“conscientização e proteção contra os fatores de risco” (Brasil, 2019b, s.p.). Esta construção, que oscila entre uma compreensão
conservadora e progressista da saúde (Monteiro & Bizzo,
2015), é suplantada pelas sucessivas repetições, ao longo da normativa, do
signo conscientização e suas variações (conscientizar, consciência),
evidenciando um deslizamento no sentido de educação, mais alinhado à ideia de
modelagem e ajustamento:
2.17. Reconhecer a necessidade de conscientização do indivíduo e
da sociedade em relação aos fatores de risco, com ações efetivas de mitigação
desses riscos, em nível individual e coletivo.
3.1. Conscientizar e proteger a sociedade brasileira dos prejuízos
sociais, econômicos e de saúde pública representados pelo uso, pelo uso
indevido e pela dependência de drogas lícitas e ilícitas.
3.2. Conscientizar o usuário e a
sociedade de que o uso, o uso indevido e a dependência de drogas ilícitas
financiam as organizações criminosas e suas atividades, que têm o narcotráfico
como principal fonte de recursos financeiros. (Brasil, 2019c, s.p.)
No léxico
político, o signo conscientizar cumpre função de promover processos de
politização e construção das lutas contra-hegemônicas.
Na norma, observa-se acepção doutrinadora e militante, filiada às causas
proibicionistas como função educativa. No 6.2.1, por exemplo, consta:
“conscientizar e estimular a colaboração espontânea e segura das pessoas e das
instituições cujos órgãos sejam encarregados da prevenção e da repressão ao
tráfico de drogas, garantido o anonimato” (Brasil, 2019c, s.p.).
Nota-se um apelo a um “ativismo proibicionista” à maneira do panóptico, que faz
eco às orientações governistas atuais, às manifestações públicas em defesa das
pautas conservadoras e em busca da legitimidade do regime em nome da
democracia. Na comparação entre os documentos, observamos que o Decreto 9.761 (Brasil, 2019c) é enfático no uso do
signo “conscientização” como estratégia doutrinária, ao mesmo tempo, um reflexo
do sentido da práxis que envolve o signo no léxico político e uma refração do
campo político que o convoca.
Tanto os PCN
(Brasil, 1998) quanto a Lei n.º 11.343 (Brasil, 2006) não legislam sobre a
abordagem pedagógica a ser adotada pela educação, senão sobre a necessidade
desta educação contemplar todos os níveis de ensino. Isto difere do decreto
presidencial na medida em que os sentidos da educação são ali prescritivos,
vinculados ao proibicionismo e a uma educação disciplinar e doutrinária,
oferecida no interior de determinados componentes curriculares e não mais como
tema que os atravessa a todos.
Comparando estas
normativas, vemos que, do ano de 2006 a 2019, houve um retrocesso acerca da
política de atenção, cuidado e, sobretudo, prevenção ao uso abusivo. Os
conceitos de uso e abuso foram generalizados e adotados de forma imprecisa e
impositiva, desconsiderando toda a dinâmica biopsicossocial da RD — um
recrudescimento do ordenamento legal proibicionista, apoiado em pressupostos
moralistas e drogacêntricos. Para Peroni
et al. (2019), retrocedemos no entendimento mais holístico e democrático da
vida e do ser humano, o que influencia na forma como a sociedade concebe a
diversidade, a empatia e a alteridade, dispondo novas relações de convivência
menos solidárias.
A BNCC e os TCT: onde está a Educação sobre Drogas que estava
aqui?
Os PCN definiam
seis eixos temáticos principais (Ver Quadro 1). Os debates acerca do álcool,
medicamentos e outras drogas receberam importante destaque no eixo saúde do
documento, dando ênfase às questões multifatoriais indispensáveis envolvidas
nas situações de uso de abuso:
Deve-se considerar também que, nas
últimas décadas, além dos temas tradicionalmente trabalhados sobre saúde e
nutrição, as questões biopsicossociais adquiriram maior visibilidade, e a
escola foi compelida — pelas circunstâncias e pelo reclamo da própria sociedade
— a lidar com problemas emergentes, como a contaminação crescente do meio
ambiente, a Aids, o consumo abusivo do álcool e outras drogas, a violência
social e as diferentes formas de preconceito. E não há como lidar com esses
temas por meio da mera informação ou da prescrição de regras de comportamento.
(Brasil, 1998, p. 262)
Os PCN
autorizavam os educadores a abordarem o tema em suas aulas. Afirmando que “o
fenômeno moderno das drogas é produto da própria vida em sociedade, das
rupturas nas relações afetivas e sociais e da desproteção de seus membros”
(Brasil, 1998, p. 271), indicavam aos docentes considerarem os aspectos
biopsicossociais dos estudantes. Para o terceiro e quarto
ciclos do Ensino Fundamental, o documento procurava sensibilizar os
docentes a incluírem a temática em seus planejamentos e desconstruírem a ideia
de que apenas “informar” ou “prescrever comportamentos” garante melhor
qualidade de vida.
Eixos Temáticos PCN e BNCC
Temas Transversais - PCN |
Temas Contemporâneos Transversais –
BNCC |
Saúde |
Saúde |
Meio Ambiente |
Meio Ambiente |
Trabalho e Consumo |
Economia |
Ética |
Cidadania e Civismo |
Pluralidade Cultural |
Multiculturalismo |
Orientação Sexual |
- |
- |
Ciência e Tecnologia |
Fonte: os autores.
Os TCT, por outro
lado, também se estruturam a partir de seis eixos temáticos (Quadro 1).
Entretanto, é um documento sem a profundidade teórico-argumentativa e
metodológica que marca os PCN. Comparando as alterações dos eixos temáticos,
observa-se o esvaziamento da formação crítico-política, flagrante na associação
da cidadania ao civismo e na exclusão da ética. Suas 20 páginas têm por
finalidade destituir os PCN.
A adição do termo
“contemporâneo” aos “temas Transversais” cumpre função simbólica de apresentar
o documento como renovado, ainda que seus eixos retomem
a função político-ideológica doutrinária da educação do período do Regime
Militar, particularmente com o tema civismo, ao mesmo tempo que adere às
premissas neoliberais do Consenso de Washington. Ao contrário dos temas dos
PCN, os TCT da BNCC passam a ser obrigatórios:
[…] diferentemente dos PCNs, em que os
Temas Transversais não eram tidos como obrigatórios, na BNCC eles passaram a
ser uma referência nacional obrigatória para a elaboração ou adequação dos
currículos e propostas pedagógicas, ampliados como Temas Contemporâneos
Transversais, pois, conforme a BNCC (BRASIL, 2017), são considerados como um
conjunto de aprendizagens essenciais e indispensáveis a que todos os
estudantes, crianças, jovens e adultos têm direito. (Brasil, 2019a, p. 11)
A BNCC e seus TCT
praticamente excluem o tema álcool e outras drogas. Exceção única aparece no
componente curricular Ciências para o 6º ano, conforme se vê no Quadro 2:
Quadro 2
Tema medicamentos e psicoativos nas Ciências –
6º ANO (BNCC)
Unidades temáticas |
Habilidades |
|
Matéria e energia |
(EF06CI04) Associar a produção de medicamentos e outros
materiais sintéticos ao desenvolvimento científico e tecnológico avaliando
seus impactos socioambientais. |
|
Vida e evolução |
(EF06CI10) Explicar como o funcionamento do sistema nervoso pode
ser afetado por substâncias psicoativas. |
|
Fonte:
os autores.
Os medicamentos
comparecem na BNCC com outras referências e significados. No 2º ano eles estão
associados à prevenção de acidentes domésticos, junto com inflamáveis e
eletricidade; no 4º ano eles são elencados entre as substâncias onde proliferam
microrganismos, como alimentos e combustíveis; no 8º e 9º anos são trazidos
pelo componente curricular Educação Física para problematizar seus usos para
transformação/potencialização do corpo; e, como mostra o Quadro 2, no 6º ano
são usados para pensar questões ambientais e desenvolvimento científico e
tecnológico (Brasil, 2018). Além de menção direta nos conteúdos, o texto da
BNCC sugere que os medicamentos devam ser compreendidos “além da ideia de que
[…] são substâncias sintéticas que atuam no funcionamento do organismo”
(Brasil, 2018, p. 281), relacionando-os à sustentabilidade, ao meio ambiente e
às tecnologias, dentro do que chama de compreensão abrangente de saúde. A
lógica do mercado prevalece, circunscrevendo o tema no campo de significação
relativo à reestruturação global do capital, desconsiderando suas funções no
SNC. Este exclusivismo das Ciências da Natureza, no
interior do tema vida e evolução, dá continuidade ao conteúdo tradicional
da temática na educação, centrado na classificação das drogas, nos seus efeitos
e danos no organismo e não nas ancoragens sociais, nos saberes cotidianos e nas
experiências de vida dos jovens, que, por vezes, são banhadas em vivências
redutoras de danos.
No contexto de
uma normativa orientada a dar ênfase ao indivíduo — seu protagonismo,
empreendedorismo, capacidade de administrar problemas, desenvolver projeto de
vida etc. —, em detrimento das responsabilidades do Estado e da sociedade, o
enfoque das substâncias psicoativas se faz aliada da responsabilização dos
indivíduos por suas escolhas e pelas consequências destas. Ao descartar as
influências sociais do meio, todo o entendimento social sobre as práticas de
uso, abuso e experiências culturais sucumbem diante das pautas conservadoras na
defesa da família, da moral e das liberdades individuais (Peroni
et al., 2019).
No novo ordenamento legal, o debate sobre o tema das drogas foi reduzido
a quase nulidade frente ao que tínhamos na vigência da LDB original, dos PCN e
do Decreto n.º 4.345 (Brasil, 2002b), em que pese as limitações destas normas.
O tema não foi extinto da educação escolar, ele passou da transversalidade à
base curricular do conteúdo mínimo, reduzido e sofrendo refrações de sentidos.
Ele saiu do campo de possibilidades dos projetos políticos pedagógicos das
escolas para a obrigatoriedade dos conteúdos dos componentes curriculares,
atravessado pela concepção geral de desempenho e aprendizagem da BNCC.
Observamos os impactos do novo ordenamento legal da educação, enfatizando
seu caráter hierárquico, excludente, retrógrado, privatista e mercantil das
normativas. Nas demandas e movimentos de resistência às normas impostas à
educação não encontramos falas relativas à temática álcool, medicamentos e
outras drogas.
Com o recrudescimento das forças conservadoras na sociedade brasileira, pari
passu ao crescimento da extrema-direita mundial, ganham fôlego o
proibicionismo, as práticas de extermínio, a internação compulsória, processos
de estigmatização e exclusão social de usuários na contramão do que ocorre no
mundo. A transformação da questão em tópico do conteúdo obrigatório,
enclausurado no interior de componentes curriculares específicos, minorando
suas funções psicoativas e excluindo a RD como enfoque pedagógico norteador das
práticas educativas, deixa a comunidade escolar (e a sociedade) à mercê dos
mercados, do comércio legal/ilegal das drogas, enquanto grassam a medicalização
e os regimes de psicoatividade.
Embora a Lei n.º 11.343 (Brasil, 2006) e os PCN sobre saúde (Brasil, 1998) não
legislem sobre a abordagem pedagógica a ser adotada na educação, eles ensejam
mais liberdade ao campo educativo para pensar práticas preventivas mais reais,
menos repressoras, estimulando todos os níveis de ensino para tal. O retrocesso
que o Decreto n.º 9.761 (Brasil, 2019c) trouxe para um entendimento mais
biopsicossocial dos indivíduos, depreciando toda a política de saúde e
assistência que o Brasil fortaleceu e desenvolveu ao longo das últimas décadas
de práticas redutoras de danos, impacta na educação, pois, os sentidos da
educação são ali prescritivos, vinculados ao proibicionismo e a uma educação
das competências e habilidades individuais. O novo ordenamento educacional,
embora não proíba a abordagem sobre drogas, não estimula uma abordagem mais
dialógica e que converse com as Ciências Humanas e Sociais, enclausurando o
debate sobre drogas no âmbito das Ciências Naturais com abordagem psicomédica, o que a perspectiva pedagógica da RD buscou
desnaturalizar nestas últimas décadas.
O estudo em
questão teve seu cerne em uma análise documental de leis e normativas
discutidas à luz da literatura de Ensino/Educação vigentes. Trouxemos aportes
teóricos que podem auxiliar na análise de outras fontes documentais,
considerando a importância da escola laica e redutora de danos e o melhoramento
da convivência social entre as pessoas. E, embora tais interlocuções
documentais nos tragam um cenário que justifica possíveis alastramentos de
práticas adestradoras e moralistas sobre drogas, oferecemos um pequeno recorte
para discutir o âmbito da legalidade e de seus impactos nas práticas
preventivo-educativas.
Se a educação formal não se posiciona, isto
não quer dizer que processos educativos relacionados ao tema não estejam em
curso, grassando pela sociedade (incluindo os espaços escolares) e à luz dos
interesses e da lógica hegemônica. Se a Pedagogia não tomar para si a
investigação e o conhecimento destes processos e, no limite, não exercer seu
papel de negociar as bases, os termos e as terminalidades da educação para as
drogas em um mundo onde as substâncias psicoativas, legais ou ilegais, são
constitutivas da arquitetura da sociedade do desempenho, parte necessária à
aquisição e manutenção de competências e habilidades (tais como resiliência,
protagonismo, autonomia, responsabilidade, projeto de vida, entre outros), elas
não só continuarão existindo, como se alastrando a serviço da lógica do capital
e de seu projeto ultraliberal. O perigo da negação e do apagamento do debate
sobre o tema das drogas no campo da educação, colocando em risco as gerações
mais novas e as próximas, está posto.
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[i] Pós-Doutorado em História da Educação
pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2012). Professora Associada da
Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
[ii] Pós-Doutorado em Ensino de
Química pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2021). Professor do Programa
de Pós-Graduação Ensino de Biociências e Saúde do Instituto Oswaldo
Cruz/Fundação Oswaldo Cruz.