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Lendo a teoria sociológica a contrapelo

O dossiê “Lendo a teoria sociológica a contrapelo” se propõe a jogar luz sobre uma série de questões que vêm impactando a sociologia, e mais especificamente o debate sociológico, de diferentes maneiras. Não é coincidência que as palavras-chave de nossa chamada ecoaram um intelectual (Benjamin, 1980BENJAMIN, Walter. Über den Begriff der Geschichte. In: ______. Gesammelte Schriften. I-2, p. 692-704. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1980 [1940].) que, ele próprio, não foi um sociólogo stricto sensu, mas cujos pensamentos fundamentaram e enriqueceram diversas disciplinas convencionais. A nossa compreensão da sociologia expressa na chamada é de um escopo maior, apresentando uma pluralidade tanto teórica quanto de comprometimentos políticos e ângulos epistêmicos. Desse modo, os cinco ensaios compondo o nosso dossiê espelham esse esforço de diferentes perspectivas, tanto pelos autores como por meio dos variados temas que abordam. Outras duas contribuições que não puderam ser recebidas por uma série de motivos, dentre os quais o impacto do contexto pandêmico, teriam idealmente ampliado ainda mais o escopo do dossiê. A nossa proposta explicitamente propõe reunir os trabalhos de estudiosos que se encontram em diferentes momentos de sua carreira, bem como endereça a marginalização, notadamente no que diz respeito aos debates teóricos, de mulheres e estudiosas não brancas.

Este dossiê também leva em consideração diferentes maneiras de conceber a teoria e abordá-la. Logo, os ensaios apoiam-se sobre uma variedade de perspectivas, como os estudos sociais da ciência, a história da sociologia, e outras que consideram uma crítica imanente dos debates, sem ignorar os aspectos institucionais que sustentam a produção da teoria e de seus sujeitos. Enxergamos o distanciamento em face de uma compreensão fechada e fixa do que é reconhecido enquanto teoria como um importante exercício com vistas à pluralização das discussões teóricas. Por conseguinte, esperamos que cada um dos textos abra novas possibilidades e aponte caminhos rumo a outras leituras e pesquisas.

Evidentemente, engajar-se no debate acerca das assimetrias globais da produção de conhecimento não é algo novo. Já nos anos 1960 e 1970, Paulin Houn­toundji (1996) se voltou à questão da extroversão, observando como o que era denominado filosofia africana havia sido concebido por intelectuais europeus de modo a reproduzir a dinâmica colonial. Ele enfatizou um aspecto que seria retomado e examinado em detalhe ao longo das décadas seguintes: de que modo a produção de conhecimento, em especial as interpretações teóricas, emanavam do centro, numa divisão do trabalho intelectual que ainda persiste até os dias de hoje. Esse tipo de divisão epistemológica acaba por estabelecer uma relação fixa entre os lugares de origem dos cientistas e a validade de suas teorias ou, nas palavras de Walter Mignolo, “entre saber a respeito e saber de” (Mignolo 2000: 309). Por muito tempo, a distribuição da produção científica e cultural no primeiro, segundo e terceiro mundo dispunha que alguém de um país econômica e tecnologicamente periférico não tinha as condições intelectuais e a cultura acadêmica necessárias para estudar outras civilizações e, por isso, não podia produzir nenhum tipo de pensamento teórico significativo - afinal, a teoria está definida de acordo com os padrões do primeiro mundo. Raewyn Connell (2012) apontou a divisão global do trabalho em que países, autores e instituições do Norte Global são reconhecidos por produzir teorias, enquanto as obras do Sul Global aparecem como oferecendo os dados empíricos, constituindo tão somente objetos - e não sujeitos - do conhecimento. Isso resulta numa divisão artificial, na qual a metrópole produtora de teoria, em grande medida associada ao Norte Global, é creditada por ter a ciência, os conceitos e os métodos, por ter produzido o cânone literário e das ciências sociais, bem como a historiografia adequada. De outro lado, a periferia é reduzida a uma fonte de dados e um repositório de mitos, folclore e arte indígena (oposta àquela “superior”) - da qual, no entanto, não derivam nem conceitos, nem cânones acadêmicos.

O Brasil apresenta um contexto um tanto quanto peculiar. De um lado, tem um sistema de educação superior consolidado, composto por uma ampla rede de universidades públicas federais, caracterizadas por oferecerem estabilidade e uma carreira unificada, permitindo uma autonomia intelectual hoje cada vez mais rara. De outro, a dependência teórica no que diz respeito às universidades e instituições acadêmicas centrais, localizadas nos Estados Unidos e na Europa, durante muito tempo produziu um conjunto unilateral de confiança acadêmica depositada sobre a importação de teorias. Ainda que pontos de vista pioneiros, tais como a teoria da dependência, e outras contribuições relevantes tenham sido gestadas localmente, ainda permaneceu certa subordinação colonial no que concerne aos modelos teóricos. Ao levar em consideração o contexto neoliberal, João Maia (2019MAIA, João Marcelo Ehlert. Ciências sociais, trabalho intelectual e autonomia: quatro estudos de caso sobre nós mesmos. Dados, n. 62, p. 1-33, 2019.) ilustra essas pressões de variadas maneiras por meio de uma série de entrevistas que expressam padrões distintos de trabalho intelectual. A relação com os centros localizados no Norte Global como um traço das ciências sociais latino-americanas já foi apontada por Leandro Rodriguez Medina (2015MEDINA, Leandro Rodriguez. Centers and peripheries in knowledge production. London: Routledge, 2015.), que discutiu de que modo diferentes centros e periferias, no plural, são formados no contexto de produção global de conhecimento.

Como brevemente delineamos abaixo, essas diferenças também se expressam nas abordagens temáticas de cada ensaio, significando que a relação entre perspectivas teóricas e investigações empíricas é vital para o entendimento da teoria. De maneira sumária: sem fugir às considerações metateóricas, todos os artigos endereçam os enraizamentos das discussões que constituem o seu foco, destacando elementos específicos que precisam ser levados em consideração ao se interpretar desigualdades e assimetrias que condicionam a formação da teoria social, sejam eles a raça, o gênero, a infraestrutura material, as hierarquias e redes sociais etc.

O artigo “Cuestionando la modernización en entornos rurales periféricos: Revolución verde, mujeres y paradigmas entrelazados bajo la lente pionera de Cynthia Hewitt de Alcántara”, de Clara Ruvituso, examina a contribuição invisibilizada de Cynthia Hewitt de Alcántara, nascida nos Estados Unidos, mas que levou a cabo o seu trabalho pioneiro no México, analisando a revolução verde de uma dupla perspectiva periférica. De um lado, reconstruindo o contexto rural de modernização no México e, de outro, ela mesma uma intelectual mulher, contribuindo com vistas a uma compreensão mais lúcida do papel vital exercido pelas mulheres naquele contexto. Apoiada em vasta literatura e entrevistas biográficas em profundidade, Ruvituso é capaz de localizar esse empreendimento, também considerando as intervenções práticas que decorrem de seu amplo trabalho fora da academia. Ao considerar o interesse também para um público de língua inglesa, o seu texto aparece nos dois idiomas (assim, também é publicado como Contesting modernization in rural peripheral settings: green revolution, women and entangled paradigms under the pioneering lens of Cynthia Hewitt de Alcántara).

O ensaio “Lélia Gonzalez, uma teórica crítica do social”, escrito em coautoria por Flavia Rios e Stefan Klein, investiga e reflete a perspectiva teórica e contra-hegemônica da intelectual negra brasileira Lélia Gonzalez. O seu trabalho, levado a cabo sobretudo durante as décadas de 1970 e 1980, constitui uma abordagem original, que lida com as matrizes teóricas do marxismo, da teoria da dependência e da psicanálise, mostrando uma perspectiva interseccional avant la lettre. Ao focar de que maneira raça, gênero e classe se articulam para (re)produzir uma série de desigualdades, Gonzalez coloca o racismo no cerne de sua análise, argumentando que o capitalismo, e por conseguinte os distintos contextos sociais dos países colonizados, não têm como ser criticamente examinados sem considerar a raça/cor como elemento fundamental. Rios e Klein expõem os principais aspectos dessa visada teórica, de modo a permitir que um público mais amplo se engaje com essa intelectual, que foi historicamente marginalizada até mesmo quando comparada a outras intelectuais negras.

Em seu artigo “Theorising the Caribbean against the grain. How West Indian social scientists established the Caribbean as a space of knowledge production in the 1950s” (“Teorizando o Caribe a contrapelo. Como cientistas sociais das Índias Ocidentais estabeleceram o Caribe enquanto espaço de produção de conhecimento nos anos 1950”), Meta Cramer apresenta e sublinha a invisibilização sofrida pelo Caribe como locus relevante das ciências sociais. Ao detalhar os papeis exercidos, sobretudo pelos intelectuais Arthur Lewis e Michael G. Smith, bem como apontando o quadro institucional que permitiu esse desenvolvimento, o texto oferece às leitoras condições de compreender de maneira mais aprofundada essas dinâmicas de um contexto que foi, via de regra, secundarizado até mesmo nos debates latino-americanos. Ao avançar sobre as formas de intercâmbio intelectual e de circulação de conhecimento (e de pessoas), ela mostra como ambas contribuem fundamentalmente para edificar esse espaço acadêmico.

A larger grain of sense. Making early non-Western sociological thought visible”, (A larger grain of sense. Tornando visível o pensamento sociológico não-ocidental primevo) de Stéphane Dufoix, se volta a observar e analisar o pensamento sociológico latino-americano e asiático, no intuito de, ao menos em parte, reenquadrar o cânone teórico. Desse modo, ele reconstrói diversos pontos de vista sociológicos que se apresentaram nessas partes do globo, argumentando em favor da relevância de reorientar os principais autores e localizações geopolíticas que ancoram nossas reflexões. Por conseguinte, como ele sustenta, mover-se a contrapelo depende de levar em conta uma série de autores marginalizados que estabeleceram diálogos críticos com os clássicos da sociologia e, ainda assim, foram ignorados por grande parte do debate sociológico, como é o caso com os trabalhos de Shoichi Toyama, Mariano Cornejo, Antonio Dellepiane, Salvador Camacho Roldan e Sun Benwen.

Last but not least, o ensaio “Por uma ética da ontoformatividade: reflexões e proposições sobre a relação ontológica entre teoria e pesquisa na sociologia contemporânea do Sul Global”, de autoria de Marcelo Rosa, foca na reorientação do debate acerca da ontologia, retomando sua presença histórica entre uma série de autores, e mobilizando uma perspectiva sociológica Iorubá para questionar alguns pressupostos do cânone estabelecido. Ele não apenas lida com desenhos teóricos e perspectivas, mas também discute algumas implicações que acompanham a necessidade de repensar as maneira como a pesquisa é concebida e levada a cabo.

Esperamos que esses ensaios constituam uma - ainda que de forma limitada - relevante contribuição para alimentar a conscientização envolvendo a necessidade de reorientar o olhar teórico consolidado por mais de um século. Por mais que, sem dúvida, uma série de mudanças na educação superior e nas paisagens da produção de conhecimento já levou adiante seus primeiros passos, tais como o avanço das ações afirmativas no Brasil, ou o movimento Rhodes Must Fall na África do Sul, ainda temos um longo caminho a percorrer. É vital destacar que garantir espaço para essas(es) autoras(es) contra-hegemônicas(os) e para determinados temas não deve ser visto como mera expressão do politicamente correto: antes, precisam ser levadas a sério, em pé de igualdade com os seus pares mais conhecidos, predominante masculinos, brancos e europeus, que certamente apresentaram interpretações importantes, ainda que sempre limitadas, sobre como o mundo social está estruturado. O conceito de transformar os loci de produção de conhecimento - ou, tal qual posto por Joaze Bernardino-Costa e Antonádia Borges (2021), de dessenhorizar a universidade - precisa recorrer à ampliação do tipo de referências teóricas, bem como dos principais temas e debates que compõem o nosso cotidiano nas salas de aula.

Conforme sugerido por Wiebke Keim (2010KEIM, Wiebke. Pour un modèle centre-périphérie dans les sciences sociales. Revue d’Anthropologie des Connaissances, v. 3, p. 569-597, 2010. Available at: <https://www.cairn-int.info/journal-revue-anthropologie-des-connaissances-2010-3-page-570.htm>. Access on: Jul. 31st, 2022.
https://www.cairn-int.info/journal-revue...
), há três principais dimensões que estruturam as desigualdades da circulação de conhecimento, produzindo diferentes centros e periferias. Isso está expresso nos argumentos de cada artigo, ao mesmo tempo em que constitui um aspecto da autoria, com pessoas de diferentes instituições, e uma autora oriunda do Sul Global, mas que hoje atua numa instituição do Norte Global. Conforme ainda apontado por Fabrício Neves (2022NEVES, Fabrício Monteiro. Some elements of the regime of management of irrelevance in science. Tapuya, v. 5, n. 1, 2022. Available at: <https://doi.org/10.1080/25729861.2022.2035951>. Access on Oct. 31st, 2022.
https://doi.org/10.1080/25729861.2022.20...
), o contexto periférico produz o seu próprio regime de administração da irrelevância: sem ser capaz de garantir a sua relevância, isso permanece uma estratégia relevante para lidar com os entraves de desempenhar um papel marginalizado nas formas mais amplas e hierárquicas de circulação do conhecimento acadêmico em suas diferentes instituições e expressões. Os ensaios deste dossiê têm em comum o esforço de sustentar a ideia de que há reflexões teóricas potentes presentes nos contextos periféricos, as quais foram invisibilizadas. Desejamos uma boa leitura!

References

  • BENJAMIN, Walter. Über den Begriff der Geschichte. In: ______. Gesammelte Schriften. I-2, p. 692-704. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1980 [1940].
  • BERNARDINO-COSTA, Joaze; BORGES, Antonádia. Um projeto decolonial antirracista: ações afirmativas na pós-graduação da Universidade de Brasília. Educação e Sociedade, v. 42, 2021.
  • CONNELL, Raewyn; COLLYER, Fran; MAIA, João; MORRELL, Roberto. Toward a global sociology of knowledge: Post-colonial realities and intellectual practices. International Sociology, v. 32, n. 1, p. 21-37, 2017.
  • HOUNTOUNDJI, Paulin J. African philosophy. Myth and reality. Bloomington; Indianapolis, IN: Indiana University, 1996 [1976].
  • KEIM, Wiebke. Pour un modèle centre-périphérie dans les sciences sociales. Revue d’Anthropologie des Connaissances, v. 3, p. 569-597, 2010. Available at: <https://www.cairn-int.info/journal-revue-anthropologie-des-connaissances-2010-3-page-570.htm>. Access on: Jul. 31st, 2022.
    » https://www.cairn-int.info/journal-revue-anthropologie-des-connaissances-2010-3-page-570.htm
  • MAIA, João Marcelo Ehlert. Ciências sociais, trabalho intelectual e autonomia: quatro estudos de caso sobre nós mesmos. Dados, n. 62, p. 1-33, 2019.
  • MEDINA, Leandro Rodriguez. Centers and peripheries in knowledge production. London: Routledge, 2015.
  • NEVES, Fabrício Monteiro. Some elements of the regime of management of irrelevance in science. Tapuya, v. 5, n. 1, 2022. Available at: <https://doi.org/10.1080/25729861.2022.2035951>. Access on Oct. 31st, 2022.
    » https://doi.org/10.1080/25729861.2022.2035951

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022
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