Quando a
queixa é Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade
Cuando la queja es Trastorno por Déficit de Atención e
Hiperactividad
When the complaint is Attention
Deficit Hyperactivity Disorder
Maria Lidia
Sica Szymanski[i]
Universidade Estadual do Oeste do Paraná
Cascavel, PR, Brasil
https://orcid.org/0000-0003-1641-8527
Andrise Teixeira[ii]
Universidade Estadual do Oeste do Paraná
Cascavel, PR, Brasil
https://orcid.org/0000-0001-6135-453X
As
autoras contribuíram igualmente na elaboração do manuscrito.
Recebido em: 30/09/2021
Aceito em: 17/02/2022
Publicado
em: 23/02/2022
Linhas
Críticas |
Periódico científico da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília,
Brasil
ISSN:
1516-4896 | e-ISSN: 1981-0431
Volume
28, 2022 (jan-dez).
http://periodicos.unb.br/index.php/linhascriticas
Referência completa (APA):
Szymanski, M. L. S., & Teixeira, A.
(2022). Quando a queixa é Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade. Linhas
Críticas, 28, e40200. https://doi.org/10.26512/lc28202240200
Link
alternativo:
https://periodicos.unb.br/index.php/linhascriticas/article/view/40200
Licença Creative Commons CC BY 4.0.
Resumo: O
Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) emerge como justificativa
para problemas na escolarização, sendo muitas vezes resultado de uma avaliação
rápida e superficial. Diante disso, neste estudo, investigou-se a variação no
número de laudos de TDAH, entre 2015 e 2020, em escolas públicas,
constatando-se um aumento de 594%. Questiona-se a concepção biologizante do
TDAH, cuja consequência é a medicalização. Propõe-se o desenvolvimento da
atenção e do controle voluntário do comportamento no conjunto das funções
psicológicas. Aponta-se a importância de um planejamento fundamentado na
concepção histórico-cultural e a premência de investimento público na
qualificação docente.
Palavras-chave: Processos
de ensino e de aprendizagem. Medicalização. Transtorno de Déficit de Atenção e
Hiperatividade. Educação Especial.
Resumen: El Trastorno por Déficit de Atención con
Hiperactividad (TDAH) surge como justificación de los problemas en la escolarización,
siendo muchas veces el resultado de una evaluación rápida y superficial. Se
investigó la variación en el número de reportes de TDAH, entre 2015 y 2020, en
escuelas públicas, observándose un aumento del 594%. Se cuestiona la concepción
biológica del TDAH, cuya consecuencia es la medicalización. Se propone el
desarrollo de la atención y el control voluntario de la conducta en el conjunto
de funciones psicológicas. Se destaca la importancia de la planificación basada
en la teoría histórico-cultural, así como la urgencia de la inversión pública
en la formación docente.
Palabras
clave: Procesos de enseñanza y aprendizaje. Medicalización. Trastorno por
Déficit de Atención e Hiperactividad. Educación especial.
Abstract: The Attention Deficit Hyperactivity Disorder (ADHD)
emerges as a justification for problems in schooling, often resulting from a
quick and superficial evaluation. The variation in the number of ADHD reports
between 2015 and 2020 in public schools was investigated, showing an increase of
594%. The biologizing conception of ADHD is questioned, the consequence of
which is medicalization. It proposes the development of attention and voluntary
control of behavior in the set of psychological functions. The importance of
planning based on the cultural-historical conception is pointed out, as well as
the urgency of public investment in teacher qualification.
Keywords: Teaching
and learning processes. Medicalization. Attention Deficit Hyperactivity
Disorder. Special Education.
As constantes
queixas dos professores com relação à atenção e à indisciplina no Ensino
Fundamental e no Ensino Médio revelam que é comum os docentes encaminharem
alunos ao serviço médico, descrevendo comportamentos tais como agitação em
demasia, incapacidade de manter a atenção e dificuldade de autorregulação.
Desses encaminhamentos resultam, na maioria dos casos, os laudos de Transtorno
do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH).
Tal diagnóstico,
contudo, tem sido realizado e descrito sem levar em conta as barreiras
culturais e sociais que permeiam a regulação da atenção, além de desconsiderar
o desenvolvimento do indivíduo e de suas funções psicológicas superiores (FPS),
em sua totalidade (Caliman, 2008). Aquilo que, até a
última década do século XX, era, salvo raras exceções,
considerado como uma desordem passageira e infantil, agora é classificado como
Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), transtorno
psiquiátrico que pode constituir-se em um rótulo por toda a vida (Caliman & Domitrovic, 2013).
Há controvérsias
na análise dessa questão, as quais se fundamentam na concepção de homem, de mundo
e de sociedade. Destaca-se, portanto, a importância de reflexões e de pesquisas
sobre esse tema, o qual, além de suas consequências pedagógicas, tem impactos
sociais e econômicos.
A educação da
pessoa com deficiência no Brasil foi marcada, até o século XX, pela negação do
acesso a qualquer forma de ensino escolar sistematizado e, posteriormente, pelo
atendimento assistencialista em serviços segregados, organizados de forma
substitutiva ao ensino comum (Capellini & Mendes,
2007). A superação desse processo de escolarização excludente, que feria os
preceitos constitucionais, ocorreu a partir da luta contra concepções
hegemônicas tradicionais, pautadas na compreensão do desenvolvimento psíquico
com ênfase no aspecto biológico.
A partir da
década de noventa do século passado, acompanhando o movimento internacional da
inclusão, que “[…] tem como preceitos o direito de todos frequentarem a escola
regular e a valorização da diversidade” (Alves & Guareschi,
2012, p. 33), começou a tomar corpo no Brasil a preocupação com práticas
inclusivas (Mendes et al., 2011). Paralelamente a isso, a interpretação
neurológica do transtorno tornou-se amplamente aceita e o mundo presenciou uma
explosão publicitária sobre o TDAH e sua medicalização (Eidt
& Tuleski, 2010), bem como a exacerbação desse
tipo de queixa docente.
Na contramão
dessa perspectiva, estudos fundamentados na Teoria Histórico-Cultural buscaram
questionar a perspectiva neurobiológica, ancorados na compreensão de que as
leis sócio-históricas são mais determinantes no desenvolvimento humano do que
as leis biológicas, dada a plasticidade do sistema neurológico e a forma como
ocorre o processo de aprendizagem, o qual determina esse desenvolvimento
(Leontiev, 1978).
No limiar da
terceira década do século XXI, cerca de quatro décadas se passaram desde a
explosão publicitária do TDAH. Muitas pesquisas foram desenvolvidas, ora
defendendo a perspectiva neurobiológica, ora criticando-a e propondo uma
compreensão prioritariamente pedagógica da questão[3].
Do ponto de vista
legal, as Diretrizes Operacionais para o Atendimento Educacional Especializado
(AEE) em âmbito nacional foram regulamentadas pela Resolução n.º 04/2009
(Brasil, 2009, p. 1), a qual lhe atribui como finalidade “[…] complementar ou
suplementar a formação do aluno por meio da disponibilização de serviços,
recursos de acessibilidade e estratégias que eliminem as barreiras para sua
plena participação na sociedade e desenvolvimento de sua aprendizagem”.
Ressalta-se que o Art. 4º da Resolução
n.º 04/2009 (Brasil, 2009) exclui os alunos diagnosticados com transtornos
funcionais específicos, dentre eles o TDAH e outros, anteriormente considerados
pela Resolução n.º 02/2001 (Brasil, 2001) como sujeitos de direito ao AEE.
Contudo, no Estado do Paraná, a Deliberação n.º 02/2016 (Paraná, 2016) e a
Instrução n.º 09/2018 (Paraná, 2018a) fixaram normas ao atendimento a
estudantes público da Educação Especial, incluindo os alunos diagnosticados com
TDAH, em Salas de Recursos Multifuncionais (SRM).
A “[…] literatura aponta que cabe ao
professor a função de ser um auxiliador para o diagnóstico de possíveis
transtornos que interferem na aprendizagem, sendo um deles o TDAH” (Santos,
2019, p. 9). Como hipótese, supõe-se que, se o professor encaminha os alunos
para avaliação com suspeita de TDAH, é porque ele espera uma ajuda clínica para
lidar com essa situação, na maioria das vezes medicamentosa, haja vista a
explosão na venda de medicamentos tendo como componente básico o metilfenidato.
O levantamento realizado em drogarias no Brasil, no período de 2007 a 2012,
“[…] comprovou que o crescimento foi de 50% nas vendas em quatro anos, entre
setembro de 2007 e outubro de 2008 foram vendidas 1.238.064 caixas, e entre
setembro de 2011 e outubro de 2012 1.853.930 caixas” (Andrade et al., 2018, p.
109).
Por outro lado, se a ênfase é colocada no
aspecto clínico, significa que não se está atribuindo a necessária importância
ao aspecto pedagógico no trato com essa questão. Dessa forma, justifica-se esta
pesquisa, que busca refletir sobre as alternativas atuais para a compreensão
desse dito transtorno. Dois são os objetivos centrais deste estudo: (i)
quantificar a variação no número de matrículas de alunos diagnosticados com
TDAH, na rede pública estadual de ensino, no período de 2015 a 2020, por meio
da análise dos dados Sistema de Registro Escolar (SERE-PR); (ii) investigar em qual material o professor da Educação
Especial se apoia para planejar e organizar seu trabalho com o estudante com
indicativo de TDAH.
Nesse sentido,
inicialmente, apresenta-se brevemente a concepção biologizante, a qual muitas
vezes fundamenta a queixa de TDAH para, em seguida, questioná-la com base na
Teoria Histórico-Cultural.
A seguir,
destacam-se os dados de uma pesquisa de campo, objetivando verificar em que medida
a queixa docente referente ao TDAH ainda subsiste e como tem evoluído a
matrícula de alunos com esse indicativo nos últimos cinco anos.
Posteriormente, a
partir da avaliação individual e da orientação elaborada pela equipe pedagógica
especializada que atua no Núcleo Regional de Ensino de Cascavel (PR), relativa
aos alunos indicados pelo professor com suspeita de TDAH, investiga-se como
essa avaliação tem sido acolhida pelos professores da rede pública estadual e
em que medida o professor a utiliza para organizar seu planejamento e
consequentemente o trabalho pedagógico.
Por fim, à luz
dos resultados da pesquisa de campo, são tecidas reflexões sobre as
consequências pedagógicas das noções analisadas, retomando-se a problematização
inicial, ou seja, qual das duas concepções que circulam na escola e na academia
tem fundamentado a atividade de ensino do professor.
Divergências teóricas: a concepção naturalizante
Na concepção naturalizante, o TDAH, assim como outros distúrbios, é
compreendido como um transtorno mental cujas causas teriam origem biológica e
se manifestaria logo na Educação Infantil e perduraria por toda a vida,
requerendo uma abordagem psiquiátrica. Conforme o Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais - DSM-5 - (American Psychiatric Association, 2014, p. 32, grifos nossos):
O TDAH é um transtorno do neurodesenvolvimento definido por níveis
prejudiciais de desatenção, desorganização e/ou hiperatividade-impulsividade.
Desatenção e desorganização envolvem incapacidade
de permanecer em uma tarefa, aparência de não ouvir e perda de materiais em
níveis inconsistentes com a idade ou o nível de desenvolvimento.
Hiperatividade-impulsividade implicam atividade excessiva, inquietação, incapacidade de permanecer sentado, intromissão em atividades
de outros e incapacidade
de aguardar – sintomas que são excessivos para a idade ou o nível de
desenvolvimento. Na infância, o TDAH frequentemente se sobrepõe a transtornos
em geral considerados “de externalização”, tais como o transtorno de oposição
desafiante e o transtorno da conduta. O TDAH costuma persistir na vida adulta,
resultando em prejuízos no funcionamento social, acadêmico e profissional.
Verifica-se que
essa definição apresenta uma descrição de sintomas observáveis, citando, várias
vezes, o termo. O dicionário eletrônico da Língua Portuguesa define como
sinônimos de capacidade as palavras propensão, predisposição, tendência, inclinação, aptidão e vocação, termos que
sugerem algo a priori, de nascença
(Dicionário Online de Português, 2022).
De acordo com
essa concepção, a criança que apresenta comportamentos indesejados, tais como
acentuada agitação e/ou desatenção, estaria com um distúrbio uma vez que o normal seria que ela, na escola, seguisse as orientações docentes. Assim, a queixa
envolvendo esses distúrbios justificaria o encaminhamento a centros
especializados de psicologia e neurologia pediátrica.
É interessante
verificar, ainda, a orientação do DSM-5 referente ao “diagnóstico” (American Psychiatric Association, 2014, p.
22, grifos nossos):
Um
transtorno mental é uma síndrome caracterizada por perturbação clinicamente
significativa na cognição, na regulação emocional ou no comportamento de um
indivíduo que reflete uma disfunção nos processos psicológicos, biológicos ou
de desenvolvimento subjacentes ao funcionamento mental. Transtornos mentais
estão frequentemente associados a sofrimento ou incapacidade significativos que
afetam atividades sociais, profissionais ou outras atividades importantes. Uma
resposta esperada ou aprovada culturalmente a um estressor ou perda comum, como
a morte de um ente querido, não
constitui transtorno mental. Desvios sociais de comportamento (p. ex., de
natureza política, religiosa ou sexual) e conflitos
que são basicamente referentes ao indivíduo e à sociedade não são transtornos
mentais a menos que o desvio ou conflito seja o resultado de uma disfunção
no indivíduo, conforme descrito.
A definição de
transtorno, na perspectiva médica, de acordo com a orientação do DSM-5, deixa
claro que os “conflitos que são basicamente referentes ao indivíduo e à
sociedade não são considerados transtornos mentais”. Portanto, só são assim
considerados aqueles comportamentos cuja causa é biológica.
Entende-se essa
perspectiva como idealista, uma vez que envolve uma compreensão abstrata do
psiquismo humano, à margem de determinações sociais e econômicas. Nessa
premissa, o que foge à norma ou à concepção hegemônica de normalidade é visto
como disfunção individual, decorrente do mau funcionamento orgânico. Em outras
palavras, desvia-se a atenção dos problemas de ordem histórico-sociais que
interferem no processo de escolarização e, como consequência, passa-se a
acreditar que os fármacos podem dirimi-los.
Na concepção inatista, o desenvolvimento
humano é entendido como amadurecimento orgânico que ocorre “[…]
independentemente do contexto, do meio social e das relações em que a criança
está inserida, [o que] opõe-se radicalmente à concepção de desenvolvimento e
aprendizagem na abordagem da Psicologia Histórico-Cultural” (Eidt & Tuleski, 2010, p.
139).
No contexto escolar, o TDAH vem sendo
utilizado como justificativa para problemas como repetência e fracasso escolar,
os quais, na verdade, revelam dificuldades na apropriação dos conceitos
científicos por inúmeras possíveis causas. O indivíduo é, desse modo
estigmatizado como anormal, e, por meio de justificativas que desconsideram o
social, tenta-se afirmar a patologia, o que, como consequência, acarreta a
medicalização.
Moysés e Collares
(2010) introduzem o termo patologização como um neologismo derivado de pathos, ou seja, doença, que transforma em
doença física/biológica algo que tem origem social. Assim, como “doente”, o
aluno precisa ser medicado, pois a medicalização é o recurso
clínico para uma pretensa remissão do sintoma.
A grande maioria dos profissionais da
saúde que medicam desconhece o contexto escolar e não tem a compreensão do quanto
o fracasso e/ou o sucesso no processo de aprendizagem são determinados por
mecanismos institucionais, políticos, e pode-se acrescentar até por questões
que envolvem o próprio relacionamento professor-aluno-classe (Eidt & Tuleski, 2010).
As concepções de infância, de
desenvolvimento do psiquismo e de aprendizagem, com ênfase no aspecto biológico
e inato, levam os professores a recorrerem aos serviços de saúde para buscar
diagnósticos médicos e medicamentos que controlam o comportamento discente por
meio de remédios, mas sem tentar compreender “[…] as tramas sociais que
corrompem e desumanizam a infância” (Luengo, 2010, p. 58).
A concepção histórico-cultural: atenção e
regulação do comportamento como funções psicológicas superiores
A Teoria Histórico-Cultural, que tem como
seus principais representantes Lev Semionovitch Vigotski (1896-1934), Alexander Romanovich
Luria (1902-1977) e Alexei Leontiev (1903-1979), em oposição à concepção
inatista, compreende que o homem se constitui em suas relações sociais, logo,
não nasce humano.
O processo de produção desse homem não
ocorre genética ou hereditariamente, embora se apoie em uma base biológica.
Trata-se de uma relação dialética que passa pela apropriação do conhecimento
que possibilita ao ser humano, ao se apropriar da cultura, ser por ela
produzido e produzir a sua própria história. Constitui-se em um processo que
depende fundamentalmente de outro humano que o ensine e das possibilidades
decorrentes das relações sociais:
O psiquismo é determinado pela vida real
das pessoas, ou seja, por sua atividade no interior de uma determinada classe
social, em um tempo histórico específico. As relações sociais se estruturam, se
organizam e se mantêm sobre a base das relações de produção e reprodução das
condições materiais da existência. (Eidt & Tuleski, 2010, p. 131)
Em outras palavras, de acordo com as
condições e as relações sociais vivenciadas, cada homem apropria-se das formas
de utilizar os instrumentos materiais que circulam em seu contexto, na medida
em que executa as atividades necessárias que constituem a sua vida. Ainda,
nesse processo, cada homem apodera-se gradativamente dos conceitos e das
palavras que medeiam esses procedimentos. Tais signos, denominados instrumentos
psicológicos, compõem o seu vocabulário e lhe permitem, não apenas expressar
suas ideias, mas também se comunicar, pensar sobre objetos e situações
distantes, no tempo e no espaço (Vigotski, 1995), e,
consequentemente, autorregular seu comportamento.
Assim, as possibilidades infantis de
representação do mundo no pensamento dependem dos conceitos - signos e
significados – apropriados pela criança. E nesse processo, ao dominar os
conhecimentos e técnicas que a humanidade vem produzindo historicamente, a
criança vai se humanizando e internalizando as formas materiais de desenvolver
as atividades que circulam em seu contexto, regulando sua conduta. Conforme
alguém lhe ensina, aprende como fazer as atividades de seu grupo social.
Ao passo que esses mediadores - os signos
- são internalizados, adquirindo um significado para a criança, a linguagem é
desenvolvida e o pensamento vai se constituindo, auxiliando diretamente na
formação das Funções Psicológicas Superiores (FPSs)
eminentemente humanas. A linguagem, nesse sentido, atuará como mediadora na
relação do homem com os objetos e com as outras pessoas, permitindo à criança
maior consciência e ampliando suas possibilidades de se planejar e de se
autorregular.
Nesse entendimento, é importante
compreender que a criança internaliza aquilo circula ao seu redor, pois é na
relação social, no coletivo, que se constitui sua subjetividade, ou seja, as FPSs só se tornam intrapsíquicas a partir de relações interpsíquicas. No que e como prestar atenção é, desse
modo, um processo aprendido, não de forma isolada, mas articulado ao que o ser
percebe do mundo, o que memoriza, o que e como se expressa, e o que pensa, com
base nas informações e nos conceitos que se apropriou em suas relações. Dessa
forma, essa criança, nas interações sociais, apodera-se da cultura e
humaniza-se gradativamente.
A autorregulação da atenção é uma função
psíquica que decorre do desenvolvimento da consciência, a qual corresponde à
verificação do resultado das ações e das operações que a atividade envolve, em
função de suas necessidades, de seus objetivos e da produção das correções e
desvios necessários. Para Silva e Loos-Sant’Ana
(2017, p. 476), a função psicológica:
[…] passa por um longo e irregular
processo de transformação, em que estruturas externas (culturais/simbólicas) de
apoio se convertem em estruturas internas e do funcionamento psicológico; a
linguagem (conjunto de signos construído cultural e socialmente) adquire papel
central no desenvolvimento das capacidades autorreguladoras; as mudanças
dependem de um processo de desenvolvimento profundamente enraizado nas relações
entre história individual e história social.
Por ser resultado de um complexo processo
histórico-social, orientado pela interação com o outro, em diferentes
atividades, o desenvolvimento da autorregulação exige a importante contribuição
do processo de escolarização, o qual organiza pedagogicamente a aprendizagem e
promove o desenvolvimento infantil, uma vez que a criança, ao aprender, está se
desenvolvendo.
Nessa
perspectiva, o professor tem um papel fundamental na
apropriação discente de comportamentos culturais e dos conceitos científicos
ensinados no âmbito escolar. Essa compreensão é crucial, pois possibilita o
enfrentamento das concepções naturalísticas e biologizantes, as quais, diante
de problemas ou dificuldades na aprendizagem de conteúdos escolares, enfatizam
os comportamentos em aspectos neuronais e propõem soluções que legitimam a patologização e a medicalização na escola.
Para a Teoria Histórico-Cultural, que se
contrapõe à concepção idealista de desenvolvimento humano, as FPSs, das quais faz parte o controle voluntário do
comportamento e da atenção, não são processos endógenos que acontecem
internamente e de forma espontânea, mas sim dependem fundamentalmente da apropriação
dos signos da cultura, possibilitada pela constante mediação de outros homens.
Dessa maneira, quando se entende que o
processo de humanização ocorre na relação partícipe da criança em seu contexto
histórico e cultural, mediante a apropriação das objetivações produzidas
historicamente pela humanidade (instrumentos e signos), e que depende mais
dessas do que da própria herança genética para se desenvolver, é necessário
ressignificar a concepção de atenção. Consequentemente, o fenômeno do TDAH, na
atualidade, precisa ser reconfigurado, requerendo novos estudos, análises e
compreensões.
Como Eidt e Tuleski (2010) alertam, é preciso compreender o fenômeno do
TDAH, não a partir das funções psicológicas elementares, comuns aos homens e
animais, mas sim a partir das FPSs, que se
desenvolvem pela apropriação da cultura humana. Nesse ponto, o professor tem
papel fundamental, pois é principalmente a partir dele e de sua atuação como
agente mediador que ocorre essa apropriação.
Há, desse modo, divergências conceituais
entre as duas posturas apresentadas: a concepção biologizante e a concepção
proposta pela Teoria Histórico-Cultural. E o número de crianças diagnosticadas
e consequentemente medicalizadas depende de qual das
duas concepções orienta o trabalho docente.
A disseminação dos diagnósticos de TDAH
Mesmo diante de tantas discordâncias em torno do tema, Eidt e Ferracioli (2007, p. 95)
afirmavam, em 2007, que “[…] as pesquisas demonstram o crescimento desenfreado
do número de supostos portadores do quadro em questão […]”, e três anos depois,
Eidt e Tuleski (2010, p.
130) apontavam que os diagnósticos de TDAH vinham atingindo “proporções
epidêmicas”.
Passada mais uma década, nesta pesquisa,
objetiva-se refletir sobre os impactos gerados pelos avanços das discussões
acadêmicas fundamentadas na concepção histórico-cultural sobre as fragilidades
no conceito de TDAH, a partir da investigação acerca da variação no número de
alunos com laudo de TDAH e do procedimento do docente da SRM para o
planejamento de seu trabalho.
Para responder a essas questões,
desenvolveu-se uma pesquisa de campo, tomando-se como base o município de
Cascavel (PR), com a compreensão de que, ao se analisar o que ocorre em uma
dada cidade, os dados podem representar uma parte significativa do todo da
realidade paranaense e quiçá brasileira.
Metodologia
A pesquisa de campo foi submetida ao
Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos (CEP) da Universidade Estadual do
Oeste do Paraná (Unioeste), sendo aprovada pelo
parecer 3.359.602. Trata-se de um estudo qualitativo e exploratório centrado em
dois objetivos: (i) quantificar a variação no número de matrículas de alunos
diagnosticados com TDAH, na rede pública estadual de ensino, no período de 2015
a 2020, por meio da análise dos dados Sistema de Registro Escolar (SERE-PR); (ii) investigar em qual material o professor da Educação
Especial se apoia para planejar e organizar seu trabalho com o estudante com
indicativo de TDAH.
Inicialmente, por meio de consulta on-line no SERE-PR, identificaram-se os
alunos matriculados na SEM, no ano de 2020, em cada instituição de ensino do
Núcleo Regional de Cascavel (PR), que abrange 18 municípios. Entretanto, esse
relatório não especificava qual a queixa relativa a cada aluno. Assim, foi necessária
uma segunda consulta ao histórico individual de matrícula do estudante, na qual
se considerou como sujeitos aqueles cujo histórico constavam indicativos de
TDAH, além de se identificar a partir de qual ano o estudante passou a
frequentar o atendimento na SRM. Os dados coletados foram tabulados,
quantificando-se o número de matrículas nos anos de 2015 a 2020.
Os demais dados foram colhidos por meio
de entrevistas semiestruturadas, com gravação em áudio e posterior transcrição
do conteúdo, envolvendo 27% das escolas do município de Cascavel (PR) da rede
pública estadual, com professores de Educação Especial atuando nas SRM. Foram
selecionadas 10 escolas estaduais, duas de cada região do referido município,
sendo a com maior e a com menor nota no Índice de Desenvolvimento de Educação
Básica (IDEB).
O roteiro para a entrevista
semiestruturada envolveu questões iniciais voltadas à formação docente, tempo
de atuação e experiência profissional em outros níveis de ensino, além de
indagações voltadas ao processo pedagógico envolvendo os estudantes com TDAH. A
pergunta selecionada para a produção deste artigo referia-se ao procedimento
docente para planejar, solicitando-se aos professores que descrevessem como
conduziam o trabalho com esses alunos.
Com relação à formação dos 11 professores
de Educação Especial que participaram deste estudo, constatou-se que: 55% são
graduados em Pedagogia e os demais graduaram-se em Letras (9%), em História
(9%), em Matemática (9%) e em Ciências Biológicas (18%), e realizaram cursos de
pós-graduação em áreas específicas da Educação Especial (Brasil, 2001). Quanto
ao tempo de atuação, observa-se que eram professores experientes, pois 90,7%
contavam com mais de cinco anos de atuação docente.
Resultados
O Gráfico 1 sintetiza os dados
encontrados:
Gráfico 1
Número de alunos matriculados no AEE na rede
estadual de Cascavel (PR) com laudo de TDAH entre os anos de 2015 e 2020 na
rede estadual ou no Núcleo Regional de Ensino
Fonte: Elaborado
a partir dos dados coletados pelas autoras.
Pode-se considerar que, em 2016, a partir
da publicação da Deliberação n.º 02/2016 (Paraná, 2016), houve um aumento de
75% no número de matrículas de estudantes com laudo de TDAH em relação a 2015.
A curva manteve-se ascendente e em crescimento até o ano de 2019, quando, em
uma comparação a 2016, constatou-se uma diferença no número dessas matrículas
de 594%. Até a data da coleta de dados, cinco alunos que frequentaram o
atendimento na Sala de Recursos, no ano de 2019, ainda não tinham suas matrículas
efetivadas em 2020 para esse atendimento, e, em decorrência da pandemia da
covid-19, as matrículas foram suspensas.
Os dados coletados evidenciam que o
caminho da patologização escolar é ainda muito
utilizado para justificar os problemas na aprendizagem de conteúdos escolares,
o que é comprovado pelo aumento expressivo no número de estudantes matriculados
na SRM com diagnóstico de TDAH. Mediante o aumento exacerbado no número de
matrículas constatado, questionou-se a forma como os professores de Educação
Especial que participaram do estudo conduziam o trabalho pedagógico com os
estudantes na SRM.
Desde o ano de 2003, o Núcleo Regional de
Educação, que coordena as ações pedagógicas das escolas públicas da rede
estadual no Paraná, em uma área geográfica envolvendo 18 municípios, mantém um
setor responsável pelo acolhimento das queixas docentes relacionadas ao TDAH,
entre outras, denominado Centro Regional de Apoio Pedagógico Especializado
(CRAPE).
No início, o CRAPE avaliava os alunos com
problemas no processo de escolarização, classificando-os conforme seu
funcionamento psicológico e pedagógico, com fundamento no modelo clínico (Pelizzetti & Carvalho, 2007). Não obstante a isso,
ao longo de sua história, esse processo avaliativo sofreu
significativas transformações. Atualmente, inicia-se no contexto escolar,
etapa indispensável ao papel do CRAPE, que tem como uma das funções
a complementação do processo de avaliação no contexto escolar com a
participação de uma equipe multiprofissional composta por professoras
especialistas em Educação Especial e Psicólogas.
Ao término dessa avaliação, a equipe a
envia aos docentes que atuam nas escolas e haviam encaminhado seus alunos,
juntamente com orientações para a elaboração dos Planos de Atendimento
Educacional Especializado (PAEE) de cada aluno.
Para analisar como os professores de
Educação Especial que participaram do estudo conduzem o trabalho pedagógico com
os estudantes na SRM, tomou-se como base o procedimento por eles utilizado para
encaminhar o processo de ensino, a partir da devolutiva da avaliação psicoeducacional realizada pelo CRAPE, uma vez que a
intencionalidade no processo pedagógico é considerada de fundamental
importância na perspectiva da Teoria Histórico-Cultural. Os resultados
expressam-se no Gráfico 2, a seguir:
Gráfico 2
Estratégias metodológicas adotadas no
trabalho com estudantes com TDAH
Fonte: Elaborado a
partir dos dados coletados pelas autoras.
Constatou-se que 40% dos professores apoiam-se no PAEE para
encaminhamento do processo de ensino, por eles elaborado, a partir das
informações que dispõem sobre o aluno e das fornecidas pelo CRAPE, envolvendo
as ações e os recursos necessários ao processo de aprendizagem dos estudantes
com TDAH.
Muitos professores de Educação Especial (40%) afirmaram planejar seu
trabalho a partir das defasagens e das dificuldades de aprendizagem de
conteúdos escolares que são recorrentes nos alunos de modo genérico. Trata-se
de uma abordagem mais voltada a cumprir a tarefa de trabalhar os conteúdos, uma
vez que esses professores não estão levando em conta o trabalho diagnóstico
empregado na avaliação no contexto escolar.
Verificou-se, ainda, que 20% dos
professores apoiam o processo pedagógico em recursos diferenciados, como jogos
e atividades para colorir. Suas respostas, descoladas dos aspectos pedagógicos
e dos objetivos do trabalho docente, parecem revelar um descompromisso com a
função básica da escola, que seria a transmissão dos conhecimentos científicos.
Análise e discussão dos resultados
Os professores (40%) que relataram
desenvolver suas atividades docentes a partir do PAEE elencam nesse documento
os encaminhamentos metodológicos que possibilitam o desenvolvimento da atenção,
os quais decorrem basicamente desse processo de avaliação pedagógica, no qual
se evidenciam as necessidades dos estudantes, elementos essenciais à elaboração
PAEE, orientando a eficiência do trabalho a ser realizado na SRM.
Entende-se, à luz da Teoria
Histórico-Cultural, que a atenção é uma função psicológica decorrente do
processo de desenvolvimento humano, assim, depende circunstancialmente da
qualidade do processo educativo e do planejamento de tarefas específicas
direcionadas a esse fim. Nessa perspectiva, entende-se a relevância do PAEE
como instrumento orientador do trabalho docente com os estudantes com TDAH.
É imperioso considerar que à escola e aos
professores cabe possibilitar condições para que os estudantes possam
desenvolver “[…] cada vez mais a consciência e o controle do seu próprio
comportamento, de tal forma que possam se propor, de modo intencional e
deliberado, a focalizarem a atenção no processo de apropriação dos conteúdos
escolares” (Meira, 2019, p. 230).
Nesse sentido, em entrevista, uma das
professoras pontuou: “[…] quando nós recebemos a devolutiva que ele necessita
de Sala de Recursos, nós primeiramente vamos avaliar esse aluno, conhecer e
fazer o plano de atendimento individual, onde nós temos que verificar quais as defasagens
no conteúdo, o que precisa” (PSRM-01[4]).
Essa ideia é reforçada em outros
depoimentos de profissionais especialistas que atuam na SRM: “[…] nesse plano
de atendimento eu sempre abordo […] os conteúdos a serem trabalhados durante o
ano letivo de acordo com o relatório pedagógico da avaliação do aluno e de
acordo com a análise que a gente faz” (PSRM-02); “[…] primeiro é conhecer a
parte documental, ir até a secretaria conhecer o que tem de documento do aluno,
avaliações, pareceres médicos, para assim poder montar o plano de atendimento
dele […]” (PSRM-05).
A elaboração do PAEE constitui uma das
atribuições inerentes à função de professor de Educação Especial e norteia a
sua atuação conforme a Instrução n.º 09/2018 (Paraná, 2018a), pressupondo a
participação de todos envolvidos com o estudante: professores do ensino comum e
Educação Especial, equipe pedagógica escolar e profissionais clínicos. Nele
constam informações sobre o estudante, especificam-se suas necessidades de
flexibilização curricular e organiza-se o trabalho colaborativo.
A avaliação e o trabalho colaborativo
entre os profissionais são os elementos essenciais que possibilitam planejar e
replanejar as ações pedagógicas (Paraná, 2018a; 2018b). Nesse sentido, as
professoras especialistas comentam: “[…] a gente faz todo um trabalho baseado
nesse plano de trabalho, que ao longo do tempo e do ano a gente vai
reorganizando conforme a necessidade” (SPSRM-02); “tudo nesse plano vai
modificando conforme o ano, de repente esse aluno vai superando nós vamos
avançando ou de repente tem que retomar” (SPSRM-01).
Nos Conselhos de Classe, os professores
de Educação Especial apresentam os resultados obtidos com relação aos objetivos
propostos no PAEE, e, a partir das sugestões apresentadas, replanejam-se as
ações necessárias para o próximo período letivo (Paraná, 2018a; 2018b).
Na pesquisa, constatou-se que há
professores de Educação Especial (40%) que planejam seu trabalho a partir das
defasagens e dificuldades de aprendizagem de conteúdos escolares que observam
no aluno; contudo, eles não discutem o planejamento sistematizado das
atividades que seriam desenvolvidas na SRM com os outros professores que
atendem o estudante. Considera-se indispensável a articulação entre os
profissionais de ensino que trabalham com o estudante com deficiência/NEE na
SRM (Honnef, 2018; Szymanski
& Teixeira, 2021), pois é somente nesse coletivo que ocorre o fortalecimento do
trabalho voltado ao desenvolvimento psicointelectual
desse discente.
Outra vertente detectada no trabalho com
os alunos que têm indicativos de TDAH apoia-se em recursos diferenciados, tais
como jogos e atividades para colorir (20%), conforme pontua uma das
professoras: “a gente joga algum jogo, […] quaisquer jogos que ajuda eles eu
faço. Eu dou duas atividades, cruzadinhas, tudo coisas diferentes [sic] da sala
de aula, […] eu os faço pintar desenhos” (PSRM-06).
As atividades desenvolvidas por aqueles que
pensam como PSRM-06 revelam fragilidades no trabalho educativo que dificultam o
desenvolvimento das FPS dos estudantes “diagnosticados” clinicamente com TDAH.
O ato educativo requer intencionalidade, planejamento, sistematização,
verificação das necessidades reais apresentadas pelos estudantes, bem como a
fusão com os conhecimentos científicos que estão sendo trabalhados no ensino
comum. No relato desse grupo de professores, não ficou evidente que os
encaminhamentos adotados são planejados com antecedência e descritos no PAEE
dos estudantes. O discurso docente parece revelar que esses encaminhamentos são
improvisados, propostos no momento da aula.
Ainda com relação à análise dos dados,
observou-se que 60% dos professores entrevistados não fizeram alusão ao PAEE
como parte formal do processo de atendimento aos alunos que frequentam as SRM.
Nesse caso, questiona-se: Será que o PAEE tem se materializado nessas escolas
como ferramenta indispensável ao trabalho com os estudantes com deficiência ou
com TDAH?
Considerando que a escolarização é
imprescindível ao desenvolvimento das FPS – inclusive da atenção e da vontade,
às quais se volta o presente artigo – e que é o processo de aprendizagem dos
conceitos científicos que promove esse desenvolvimento, pressupõe-se que o
professor planeje intencionalmente suas ações com esse objetivo. Essas
práticas, mediadas por instrumentos e signos, potencializam o desenvolvimento
das funções humanas, ativando todo um grupo de processos que não poderiam se
desenvolver sem a aprendizagem dos conteúdos escolares. Entretanto, sem um planejamento
que o respalde, o processo pedagógico fica à deriva, assim como seu resultado.
Conclusões
Alguns autores e
especialistas consideram o TDAH um transtorno mental crônico que se manifesta
logo na Educação Infantil e evolui ao longo da vida, sendo o motivo pelo qual
cada vez mais crianças são encaminhadas a Centros de Neurologia Pediátrica e
Psicologia. Nesse viés, muitos alunos são diagnosticados por profissionais da
área da saúde, ou rotulados por seus educadores, como portadores desse transtorno, mas sem que seja realizada uma
avaliação mais criteriosa.
É necessário
ressaltar que nem toda criança agitada deve ser considerada como hiperativa.
Embora as primeiras evidências da hiperatividade, segundo alguns autores,
possam ser observadas já no lactente e sejam mais salientes em crianças na fase
pré-escolar ou escolar, a desatenção e a agitação são características que fazem
parte do comportamento infantil. A agitação excessiva pode decorrer de diversas
situações da vida da criança, assim como outros problemas de comportamento.
Entretanto, percebe-se que, no contexto
escolar, o TDAH ainda vem sendo utilizado como justificativa docente para
problemas na escolarização dos alunos, haja vista a constatação de um aumento
de 594% no número de alunos matriculados com laudo de TDAH, nos últimos cinco
anos no município pesquisado. Ao não estabelecer diferença entre o TDAH e a
necessidade de regulação do comportamento, os encaminhamentos de crianças aos
serviços de saúde, direcionados pelos professores, continuam sendo cada vez
mais frequentes, atribuindo-se a elas a responsabilidade por não aprender e
isentando de análise os contextos escolar e social.
Na contramão
desse procedimento, entende-se que a investigação psicoeducacional
deve partir da análise do processo de escolarização discente, de forma
explicativa, voltada aos aspectos pedagógicos, entendendo que o autocontrole da
atenção e do comportamento são e só poderão ser aprendidos se forem ensinados.
Na perspectiva da
Teoria Histórico-Cultural, à medida em que a criança vai se apropriando da
cultura e dos conceitos científicos que a cercam, desenvolve as suas FPS e a
sua consciência, ampliando a capacidade de se autorregular, aprendendo a
canalizar sua agitação e sua atenção para as atividades de aprendizagem que
desenvolve na escola.
Nesse sentido, de
acordo com os documentos legais e orientadores, o PAEE é ferramenta fundamental
para nortear a prática de atuação dos professores no trabalho na SRM. No estado
do Paraná, a produção do PAEE é regulamentada em conformidade com a legislação
nacional e com documentos elaborados pela Secretaria Estadual de Educação e
pelo Departamento de Educação Especial (Paraná, 2018a; 2018b). Reitera-se que
os documentos legais e orientadores, tanto na esfera nacional quanto estadual,
destacam a elaboração do PAEE como uma das atribuições inerentes à função do
professor de Educação Especial, que atua na SRM.
Há que se considerar, ainda, que a
constante avaliação psicoeducacional no contexto
escolar deve privilegiar a qualidade das mediações ofertadas, os diferentes
recursos utilizados e a diversidade metodológica docente. Entretanto, para que
a avaliação possa desempenhar esse papel, é necessária a
sua contínua articulação com o planejamento do trabalho docente.
Pautada nesses preceitos, a avaliação
torna-se elemento essencial ao PAEE, uma vez que orienta a organização
intencional do processo pedagógico e é fundamental para a possível superação
dos problemas de escolarização de todos os alunos. Certamente, intervenções
aleatórias, que não partem das necessidades educacionais dos alunos e que não
são pautadas em uma organização da atividade de ensino que seja fruto de
reflexão e sistematização na perspectiva da práxis pedagógica, dificilmente
alcançarão os resultados esperados.
Considerar que a atenção voluntária se
constitui ao longo do processo de desenvolvimento do indivíduo, conforme o
aluno se apropria do conhecimento científico e desenvolve suas funções
psicológicas como um feixe integrado, exige cautela na constatação superficial
de comportamentos tidos como desatentos. É preciso deixar de atrelá-los a
problemas neurológicos como princípio, uma vez que tais comportamentos podem
ocorrer com mais frequência pela qualidade das mediações às quais o indivíduo
teve acesso do que por disfunções cerebrais. Ressalta-se, portanto, a
importância de se considerar as mediações das quais participa esse aluno,
dentro e fora da escola.
O desenvolvimento dessas funções não
ocorre espontaneamente só porque a criança está crescendo do ponto de vista
cronológico. Trata-se de um processo de aprendizagem decorrente de um trabalho
colaborativo - intencionalmente planejado diante da hiperatividade, da
distração ou de outras dificuldades no processo de aprendizagem dos conteúdos
escolares - o qual promove, pela apropriação dos conceitos científicos,
artísticos e técnicos que constituem os conhecimentos historicamente elaborados
pelos homens, o desenvolvimento do feixe das funções próprias do gênero humano,
entre elas, a autorregulação infantil.
Quando a escola não cumpre a sua função
social de transmitir os conteúdos científicos necessários à aprendizagem e ao
desenvolvimento humano, criam-se demandas (problemas), as quais passam a ser
tomadas como sendo dos serviços de saúde (Meira, 2019), resultando na busca por
diagnósticos e soluções médicas para explicar esses problemas que são de ordem
social.
Constatou-se, com auxílio de outros
estudos e desta pesquisa, que, no espaço escolar, a medicalização tem, muitas
vezes, substituído os processos de ensino e de aprendizagem, consolidando a
ideia de que os problemas no processo de escolarização (dificuldades de aprendizagem)
e de comportamento estão ligados a transtornos ou a deficiências que os
estudantes possam ter. Essa concepção biologizante resulta no encaminhamento
desse público, que apresenta comportamento inadequado de acordo com a escola,
aos serviços de saúde, para diagnóstico e tratamento, caracterizando, assim, a
medicalização da e na educação.
Recomendam-se, portanto, políticas
públicas que promovam um processo estatal de formação continuada docente, que
compreenda o homem como um ser que se constitui nas relações sociais, de forma
que o professor possa, gradativamente, apropriar-se da compreensão da atenção
como uma função que necessita ser desenvolvida no processo pedagógico.
A pesquisa evidenciou que compreender o
TDAH na concepção biológica, tal como proposto no DSM-5, acarreta um limite no
trabalho pedagógico. Na medida em que se entende o TDAH como um transtorno,
como uma incapacidade biológica, desloca-se a ênfase da solução dos problemas
que o aluno está enfrentando para o remédio, para a medicalização, ao invés de
rever o processo pedagógico em seus diferentes aspectos. Com isso, inibe-se o
desenvolvimento da autorregulação do aluno, já que a solução estaria no
remédio.
Finaliza-se este texto ressaltando-se o
compromisso da Educação com o desenvolvimento cultural das pessoas com ou sem
necessidades educacionais especiais. Ao ampliar as possibilidades de maior
consciência, permite-se o desvelar do aparente e se favorece uma inserção
social que contribui para a humanização, de forma que cada aluno possa
apreender o mundo e nele intervir na direção de maior justiça social.
Referências
Alves, M. D., & Guareschi, T. (2012).
Modulo II – AEE (AEE). Em A. C. P. Siluk. Formação de professores para o Atendimento
Educacional Especializado (pp. 33-60). Universidade Federal de Santa Maria.
American Psychiatric Association.
(2014). Manual Diagnóstico e Estatístico
de Transtornos Mentais (5ª ed.). Artmed. http://www.niip.com.br/wp-content/uploads/2018/06/Manual-Diagnosico-e-Estatistico-de-Transtornos-Mentais-DSM-5-1-pdf
Andrade, S. L., Gomes, A. P., Nunes, A. B., Rodrigues, N. S., Lemos,
O., Rigueiras, P. O., & de Farias, L. R. (2018).
Ritalina, uma droga que ameaça a inteligência. Revista de Medicina e Saúde de Brasília, 7(1), 99-112. https://portalrevistas.ucb.br/index.php/rmsbr/article/view/8810/5727
Brasil. (2001). Resolução n.º 02
de 11 de setembro de 2001 (Institui Diretrizes Nacionais para a Educação Especial
na Educação Básica). Ministério da
Educação. Conselho Nacional de Educação. http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/CEB0201.pdf
Brasil. (2009). Resolução 04 de 2 de outubro de 2009 (Institui
Diretrizes Operacionais para o Atendimento Educacional Especializado na
Educação Básica, modalidade Educação Especial). Conselho Nacional de Educação.
Câmara de Educação Básica. http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/rceb004_09.pdf
Caliman, L. V. (2008). O TDAH: entre as funções,
disfunções e otimização da atenção.
Psicologia em estudo, 13(3), 559-566.
https://www.scielo.br/j/pe/a/dMWSQRntTwZwHpXBTswQHhv
Caliman, L. V., & Domitrovic, N. (2013). Uma
análise da dispensa pública do metilfenidato no Brasil: o caso do Espírito
Santo. Physis:
Revista de Saúde Coletiva, 23(3), 879-902. https://doi.org/10.1590/S010373312013000300012
Capellini, V.
L. M. F., & Mendes, E. G. (2007). O ensino colaborativo favorecendo o
desenvolvimento profissional para a inclusão escolar. Educere et Educare, 2(4), 113-128. https://doi.org/10.17648/educare.v2i4.1659
Dicionário Online de Português. (2022).
Capacidade. Dicionário Online de
Português. https://www.dicio.com.br/capacidade/
Eidt, N. M., & Ferracioli,
M. U. (2007). O ensino escolar e o desenvolvimento da atenção e da vontade:
Superando a concepção organicista do Transtorno de Déficit de Atenção e
Hiperatividade (TDAH). Em A. Arce, & L. M. Martins. Quem tem medo de ensinar Educação Infantil? Em defesa do ato de ensinar
(pp. 93-123). Alínea.
Eidt, N. M., & Tuleski, S. C. (2010). Transtorno de déficit de
atenção/hiperatividade e psicologia histórico-cultural. Cadernos de Pesquisa, 40(139),
121-146. https://doi.org/10.1590/S0100-15742010000100007
Honnef, C. (2018). O trabalho docente articulado com concepção teórico-prática para a
educação especial. [Tese de Doutorado, Universidade Federal de Santa
Maria]. Repositório Institucional da UFSM. https://repositorio.ufsm.br/handle/1/15837
Leontiev, A. N. (1978). O
desenvolvimento do psiquismo. Horizonte.
Luengo, F. C. (2010). A
vigilância punitiva: a postura dos educadores no processo de patologização e medicalização da infância. Cultura
Acadêmica. http://hdl.handle.net/11449/109138
Meira, E. M. M. (2019). Medicalização na e da educação: processos de
produção e ações de enfrentamento. Em S. C. Tuleski,
& A. F. Franco. O lado sombrio da
medicalização da infância: possibilidades de enfrentamento (pp. 225-258).
Nau.
Mendes, E. G., Almeida, M. A., & Toyoda,
C. Y. (2011). Inclusão escolar pela via da colaboração entre educação especial
e educação regular. Educar em Revista,
41, 80-93. https://doi.org/10.1590/S01040602011000300006
Moysés, M. A. A., & Collares,
C. A. L. (2010). Dislexia e TDAH: uma análise a partir da ciência
médica. Em Conselho Regional de Psicologia de São Paulo (CRP-SP) (Org). Medicalização de crianças e adolescentes:
conflitos silenciados pela redução de questões sociais a doenças de indivíduos (pp.
71-110). Casa do Psicólogo.
Paraná. (2016). Deliberação n.º
02 de setembro de 2016 (Dispõe sobre as Normas para a Modalidade Educação
Especial no Sistema Estadual de Ensino do Paraná). Conselho Estadual de
Educação. http://www.cee.pr.gov.br/sites/cee/arquivos_restritos/files/migrados/File/pdf/Deliberacoes/2016/Dl_02_16.pdf
Paraná. (2018a). Instrução n.º
09 de 23 de abril de 2018 (Estabelece critérios para o Atendimento
Educacional Especializado por meio da Sala de Recursos Multifuncionais, nas
áreas da deficiência intelectual, deficiência física neuromotora,
transtornos globais do desenvolvimento e para os estudantes com transtornos
funcionais específicos nas instituições de ensino do Sistema Estadual de
Ensino). Secretaria Estado de Educação. https://www.educacao.pr.gov.br/sites/default/arquivos_restritos/files/documento/2019-12/instrucao_092018.pdf
Paraná. (2018b). Orientação n.º
04 de 2018 (Orientação pedagógica para o Atendimento Educacional
Especializado nas Salas De Recursos Multifuncionais nas Escolas Da Rede Pública
Estadual). Secretaria de Estado da
Educação. Departamento de Educação Especial.
Pelizzetti, I. G., &
Carvalho, M. A. (2007). Percurso e desafios dos 10 anos do CRAPE – Centro
Regional de Apoio Pedagógico Especializado. Anais do IV Congresso brasileiro multidisciplinar de Educação Especial,
Londrina, Paraná, Brasil. http://www.uel.br/eventos/congressomultidisciplinar/pages/arquivos/anais/2007/209.pdf
Santos, C. G. (2019). Relação
entre o transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) e a
aprendizagem na produção do conhecimento em programas de pós-graduação em
educação no Brasil. [Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de
Sergipe]. Repositório Institucional da Universidade Federal do Sergipe. https://ri.ufs.br/jspui/handle/riufs/11488
Silva, N. C., & Loos-Sant’Ana, H.
(2017). Desenvolvendo Autorregulação Psíquica em Crianças mediante Portfólios
de Autoavaliação na Interação Escolar. Paidéia,
27(1), 475-483. https://doi.org/10.1590/1982-432727s1201713
Szymanski, M. L. S., & Teixeira, A. (2021). O
Trabalho Colaborativo entre o professor de Educação Especial que atua na Sala
de Recursos Multifuncionais e o do ensino comum. Anais da 40ª Reunião Nacional da ANPEd, Belém,
Pará, Brasil. http://anais.anped.org.br/p/40reuniao/trabalhos?field_prog_gt_target_id_entityreference_filter=25
Vigotski, L. S. (1995). Obras Escogidas III: Problemas del
desarrollo de la psique. Visor.
[i] Pós-Doutora em Psicologia,
Desenvolvimento Humano e Educação pela Universidade Estadual de Campinas
(2000). Docente do Programa Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual
do Oeste do Paraná.
[ii] Mestra em Educação pela
Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE) (2021). Docente da
Secretaria do Estado da Educação do Paraná e da Secretaria Municipal de
Educação de Cascavel, PR.
[3] Santos (2019), com os termos TDAH e
hiperatividade, localizou entre 1992 e 2017 na Biblioteca Digital de Teses e
Dissertações 1.234 teses e dissertações brasileiras, sendo 82 na área da
Educação.
[4]
Atribuiu-se a sigla PSRM (Professor da Sala de Recurso Multifuncional), seguida
dos números 1, 2…, aos professores de Educação Especial participantes do
estudo, para assegurar o anonimato.