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Envolvimento, práticas parentais e jornada de trabalho de mães de crianças pré-escolares* * Apoio: CAPES - Código de Financiamento 001. CNPq - Processo no. 306811/2019-7. ,** ** Artigo baseado na tese de doutorado da primeira autora.

Engagement, parenting practices and work hours of mothers of preschool children

Resumo

Este estudo buscou investigar as relações entre envolvimento, práticas parentais e jornada de trabalho de mães de pré-escolares por meio de uma pesquisa exploratória, quantitativa e transversal. Mães residentes no Sul do Brasil (171) responderam a quatro questionários. Por meio da análise dos resultados, constatou-se que as mães com jornada de trabalho integral e extensa tinham significativamente maior envolvimento com as crianças em comparação com mães que exerciam atividade remunerada parcial e às que não exerciam trabalho remunerado. No entanto, elas utilizaram significativamente mais punição, uso de práticas parentais menos democráticas e apresentaram menor suporte emocional. Discute-se as implicações da conciliação/conflitos dos papéis desempenhados pelas mães quando estão envolvidos os cuidados com as crianças e o trabalho remunerado.

Palavras-chave:
Relações mãe-criança; Envolvimento; Trabalho; Crianças; Pré-escolares

Abstract

This study aimed to investigate the relations among parental engagement, parenting practices and work hours of mothers of preschool children, through an exploratory, quantitative and cross-sectional study. Mothers living in the South of Brazil (171) answered to four surveys. The data analysis demonstrated that mothers whose work hours are full and extensive have major engagement with their children’ activities towards those who perform partial paid activities or towards those who perform unpaid activities. Nevertheless, they use significantly more punishment, less democratic parenting practices and offer less emotional support. There is discussed the implications of how occurs the conciliation/conflicts of roles developed by the mothers when engaged in the care of their children and in paid activities.

Keywords:
Mother-child relationships; Involvement; Labour; Children; Preschool children

Historicamente, o papel de cuidador/a, ou seja, aquela pessoa que é responsável pela assistência à criança, tem sido exercido essencialmente pelas mães, principalmente no que se refere aos aspectos físicos, tais como higiene e alimentação, nas fases iniciais do desenvolvimento da criança (Goetz & Vieira, 2010Goetz, E. R., & Vieira, M. L. (2010). Pai real, pai ideal: O papel paterno no desenvolvimento infantil (1a ed.). Juruá.). Pais e mães se comportam de maneira diferente na criação dos(as) filhos(as), mas as mulheres são mais envolvidas nessas atividades, pois são educadas para o cuidado (Hooks, 2015Hooks, B. (2015). Mulheres negras: Moldando a teoria feminista. Revista Brasileira de Ciência Política, (16), 193-210. https://doi.org/10.1590/0103-335220151608
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). Essa questão é algo consolidado na literatura científica, evidenciando a sua importância para o desenvolvimento infantil (Bossardi et al, 2013Bossardi, C. N., Gomes, L. B., Vieira, M. L., & Crepaldi, M. A. (2013). Engajamento paterno no cuidado a crianças de 4 a 6 anos. Psicologia Argumento, 31(73), 237-246. https://doi.org/10.7213/rpa.v31i73.20267
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). Há um progressivo reconhecimento acerca da importância do engajamento paterno com o cuidado dos(as) filhos(as) e estudos recentes estão abordando as variáveis relacionadas a isso (Arrais, & Vieira-Santos, 2021Arrais, A. L., & Vieira-Santos, S. (2021). Envolvimento paterno em pais de crianças em idade escolar: Relação com estresse parental, apoio social e variáveis sociodemográficas. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 37, e37313. Epub. https://dx.doi.org/10.1590/0102.3772e37313
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). Contudo, as mães ainda tendem a gastar mais tempo que os pais em atividades e nas interações com os(as) filhos(as), principalmente no que se refere à proteção, ao conforto e ao suporte emocional da criança. Outro aspecto que evidencia o maior envolvimento materno refere-se ao fenômeno denominado de maternal gatekeeping, em que as mães, por um processo de mediação, podem controlar, incentivar ou inibir o envolvimento dos pais na criação e interação com os(as) filhos (as) (Puhlman & Pasley, 2013Puhlman, D. J., & Pasley, K. (2013). Rethinking maternal gatekeeping. Journal of Family Theory & Review,5,176-193. https://doi.org/10.1111/jftr.12016.
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).

Em função de considerar os aspectos psicológicos, sociais e culturais, a perspectiva epistemológica da Teoria Bioecológica do Desenvolvimento Humano (TBDH), criada por Urie Bronfenbrenner, parece pertinente para abordar o desenvolvimento humano como um fenômeno complexo de interações ativas e recíprocas resultante das continuidades e mudanças dos processos biopsicossociais em indivíduos ou nos grupos sociais em que estão inseridos ao longo da vida (Bronfenbrenner, 1996Bronfenbrenner, U. (1996). A ecologia do desenvolvimento humano. Artes Médicas.). A TBDH integra o modelo Processo-Pessoa-Contexto-Tempo (PPCT) e possibilita o entendimento da dinâmica da relação entre contexto-pessoa (Bronfenbrenner, 2011Bronfenbrenner, U. (2011). Bioecologia do desenvolvimento humano: Tornando os seres humanos mais humanos. Artmed. ). Nesse sentido, configuram-se elementos importantes no estudo do entendimento das relações entre mães-filhos (as) e diversos papéis sociais das mulheres.

Um dos aspectos que tem impacto na adoção de práticas parentais maternas é o exercício profissional. Exemplo disso é a pesquisa realizada por Gomide (2009Gomide, P. I. C. (2009). A influência da profissão no estilo parental materno percebido pelos filhos. Estudos de Psicologia, 26(1), 25-34. https://doi.org/10.1590/s0103-166x2009000100003
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), com o objetivo de avaliar a percepção de jovens sobre suas mães, mulheres profissionais, como educadoras. Evidenciou-se que, independentemente da profissão exercida, as mães utilizavam pouco as práticas educativas positivas (autoritativas), ou seja, eram menos democráticas na criação dos (as) filhos (as) e recorriam a práticas negativas como abuso físico e supervisão estressante, a fim de controlar e corrigir o comportamento dos (as) filhos (as) na faixa etária de 12 a 24 anos (Gomide, 2009Gomide, P. I. C. (2009). A influência da profissão no estilo parental materno percebido pelos filhos. Estudos de Psicologia, 26(1), 25-34. https://doi.org/10.1590/s0103-166x2009000100003
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). Isso parece indicar a presença de dificuldades em conciliar de modo satisfatório as demandas das atividades profissionais e da família, o que pode gerar culpa em relação à efetividade no desempenho dos papéis de mãe, provedora e dona de casa (Bortolini & Andreatta, 2013Bortolini, M., & Andretta, I.(2013). Práticas parentais coercitivas e as repercussões nos problemas de comportamento dos filhos. Psicologia Argumento, 31(73), 227-235. https://shorturl.at/ilwV8
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).

As intensas modificações na organização familiar decorrentes da inserção da mulher no mercado de trabalho e a emancipação feminina evidenciaram a realidade de que elas sempre trabalharam, tanto de modo remunerado como não remunerado, ao longo da história (D’Affonseca et al., 2014D´ Affonseca, S. M., Cia, F., & Barham, E. J. (2014). Trabalhador feliz, mãe feliz? Condições de trabalho que influenciam na vida familiar. Psicologia Argumento, 32(76), 129-138. http://dx.doi.org/10.7213/psicol.argum.32.076.AO08
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). Essas mudanças causaram impactos nas famílias e no cuidado das crianças, assim, as mulheres adquiriram novas demandas que se acumularam àquelas relacionadas ao trabalho doméstico não remunerado, que permaneceram (Fontoura & Moreira, 2016Fontoura, C. S., & Moreira, L. V. C. (2016). Relação trabalho-família nas perspectivas de mães inseridas e não inseridas no mercado de trabalho (pp. 79-95). In. E. Meireles. (Ed.). Trabalho, família e direito. CRV. ; Monteiro et al, 2018Monteiro, R. P., Araújo, J. N. G., & Moreira, M. I. C. (2018). Você, dona de casa: Trabalho, saúde e subjetividade. Pesquisa e Prática Psicossociais, 13(4),1-4. https://shorturl.at/vFIY0
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). Embora se reconheça a importância de que as mulheres desempenhem atividade remunerada (Senicato et al, 2016Senicato, C., Lima, M. G., & Barros, M. B. A. (2016). Ser trabalhadora remunerada ou dona de casa associa-se à qualidade de vida relacionada à saúde?. Cadernos de Saúde Pública, 32(8). https://dx.doi.org/10.1590/0102-311X00085415
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), tanto para sua identidade quanto para a autoestima, o sentimento de autonomia, a satisfação pessoal e o reconhecimento social (Barham & Vanalli, 2012Barham, E. J., & Vanalli, A. C. G. (2012). Trabalho e família: Perspectivas teóricas e desafios atuais. Revista Psicologia Organizações e Trabalho, 12(1), 47-60. https://shorturl.at/gsuTV
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), estudos sobre o trabalho das mulheres revelam que várias expectativas em torno disso são geradoras de sofrimento (Antloga et al., 2020Antloga, C. S., Monteiro, R., Maia, M., Porto, M., & Maciel, M. (2020). Trabalho feminino: Uma revisão sistemática da literatura em psicodinâmica do trabalho. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 36(spe), e36nspe2. Epub https://doi.org/10.1590/0102.3772e36nspe2
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). Entre essas expectativas, destacam-se aquelas relacionadas com a conciliação dos papéis de trabalhadora e mãe, o que pode acarretar uma sobrecarga às mulheres mães e favorecer o aumento dos níveis de estresse, cansaço e fadiga, comprometendo o seu envolvimento na educação dos (as) filhos (as) (Cordero-Coma & Esping-Andersen, 2018Cordero-Coma, J., & Esping-Andersen, G. (2018). Parental time dedication and children’s education. An analysis of west Germany. Research in Social Stratification and Mobility, 55, 1-12. https://doi.org/10.1016/j.rssm.2018.03.006
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; Vikram et al, 2018Vikram, K., Chen, F., & Desai, S. (2018). Mothers' work patterns and children's cognitive achievement: Evidence from the india human development survey. Social science research, 72, 207-224. https://shorturl.at/grxR7
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).

A realização de estudos sobre maternidade e paternidade contemplam a compreensão das concepções de gênero e, com isso, constata-se as disparidades históricas entre homens e mulheres na vida familiar. Para esse estudo, o conceito de gênero refere-se a uma construção histórica, social e cultural em relação ao masculino e ao feminino (Louro, 1996Louro, G. L. (1996). Nas redes do conceito de gênero. In: Lopes, M. J. D., Meyer, D. E., & Waldow, V. R. (Eds.). Gênero e saúde. Artes Médicas.), ou seja, aos comportamentos e características presentes na sociedade relacionados aos homens e às mulheres em diferentes contextos sociais. A organização familiar possui forte influência das concepções de gênero que permeiam a sociedade. Nesse contexto, a divisão das atividades familiares ficou estabelecida ao longo dos tempos: aos homens, cabia o papel de provedores e, às mulheres, a administração do lar, cuidados com a família e as crianças (Dessen, 2010Dessen, M. A. (2010). Estudando a família em desenvolvimento: Desafios conceituais e teóricos. Psicologia: Ciência e Profissão, 30, n.spe, 202-219. http://dx.doi.org/10.1590/S1414-98932010000500010.
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). Isso favoreceu a concepção histórica de que as mulheres são as principais responsáveis pelas atividades de cuidado do lar, da família e dos (as) filhos (as) (Moser & Dal Prá, 2016Moser, L., & Dal Prá, K. R. (2016). Os desafios de conciliar trabalho, família e cuidados: Evidências do “familismo” nas políticas sociais brasileiras. Textos & Contextos, 15(2), 382-392. ).

O lugar das mulheres na sociedade brasileira perpassa questões assimétricas quando se relaciona raça, classe, sexo e gênero. Nesse sentido, as mulheres negras são as que mais sofrem com as desigualdades sociais, principalmente no que se refere ao mercado de trabalho (Bento, 1995Bento, A. S. (1995). A mulher negra no mercado de trabalho. Estudos Feministas, 2(95), 479-488. https://shorturl.at/fkwNV
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). Com isso, essas mulheres passam a ter que conciliar as demandas da maternidade e o tempo dedicado ao trabalho. O tempo que as mães passam com os (as) filhos (as) é atravessado por vários fatores, sendo um deles a jornada de trabalho (D’Affonseca et al., 2014D´ Affonseca, S. M., Cia, F., & Barham, E. J. (2014). Trabalhador feliz, mãe feliz? Condições de trabalho que influenciam na vida familiar. Psicologia Argumento, 32(76), 129-138. http://dx.doi.org/10.7213/psicol.argum.32.076.AO08
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). No ano de 2015, no Brasil, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a jornada total dos homens foi de 50,5 horas por semana, enquanto a das mulheres foi de 55,1 horas/semana. Assim, ressalta-se a disparidade da distribuição da carga horária de trabalho entre homens e mulheres, sendo que as negras, pardas, indígenas e aquelas com baixa renda possuem maiores jornadas de trabalho total do que os homens brancos, mulheres brancas e homens negros (Dedecca et al., 2009Dedecca, C. S., Ribeiro, C. S. M. F., & Ishii, F. H. (2009). Gênero e jornada de trabalho: Análise das relações entre Mercado de trabalho e família. Revista Trabalho, Educação & Saúde, 7(1), 65-90. https://shorturl.at/nvx37
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).

Salienta-se a relevância da investigação da influência da jornada de trabalho, seja ela parcial ou integral, na utilização de práticas parentais maternas (Gomide, 2009Gomide, P. I. C. (2009). A influência da profissão no estilo parental materno percebido pelos filhos. Estudos de Psicologia, 26(1), 25-34. https://doi.org/10.1590/s0103-166x2009000100003
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). No caso das mulheres, a conciliação dos papéis desempenhados nesses dois sistemas (trabalho e família) pode gerar conflitos. Destaca-se o estudo realizado por Yavorsky et al. (2015Yavorsky, J. E., Dush, C. M. K., & Schoppe-Sullivan, S. (2015). The production of inequality: The gender division of labor across the transition to parenthood. Journal of Marriage and Family, 77(3), 662-679. https://shorturl.at/nuvP0
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) com casais que experienciaram a transição para a parentalidade, que concluiu que as mães que trabalham de modo remunerado realizam mais atividades de cuidado dos(as) filhos(as) e, com isso, possuem maior sobrecarga, limitações físicas e fadiga. A flexibilização da jornada de trabalho ou a opção de trabalho em modo parcial pode ser uma importante estratégia de conciliação das demandas profissionais e familiares (Barham & Vanalli, 2012Barham, E. J., & Vanalli, A. C. G. (2012). Trabalho e família: Perspectivas teóricas e desafios atuais. Revista Psicologia Organizações e Trabalho, 12(1), 47-60. https://shorturl.at/gsuTV
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; Fontoura & Moreira, 2016Fontoura, C. S., & Moreira, L. V. C. (2016). Relação trabalho-família nas perspectivas de mães inseridas e não inseridas no mercado de trabalho (pp. 79-95). In. E. Meireles. (Ed.). Trabalho, família e direito. CRV. ; Gama, 2014Gama, A. S. (2014). Trabalho, família e gênero - Impactos dos direitos do trabalho e da educação infantil. Cortez.; Guiginski & Wajnman, 2019Guiginski, J., & Wajnman, S. (2019). A penalidade pela maternidade: Participação e qualidade da inserção no mercado de trabalho das mulheres com filhos. Revista Brasileira de Estudos de População, 36, 1-26. https://doi.org/10.20947/s0102-
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), mas questiona-se quais seriam as mulheres que poderiam flexibilizar a sua jornada de trabalho sem alterações na sua remuneração e renda familiar. Destaca-se que, em alguns contextos, como aqueles de famílias de camadas populares, em sua maioria constituída por pessoas negras, pardas e mestiças, a flexibilização da carga horária de trabalho incorre em diminuição da renda familiar e maior possibilidade de inserção em funções informais no mercado de trabalho (Reis & Costa, 2016Reis, M., & Costa, J. (2016). Jornada de trabalho parcial no Brasil. Mercado de Trabalho: Conjuntura e análise, 61, 33-40. https://shorturl.at/lqHP5
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).

Outra questão importante refere-se à necessidade da ampliação do número de creches e instituições de ensino infantil, a fim de auxiliar as figuras parentais e cuidadoras(es) a conciliar e equilibrar questões relativas ao trabalho e família, e assim possibilitar às crianças espaços seguros de socialização e aprendizagem (Wajnman, 2016Wajnman. S. (2016). “Quantidade” e “qualidade” da participação das mulheres na força de trabalho brasileira (pp.45-58). In N. Itaboraí , & A. Ricoli (Eds.). Até onde caminhou a revolução de gênero no Brasil?: Implicações demográficas e questões sociais. ABEP. https://shorturl.at/ltvyA
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). Ressalta-se a carência de ações e políticas públicas focadas nas famílias com crianças pequenas, o que constitui uma fase crítica, principalmente para as mulheres (Zanfelici & Barham, 2015Zanfelici, T. O., & Barham, E. J. (2015). Fatores de risco ao envolvimento de mães com filhos pré-escolares: associações com estresse e Burnout. Psico, 46(3), 351-361. http://dx.doi.org/10.15448/1980-8623.2015.3.18663
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). A esse respeito, cabe salientar que as instituições de educação infantil apresentam potencial protetivo e podem se constituir como ambientes favoráveis para o desenvolvimento positivo e integral das crianças, pois oferecem oportunidades de aprendizagem e de interações significativas, estáveis e duradouras, constituindo-se em importante estrutura do desenvolvimento em uma perspectiva bioecológica (Merçon-Vargas et al., 2020Merçon-Vargas, E. A., Rosa, E. M., Rocha, R. Z. da, & Dias, A. C. G. (2020). Escola e resiliência sob a perspectiva da teoria bioecológica do desenvolvimento humano (pp. 49-64). In: A. G. Pessoa, & S. H. Koller (Eds.). Resiliência & Educação: Perspectivas teóricas e práticas. Vetor Editora.). Nesse sentido, instituições de educação infantil não são apenas espaços seguros e protetivos que as crianças podem permanecer enquanto as mães trabalham, mas ambientes que, pelas suas próprias potencialidades, devem ser garantidos a todas as crianças.

Partindo dessas concepções em relação à realidade das mães que precisam conciliar o cuidado dos (as) filhos (as) com o trabalho remunerado, este estudo teve como objetivo investigar as relações entre envolvimento materno, práticas parentais e jornada de trabalho de mães de pré-escolares, buscando-se compreender como as mulheres conciliam o desempenho de trabalho remunerado e o cuidado dos/as filhos/as. A hipótese central deste estudo sugere que as mães participantes com jornada parcial terão maiores médias no envolvimento, suporte emocional, estímulo à perseverança e utilização de práticas parentais autoritativas.

Método

Participantes

Participaram do estudo 171 mães com média de idade de 35,17 anos (DP= ±5,79) de crianças com desenvolvimento típico, residentes na região Sul do Brasil. Cada uma dessas mães era membro de um casal heteroafetivo. Os critérios de inclusão na pesquisa foram: mães de crianças com idade de 4 a 6 anos; ter idade maior que 18 anos e conviver há pelo menos 6 meses com pai/padrasto da criança. As participantes foram acessadas por meio de instituições de educação infantil e pela técnica de amostragem denominada snowball (bola de neve), ou seja, as participantes acessadas indicavam outras famílias para participar do estudo (Gray, 2012Gray, D. E. (2012). Pesquisa no mundo real (2a ed.). Penso.). A aplicação dos instrumentos ocorreu nas residências ou outro local de preferência das participantes, conforme sua disponibilidade.

A maioria das famílias era nuclear com pais biológicos de todos os filhos (81,3%, n=139). As crianças tinham média de idade de 61,58 meses (DP=7,92), ou seja, possuíam em média aproximadamente 5 anos. Do total de crianças, 54,4% (n=93) eram meninos e 45,6% (n=78) meninas, e estudavam no período integral (38,7%, n=65), tarde (42,9%, n=72) e manhã (18,4%, n=31). As mães possuíam em média 16,21 anos completos de estudo (DP= ±5,87). A escolaridade em anos concluídos das mães variou de 3 a 36 anos de estudo, sendo a maioria com pós-graduação (43,3%, n= 74), variando de ensino fundamental incompleto até pós-graduação.

A maioria das participantes desempenhava atividade remunerada (n=153), enquanto 16 mães não realizavam atividade remunerada. A jornada de trabalho remunerado obedeceu ao intervalo de 0 a 75 horas semanais, com média de 34,30 horas/semana (DP= ±14,43). Essa variável será apresentada pelas médias dos valores e intervalos da carga horária das mães, por meio de quatro grupos: 1) mães que possuíam 0 h de jornada de trabalho (n=16, 9,47%); 2) jornada parcial (1 até 36 horas/semanais) (n=57, 33,73%); 3) jornada integral (de 40 a 44 horas/ semanais) (n= 74, 43,79%) e, 4) jornada extensa (acima de 44 horas/semanais) (n=22, 13,02%). Optou-se por essa distribuição visto que nenhuma das participantes tinha jornada de trabalho entre 36 a 40 horas/semanais.

Instrumentos

Para esse estudo, foram aplicados os seguintes instrumentos:

a) Questionário Sociodemográfico - foi desenvolvido por pesquisadores vinculados ao Núcleo de Estudos e Pesquisa em Desenvolvimento Infantil (NEPeDI) e aborda questões relativas: à família (número de pessoas, idades, e composição desse núcleo); às crianças: sexo, turno em que estudam, e idade; escolaridade dos pais (anos de instrução); renda familiar; e dados relacionados ao trabalho (jornada de trabalho). Essas questões foram respondidas pelas mães/madrastras;

b) Questionário de Engajamento Paterno (QEP) - Caracteriza-se como um instrumento construído e validado no Canadá com uma amostra de 468 famílias biparentais com pelo menos um filho entre 0 e 6 anos de idade (Paquette et al., 2000Paquette, D. , Bolté, C., Turcotte, G., Dubeau, D., & Bouchard, C. (2000). A new typology of fathering: Defining and associated variables. Infant and Child Development. 9, 213-230.). O instrumento original é composto por 56 itens, distribuídos em 7 dimensões: Suporte emocional (gestos e palavras que tranquilizam e encorajam a criança); Abertura ao Mundo (incentivar a criança a exploração dos ambientes); Cuidados Diretos e Indiretos (cuidados essenciais à sobrevivência como alimentação, vestir a criança e entre outros); Jogos Físicos (interagir com os filhos fisicamente por meio de gestos e brincadeiras); Evocações (pensar, lembrar e/ou falar da criança); Disciplina (ações de controle de comportamentos, ou seja, ao ato de corrigir e repreender a criança); Tarefas de Casa (atividades com a casa em geral, ou seja, fazer compras, preparar as refeições e se ocupar da limpeza e dos consertos necessários). A fim de investigar a estrutura interna e os índices de confiabilidade do QEP no Brasil, Bossardi et al. (2018Bossardi, C. N., Souza, C. D. de, Gomes, L. B., Bolze, S. D. A., Schimdt, B., Crepaldi, M. A., & Vieira, M. L. (2018). Adaptação transcultural e evidências de validade do questionário de engajamento paterno. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 1-12. http://dx.doi.org/10.1590/0102.3772e3439
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) realizaram um estudo por meio da análise fatorial com 300 pais e mães brasileiros e constaram que o instrumento apresentou cinco dimensões, que explicou 47,11% da variância total dos itens. A pesquisa destacou que as dimensões Cuidados Diretos e Indiretos e Tarefas de Casa se mostraram unidimensionais, assim como Jogos Físicos e Abertura ao Mundo, e que o Alfa de Cronbach para a dimensão suporte emocional foi 0,81 e para a dimensão cuidados diretos e indiretos, 0,90 (Bossardi et al., 2018Bossardi, C. N., Souza, C. D. de, Gomes, L. B., Bolze, S. D. A., Schimdt, B., Crepaldi, M. A., & Vieira, M. L. (2018). Adaptação transcultural e evidências de validade do questionário de engajamento paterno. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 1-12. http://dx.doi.org/10.1590/0102.3772e3439
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). Assim, para esse estudo foram aplicados apenas 21 itens referentes às dimensões suporte emocional (10 itens) e cuidados diretos e indiretos (11 itens). Os alfas de Cronbach, na dimensão suporte emocional, foi de 0,89 e cuidados diretos e indiretos, 0,84. Para fornecer o índice do envolvimento parental, essas dimensões foram agregadas às respostas das mães ao QOM;

c) Questionário de Abertura ao Mundo (Questionnaire d`Ouverture au Monde - QOM) - Este instrumento foi desenvolvido por Paquette et al (2009Paquette, D., Eugene, M. M., Dubeau, D., & Gagnon, M.-N. (2009). Les pères ont-ils une influence spécifique sur le développement des enfants? In D. Dubeau, A. Devault, & G. Forget (Eds.), La paternité au XXI sièle (pp. 99-119). Québec, Canada: Les Presses de l’Université Laval.) e foi validado no Canadá com uma amostra de 266 pais de crianças, com idade de 2 a 5 anos. Refere-se à abertura ao mundo proporcionada pelos pais ao seu filho durante a infância. Caracteriza-se como uma escala de frequência de atividades que pais e mães realizam com crianças pré-escolares. Originalmente, esse instrumento é composto de 27 itens, distribuídos em 3 dimensões: 1) Estimulação à perseverança (13 itens): encorajar a criança a superar limites, de modo a cumprir tarefas difíceis e perseverar diante de adversidades; 2) Punição (6 itens): repreender ou punir a criança quando ela desobedece, quebra algo ou não se esforça; e 3) Estimulação a assumir riscos (8 itens): estimular a autonomia da criança por meio do encorajamento a se envolver em atividades arriscadas e que possibilite a exploração do ambiente. Esse instrumento encontra-se em processo de estudo de índices empíricos no Brasil, realizados por pesquisadores vinculados ao NEPeDI, e seu manuscrito encontra-se submetido para publicação. Por meio análise fatorial realizada, 9 itens foram retirados, restando 18 itens. Assim, para esse estudo, foram aplicados apenas 18 itens referentes às dimensões Estimulação à perseverança (7 itens), Punição (5 itens) e Estimulação a assumir riscos (6 itens) com Alfa de Cronbach de 0,73, 0,69 e 0,74 respectivamente. Ressalta-se que, no presente estudo, o Alfa de Cronbach das dimensões do QEP e do QOM que forneceram o índice de envolvimento parental foi de 0,81;

d) Inventário de Práticas Parentais - (Child Rearing Practices Report - CRPR) - É um instrumento utilizado para avaliar práticas parentais, que se refere ao modo como pais e mães agem em relação à educação dos(as) seus(suas) filhos(as) e as estratégias de cuidado que contribuem ou não para a socialização e desenvolvimento de atitudes e valores das crianças. Foi desenvolvido inicialmente por Block (1965Block, J. (1965). The challenge of response sets: Unconfounding meaning, acquiescence, and social desirability in the MMPI. Appleton-Century-Crofts.), tendo sido validado nos Estado Unidos e na Holanda. O inventário continha 91 itens agrupados em 28 fatores, propostos a partir da observação da interação entre mães e filhos. O estudo realizado por Valadão (2018Valadão, F. (2018). Evidências de validade do child-rearing practices report em pais de filhos com idade entre 4 a 6 anos. [Dissertação de mestrado, Universidade Federal de Santa Catarina]. https://shorturl.at/fmzP2
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) com 338 pais e mães de crianças em idade pré-escolar adaptou o instrumento em uma população residente na região Noroeste do Sul do Brasil, com objetivo de compreender a inteligibilidade da escala para a população-alvo. Após a adaptação e validação de construto por meio de Análise Fatorial Exploratória (AFE), o instrumento de 35 itens passou a ter 29 e distribuídos em 3 fatores: práticas parentais autoritárias (rigidez, inflexibilidade, baixa utilização de afeto e controle de comportamento - 13 itens), autoritativas (práticas mais democráticas, com estímulo a afetividade e responsividade - 12 itens) e negligentes (indisponibilidade verbal e física, sem presença de afeto e ausência do envolvimento parental - 4 itens). Salienta-se que os 3 fatores apresentaram Alfa de Cronbach e Confiabilidade Composta com índices superiores a 0,60.

Procedimentos de coleta e análise dos dados

A realização da coleta de dados desse estudo contemplou as características do projeto “Envolvimento paterno no contexto familiar contemporâneo II”. Foram contatadas Instituições de Educação Infantil (IEI), a fim de obter a Autorização Institucional. Essa declaração permitiu a submissão do projeto de pesquisa ao Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos (CEPSH/UFSC) para autorização da execução da pesquisa, CAAE: 53239216.3.0000.0121. Após a aprovação no CEPSH/UFSC, foi realizado o recrutamento dos participantes por meio de escolas de educação infantil, que enviaram as cartas-convite às famílias de modo a convidá-las a participar da pesquisa.

Após o recolhimento das cartas-convite e a realização de contato telefônico com as mães, selecionou-se as famílias conforme os critérios de inclusão da pesquisa. Após esse procedimento, dois pesquisadores realizaram o agendamento das aplicações dos instrumentos com as mães, conforme sua disponibilidade e local de preferência. Durante a aplicação dos instrumentos, a pesquisa foi apresentada e dois Termos de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) foram entregues para a assinatura das mães. Após a finalização da aplicação, os instrumentos foram guardados em envelopes, que foram lacrados. A fim de resguardar a identidade das participantes, foi atribuído a cada família um código de identificação. A realização da pesquisa obedeceu aos aspectos éticos contidos na Resolução 466/2012.

Após a aplicação dos instrumentos, os dados foram tabulados no pacote estatístico Statistical Package for Social Sciences (SPSS) - versão 18.0. Posteriormente, os dados foram exportados para o programa estatístico Statistical Analysis System (SAS) 9.2. Realizou-se o cálculo das frequências absolutas e percentuais (variáveis qualitativas), como estado, composição familiar, sexo da criança e escolaridade dos pais e das mães; e das medidas como frequência, média, desvio padrão, mínimo e máximo (variáveis quantitativas). Para as variáveis como idade da mãe (anos), escolaridade (anos de estudo), jornada de trabalho (horas/semana), além da idade da criança (meses), realizou-se o cálculo do número total (com a discriminação dos missings) da média, desvio padrão, mínimo e máximo (variáveis quantitativas). O envolvimento das mães e as práticas parentais eram as variáveis dependentes do estudo, enquanto a jornada de trabalho, variável independente.

A fim de analisar a relação entre as variáveis de interesse e a jornada de trabalho, foi realizada a análise de covariância (ANCOVA) que, além de comparar grupos, permite o ajuste de covariáveis (Montgomery, 2000Montgomery, D. C. (2000). Design and analysis of experiments. 5a ed., John Wiley & Sons, Inc.). A escolha pela ANCOVA ocorreu em função de haver quatro grupos relativos à variável independente (jornada de trabalho). A idade foi utilizada como covariável. As diferenças entre as variáveis têm como pressuposto que seus resíduos têm distribuição normal com média 0 e variância constante. Para as comparações, foi utilizado o pós-teste por contrastes ortogonais. Para todas as análises, adotou-se nível de significância de 5%. A representação da distribuição das jornadas de trabalho em relação as variáveis com valores de p significativos (Figura 1) foram feitos com o auxílio do software R, versão 3.4.1.

Figura 1.
Distribuição das jornadas de trabalho em relação as variáveis com valores de p significativos para as diferenças de carga horária.

Resultados

Distribuição das médias do envolvimento e das práticas parentais conforme grupos de jornada de trabalho

A Tabela 1 apresenta as médias do envolvimento materno e das práticas parentais conforme a distribuição dos grupos conforme a jornada de trabalho.

Tabela 1.
Distribuição das médias das dimensões do envolvimento, práticas parentais de acordo com a jornada de trabalho das mães

Observando os valores médios dos grupos, pode-se considerar que as mães tentam investir tanto no trabalho quanto no cuidado e educação dos (as) filhos (as) e parece que o trabalho em período parcial traz mais benefício à relação entre a mãe e as crianças. Mães que não desempenham atividade remunerada tendem a realizar mais atividade com foco na sobrevivência das crianças, como dar banho e alimentar, e utilizar estratégias de criação das crianças mais autoritárias com uso de controle dos comportamentos, rigidez e baixa utilização de afeto, além de ausentar-se por meio da indisponibilidade física e verbal. As mães com jornada parcial parecem conciliar as atividades profissionais com as atividades de cuidado das crianças, de modo a expressar gestos e palavras de afeto, uso de práticas democráticas na criação, embora não estimule tanto as crianças à superação de limites e adversidades. As mães com jornada de trabalho integral e extensa obtiveram os maiores escores de envolvimento com os (as) filhos (as), uso de punição, ou seja, controle do comportamento das crianças por meio de repreensão ou punição por desobediência, estimulam as crianças a exploração dos ambientes e superação dos limites. As mães com jornada de trabalho integral utilizam menos práticas democráticas na educação e criação das crianças, enquanto as que trabalham em horário extenso oferecem menos suporte emocional e possibilitam a sua disponibilidade física e verbal.

Diferenças entre os grupos de jornada de trabalho nas variáveis do envolvimento materno e das práticas parentais

Na Tabela 2, serão apresentados os valores significativos que caracterizam as diferenças entre os grupos conforme a jornada de trabalho.

Tabela 2.
Comparação dos grupos de jornada de trabalho quanto a diferença estimada, valor-p e intervalos de confiança em relação as variáveis do envolvimento e das práticas parentais.

Na Figura 1, são apresentados os gráficos de distribuição das jornadas de trabalho em relação às variáveis com valores de p significativos para as diferenças de carga horária. Assim, é possível entender e comparar as variações entre os grupos de jornada de trabalho e as variáveis.

A relação entre a jornada de trabalho e o estímulo à perseverança apresentou diferença significativa quando se comparou a jornada parcial com a extensa, indicando que mães com jornada extensa tendem a apresentar médias mais altas em estímulo à perseverança que mães com jornada parcial. Apesar de o valor p ter sido menor que 0,05, o intervalo de confiança indica que existe uma tendência dessa diferença ser muito pequena.

Já em relação ao estímulo a assumir risco, identificou-se diferença entre as mães que não exercem atividade remunerada com as mães que trabalham em jornada integral e com as mães que trabalham em jornada extensa. Isso indica que as mães que não trabalham de forma remunerada são as que menos estimulam os (as) filhos (as) a correr riscos.

As práticas parentais autoritativas possuem diferenças muito pequenas e valores estatisticamente significativos para mães com jornadas de trabalho parcial ou que não possuem atividade remunerada, em relação àquelas que exercem atividade com carga horária integral. Comparando a jornada de mães que não exercem atividade remunerada e aquelas que exercem atividade parcial, percebe-se uma influência positiva em relação à utilização de práticas parentais autoritárias. As mães com jornada de trabalho extensa possuem diferenças e valores estatisticamente significativos em relação às mães que possuem carga horária parcial, que são as que utilizam mais as práticas parentais autoritativas.

Discussão

A disponibilidade das mães e dos pais às necessidades das crianças a partir de estimulação verbal e física, encorajamento para busca da autonomia, além da presença física, são fatores que contribuem significativamente para o desenvolvimento saudável das crianças. Neste estudo, a maioria das participantes desempenhavam atividade remunerada, o que é reconhecido como fator que pode causar impactos no cuidado dos(as) filhos(as) e nas famílias, de forma que mães que não trabalham formalmente podem cuidar de modo integral das crianças e, com isso, estão mais disponíveis quantitativamente para as crianças, enquanto as outras efetuam atividades laborais e, com isso, tendem a primar pela qualidade do tempo que passam juntos com os (as) filhos (as) (Fontoura & Moreira, 2016Fontoura, C. S., & Moreira, L. V. C. (2016). Relação trabalho-família nas perspectivas de mães inseridas e não inseridas no mercado de trabalho (pp. 79-95). In. E. Meireles. (Ed.). Trabalho, família e direito. CRV. ). As interrelações e atividades estabelecidas nos sistemas em que as pessoas estão inseridas, como trabalho e família, são potentes de modo a influenciar o desenvolvimento de outras pessoas (Bronfenbrenner, 2011Bronfenbrenner, U. (2011). Bioecologia do desenvolvimento humano: Tornando os seres humanos mais humanos. Artmed. ), como ocorre no contexto familiar e nas relações entre mães e crianças. Quando a mãe está inserida no contexto de trabalho, a educação infantil também tem grande importância na oferta de cuidados às crianças, constituindo-se como outra referência importante ao desenvolvimento infantil em uma perspectiva bioecológica (Merçon-Vargas et al., 2020Merçon-Vargas, E. A., Rosa, E. M., Rocha, R. Z. da, & Dias, A. C. G. (2020). Escola e resiliência sob a perspectiva da teoria bioecológica do desenvolvimento humano (pp. 49-64). In: A. G. Pessoa, & S. H. Koller (Eds.). Resiliência & Educação: Perspectivas teóricas e práticas. Vetor Editora.).

Considerando a literatura, esperava-se que as mães participantes desse estudo que trabalham em jornada parcial tivessem maiores médias em envolvimento, suporte emocional, estímulo à perseverança e utilização de práticas parentais autoritativas, mas essa hipótese foi apenas parcialmente confirmada. Embora tenham obtido médias altas para estímulo à perseverança, essa variável foi significativamente mais utilizada pelas mães com jornada extensa. Isso evidencia que há mais benefícios para essa amostra em trabalhar com jornada de trabalho parcial.

O estudo realizado por Guiginski e Wajnman (2019Guiginski, J., & Wajnman, S. (2019). A penalidade pela maternidade: Participação e qualidade da inserção no mercado de trabalho das mulheres com filhos. Revista Brasileira de Estudos de População, 36, 1-26. https://doi.org/10.20947/s0102-
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) salienta que mulheres que possuem filhos com idade pré-escolar tem maior probabilidade de exercerem atividade com jornada parcial e de modo autônomo, tanto no que se refere a sua livre escolha como em razão das restrições encontradas por elas nos exercícios das diversas atividades de cuidado com as crianças, famílias e trabalho. Contudo, entende-se que, muitas vezes, é inviável a adoção de carga horária reduzida em função da diminuição proporcional da remuneração, o que impacta diretamente a qualidade de vida e provimento familiar, realidade presente na maioria das famílias de camadas populares brasileiras. Neste sentido, o trabalho com jornada parcial frequentemente está relacionado a menores rendimentos e maior probabilidade de informalidade no mercado de trabalho (Reis & Costa, 2016Reis, M., & Costa, J. (2016). Jornada de trabalho parcial no Brasil. Mercado de Trabalho: Conjuntura e análise, 61, 33-40. https://shorturl.at/lqHP5
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), principalmente em relação à população de baixa renda.

Contudo, em contextos de níveis socioeconômicos mais altos, a jornada parcial pode contribuir para a conciliação entre o trabalho e as atividades relativas à vida familiar, em que as mães podem exercer suas atividades em períodos opostos aos das crianças em creches ou instituições de ensino infantil (Fontoura & Moreira, 2016Fontoura, C. S., & Moreira, L. V. C. (2016). Relação trabalho-família nas perspectivas de mães inseridas e não inseridas no mercado de trabalho (pp. 79-95). In. E. Meireles. (Ed.). Trabalho, família e direito. CRV. ). Nesses casos, a jornada de trabalho parcial é tida como uma estratégia de redução dos conflitos entre trabalho e família, visto que pode possibilitar tempo para conciliação das atividades dessas áreas (Barham & Vanalli, 2012Barham, E. J., & Vanalli, A. C. G. (2012). Trabalho e família: Perspectivas teóricas e desafios atuais. Revista Psicologia Organizações e Trabalho, 12(1), 47-60. https://shorturl.at/gsuTV
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). A possibilidade de ter horários flexíveis pode favorecer compatibilização das demandas do trabalho e da família (Gama, 2014Gama, A. S. (2014). Trabalho, família e gênero - Impactos dos direitos do trabalho e da educação infantil. Cortez.). Isso vai ao encontro dos resultados apresentados neste estudo, mas, para que isso ocorra, é fundamental que mães e pais tenham apoio dos seus superiores no local de trabalho e contem com creches e escolas disponíveis para atender essa demanda de conciliação entre cuidados com os (as) filhos (as) e trabalho das figuras parentais das crianças (Bronfenbrenner, 2011Bronfenbrenner, U. (2011). Bioecologia do desenvolvimento humano: Tornando os seres humanos mais humanos. Artmed. ).

Em outro contexto, as mães participantes com altas jornadas de trabalho tendem a encorajar mais os seus filhos (as) a superar limites e adversidades. Outra questão referiu-se ao estímulo a assumir riscos, que se relaciona a incentivar a autonomia da criança e encorajamento, de modo a se expor em atividades arriscadas que possibilitem a exploração dos ambientes. Ressalta-se que trabalhar com a jornada de trabalho integral pode diminuir, mas também favorecer a interação entre as figuras parentais e as crianças (algo observado na média de envolvimento das mães com jornada integral e extensa, embora os valores entre os grupos sejam aproximados).

Destaca-se que há diferenças nas práticas de cuidados e criação dos filhos (as) entre mães que trabalham e aquelas que não exercem atividade remunerada (Fontoura & Moreira, 2016Fontoura, C. S., & Moreira, L. V. C. (2016). Relação trabalho-família nas perspectivas de mães inseridas e não inseridas no mercado de trabalho (pp. 79-95). In. E. Meireles. (Ed.). Trabalho, família e direito. CRV. ). Essa questão foi observada nos resultados desse estudo, visto que mães que não possuem atividade remunerada e as que possuem jornada extensa adotam mais práticas parentais autoritárias na criação das crianças do que aquelas com jornada parcial. Assim, os extremos de carga horária de trabalho para as mulheres têm implicações na forma como gerenciam as estratégias de educação com foco no comportamento satisfatório das crianças. Na utilização de práticas parentais para o controle do comportamento das crianças, a falta de tempo e paciência, irritação, estresse, além da preocupação financeira, podem influenciar o descontrole emocional das mães e, com isso, podem bater nos(as) filhos(as) e negligenciar as necessidades afetivas das crianças (Bortolini & Andretta, 2013Bortolini, M., & Andretta, I.(2013). Práticas parentais coercitivas e as repercussões nos problemas de comportamento dos filhos. Psicologia Argumento, 31(73), 227-235. https://shorturl.at/ilwV8
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). Isso favorece o autoritarismo materno, com adoção da inflexibilidade, rigidez e baixa utilização de afeto. O emprego das mães durante a primeira infância dos filhos pode contribuir para que ela tenha menos tempo de dedicação e menor qualidade das interações, visto que, em função das atividades laborais, podem ter maiores níveis estresse e se sentirem cansadas, envolvendo-se menos nas atividades relacionadas à criação e educação das crianças (Cordero-Coma & Esping-Andersen, 2018Cordero-Coma, J., & Esping-Andersen, G. (2018). Parental time dedication and children’s education. An analysis of west Germany. Research in Social Stratification and Mobility, 55, 1-12. https://doi.org/10.1016/j.rssm.2018.03.006
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).

O estudo realizado por Senicato et al. (2016Senicato, C., Lima, M. G., & Barros, M. B. A. (2016). Ser trabalhadora remunerada ou dona de casa associa-se à qualidade de vida relacionada à saúde?. Cadernos de Saúde Pública, 32(8). https://dx.doi.org/10.1590/0102-311X00085415
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) enfatizou que as mulheres que não exerciam atividade remunerada apresentaram pior qualidade de vida em relação às outras, principalmente quando relacionado à saúde mental e física, vitalidade, aspectos emocionais e sociais, especialmente aquelas com baixo nível socioeconômico. Embora devamos ter cuidado com as generalizações desses resultados, eles podem nos ajudar a refletir sobre a criação e educação das crianças, como evidenciado nos resultados desse estudo, em que as mães que não exercem atividade remunerada possuem médias altas nos cuidados diretos e indiretos e na utilização de práticas parentais autoritárias e negligentes. Cabe ressaltar a importância do contexto e da qualidade do tempo nas relações familiares, além da presença de suporte de outras pessoas, como o pai e/ou membros da família extensa, e de outros sistemas, como o da educação infantil (Bronfenbrenner, 2011Bronfenbrenner, U. (2011). Bioecologia do desenvolvimento humano: Tornando os seres humanos mais humanos. Artmed. ). Além disso, salienta-se que a diminuição do tempo de dedicação com os cuidados dos(as) filhos(as) em função das atividades laborais não deve ser tomado somente um indicativo da escolha das mulheres, mas também uma condição fundamental à sobrevivência da família (Gama, 2014Gama, A. S. (2014). Trabalho, família e gênero - Impactos dos direitos do trabalho e da educação infantil. Cortez.).

Destaca-se que as mães com jornada parcial utilizaram mais práticas parentais autoritativas que as que possuem jornada integral. Essa questão reforça a necessidade e importância da utilização de estratégias mais democráticas como forma de proteção e estímulo ao desenvolvimento saudável dos (as) filhos (as), de modo que futuramente tenham atitudes mais humanitárias com as outras pessoas (Bortolini & Andreatta, 2013Bortolini, M., & Andretta, I.(2013). Práticas parentais coercitivas e as repercussões nos problemas de comportamento dos filhos. Psicologia Argumento, 31(73), 227-235. https://shorturl.at/ilwV8
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). Salienta-se a necessidade de maior atenção a essa fase crítica da vida das mulheres que se refere aos filhos pequenos, visto que há uma carência de ações e políticas governamentais com foco neste público (Zanfelici & Barham, 2015Zanfelici, T. O., & Barham, E. J. (2015). Fatores de risco ao envolvimento de mães com filhos pré-escolares: associações com estresse e Burnout. Psico, 46(3), 351-361. http://dx.doi.org/10.15448/1980-8623.2015.3.18663
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). As autoras evidenciam que há uma necessidade de redes de apoio e políticas públicas efetivas de saúde para essas mulheres e suas famílias, além da necessidade de maior oferta de creches, pré-escolas, assim como estímulo à valorização do equilíbrio entre as atividades relativas à vida familiar e ao trabalho (Wajnman, 2016Wajnman. S. (2016). “Quantidade” e “qualidade” da participação das mulheres na força de trabalho brasileira (pp.45-58). In N. Itaboraí , & A. Ricoli (Eds.). Até onde caminhou a revolução de gênero no Brasil?: Implicações demográficas e questões sociais. ABEP. https://shorturl.at/ltvyA
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).

Apesar de se reconhecer a importância do desempenho de uma ocupação remunerada para as mulheres, é preciso considerar a sobrecarga que isso pode representar (Senicato et al, 2016Senicato, C., Lima, M. G., & Barros, M. B. A. (2016). Ser trabalhadora remunerada ou dona de casa associa-se à qualidade de vida relacionada à saúde?. Cadernos de Saúde Pública, 32(8). https://dx.doi.org/10.1590/0102-311X00085415
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). O estudo realizado por Zanfelici e Barham (2015Zanfelici, T. O., & Barham, E. J. (2015). Fatores de risco ao envolvimento de mães com filhos pré-escolares: associações com estresse e Burnout. Psico, 46(3), 351-361. http://dx.doi.org/10.15448/1980-8623.2015.3.18663
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), com 56 mães trabalhadoras cujos(as) filhos(as) tinham idade de 3 a 5 anos, evidenciou que a demanda de atividades domésticas contribuiu para o surgimento de burnout e estresse e diminuiu o tempo de envolvimento com as crianças. A sobrecarga, o estresse, a fadiga (Vikram et al, 2018Vikram, K., Chen, F., & Desai, S. (2018). Mothers' work patterns and children's cognitive achievement: Evidence from the india human development survey. Social science research, 72, 207-224. https://shorturl.at/grxR7
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), a dificuldade no desempenho profissional, a ausência de suporte de apoio, os atrasos, o tempo reduzido para almoço e as interações com os (as) filhos (as) (D’Affonseca et al., 2014), além da indisponibilidade para brincar com as crianças (Fontoura & Moreira, 2016Fontoura, C. S., & Moreira, L. V. C. (2016). Relação trabalho-família nas perspectivas de mães inseridas e não inseridas no mercado de trabalho (pp. 79-95). In. E. Meireles. (Ed.). Trabalho, família e direito. CRV. ), são aspectos que influenciam negativamente a relação entre mães e filhos(as). Embora esse estudo não tenha dados referentes ao impacto do trabalho e da jornada de trabalho das mulheres, os resultados da pesquisa, quando analisados em conjunto, revelam que a maioria das participantes está inserida no mercado de trabalho e tentando conciliar o exercício do trabalho com o cuidado dos(as) filhos(as), o que pode ter reflexo negativo na saúde e disposição para o exercício das atividades diárias.

Salienta-se que a carga horária de trabalho é inversamente proporcional ao tempo disponível para as crianças (D’Affonseca et al., 2014D´ Affonseca, S. M., Cia, F., & Barham, E. J. (2014). Trabalhador feliz, mãe feliz? Condições de trabalho que influenciam na vida familiar. Psicologia Argumento, 32(76), 129-138. http://dx.doi.org/10.7213/psicol.argum.32.076.AO08
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). Mas, ainda que convivam com entraves advindos da sua inserção no mercado de trabalho, possuir uma remuneração é algo importante, visto que pode viabilizar reconhecimento social, aumento da autoestima, sentimento de utilidade, autonomia, competência e satisfação pessoal (Barham & Vanalli, 2012Barham, E. J., & Vanalli, A. C. G. (2012). Trabalho e família: Perspectivas teóricas e desafios atuais. Revista Psicologia Organizações e Trabalho, 12(1), 47-60. https://shorturl.at/gsuTV
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). Além disso, é um importante componente da identidade das mulheres (Fontoura & Moreira, 2016Fontoura, C. S., & Moreira, L. V. C. (2016). Relação trabalho-família nas perspectivas de mães inseridas e não inseridas no mercado de trabalho (pp. 79-95). In. E. Meireles. (Ed.). Trabalho, família e direito. CRV. ). As vantagens de possuir um trabalho remunerado referem-se ao aspecto financeiro e bem-estar, além da satisfação no trabalho que pode contribuir para maior comunicação entre mães e filhos(as) (D’Affonseca et al., 2014D´ Affonseca, S. M., Cia, F., & Barham, E. J. (2014). Trabalhador feliz, mãe feliz? Condições de trabalho que influenciam na vida familiar. Psicologia Argumento, 32(76), 129-138. http://dx.doi.org/10.7213/psicol.argum.32.076.AO08
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). Outra questão importante salientada pelas autoras é que a participação do marido ou companheiro na vida e nas atividades dos(as) filhos(as) favorece o aumento do tempo para as mães interagir com as crianças.

O desempenho dos papéis das mulheres nas relações entre o sistema família e trabalho pode gerar conflitos, principalmente em função das expectativas sociais criadas em torno disso (Antloga et al., 2020Antloga, C. S., Monteiro, R., Maia, M., Porto, M., & Maciel, M. (2020). Trabalho feminino: Uma revisão sistemática da literatura em psicodinâmica do trabalho. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 36(spe), e36nspe2. Epub https://doi.org/10.1590/0102.3772e36nspe2
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). No presente estudo, esse aspecto pode estar relacionado à observação do maior envolvimento com as crianças pelas mães com jornada de trabalho integral e extensa, mas maior utilização da punição e uso de práticas parentais menos democráticas e menor suporte emocional. Esses dados vão ao encontro da pesquisa realizada por Gomide (2009Gomide, P. I. C. (2009). A influência da profissão no estilo parental materno percebido pelos filhos. Estudos de Psicologia, 26(1), 25-34. https://doi.org/10.1590/s0103-166x2009000100003
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) no que se refere a utilização de práticas negativas, como abuso físico e supervisão estressante na educação, criação e correção dos comportamentos das crianças, o que evidenciou a dificuldade em utilizar práticas educativas positivas e mais democráticas. Além disso, pode-se inferir que essas mães podem experienciar o que destaca o estudo realizado por Yavorsky et al (2015Yavorsky, J. E., Dush, C. M. K., & Schoppe-Sullivan, S. (2015). The production of inequality: The gender division of labor across the transition to parenthood. Journal of Marriage and Family, 77(3), 662-679. https://shorturl.at/nuvP0
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) em que as mães que trabalham de modo remunerado podem realizar mais atividades de cuidado dos (as) filhos (as) e experienciar maior sobrecarga, limitações físicas e fadiga. Em contrapartida, a satisfação no trabalho pode estar relacionada a maior participação no lazer, atividades escolares e culturais das crianças (D’Affonseca et al., 2014D´ Affonseca, S. M., Cia, F., & Barham, E. J. (2014). Trabalhador feliz, mãe feliz? Condições de trabalho que influenciam na vida familiar. Psicologia Argumento, 32(76), 129-138. http://dx.doi.org/10.7213/psicol.argum.32.076.AO08
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). Salienta-se que, apesar das dificuldades de conciliar as exigências do trabalho e da família, o que por vezes favorece o surgimento de conflitos e estresses, a maternidade e criação dos(as) filhos(as) continua sendo algo central e desafiador para as mulheres (Fontoura & Moreira, 2016Fontoura, C. S., & Moreira, L. V. C. (2016). Relação trabalho-família nas perspectivas de mães inseridas e não inseridas no mercado de trabalho (pp. 79-95). In. E. Meireles. (Ed.). Trabalho, família e direito. CRV. ).

Considerações Finais

O objetivo desse estudo foi investigar as relações entre envolvimento, práticas parentais e jornada de trabalho de mães de pré-escolares. O estudo possibilitou compreender como as mães buscam conciliar a jornada de trabalho e cuidado das crianças, de modo a evidenciar o seu envolvimento e a utilização de práticas parentais. Destaca-se que a hipótese central desse estudo foi parcialmente confirmada: embora as mães com jornada parcial possuíssem altas médias para o suporte emocional e uso de práticas parentais autoritativas, elas não obtiveram médias de estímulo a perseverança maiores do que as mães com jornada extensa. Salienta-se que adoção da jornada de trabalho parcial mostrou-se benéfica para o envolvimento e participação na vida das crianças, mas destaca-se os resultados obtidos em relação às mães com altas jornadas de trabalho, visto que tendem a utilizar mais estratégias de conciliação entre as atividades laborais e familiares. Neste sentido, encorajar os(as) filhos(as) a superar limites e adversidades, bem como incentivar a autonomia da criança e encorajamento de modo a se expor em atividades arriscadas com supervisão materna e que possibilitem a exploração dos ambientes, podem favorecer a administração das demandas de cuidados, visto que as crianças são estimuladas a ser mais autônomas. Contudo, essas mães também obtiveram menores médias em relação a suporte emocional, algo que deve ser aprofundado e investigado em outras pesquisas, visto que a afetividade, os gestos de tranquilização e o encorajamento das crianças são aspectos importantes nas interações entre mães e crianças.

Ressalta-se também a necessidade de maior atenção às mães que não exercem atividade remunerada, devido à intensa frequência de realização de atividades de cuidados, muitas vezes sem ter um limite de tempo e/ou uma carga horária estabelecida para se dedicar a outras atividades, tais como o autocuidado. Além disso, é provável que essas mães contem com pouco envolvimento do pai nas atividades relativas as crianças e nas tarefas da casa, como também pouca ajuda de outras pessoas da família extensa e/ou de creches e instituições de educação infantil, contribuindo para a sobrecarga e o desgaste emocional no exercício da maternidade de forma solitária.

O trabalho e a família são importantes contextos que possibilitam a sobrevivência das pessoas e o provimento material das famílias, além de constituírem-se como um elemento que compõe a identidade das mulheres. Assim, salienta-se a necessidade de ações de promoção de saúde, programas de intervenção em saúde materna e estímulo a atividades de autocuidado. Além disso, destaca-se a necessidade de maior disponibilidade de vagas nas creches, pré-escolas e instituições de ensino infantil, bem como, contraturnos escolares, como formas de favorecer o desenvolvimento e a socialização das crianças como também, a possibilidade de inserção e/ou manutenção das mulheres no mercado de trabalho. Outra questão refere-se ao estímulo da participação paterna e de outros membros da família extensa nas atividades referentes às crianças, bem como na vida familiar.

As limitações desse estudo referem-se às famílias participantes serem somente da região sul do Brasil, o que incentiva que outras pesquisas com esse tema contemplem com a oferta de resultados oriundos de outros contextos regionais. Outra questão refere-se a fato desse estudo não contemplar o critério raça/cor e nem a discussão sobre essa questão, algo importante, visto que, no Brasil, as mães negras sofrem com o racismo desde a tenra idade, o que impacta suas relações sociais nos diversos espaços e no que se refere ao trabalho e à sua carga horária. Embora essa discussão não tenha sido contemplada neste estudo, reconhecemos que se trata de um aspecto essencial que será apresentado em pesquisas e estudos subsequentes, dada a sua relevância e importância no cenário brasileiro.

É importante ressaltar que estudos e pesquisas sobre famílias e desenvolvimento humano no contexto brasileiro devem contemplar a discussão racial. Tal como apresenta a pesquisa de Hodge-Freeman (2018Hordge-Freeman, E. (2018). A cor do amor: Características raciais, estigma e socialização em famílias negras brasileiras. EdUFSCar.), em que afirma que as hierarquias raciais influenciam a dinâmica e vivências das famílias negras brasileiras, como também o modo como mães e pais sentem, tratam e criam as crianças. E o estudo de Schucman (2018Schucman, L. V. (2018). Famílias inter-raciais: Tensões entre cor e amor. EDUFBA.), que afirma que, no contexto das famílias inter-raciais brasileiras, há conflitos permeados pela questão da raça e do racismo que geram feridas e traumas vivenciados na dinâmica familiar e que causam impactos no desenvolvimento das pessoas. Assim, essas autoras afirmam a importância do estudo das famílias brasileiras tendo a raça como elemento fundamental para compreensão da sua dinâmica e vivências e, principalmente, para entender os vínculos, afetos e traumas contidos no ambiente familiar. O envolvimento e as práticas parentais utilizadas pelas mães e pelos pais, bem com a sua carga horária de trabalho, possuem influência do contexto social e das concepções de raça e racismo vigentes no Brasil. A omissão de aspectos relativos à raça/cor evidencia o racismo cotidiano vivenciado pela população negra brasileira e reflete o conjunto de ações de promoção e prevenção em saúde, principalmente no desenvolvimento, na implementação e na avaliação das políticas públicas.

Para a realização de estudos futuros, sugere-se a condução de pesquisas que contemplem a realidade brasileira, privilegiando como participantes as mães que integram famílias em contexto de vulnerabilidade social e baixos níveis socioeconômicos, como também com aquelas que possuem altas jornadas de trabalho, mães de crianças em idade escolar e adolescentes.

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    Apoio: CAPES - Código de Financiamento 001. CNPq - Processo no. 306811/2019-7.
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    Artigo baseado na tese de doutorado da primeira autora.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Out 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    11 Jan 2021
  • Aceito
    03 Maio 2021
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