Por uma
sociedade menos injusta: experiências com a Educação Física cultural
Por una sociedad menos injusta: experiencias con la
Educación Física cultural
For a less unfair society: experiences with cultural
Physical Education
Marcos Garcia Neira[i]
Universidade de São Paulo
São Paulo, SP, Brasil
https://orcid.org/0000-0003-1054-8224
Recebido em: 14/11/2021
Aceito em: 14/03/2022
Publicado
em: 21/03/2022
Linhas
Críticas | Periódico científico
da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília, Brasil
ISSN: 1516-4896 |
e-ISSN: 1981-0431
Volume 28, 2022
(jan-dez).
http://periodicos.unb.br/index.php/linhascriticas
Referência completa (APA):
Neira, M. G. (2022). Por uma sociedade menos injusta: experiências
com a Educação Física cultural. Linhas Críticas, 28, e40779. https://doi.org/10.26512/lc28202240779
Link alternativo:
https://periodicos.unb.br/index.php/linhascriticas/article/view/40779
Licença Creative Commons
CC BY 4.0.
Resumo: A mazela da desigualdade social desafia a
sociedade como um todo e a educação em específico. No caso da Educação Física,
a perspectiva curricular cultural se autoproclama comprometida com o combate à
injustiça social. Com o objetivo de verificar a efetividade dessa proposta, o
presente artigo analisa relatos de experiências. Conclui que os docentes que
colocam o currículo cultural em ação tematizam práticas corporais do repertório
de grupos diversos sem hierarquizar conhecimentos. Essa “ecologia de saberes”
se mostra potente na formação de sujeitos solidários, ponto de partida para a
construção de uma sociedade menos injusta.
Palavras-chave: Currículo. Educação Física. Justiça social.
Resumen: La desigualdad afecta terriblemente a la sociedad en
general y también a la educación. En el caso de la Educación Física, la
perspectiva curricular cultural se proclama comprometida con la lucha contra la
injusticia social. Para verificar la efectividad de esta propuesta, este
artículo analiza los informes de experiencia. Se concluye que los profesores
que ponen en marcha el currículo cultural tematizan prácticas corporales desde
el repertorio de diferentes colectivos, sin priorizar conocimientos. Esta
“ecología del conocimiento” resulta poderosa en la formación de sujetos
solidarios, un punto de partida para la construcción de una sociedad menos
injusta.
Palabras
clave: Curriculum. Educación Física. Justicia social.
Abstract: The blemish of inequality challenges society as a
whole and education in particular. In the case of Physical Education, the
cultural curricular perspective proclaims itself committed to combating social
injustice. With the intention of examining the effectiveness of the proposal,
this article scrutinizes reports of experiences. It concludes that teachers who
put the cultural curriculum into action thematize bodily practices from the
repertoire of different groups, without prioritizing knowledge. This “ecology
of knowledge” proves to be powerful in the formation of solidary subjects, a
starting point for the construction of a less unfair society.
Keywords: Curriculum.
Physical Education. Social justice.
A sociedade que
habitamos é profundamente injusta haja vista a separação abissal, dos setores
mais vulnerabilizados, em relação às oportunidades de acesso a tudo que possa
conferir dignidade à vida de qualquer ser humano. Estima-se que um quarto da
população brasileira viva abaixo da linha da pobreza, o que, em dados de 2020,
equivalia a menos de R$ 246,00 mensais (Gomes, 2022). Cerca de 50 milhões de
pessoas passam fome, encontram-se alijadas de saneamento básico e de condições
salutares de moradia, o que implica estarem mais expostas à violência e à
exploração, incluindo o trabalho infantil. Num quadro em que a sobrevivência
está em risco, o que para alguns é considerado indispensável, como serviços de
saúde, boa alimentação, escolarização, lazer, emprego fixo e segurança, para
outros soa como artigos de luxo, privilégios, muito embora sejam direitos
inalienáveis que deveriam ser garantidos pelo Estado a brasileiros e
brasileiras indistintamente.
Como se trata de
uma questão pública, sem uma atuação coletiva e intencional dificilmente haverá
mudanças. A injustiça, independentemente do seu tamanho, afeta a todos e todas,
sem distinção. Até mesmo a parcela da população que experimenta uma vida mais
confortável sofre consequências da concentração de renda. Basta verificar que
naquelas sociedades em que a distribuição de renda é mais igualitária, o Estado
provisiona a maior parte das necessidades básicas. A contabilidade é
relativamente simples: onde há mais pessoas regularmente empregadas e
devidamente remuneradas, cresce o consumo, a arrecadação de impostos e o
retorno na forma de serviços à população. Apesar do neoliberalismo vigente no
mundo Ocidental, nas últimas décadas, as sociedades europeias do chamado
Primeiro Mundo avançaram nas políticas sociais. Na contramão desse movimento,
as elites tupiniquins não só encamparam o discurso privatista, como têm
combatido ferozmente as tentativas pontuais de disponibilizar estruturas e
recursos para melhoria da vida da população. O resultado se constata na
precarização da saúde, segurança e educação.
O modelo neoliberal se impôs como dominante com base na promessa
de ajuste às demandas globais surgidas com o agravamento das economias após a
Segunda Guerra Mundial. Com uma roupagem globalizada, o neoliberalismo passa a
ser defendido como forma de revitalizar as economias mediante a acumulação flexível
do capital (Harvey, 2018) – justificativa que emerge graças à urgência de
construir as bases epistemológicas e políticas de um novo senso comum, capaz de
formular uma agenda que atenda às novas necessidades do capitalismo.
Menarbini et al. (2021) ressaltam que, em meio a essas mudanças,
nas quais a acumulação do capital e as relações de trabalho se alteram, a
denominada flexibilização econômica influencia transformações políticas,
sociais, culturais e institucionais de tal forma que os padrões de relacionamento
do capital com o mundo do trabalho e do Estado com a sociedade civil também se
modificam. Decorre, dessa nova ordem econômica mundial, uma nova ordem
educativa com efeitos diretos na educação pública, que, tradicionalmente,
constituía um dever do Estado.
A educação
precária se traduz na baixa qualidade das políticas do setor, desde a
remuneração dos seus profissionais até a infraestrutura disponível, passando
pelos currículos escolares e iniciativas de formação continuada. Com salário
insuficiente, o docente se vê forçado a duplicar ou triplicar a jornada, quando
não desempenha outra tarefa laboral, deixando o exercício da docência em
segundo plano. Escolas gradeadas, carência de materiais didáticos, salas de
aula superlotadas, concepções de ensino defasadas e descontinuidade das ações
formativas desestimulam e induzem os profissionais da educação à mera
repetição. Como efeito, a educação escolar destinada às camadas populares, ao
invés de combater a injustiça, acaba contribuindo com ela.
Na contramão
desse processo, inúmeras escolas anunciam, em seus projetos pedagógicos, o
compromisso com a construção de uma sociedade mais justa. É sabido que a
comunidade epistêmica da Educação Física alimenta preocupações com o assunto há
bastante tempo. O esforço para alcançar esse intento produziu conhecimentos
científico-pedagógicos suficientes para afirmar a efetividade de propostas
comprometidas com a justiça social. Sem prejuízo das demais, a presente
pesquisa atém-se exclusivamente à perspectiva cultural do componente, por se
tratar de uma vertente que se autoproclama democrática e democratizante (Neira,
2019; Neira & Nunes, 2009; 2011; Macedo, 2010; Lins Rodrigues, 2013;
Bonetto, 2016), sobre a qual se dispõe de uma quantidade considerável de
documentos pedagógicos. Muitos docentes alinhados à proposta costumam produzir
o que se convencionou chamar de relatos de experiência. Borges (2019) explica
que, no campo educacional, o hábito de registrar a própria prática vem se
modificando com o tempo. Inicialmente, influenciado pela psicologia, buscou-se
registrar modificações comportamentais dos alunos. Em seguida, configurou-se
como documentação para subsídio da avaliação da aprendizagem até que, mais
recentemente, descrições detalhadas dos trabalhos educativos passaram a
fomentar a reflexão sobre a docência e a autoformação do professor-autor. Eis a
característica das duas coletâneas produzidas pelo Grupo de Pesquisas em
Educação Física escolar da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo
(GPEF), cujos capítulos narram
práticas pedagógicas efetivadas com a proposta, aqui transformadas em
referencial empírico da presente investigação.
Em termos
metodológicos, sem desconsiderar as noções de conhecimento, linguagem e cultura
adotadas pela teoria curricular cultural da Educação Física (Neira & Nunes,
2021), as experiências relatadas foram submetidas à análise cultural nos moldes
propostos por Costa (2007) e confrontadas com a argumentação elaborada pelo
sociólogo português Boaventura de Sousa Santos (2019) em defesa de uma ecologia
de saberes, admitida como princípio fundamental para uma geografia social menos
injusta.
A análise cultural
examina os significados implícitos e explícitos em uma certa cultura, ou seja,
nas diferentes formas com as quais os sujeitos negociam suas vivências e
experiências culturais. Isso quer dizer que a subjetividade e o posicionamento
político não são descartados, pelo contrário, são reforçados. Para construir
conhecimentos, é preciso saber qual a origem das explicações fornecidas e quais
experiências culturais e sociais influenciaram os olhares sobre determinado
fenômeno.
Quadro 1
Capítulos
Autoria |
Título |
Araujo
(2021) |
Boxe no
Capão |
Bonetto
(2020) |
Carimbó:
entre a cópia e criação |
Bonetto
(2021) |
Brincadeiras
de desenhos animados: Barbie, Susy, Hot Wheels e Pokemón |
Carvalho
(2020) |
Passinho
dos maloka nas aulas de Educação Física |
Godoy e
Duarte (2021) |
Lutando
com Dandara: tematizando lutas na Educação Infantil |
Gomes
(2021) |
Dançando
na escola: do balé das meninas ao inseto dos infernos do funk |
Hamburger
(2021) |
“Jongo,
uma roda pela igualdade”: tematizando o jongo na Educação Infantil |
Irias
(2020) |
Jogo de
taco e o lazer da quebrada |
Irias
(2021) |
Jiu-jítsu
na EPG Manuel Bandeira |
Martins
(2020) |
A Educação
Física na EJA e a corrida de orientação: uma prática da natureza no meio
urbano |
Masella e
Duarte (2020) |
Tematizando
o futebol na EMEI Nelson Mandela |
Masella et
al. (2021) |
Do forró à
capoeira, diversidade e culturas populares na EMEI Nelson Mandela em tempos
de pandemia |
Monteiro
(2020) |
Corpo de
dança: quem pode dançar? |
Müller e
Müller (2020) |
Cambalhotas
e estrelas na EMEI Jaguaré: a ginástica na Educação Infantil |
Nascimento
(2021) |
Brincadeiras
na quarentena |
Neves
(2020) |
A gente
corre pra quê? |
Neves
(2021) |
Diferentes
significações sobre o k-pop |
Quaresma
(2020) |
Entre
fritadas, assados e muito cheiro bom: um encontro com o sumô e seus corpos |
Reis
(2020) |
“O
telefone tocou novamente”… tematizando o samba rock na Educação Física |
Reis
(2021) |
“Saravá
jongueiro velho, que veio para ensinar…”: as escrevivências discentes na
perspectiva da escrevivência-docente |
Santos
(2020) |
“Se lutar
é violência, por que a igreja do bairro ensina o jiu-jítsu?” |
Souza
(2020) |
Futebol
além das bananas |
Souza e
Augusto (2021) |
Basquetebol:
entre faltas, estratégias e relações de gênero |
Torres et
al. (2020) |
Corpos
In-transe: a ciranda e o funk no jogo por conhecimentos e afetos outros |
Fonte: o autor.
Outras formas de
conhecimento
Desde os anos
1980, Sousa Santos (1988) vem chamando a atenção para as limitações do projeto
científico moderno e a necessidade de se considerar e legitimar formas
alternativas de conhecimento. Sua crítica se apoia no fato daquele modo de
pensar ter monopolizado a distinção entre falso e verdadeiro em detrimento dos
saberes produzidos segundo lógicas alternativas, porém não menos importantes ou
incapazes de explicar a realidade e fundamentar procedimentos. No raciocínio
apresentado pelo sociólogo português, a visibilidade dos conhecimentos
científicos da Modernidade se assenta na invisibilidade dos saberes elaborados
de outras maneiras, como os conhecimentos populares, tradicionais ou leigos.
Antes de tudo, a
divisão entre conhecimentos científicos e não científicos é geográfica,
territorial. Enquanto o hemisfério Norte concentra a ciência, a razão e a lei,
no hemisfério Sul se localizam as crenças, a violência e a desordem. A
organização territorial reproduz a fórmula metrópole/colônia ou
centro/periferia. O colonizador é o detentor do conhecimento moderno, mola propulsora
do progresso, enquanto o colonizado é atrasado. O centro é civilizado, enquanto
a periferia é selvagem.
A mesma
cartografia constitui a epistemologia baseada na apropriação, negação e
exclusão. No âmbito do conhecimento, a transformação de eventos simbólicos em
objetos de consumo exemplifica a apropriação. A negação consiste no desprezo
pela produção dos colonizados e periféricos, enquanto a exclusão se assenta no
silenciamento das inúmeras formas de expressão dos seus saberes. Com base nesse
raciocínio, Sousa Santos (2010) denuncia que a injustiça social está
intimamente ligada à injustiça cognitiva. Logo, lutar por justiça cognitiva é o
mesmo que lutar por justiça social. Para ser bem-sucedida, essa luta exige um
outro modo de pensar sobre o conhecimento elaborado pelos segmentos
forçosamente empurrados para as margens: as crianças, as mulheres, LGBTQIA+,
pessoas com deficiência, a comunidade negra, indígena, não escolarizada ou
pobre. Essa forma de pensar pode ser sumarizada na noção multicultural de
ecologia de saberes e o seu potencial para confrontar o projeto científico
moderno, monocultural por excelência. A ecologia de saberes é “o
reconhecimento da copresença de diferentes saberes e a necessidade de estudar
as afinidades, as divergências, as complementaridades e as contradições que
existem entre eles” (Sousa Santos, 2019, p. 28). Assim, supõe o diálogo
de uma ampla gama de conhecimentos, inclusive a ciência moderna, o que lhe
permite afirmar o conhecimento como interconhecimento.
Ocorre que nesse
encontro de conhecimentos, a aprendizagem de alguns pode implicar no
esquecimento de outros. Isso quer dizer que a ignorância não é necessariamente
o lugar de onde se parte, mas pode ser o resultado do esquecimento num processo
de aprendizagem recíproca. O esquecimento só é ruim quando o aprendido é
valorizado em detrimento do esquecido. O segredo do interconhecimento é
aprender, portanto, aprender sem esquecer. Isso significa substituir a ideia de
um conhecimento monopolista por uma compreensão de ciência como resultante da
ecologia de saberes.
Opondo-se à visão
otimista alardeada por muitos educadores, Sousa Santos (2019) ensina que
equilibrar a distribuição do conhecimento científico não significa alcançar a
justiça cognitiva. Além de ser altamente improvável que isso aconteça no atual
cenário capitalista e colonialista, as intervenções no mundo real exigem bem
mais do que o conhecimento científico pode oferecer. Defender a força do
conhecimento não científico não significa desacreditar o científico, mas sim
empregá-lo de maneira contra-hegemônica. A potência de um conhecimento depende
daquilo que ele provoca. A relevância das intervenções no real possibilitadas
pelo projeto científico moderno não impede que outras manifestações do
conhecimento também possam gerar resultados satisfatórios. A força da ciência
moderna em muitas áreas é inexorável. Contudo, há inúmeras formas de intervir
no real em que o projeto moderno nada contribuiu. Como nenhum conhecimento é
capaz de responder por todas as intervenções, todos eles são, em certo sentido,
incompletos. Qualquer conhecimento sustenta práticas e constitui sujeitos.
Qualquer conhecimento se reflete no que dá a conhecer a respeito de alguém. A
ecologia de saberes, segundo Sousa Santos (2019), pode ser entendida como uma
nova forma de pensar, fazer e conhecer ao incorporar as interações entre o
conhecimento científico e o não-científico, compreendendo a intersubjetividade
como interconhecimento e vice-versa.
Na ecologia de
saberes, os conhecimentos são concebidos como práticas que viabilizam ou
inviabilizam determinadas intervenções. Como o próprio nome diz, a ecologia de
saberes aposta nas relações entre saberes, nas hierarquias geradas, pois
nenhuma prática concreta seria possível sem hierarquias. Sousa Santos (2010)
ressalta que as hierarquias geradas pela ecologia são contextuais, apoiando-se
nos resultados atingidos pelos diferentes conhecimentos, com predileção para
aqueles que permitem maior envolvimento na intervenção.
Conhecimento,
linguagem e cultura
Na teorização
elaborada por Silva (2011), as ferramentas para análise do social
disponibilizadas pelos estudos culturais, multiculturalismo crítico e
pós-estruturalismo atribuem à cultura um papel determinante no currículo,
reconhecendo que está impregnada pelas relações de força que marcam classe,
gênero, orientação sexual, raça, etnia e religião. A teoria curricular cultural
da Educação Física, também chamada currículo cultural ou culturalmente
orientado, busca inspiração nesses pressupostos ao conceber as práticas
corporais como artefatos culturais passíveis de múltiplas significações. Com o
intuito de formar sujeitos solidários, mobiliza determinadas noções de
conhecimento, linguagem e cultura que lhe conferem especificidade e permitem
distingui-la das demais propostas do componente (Neira, 2015; 2018; Neira &
Nunes, 2009; 2020).
Recorrendo à
vertente pós-estruturalista, a cultura nada mais é do que uma arena de lutas
pela validação dos significados, um território de disputa pela significação
(Hall, 1997). Nesse sentido, toda prática social não deixa de ser uma prática
cultural cujos significados são produzidos e circulam pela linguagem. Também
com base no pós-estruturalismo, a linguagem abandona a função representativa
para desempenhar uma função constitutiva. Isso quer dizer que a realidade não é
mais representada pela linguagem, mas sim por ela produzida. Considerando que a
significação é perpassada por relações de poder, aqueles grupos que ocupam
posições de vantagem no tecido social desfrutam de condições favoráveis para
definir as representações do mundo. Ainda segundo Hall (1997), a
representação é o modo como conectamos o sentido à língua e à cultura, isto é,
como usamos a linguagem para dizer algo significativo sobre o mundo, os objetos
e as pessoas.
Os conceitos de
cultura e linguagem mobilizados pelos campos teóricos citados reposicionam a
Educação Física na área das Linguagens. Enquanto artefatos culturais produzidos
pela linguagem corporal, as danças, esportes, lutas, ginásticas ou brincadeiras
são passíveis de inúmeras leituras e significações. A seu tempo, as
representações sobre essas manifestações e seus participantes são disseminadas
pelos discursos produzidos e/ou postos em circulação por segmentos
interessados. Logo, uma prática corporal está à mercê dos regimes de verdade
discursivamente estabelecidos, o que impossibilita atribuir-lhe uma essência ou
identidade fixa. Uma brincadeira, por exemplo, pode ser muitas coisas, a
depender do contexto ou de quem estiver envolvido. O mesmo acontece com as
outras práticas corporais.
Os casos da
capoeira e do futebol são emblemáticos. A capoeira foi proibida e seus
praticantes perseguidos até os anos 30 do século passado. Os movimentos de
valorização da cultura africana e afrobrasileira foram decisivos na
ressignificação dessa e de muitas outras manifestações. Antes da roda de
capoeira tornar-se Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade, fora tomada
como símbolo nacional, um elemento importante da identidade brasileira. O
percurso histórico do futebol é inverso. Inicialmente praticado pelos filhos da
elite inglesa que aqui se estabeleceu para instalação das primeiras indústrias
e construção de estradas de ferro, gradativamente migrou dos clubes privados
para as várzeas, sendo cada vez mais praticado nos momentos de lazer do
operariado. Por ocasião da sua oficialização, os campeonatos da modalidade
chegaram a ser restritos aos homens brancos. Na atualidade, apesar da prática ter
se popularizado, a permanência de representações racistas e sexistas ainda
dificulta o acesso de pessoas negras, mulheres e de quem escapa à
heteronormatividade a determinadas posições da estrutura organizacional do
esporte. Mesmo que brevemente relatadas, as histórias acima evidenciam as lutas
pela significação experimentadas pela capoeira e pelo futebol. Com o decorrer
dos anos e conforme o contexto e os discursos acessados, as representações
dessas práticas corporais e dos seus participantes sofreram modificações. O
processo é mais comum do que se imagina, sempre à mercê das relações de poder.
Por isso, a Educação Física culturalmente orientada toma para si a tarefa de
tematizar a maneira como ocorrem na sociedade as ginásticas, lutas, danças,
esportes e brincadeiras. O que se pretende é dar a entender como os
significados atribuídos à prática corporal tematizada são produzidos e a quem
interessa a sua circulação (Oliveira Júnior, 2017; Duarte & Neira, 2020).
Por fim, a forma
de compreender o conhecimento divulgada pelas teorias pós-críticas do currículo
(Silva, 2011) desloca o entendimento dos conteúdos no currículo cultural da
Educação Física. A exclusividade dos conhecimentos produzidos por meio do
método científico baseado no projeto moderno foi ampliada com a noção de
construtos sociais atravessados por relações de poder (Müller, 2016; Neira,
2020a). Nietzsche (1983) afirma o conhecimento como criação, o que, numa visão
em perspectiva, pode ser tomado como resultante de um acontecimento. O conhecimento
é sempre uma relação arbitrária pautada na dominação. Foucault (2001) segue a
mesma direção ao enfatizar a influência dos sistemas de poder não só na
produção, mas também naquilo que venha a ser o conhecimento. Para o filósofo
francês, o conhecimento reside na forma como dominam umas às outras.
Nas aulas de
Educação Física pautadas pela teoria curricular cultural, os conhecimentos
despontam durante a tematização da prática corporal abordada (Santos, 2016;
Neira, 2020b). Na medida em que transcorrem as situações didáticas organizadas
pelo professor, os estudantes interagem com saberes (conteúdos) diversos, não
somente aqueles produzidos pelo método científico e comumente valorizados na
escola, mas também com as inúmeras maneiras de dizer, fazer e compreender as
práticas corporais e as pessoas que delas participam. Ora, se o objetivo da
proposta é formar o sujeito solidário, não podem existir saberes melhores ou
piores, conhecimentos que devam ser esquecidos enquanto outros são exaltados.
Um tema se legitima pela sua ocorrência social, o que cria condições para que
as danças, lutas, brincadeiras, ginásticas e esportes que compõem as
identidades culturais dos vários grupos sociais sejam devidamente estudadas.
Tematizar essas manifestações, problematizando as representações acessadas
pelos estudantes, e desconstruir os discursos ao seu respeito são ações que
buscam, simplesmente, potencializar leituras e reconstruções críticas conforme
o contexto escolar. Diante disso, é possível afirmar que, nessa proposta, a
cultura corporal (objeto de estudo da Educação Física na área das Linguagens)
passa ser concebida como toda a produção discursiva verbal ou não verbal acerca
da prática corporal definida como tema para aquele período letivo e dos seus
participantes (Neira & Gramorelli, 2017).
Análise dos
relatos de experiência
Nunes (2018)
explica que, enquanto artefatos culturais, as brincadeiras, lutas, esportes,
ginásticas e danças veiculam significados que podem insuflar a integração ou a
segregação, afirmar o direito às diferenças ou ressaltar identidades
dominantes. Se a intenção é formar sujeitos solidários e, por consequência,
colaborar para a construção de uma sociedade menos injusta, a experiência
curricular da Educação Física deverá instar os sujeitos docente e discente à
análise dos signos impregnados naquelas manifestações, ao exame das relações
envolvidas e à observância de quais identidades são valorizadas ou minoradas. A
depender da narrativa empregada, certos grupos sociais serão diminuídos
enquanto outros serão exaltados. Daí a importância de submeter ao crivo
cultural os significados colocados em circulação pelos discursos acessados e,
às vezes, reproduzidos pelos estudantes.
Movidos por essas
intenções, os professores que assumem uma atuação pautada no currículo cultural
do componente abrem espaços para os saberes historicamente negados, conferindo
centralidade aos significados sobre as práticas corporais e seus praticantes.
Caso sejam verificadas coletivamente mediante situações didáticas
propositalmente planejadas, poder-se-á assinalar suas origens e
desnaturalizá-las.
Esse cuidado foi
observado nas problematizações realizadas por Araujo (2021), Gomes (2021) e
Souza e Augusto (2021) quanto às questões de gênero que atravessam o boxe, a
dança eletrônica e o basquete; por Hamburger (2021) e Reis (2021) quanto às
questões de raça que marcam o jongo; por Santos (2020) quanto às questões de
religião que influenciam o jiu-jítsu e por Irias (2020) e Reis (2020) quanto às
questões de classe que caracterizam o jogo de taco e o samba rock. Nessas
experiências curriculares, os estudantes examinaram os marcadores sociais da
diferença. Eles perceberam, nas situações descritas, como se constroem, se
afirmam ou são excluídas certas identidades. Problematizar esses elementos
permitiu-lhes compreender como operam as formas de regulação que normatizam os
sujeitos. Os documentos examinados dão a entender que discursos
discriminatórios veiculados durante as aulas não foram ignorados, pois
disseminaram concepções que favorecem os homens (Araujo, 2021; Gomes, 2021), os
brancos (Hamburger, 2021; Reis, 2021), os cristãos (Santos, 2020) e a burguesia
(Irias, 2020; Reis, 2020).
Após constatar
que os significados alusivos às práticas corporais disseminados pelas mídias
coadunam com as propensões neoliberais que impelem a relações de consumo e
performance, Monteiro (2020) e Neves (2021) propuseram a análise dos discursos
sobre as pessoas que dançam balé e k-pop; Quaresma (2020) examinou os
significados atribuídos aos lutadores de sumô e Souza (2020) problematizou os
significados atribuídos aos jogadores de futebol. Em todos os casos,
verifica-se a intenção deliberada de questionar a visão hegemônica, como bem
sinalizou Sousa Santos (2019). Afinal, é um equívoco supor que o preconceito e a
injustiça beneficiam algum setor da sociedade. As análises feitas permitem
inferir que a educação escolar pode desempenhar um papel fulcral na
democratização das relações. Uma experiência curricular que desconstrua o modo
como as diferenças são produzidas e ensine a apreciar que a equidade caminha em
direção à solidariedade, ideia bem mais inclusiva e transformadora (Neira,
2011).
A etnografia de
uma experiência curricular culturalmente orientada empreendida por Neves e
Neira (2020) permitiu-lhes averiguar que a aceitação de outros significados
atinentes às práticas corporais ou às pessoas que delas participam pode
acontecer desde o início da tematização, a depender do contato proporcionado
pelas situações didáticas. Portanto, é um erro pensar que modificações na
maneira de ver as coisas não possam ocorrer nos momentos de vivências corporais
ou com a participação de colegas. Tanto as atividades quanto os próprios
sujeitos poderão influenciar na desestabilização de uma certa representação.
Esse processo é perceptível na maioria das experiências relatadas: assim como
as meninas, os meninos vestiram saias para dançar carimbó (Bonetto, 2020); a
turma do 2º ano resolveu confeccionar os próprios cards após compreender que o custo era inacessível para muitos
(Bonetto, 2021); Carvalho (2020) reconsiderou sua compreensão sobre a dança do
passinho após conversar com os garotos do bairro; as turmas da Educação
Infantil e do 5º ano passaram a ver de outro modo a presença de mulheres nas
lutas (Godoy & Duarte, 2021; Irias, 2021); a turma da Educação de Jovens e
Adultos percebeu que todos poderiam participar da corrida de orientação
(Martins, 2020); as crianças compreenderam a relevância da cultura nordestina mediante
a tematização do forró (Masella et al., 2021); a turma do 6º ano percebeu que
não é necessário ser atleta para participar das corridas de rua (Neves, 2021) e
muitas pessoas da escola revisaram suas concepções sobre o funk e os funkeiros
e funkeiras (Torres et al., 2020).
Os documentos
analisados indicam que as situações didáticas culturalmente orientadas
propiciam o contato com muitas e diversificadas vozes, convocam a ver de um
outro modo. Ademais, o empenho para entender a maneira de pensar distinta permite
conhecer melhor a própria forma de ver as coisas do mundo. Sousa Santos (2010)
destaca o caráter epistêmico de uma pedagogia que promove encontros de
representações divergentes. Esse interconhecimento leva à compreensão de
saberes diferentes com bases próprias.
Como todo
conhecimento enfrenta outros modos de conhecer, trabalhar nas margens da
cultura apresenta o traduzir e o negociar constantes como demandas (Bhabha,
2014). Não é casual que Masella et al. (2021) tenham criado condições para que
as crianças da Educação Infantil dançassem forró conforme seus familiares
dançam; que Nascimento (2021) tenha solicitado às crianças que demonstrassem
como brincam nas suas casas; que Bonetto (2020), Müller & Müller (2020) e
Torres et al. (2020) estimularam as crianças a apresentar seus conhecimentos
para as outras turmas da escola; que Araujo (2021), Carvalho (2020), Gomes
(2021), Hamburger (2021), Monteiro (2020), Neves (2020) e Souza & Augusto
(2021) convidaram pessoas que praticam as manifestações estudadas para
partilhar seus saberes a respeito das manifestações estudadas. Nota-se que o
currículo culturalmente orientado da Educação Física evita encerrar o processo
de significação, muito pelo contrário: o que se constata nas experiências
relatadas é a abertura que leva à hibridização cultural.
Situações como
essas, que potencializam as vozes dos estudantes ou da comunidade, aproximam-se
do que Sousa Santos (2019) conceituou como pensamento pós-abissal. Enquanto o
pensamento abissal está lastreado no projeto científico moderno, que controla
populações inteiras ao redor do globo, o pensamento pós-abissal nada mais é do
que a expressão de epistemologias distintas, como uma ecologia de saberes.
O conhecimento
científico ocidental produzido no eixo Europa-Estados Unidos pode ser ampliado
com outras fontes. As experiências curriculares culturalmente orientadas
indicam que uma quantidade imensurável de saberes está à disposição em todos os
ambientes onde houver pessoas brincando, dançando, lutando, realizando esportes
ou ginásticas. Esses conhecimentos podem ser acessados, registrados e
partilhados durante as aulas. No decorrer da tematização do jongo (Reis, 2021),
as turmas do 9º ano visitaram uma comunidade jongueira em Guaratinguetá (SP); o
estudo da corrida (Neves, 2020) implicou uma visita à academia do bairro para
vivenciar o treinamento nas esteiras conduzido por um especialista; na
tematização do forró (Masella et al., 2021), as crianças visitaram um Centro de
Tradições Nordestinas e, na tematização da ginástica (Müller & Müller,
2020), as crianças realizaram vivências nos equipamentos do ginásio municipal.
Também se percebe
que, na perspectiva curricular cultural da Educação Física, os conhecimentos
mais triviais ou mais sofisticados são examinados de vários ângulos, com o
objetivo de romper significações estereotipadas. A pesquisa a respeito de
trajetórias históricas da prática corporal ganha sentido quando se entrecruza
com a visão dos próprios estudantes acostumados com sua existência no ambiente
familiar ou no bairro ou mesmo pelos meios de comunicação, incluindo as redes
sociais. Essa preocupação didática assemelha-se à pedagogia pós-abissal
defendida por Sousa Santos (2019) ao favorecer a manifestação e escuta das
pessoas acostumadas ao silêncio. Valorizar seus conhecimentos é o mesmo que
legitimar suas identidades culturais. A reunião dos saberes dos estudantes
cujas vidas possam estar marcadas pela manifestação corporal tematizada
facilita um tipo de contextualização não artificial, pouco comum nas escolas.
À época da
tematização do carimbó (Bonetto, 2020) a dança era encenada numa novela de
grande audiência; o passinho dos maloka (Carvalho, 2020) é bastante apreciado
pelos estudantes, assim como o funk (Gomes, 2021, Torres et al., 2020), as
danças eletrônicas (Monteiro, 2020) e o k-pop (Neves, 2021); nas turmas em que
o jiu-jítsu foi tematizado (Santos, 2020, Irias, 2021) havia meninos ou meninas
praticantes, o mesmo aconteceu com o jogo de taco (Irias, 2020), o forró
(Masella et al., 2021), a ginástica (Müller & Müller, 2020), o futebol
(Masella & Duarte, 2020, Souza, 2020), o basquetebol (Souza & Augusto,
2021) e, principalmente, as brincadeiras (Bonetto, 2021, Nascimento, 2021). A
todo momento e de inúmeras maneiras, os saberes dessas crianças e jovens alimentaram
o processo pedagógico. Vez por outra, representações foram problematizadas e
discursos pejorativos tiveram de ser desconstruídos. Interessante notar que a
discriminação se dirigiu aos próprios colegas, tamanha a naturalização de
narrativas preconceituosas com relação a certas práticas corporais e seus
participantes. Levando em conta a quantidade de relatos analisados, não foram
poucos os episódios. A maioria dos professores-autores aproveitou o
acontecimento para propor uma investigação de como e onde surgiram as
representações anunciadas ou de quais setores provinham os discursos
proferidos. Isso levou à mobilização de saberes de todos os tipos, o que fez
ampliar e diversificar ainda mais os conhecimentos postos em circulação nas
experiências curriculares relatadas.
Considerações
finais
Diante da
imprevisibilidade dos conhecimentos acessados pelos estudantes, as experiências
com o currículo cultural da Educação Física se mostraram produtivas de
subjetividades contrárias ao pensamento conservador hegemônico, que só faz
perpetuar a injustiça social. O docente costuma registrar o que acontece ao
longo das vivências corporais, principalmente das representações veiculadas e
dos discursos proferidos, planeja atividades de problematização e desconstrução,
viabilizando o contato das turmas com conhecimentos de origens distintas. Um
episódio narrado por uma criança ou o conteúdo de um site ou texto selecionados
pelo professor recebem atenção semelhante àquela destinada aos conceitos
acadêmicos.
O presente estudo
apresenta três contribuições ao acúmulo de conhecimentos sobre o currículo
cultural da Educação Física: 1) ao contrário do que se supunha até então, a
cultura corporal dominante não é substituída pela cultura corporal da
comunidade, sequer menospreza o lugar que a escola ocupa na facilitação do
acesso aos conhecimentos científicos; 2) Observou-se, no entanto, que os
conhecimentos concernentes às brincadeiras, danças, lutas, esportes e
ginásticas, anunciados pelos grupos minoritários recebem tratamento semelhante
aos saberes hegemônicos e 3) a cultura dominante também é submetida ao crivo
dos significados dos estudantes, sem que isso signifique reduzir sua
importância ou tomar as práticas corporais cultivadas pelos segmentos
favorecidos como ações conspiratórias contra os setores populares. Basta
verificar a experiência de tematização do balé (Gomes, 2021), das corridas
(Neves, 2020), do futebol (Masella & Duarte, 2020; Souza, 2020) e do
basquetebol (Souza & Augusto, 2021). As origens elitistas dessas manifestações
foram discutidas sem qualquer conotação negativa.
Enfim, a
perspectiva cultural, como se viu, busca estabelecer um diálogo entre saberes
privilegiados e desprivilegiados. Abordados seriamente no currículo, quando os
conhecimentos minoritários se entretecem aos majoritários, torna-se possível
vislumbrar um desenho social mais justo, baseado no princípio da afirmação das
diferenças e na compreensão dos mecanismos que as produzem e reproduzem.
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