Apresentação
DOI:
https://doi.org/10.26512/interethnica.v21i2.12247Resumo
Estudos e pesquisas entre povos indígenas nas Américas tem assinalado a permanência das dinâmicas neocoloniais de exploração de suas populações, territórios e recursos colocando em questão a efetividade dos direitos reconhecidos nacional e internacionalmente nas últimas duas décadas do século XX. A conjuntura política e econômica adversa no início deste novo século tem configurado um quadro de virtual retrocesso e desconstrução dos direitos originários dos povos indígenas. Por esta razão, refletir sobre o poder e as formas contemporâneas de resistência aos processos que se pretendem reincidentes na aniquilação da diversidade sociocultural faz-se uma exigência ao mesmo tempo ética e política, além de epistêmica, no atual momento.
Considerando a urgência de uma reflexão crítica, comparativa, multidisciplinar e regional para fazer frente à complexidade das relações interétnicas no século XXI, este dossiê foi proposto com vistas a fomentar a visibilidade e trocas de dados e análises a partir de pesquisas recentes, empiricamente embasadas e teoricamente inovadoras, além de reflexões críticas que contribuam para o debate das relações de poder e das formas e práticas de resistência indígena no âmbito da política interétnica na América Latina.
O dossiê reuniu quatro pesquisas e um estudo abrangendo as lutas indígenas em Oaxaca no México, no altiplano e no chaco bolivianos e em Roraima no Brasil. Desta maneira, temos quatro macrorregiões latino-americanas metonimicamente representadas, respectivamente, a Mesoamérica, os Andes, o Chaco e as savanas das guianas ou “lavrado”. Por fim, apresenta um diálogo teórico que aproxima a análise do Sistema Mundo e a perspectiva decolonial para promover uma abordagem de longa duração à violência e resistência indígena no Brasil. Os trabalhos, em conjunto, iluminam aspectos jurídicos das legislações indigenistas nacionais e das convenções e tratados internacionais sobre o direito de consulta entre os povos indígenas; problematizam a história das relações interétnicas envolvendo povos indígenas, estados e sociedades nacionais; tematizam a centralidade da educação para formação política e para a elaboração de projetos interculturais possíveis para assegurar o futuro e a autonomia dos povos indígenas; e percorrem, com profusão de dados etnográficos, questões etnológicas e etnohistóricas complexas que demonstram a sofisticação do pensamento político indígena contemporâneo.
Individualmente, cada artigo apresenta uma variação das múltiplas e sempre reelaboradas formas de resistência indígena em um mundo em permanente transformação e risco de retroagir em suas formas estatais e neoliberais de se relacionar com a diversidade étnica e cultural. No artigo “A comunalidad como dinâmica anticolonialista e epistêmica em Oaxaca/México”, Clarissa Noronha Melo Tavares, doutora em Ciências Sociais, descreve etnograficamente o contexto de luta e resistência coletiva indígena frente à s tentativas de instalação de um megaprojeto de energia eólica nos territórios indígenas. Para sua descrição, serve-se do próprio ideal organizativo comunitário, definido pela ideia de comunalidad, como fio condutor de sua narrativa. Desse modo, a autora evita incorrer nos abusos da autoridade etnográfica dando primazia à s concepções indígenas para alinhavar os dados de campo. Parafraseando Marcel Mauss, depreende-se de seu texto de que forma a comunalidad assume contornos de um “fato social comunal”, responsável por um processo intenso de ressacralização do território que ressignifica, dentre outros entes naturais, o vento como força vital para que o mesmo não seja convertido em mercadoria.
O artigo seguinte, “Consciência identitária, autonomia, participação e consulta: Caminhos para superação de práticas coloniais”, de Thiago Almeida Garcia, também doutor em Ciências Sociais, parte de pesquisas comparadas sobre situações sociais internacionais de discussão sobre o direito de consulta prévia e entrevistas com lideranças indígenas sul-americanas, sobretudo do Brasil e Bolívia, para apreender estas situações como arenas políticas onde são disputados o sentido e o controle do que vem a ser um “direito de consulta”. Destacam-se duas posições ideológicas. A primeira, originada no contexto institucional burocratizado e tutelar dos Estados nacionais. E, a segunda, originada no direito à autodeterminação conquistado pelos povos indígenas nas décadas de 80 e 90 do século passado. Dos embates entre estas perspectivas, as “relações entre povos indígenas, Estados e sociedades nacionais têm raízes profundas, que acionam memórias coletivas guardadas em depósitos coloniais”. Deste modo, Thiago Almeida Garcia compreende que as lutas e resistências indígenas se fazem necessárias até mesmo nas situações de construção de seus direitos e nas tentativas de viabilizar sua efetivação no âmbito internacional. Segundo Thiago Almeida Garcia: “Mais do que nos arcabouços jurídicos ou nos discursos proferidos em instâncias internacionais, são nas situações em que os direitos indígenas ‘ameaçam’ ou ‘travam’ ações estratégicas estatais que se pode identificar quais são os posicionamentos governamentais e as visões da sociedade sobre os povos indígenas”. Ou seja, a cena internacional mostra-se longe de estabelecer a eticidade discursiva imprescindível para o diálogo interétnico, como preconizava Roberto Cardoso de Oliveira.
O terceiro artigo, “Terra, luta e (trans)formação no movimento indígena de Roraima”, de João Francisco Kleba Lisboa, doutor em Antropologia Social, compreende a resistência indígena a partir da centralidade dos processos educacionais para a formação política de intelectuais e lideranças indígenas, assim como, de novas gerações de Makuxi e Wapichana, anteriormente submetidos à regimes de dominação e exploração escravagista. O que o autor propõe “é ver a escola indígena como um motor de transformação, mas não nos moldes daquilo que o Ocidente passou a conceber como ‘transformação histórica’, um processo inexorável no tempo (...)”. Segundo ele, é a própria transformação que passa a ser transformada, de um processo de assimilação etnocida para um movimento de construção da autonomia. A etnografia que serve de base para o artigo demonstra eficazmente de que modo os povos indígenas se utilizam de instituições e conceitos da sociedade nacional, como “escola” e “educação”, que em nossas sociedades voltam-se para a formação de indivíduos adaptados a uma economia de mercado, para construir projetos coletivos de formação de lideranças e difundir valores e sentimentos indígenas necessários à recuperação do território e sustentabilidade de seus povos e aldeias.
No artigo de Sandra Nascimento, doutora em Ciências Sociais, e Ana Catarina Zema Resende, doutora em História, intitulado: “Lógicas do Sistema Mundo moderno/colonial e violências contra os povos indígenas no Brasil”, as autoras desenvolvem “uma proposta de reflexão teórica para o enquadramento da violência histórica cometida contra os povos indígenas no Brasil a partir do diálogo com a perspectiva de análise do Sistema Mundo moderno/colonial”. O artigo vem ao encontro, portanto, de preocupações teóricas e metodológicas recentes que reivindicam o estudo das violências praticadas contra os povos indígenas a partir de perspectivas que sejam capazes de articular processos macro-históricos com situações micro-sociológicas, de modo a abarcarmos a acumulação de violências historicamente cometidas como decisiva para a persistente vulnerabilidade em que se encontram os povos indígenas nos dias de hoje. Segundo as autoras, “o fato dos povos indígenas de todo mundo terem vivenciado experiências semelhantes de violações de seus direitos mostra que o que lhes acontece é sobredeterminado pelas dinâmicas do Sistema Mundo moderno/colonial”. Trata-se de uma hipótese original para o entendimento do “indigenismo” como fenômeno global que somente faz sentido se considerarmos as lutas seculares e particulares dos povos indígenas como constitutivas de uma comunidade global de resistência.
Por fim, o artigo “A comemoração do massacre de Kuruyuki entre os Guarani na Bolívia, do doutorando em Ciências Sociais, Wildes Andrade, descreve etnograficamente uma das muitas faces do movimento Guarani em sua recente expressão em termos nacionais, com datas comemorativas, bandeira, hino etc. Para o autor, mais do que um simples empréstimo ou imitação de práticas do Estado nacional boliviano, hoje Estado Plurinacional da Bolívia, os significados e práticas dos Guarani durante a comemoração do massacre de Kuruyuki expressa uma forma de se configurarem como sujeitos políticos autonomistas em relação ao Estado “sem que isso implique necessariamente desejo de construir um Estado guarani, ao menos até o presente etnográfico”. O intenso trabalho de intelectuais públicos indígenas na ressignificação do idioma político eurocêntrico que se vale de conceitos de nação, direitos e cultura, é destacado no artigo para elucidar o papel ativo dos indígenas diante das imposições coloniais, republicanas e mesmo pós-coloniais - como são ventiladas pelos sucessivos governos de Evo Morales. Assim como já visto neste dossiê, o papel transformador da educação na formação de intelectuais interculturais foi decisivo para os Guarani instituírem a comemoração de um massacre ocorrido no fim do século XIX como produção cultural de um movimento com demandas específicas.
Afirmar que os povos indígenas não são vítimas passivas da história já se tornou, felizmente, senso comum neste início de século. Após mais de quinhentos anos de participação e lutas nos processos históricos que configuraram as sociedades latino-americanas, aprendemos que os povos indígenas são herdeiros de memórias de longa duração das violências e formas de dominação e exploração que caracterizam o governo dos brancos. Eles são mais do que conscientes das decisões que foram obrigados a tomar implicando sua reorganização, redefinição e reinvenção permanentes, que fazem do colonialismo menos um conceito abstrato do que uma realidade cotidiana de suas vidas. A considerar os artigos aqui reunidos, o trabalho da resistência persistirá neste início de século, ampliando-se para arenas globais de enfrentamento dos nacionalismos e capitalismos hegemônicos. Mais do que nunca, precisarão de parceiros epistêmicos que se disponham a aprender e co-teorizar junto com eles sobre novas formas de lutar pela liberdade e autonomia no século XXI, a exemplo do que fazem os autores e autoras que compõem o presente dossiê.
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