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O grupo operativo com mulheres em vulnerabilidade social

Resumo

A pesquisa estudou os resultados obtidos de grupo operativo com mulheres em condições de vulnerabilidade a partir da Psicanálise. Configurou-se como qualitativa, adotando a observação participante como técnica para coleta de dados. Foi realizado um grupo com mulheres que solicitaram atendimento psicológico em uma instituição social no interior do estado de São Paulo, pelo período de um ano, semanalmente, com média de seis a oito pacientes e duração de uma hora, visando desenvolvimento emocional pessoal e grupal. Ocorreram mudanças na percepção das relações intersubjetivas com alcance externo ao grupo e promoção da saúde mental. O grupo operativo demonstrou ser uma ferramenta positiva aos seus participantes, no qual questões subjetivas dos sujeitos e do grupo puderam ser elaboradas.

Palavras-chave:
grupos operativos; vulnerabilidade social; psicanálise; saúde mental

Abstract

The research studied the results obtained from an operative group with women under vulnerability conditions, considered from the perspective of psychoanalysis. We configured it as qualitative, adopting participant observation as a technique for data collection. A group with women who requested psychological care in a social institution in the state of São Paulo was attended for a period of one year, weekly, with an average of six to eight patients and duration of one hour, aiming at personal and group emotional development. There have been changes in the perception of intersubjective relationships with external range to the group and promotion of mental health. The operative group has shown to be a positive tool for its participants, where subjective issues of the subjects and the group could be elaborated.

Keywords:
operative groups; social vulnerability; psychoanalysis; mental health

O grupo existe desde os primeiros movimentos civilizatórios, nas primeiras condições de agrupamento e de ocupação, que serviram para a proteção e evolução da espécie. A estrutura grupal possibilita ao mesmo tempo a formação da identidade e da coletividade. Seu uso e significado alterou-se durante a história, dando novas configurações e compreensões de todo seu dinamismo. Atualmente, encontramos no grupo um potencial que vem se desenvolvendo desde a década de 50, pelo estudo das dinâmicas de grupo propostas por Kurt Lewin, e encontramos na sua aplicação grande eficácia terapêutica (Zimerman & Osório, 1997Zimerman, D. E., Osório, L. C. (1997). Como trabalhamos com grupos. Artes Médicas.).

Torna-se inegável que exercem uma influência recíproca, o indivíduo e o grupo, mais ainda quando nos detemos às manifestações inconscientes da situação grupal de uma massa (Freud, 1921/1996Freud, S. (1996). Psicologia de grupo e análise do ego. In S. Freud. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 18). Imago. (Obra original publicada em 1921).). Novas compreensões ampliam a utilização do grupo, saindo da simples união de pessoas para uma nova dinâmica organizada por fantasias, resistências e desejos, em que o sujeito ganha amplitude coletiva, corroborando para a ideia da formação de um aparelho psíquico grupal, assim como defende Kaës (2017Kaës, R. (2017).O aparelho psíquico grupal. Ideias & Letras.).

O primeiro grupo que participamos é aquele que faz a função familiar, que cuida das necessidades biológicas, afetivas e também provê os primeiros limites e regras que organizam o aprendizado do bebê/criança e sua entrada na sociedade. Não é possível a escolha de quem irá realizar essa função por parte do bebê, sabendo que ele já nasce inserido em um contexto, um tipo de família, uma cultura em que recebe passivamente informações nos primeiros anos de vida. A partir desse contexto, começamos a constituir nossa identidade e entramos em contato com outros grupos que, pela relação das identificações e o surgimento da autonomia, vão tecendo a singularidade e a manifestação do desejo, criando a possibilidade de uma escolha mais autêntica por meio das vinculações em nossos grupos (Zimerman & Osório, 1997Zimerman, D. E., Osório, L. C. (1997). Como trabalhamos com grupos. Artes Médicas.).

No trabalho com pequenos grupos, podemos classificá-los de acordo com suas variações, como idade, o ambiente de trabalho, suas configurações, abordagens e finalidades (Zimerman, 1993Zimerman, D. (1993). Fundamentos básicos das grupoterapias. Artmed.). Destacamos a finalidade por ser um fator que organiza a direção do grupo e a prática do coordenador, fornecendo uma dialética própria do trabalho grupal. Há dois tipos de finalidades: a operativa e a terapêutica. A operativa se distingue por seu enfoque no ensino-aprendizagem, explorando a tarefa para que seja possível a mobilidade de papéis, reestruturando o Esquema Conceitual Referencial Operativo (Pichon-Rivière, 2005Pichon-Rivière, E. (2005). O Processo Grupal (7a ed.). Martins Fontes.; Fernandes, 2003aFernandes, W. J. (2003a). A importância dos grupos hoje. Revista da SPAGESP, 4(4), 83-91. Recuperado em 02 de agosto de 2019, de Recuperado em 02 de agosto de 2019, de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script =sci_arttext&pid=S1677-29702003000100012&lng=pt&tlng=pt.
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). Todo esse processo que permite mobilizar os papéis gerando compreensão e superação da estereotipia são desdobramentos que interferem diretamente na saúde mental das pessoas do grupo operativo (Castanho, 2012Castanho, P. (2012). Uma introdução aos grupos operativos: Teoria e técnica. Vínculo, 9(1), 47-60. Recuperado em 01 de novembro de 2019, de Recuperado em 01 de novembro de 2019, de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1806-24902012000100007&lng=pt&tlng=pt .
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).

Não há possibilidade de se realizar um grupo com finalidade operativa sem que traga vestígios terapêuticos, ou que se façam grupos terapêuticos não existindo aprendizagem. Há nele a capacidade de influenciar positivamente a saúde mental e isso impacta a preferência do Ministério da Saúde pela sua utilização nos serviços primários de saúde (Brasil, 2011Brasil. Ministério da Saúde. (2011). Portaria nº 2.488, de 21 de outubro de 2011. ). No campo da saúde, percebemos que o uso dos grupos apresenta uma grande relevância na manutenção da saúde e na articulação da inserção social do sujeito (Fernandes, Souza, & Rodrigues, 2019Fernandes, E. T. P., Souza, M. N. L., & Rodrigues, S. M.. (2019). Práticas de grupo do Núcleo de Apoio à Saúde da Família: perspectiva do usuário. Physis: Revista de Saúde Coletiva, 29(1), e290115. Epub April 18, 2019. https://dx.doi.org/10.1590/s0103-73312019290115
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). Torna-se mais significativo quando constatamos que uma das marcas fundamentais da vulnerabilidade social é o fato de o indivíduo encontrar-se isolado e marginalizado devido a carências e/ou dificuldades encontradas em suas relações significativas com a comunidade a que pertence. Na área da assistência social, os grupos são uma ferramenta para a construção de vínculos, o fortalecimento das relações e a promoção da saúde mental (Menezes & Avelino, 2016Menezes, K. K. P., & Avelino, P. R.. (2016). Grupos operativos na Atenção Primária à Saúde como prática de discussão e educação: uma revisão. Cadernos Saúde Coletiva, 24(1), 124-130. https://doi.org/10.1590/1414-462X201600010162
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; Maia, 2017Maia, A. M. (2017). O atendimento em grupo operativo no CRAS: relato de uma experiência.Vínculo,14(1), 1-8. Recuperado em 02 de agosto de 2019, de Recuperado em 02 de agosto de 2019, de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1806-24902017000100007&lng=pt&tlng=pt .
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). No contexto de vulnerabilidade social, essas características são fragilizadas, há a exclusão ou privação de informações, direitos, recursos materiais, podendo se expressarem através da educação, renda, dificuldade de acessar serviços, entre outros (Didoné et al., 2020Didoné, L. S., Jesus, I. T. M., Santos-Orlandi, A. A., Pavarini, S. C. I., Orlandi, F. S., Costa-Guarisco, L. P., Gratão, A. C. M., Gramany-Say, K., Cominetti, M. R., Gomes, G. A. O., & Zazzetta, M. S.. (2020). Fatores associados a sintomas depressivos em idosos inseridos em contexto de vulnerabilidade social. Revista Brasileira de Enfermagem, 73 (Suppl. 1), e20190107. Epub June 01, 2020. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2019-0107
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).

Maia (2017Maia, A. M. (2017). O atendimento em grupo operativo no CRAS: relato de uma experiência.Vínculo,14(1), 1-8. Recuperado em 02 de agosto de 2019, de Recuperado em 02 de agosto de 2019, de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1806-24902017000100007&lng=pt&tlng=pt .
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), na experiência de desenvolver um grupo operativo com famílias no CRAS, nota que as atividades artesanais associavam a tarefa a conteúdos subjetivos. A sensação dos participantes ao final foi de satisfação por aprender e construir novos recursos a partir de si e suas vivências. Na rede da assistência social, os próprios usuários fortalecem a utilização das práticas grupais, motivados a participar e na recomendação para pessoas próximas (Fernandes, Souza, & Rodrigues, 2019Fernandes, E. T. P., Souza, M. N. L., & Rodrigues, S. M.. (2019). Práticas de grupo do Núcleo de Apoio à Saúde da Família: perspectiva do usuário. Physis: Revista de Saúde Coletiva, 29(1), e290115. Epub April 18, 2019. https://dx.doi.org/10.1590/s0103-73312019290115
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).

Este artigo deriva de uma dissertação de mestrado e tem o objetivo de demonstrar a aplicabilidade do grupo operativo com mulheres em condição de vulnerabilidade social, que não possuem condições financeiras de acesso a serviços privados, se deparam com longas filas de espera na saúde pública e demandam de cuidados à saúde mental, possibilitando espaço de fala, escuta, acolhimento do sofrimento e a compreensão e restituição da própria condição de vulneráveis.

Método

Delineamento

O delineamento da investigação foi desenvolvido através de uma abordagem qualitativa, tratando-se de um estudo estratégico. Para Minayo (2010Minayo, M. C. S. (2010). O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. (10a ed.). Hucitec.), a pesquisa estratégica se baseia nas teorias das ciências sociais focando nos problemas concretos que emergem na sociedade. Assim, esse tipo de pesquisa desperta um olhar voltado para o real, objetivando a ação da sociedade ou governamental, e contribui para a promoção da saúde mental com a população em contexto de vulnerabilidade social. Pode-se dizer que atua em uma intersecção entre a dimensão clínica e, portanto, no campo da Saúde, e de uma dimensão inerentemente social, afeita à área do Serviço Social. Nessa forma de intervenção, há uma superposição do clínico e do social.

A pesquisa qualitativa foi capaz de incorporar a questão do significado inerente aos atos, às relações e às estruturas sociais. Acredita-se na relação estreita entre o objeto e o sujeito, propiciando a emersão de significados, crenças e valores da realidade em foco (Minayo, 2010Minayo, M. C. S. (2010). O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. (10a ed.). Hucitec.). O trabalho com os participantes proveio da concepção de que suas falas são marcadas por diferentes dizeres, por saberes singulares a cada sujeito.

O foco de interesse da pesquisa por ser uma metodologia qualitativa foi amplo, havendo obtenção de dados descritos mediante contato direto e interativo dos pesquisadores com a situação do objeto de estudo. Compreendeu-se os fenômenos segundo a perspectiva dos participantes e, a partir daí, situou-se a interpretação dos fenômenos. Não se preocupou com o contexto numérico, mas com o aprofundamento acerca da compreensão de um grupo social, fundamental à pesquisa qualitativa (Gerhardt & Silveira, 2009Gerhardt, T. E., Silveira, D. T. (Orgs.). (2009). Métodos de pesquisa. Editora da UFGRS.).

Por se tratar da investigação de um grupo operativo com mulheres em condição de vulnerabilidade, visou abrir espaço para o acolhimento das questões de vulnerabilidade e sofrimento das participantes e, no decorrer do processo, reconhecer e ampliar a capacidade de resolução dos problemas prioritários, refletindo sobre o próprio discurso que orienta a condição de vulnerabilidade singular de cada uma, problematizando a vida cotidiana para melhoria das condições subjetivas de cada mulher. A partir de tarefas emergentes, discutirem propostas de ação as quais o grupo demandou, sendo o grupo um momento para repensar e resgatar as experiências, em um processo de construção coletiva do conhecimento e criação de um espaço aberto ao debate de questões que as próprias mulheres colocaram em reflexão.

Participantes

Os participantes desta pesquisa foram mulheres acima de 18 anos, que estavam na lista de espera de atendimentos psicológicos do GEAPSC - Grupo de estudos e atendimento psicoterapêutico social comunitário e que aceitaram participar do grupo com a finalidade de pesquisa, concordando e assinando o TCLE. O GEAPSC é uma instituição jurídica sem fins lucrativos, criada em 2002 no interior do estado de São Paulo por uma equipe de psicólogos voluntários, visando o atendimento psicológico para pessoas em vulnerabilidade social.

Houve um total de oito mulheres que participaram deste grupo. Amanda, 21 anos, solteira, estudante do último ano da graduação em matemática em Universidade Pública, não trabalhava e possuía dificuldades financeiras para se manter. Buscava os atendimentos pela tristeza frequente e dificuldades de concentração. Sara tinha 58 anos, era casada e mãe de 2 filhos, formada em Pedagogia, porém não exercia a profissão, estava desempregada e com problemas conjugais; se casou aos 19 anos. Lisa estava com 40 anos, era viúva e tinha um filho, estava desempregada e sofria profundamente pela morte do marido. O luto intenso permanecia após um ano, com crises permanentes de choro e o frequente relato de desamparo da mãe. Anna tinha 41 anos, 3 filhos e apresentava dificuldade em lidar com o namorado, não possuía condições financeiras de pagar pelo tratamento psicológico. Relatava a autodesvalorização e o desprezo de sua mãe. Bete, 78 anos, viúva e aposentada, mas ainda trabalhava como faxineira. Tinha os vínculos sociais e familiares fragilizados. Foi ao grupo para aprender a lidar com a angústia de cuidar sozinha de sua bisneta de 6 anos, enquanto sua neta estava presa por tráfico. Mariana, 39 anos e desempregada, procurava compreender seus sentimentos em relação ao ex-marido, que a traiu e deixou dívidas. Referia problemas na criação dos filhos. Simone tinha 28 anos, estava desempregada, relatava sobre as “manias de mentira” contadas para o marido, que sempre era aberto ao diálogo, mas que ela insistia em continuar mentindo em relação aos gastos financeiros. Camila, 50 anos, relatava ter fibromialgia e depressão, era aposentada e tinha dificuldades financeiras principalmente para a compra da medicação. Foram adotados nomes fictícios para preservar a identidade dos participantes.

Procedimentos para Coleta de Dados

Neste estudo, utilizamos anotações do grupo operativo com autorização prévia dos sujeitos envolvidos como instrumento para a coleta dos dados.

O grupo operativo ocorreu ao longo de um ano, com periodicidade semanal e duração de uma hora, fechado e contendo de cinco a oito participantes e um coordenador, sendo este o pesquisador. Os critérios de inclusão foram: mulheres, condição de vulnerabilidade social e acima de 18 anos. Os critérios de exclusão foram: patologias graves, transtornos mentais e tentativas de suicídio. As informações foram coletadas por meio dos relatos das próprias participantes na entrevista preliminar ao grupo, realizada por psicólogas responsáveis pelas triagens na instituição. As participantes trabalharam em torno de uma tarefa, construídas no grupo onde foram convidadas a refletir sobre o seu saber/fazer, por meio de debate dirigido para a escolha das estratégias mais adequadas ao enfrentamento dos desafios presentes. Foi através da resolução de problemas concretos oriundos da vida real que diversos saberes foram mobilizados e articulados, acarretando o desenvolvimento de novas competências que propiciaram novas respostas às condições da complexa realidade social, na qual se inscrevem no cotidiano. O enfoque do grupo operativo é o ensino-aprendizagem, levando assim a “a possibilidade de conhecer os dinamismos grupais inconscientes que podem tornar as posturas e os modelos anteriores mais rígidos ou flexíveis, dificultando ou facilitando a inscrição do novo” (Fernandes, 2003cFernandes, W. J. (2003c). Grupos de Reflexão e Grupos de Discussão. In W. J. Fernandes, B. Svartman & B. S. Fernandes(Orgs.), Grupos e configurações vinculares (pp. 205-214). Artmed., p. 209).

Utilizamos também como técnica de coleta de dados a observação participante, que tem sua origem na Antropologia. Assim como a definição de Becker (1994Becker, H. (1994). Métodos de pesquisas em ciências sociais (2a ed.). Hucitec.), onde a coleta ocorre também por meio da participação do pesquisador, permitindo a observação das relações e dos comportamentos. Visa estabelecer entre o pesquisador e o grupo uma relação que se limita ao trabalho de campo, a participação da forma mais profunda possível, por meio de uma observação e da experiência de momentos retomados como importantes. A observação foi selecionada como uma das técnicas de coleta de dados neste estudo, devido à possibilidade de se captar uma variedade de situações às quais não se teria acesso somente por meio de perguntas realizadas aos sujeitos e, mesmo na situação grupal, alguns dados escapam devido serem situações não espontâneas. Com base em Gonçalves (1994Gonçalves, R. B. M. (1994). Tecnologia e organização social das práticas de saúde. Hucitec.), a observação direta do processo viabiliza o esclarecimento de sua lógica interna, pois permite acompanhar e registrar os movimentos, os discursos e as ações. Para o registro das observações utilizamos o diário de campo seguindo a proposta de Bogdan e Biklen (1994Bogdan, R., Biklen, S. (1994). Investigação qualitativa em Educação: fundamentos, métodos e técnicas. Porto Editora.), que discorrem que o conteúdo das observações seja composto de uma parte descritiva e uma parte reflexiva. A parte descritiva relata detalhadamente os eventos e a parte reflexiva consta de impressões pessoais do pesquisador, pontos a serem esclarecidos, mudanças na perspectiva do observador, sentimentos, problemas, evoluções de suas expectativas e opiniões durante o estudo. O presente estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da FAMERP com parecer favorável de n. 3.382.605 e CAAE n. 13382619.5.0000.5415.

Análise de Dados

Utilizamos o método da análise de conteúdo, com o aporte da teoria de grupos operativos e da Psicanálise, a partir de uma aproximação ao diálogo e contextualização dos participantes da pesquisa, que teve como foco a relação entre o participante e o grupo. A análise se iniciou ainda durante a coleta, tornando-a mais sistemática e formal. Assim, “a análise de conteúdo parte de uma leitura de primeiro plano das falas, depoimentos e documentos, para atingir um nível mais profundo, ultrapassando os sentidos manifestos do material” (Minayo, 2010Minayo, M. C. S. (2010). O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. (10a ed.). Hucitec., p. 308).

Para Bardin (1977Bardin, L. (1977). Análise de conteúdo. Edições 70.), as fases se organizam em três: a pré-análise, que consistiu na organização dos diários de campo juntamente com as anotações das observações feitas ao longo dos encontros; as hipóteses; e os objetivos do grupo (Bardin, 1977Bardin, L. (1977). Análise de conteúdo. Edições 70.; Gomes, 2007Gomes, R. (2007). Análise e interpretação de dados em pesquisa qualitativa. In: Minayo, M. C. S. (Org.).Pesquisa social: teoria, método e criatividade (25a ed.). Vozes.). A exploração do material foi realizada com várias leituras dos dados colhidos e a organização da fundamentação teórica e dos núcleos de sentido (Gomes, 2007Gomes, R. (2007). Análise e interpretação de dados em pesquisa qualitativa. In: Minayo, M. C. S. (Org.).Pesquisa social: teoria, método e criatividade (25a ed.). Vozes.). Na última etapa, a de interpretação, foram significados os resultados brutos a fim pontuar interpretações aos objetivos ou a novas descobertas (Bardin, 1977Bardin, L. (1977). Análise de conteúdo. Edições 70.).

A Psicanálise de Grupos, com base nas contribuições dos autores Enrique Pichon-Rivière e René Kaës, contribuiu para a compreensão do material fornecido, atentando-se para além do manifesto, onde há a singularidade do sujeito na alteridade que em um grupo emerge e reorienta o encontro de sua própria subjetividade. Tendo por ferramenta a fala, que quando “dirigida ao outro não é sem efeito... pode não só transformar quem ouve, mas quem a faz” (Cruz, 2015Cruz, I. D. N. (2015). Contribuições da psicanálise lacaniana às práticas de grupo nas instituições de saúde. [Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo]. https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47133/tde-08052015-155653/publico/cruz_corrigida.pdf
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, p. 95), assim, ao possibilitar a troca de sentimentos, informações, apoio, abrindo-se para as fragilidades e potenciais que se projetam nos demais que também sofrem, obtêm-se consequências positivas (Silva, Castoldi, & Kijner, 2011Silva, A. K., Castoldi, L., & Kijner, L. C. (2011). A pele expressando o afeto: uma intervenção grupal com pacientes portadores de psicodermatoses.Contextos Clínicos, 4(1), 53-63. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1983-34822011000100006&lng=pt&tlng=pt.
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).

Influenciado por seu inconsciente dinâmico, onde pelo grupo há a possibilidade de apresentar-se em seus diversos papéis e pelos vínculos, que dele se extrai algo fundamental, pois “tem no cerne de sua conceituação a experiência emocional” (Fernandes, 2003eFernandes, W. J. (2003e). O processo comunicativo vincular e a psicanálise dos vínculos. In W. J. Fernandes, B. Svartman & B. S. Fernandes (Orgs.), Grupos e configurações vinculares (pp. 43-55). Artmed., p. 46).

Mediante isso, analisamos a dinâmica dos grupos operativos relacionando-os com a subjetividade latente dos participantes na construção dos sentidos. Adotamos os seguintes passos: leitura compreensiva do material selecionado, exploração do material por meio de identificação de sentidos subjacentes às falas e a elaboração de síntese interpretativa, buscando levar em conta o contexto, compreendido como o contexto sócio histórico dos pacientes e o encontro com os dados empíricos (Gomes, 2007Gomes, R. (2007). Análise e interpretação de dados em pesquisa qualitativa. In: Minayo, M. C. S. (Org.).Pesquisa social: teoria, método e criatividade (25a ed.). Vozes.).

Resultados e Discussão

Foram realizados 31 encontros no período de oito meses, iniciando com oito participantes e permanecendo com seis. A análise foi distribuída em três núcleos de sentido: a fantasia do abandono, o sofrimento pessoal (religião; o que é ser mulher; a porta ideal do grupo) e a importância do grupo.

A Fantasia do Abandono

Nas primeiras configurações do grupo, se torna primordial estruturá-lo como um espaço propício para a fala, a escuta e a tarefa. Definiu-se dias e horários, suportes físicos (sala, cadeiras, mesa) e suportes psíquicos (sigilo). Porém, neste campo grupal preparado para ser fértil, podemos nos deparar com sujeitos repletos de resistências “que impede o trabalho do tratamento, tudo aquilo que entrava o acesso do sujeito à sua determinação inconsciente” (Chemama, 1995Chemama, R. (1995). Dicionário de Psicanálise. Artes Médicas., p. 192).

A ideia de “patinho feito” surge como fantasia, trazendo concepções do amor que mereciam ter, a posição que ocupam e o desejo de se transformar em um objeto possível de ser amado. Nesse encontro, a temática se centrou na família:

Anna: Eu me decepciono cada vez mais, o problema da decepção é que você sabe que você é capaz, sei da minha capacidade, inteligência, mas não consegui ir em frente, eu creio que é bloqueio familiar, minha mãe tem seis filhos, três mulheres, três homens, e eu sempre fui a patinho feio . . . Eu não consigo parar, não sou de parar, mas a cada dia é difícil, e me vejo sozinha, tenho pai, tenho mãe e tenho irmãos, mas não tenho ninguém.

Inicialmente, Anna começa a falar de “bloqueio familiar” e posteriormente nomeia um objeto para depositar sua angústia, sua dificuldade de “não conseguir ir em frente”: a mãe. Depositar aspectos primitivos do inconsciente no objeto (ódio, angústia, amor) permite a criação da fantasia de que sendo o objeto culpado, nada tendo de se implicar em questões não pertencentes a ela, se desviando da culpa e da própria falta.

Na fala de um integrante do grupo, se apresenta a posteriori a ressonância, onde “a comunicação nasce dos indivíduos e processa-se na sua rede total” (Fernandes, 2003bFernandes, W. J. (2003b). A Psicoterapia grupo-analítica de Foulkes e a grupanálise de cortesão. In W. J. Fernandes, B. Svartman & B. S. Fernandes (Orgs.), Grupos e configurações vinculares (pp. 145-150). Artmed., p. 148), articulando a fantasia individual a uma configuração de um processo imaginário de ordem grupal. É válido compreender que o mito e a fantasia sustentam algo da mesma ordem, de organizar toda a experiência em torno de uma história com final já definido, mesmo que não se tenha conhecimento e autonomia sobre ele. Toda história “nova” contêm em seu núcleo vestígios de uma história contada por outrem, que revive no sujeito do inconsciente sua forma mais singular.

O mito é um conto no qual, através de charadas e mistérios, se desenvolve para dizer algo a mais; é “uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial” (Eliade, 1972Eliade, M. (1972). Mito e realidade. Perspectiva. , p. 9). Mas também possui parcelas de enigmas, confusões, que “parecem ser arbitrárias, sem significado, absurdas” (Lévi-Strauss, 1989Lévi-Strauss, C. (1989). Mito e significado. Edições 70., p. 20), mas configuram uma lógica que geralmente é encontrada universalmente. Freud (1914/2012Freud, S. (2012). Totem e tabu. In S. Freud. Obras completas (Vol. 11). Companhia das Letras. (Obra original publicada em 1914)) nos apresenta esta mesma ideia, de que eventos aparentemente desconexos, possuem uma significação na vida cotidiana do neurótico, ou seja, de que ainda detemos de alguma forma os traços anímicos ou míticos. Lacan (1952/2008Lacan, J. (2008). O mito individual do neurótico. Jorge Zahar. (Obra original publicada em 1952).), por sua vez, nos demonstra como de maneira particular o mito faz função na nossa singularidade. Apropriamo-nos do mito para demonstrar a organização psíquica do grupo, sua fantasia e seus modos de manifestação.

O que emerge como “patinho feio” toma corpo como mito no grupo e apresenta outras histórias que contemplam o significado que “não está ligado à sequência de acontecimentos, mas antes, se assim se pode dizer, a grupo de acontecimentos” (Lévi-Strauss, 1989Lévi-Strauss, C. (1989). Mito e significado. Edições 70., p. 66).

Lisa: - Mãe, vamos comigo pra minha casa? Porque, imagina como eu estava, vinte anos com uma pessoa que eu havia acabado de sepultar (voz chorosa), imagina o estado que eu estava, você sabe o que ela falou pra mim?! Não. Eu guardei meu carro e fui sozinha e fiquei sozinha e fiquei lá, sozinha durante cinco meses que depois eu vendi a casa e fui para outro lugar. Ontem aconteceu isso com o carro, todo mundo querendo me ajudar, me confortar, e ela? Aí você pensa, ISSO É MÃE OU ISSO É UMA PARIDEIRA? Pra mim isso se chama parideira, infelizmente. Então acho que essa dor, é por conta dessa rejeição....

Amanda: Continuando isso que a Lisa falou de família, essa semana fiquei em casa, e minha avó por parte de mãe, é igual a mãe da Lisa, faz diferença tanto de filho quanto de neto.

Mariana: É complicado lidar com essa situação, o que a Lisa falou que mexe comigo, mãe, essa parte de mãe..., mas eu também sinto esta rejeição e como você falou que ela não te procurou nos momentos que você sentiu mais a necessidade dela, a gente sente todo dia, porque mãe a gente tem vontade de ter todo dia perto, tem momentos que é complicado, você quer muito. Olha só, todas nós temos problemas com mãe!

A mãe como objeto depositário permite aos outros transferirem suas frustrações no mesmo objeto, e nisso é elaborado um pacto inconsciente, o da identificação “um processo no qual se dá a construção da nossa identidade, a nossa subjetividade é constituída neste processo - reconhecer esses outros eus em nós” (Pagés & Ávila, 2003Pagés, C., Ávila, L. A. (2003). Visão freudiana dos grupos: da horda ao vínculo. In W. J. Fernandes, B. Svartman & B. S. Fernandes(Org.), Grupos e configurações vinculares (pp. 75-86). Artmed., p. 85), onde os afetos singulares de cada participante podem ser lançados sobre uma mesma representação, permitindo o primeiro vínculo.

Pensemos então que poderia se tratar de uma alienação, entretanto, esse processo se daria pela entrega total à deriva do Outro. Os sujeitos que estão no grupo não se alienam, mas adormecem momentaneamente sobre as identificações, que propiciam o vínculo ao mesmo tempo em que há uma suspensão da mobilização de mudança, logo, sujeitam-se, evidenciando que cada um “se encontra submetido e estruturado nessa sujeição”, onde “inscreve-se também nas relações mútuas entre o sujeito e o outro” (Kaës, 2011Kaës, R. (2011).Um singular plural: A psicanálise à prova do grupo. Edições Loyola Jesuítas., p. 222).

O sujeito faz uso deste espaço como sendo dele e investido por ele, construindo pontes inconscientes que formam e organizam o corpo do grupo. Há então uma sujeição do grupo, posicionando o sofrimento como responsabilidade de outro e, assim, a primeira fantasia emerge. A fantasia “é um pequeno romance de bolso que carregamos sempre conosco e que podemos abrir em qualquer lugar sem que ninguém veja nada nele, no trem, no café e o mais frequentemente em situações íntimas” (Nasio, 2007Nasio, J. D. (2007). A fantasia: O prazer de ler Lacan. Zahar., p. 9).

A fantasia é necessária para lidar com a angústia da impotência de realizar os desejos inconscientes e auxilia a partir da identificação na vinculação dos sujeitos em um grupo, sendo fator organizador das primeiras dinâmicas, e que “cada integrante leva ao grupo um esquema de referência e, com base no denominador comum destes sistemas, irá se configurar, em sucessivas "voltas de espiral", um ECRO grupal” (Pichon-Rivière, 2005Pichon-Rivière, E. (2005). O Processo Grupal (7a ed.). Martins Fontes., p. 144).

Questiona-se sobre a relação com a mãe e a família, criando espaço para que o objeto possa ser descrito de outra maneira, detendo aspectos que ampliem o olhar, dando condição às novas simbolizações.

Mariana: Minha mãe não vibra com minha vitória, mas nas derrotas ela vibra, eu sinto isso, que ela vibra!... Mas ela não vai mudar, tem 70 anos, não vai, não adianta, tem coisa que... Eu mudei com ela. Eu mudei. Até então, eu sofria de ficar derrotada, por conta da minha mãe. Dói ainda, lógico, pra caramba.

Anna: Sinto falta desse abraço desse carinho de mãe. Mas aí eu tenho umas vizinhas que são mais que minha mãe, mas não é minha mãe!

Depois de atribuir a culpa de todos os problemas à mãe, a partir de uma reflexão feita pelo coordenador “Será que sempre foi assim a relação com a mãe?”, instala-se um silêncio, “una de las potencias de lo grupal radica em la possibilidade que pueden oferecer los grupos de instalar una demora, un rodeo - como le gustaba llamarlo a Freud -, en el mismo recorrido de una tarea” (Jasiner, 2007Jasiner, G. (2007). Coordinando grupos: una lógica para los pequeños grupos. Lugar Editorial., p. 33).

Neste sentido, ao apontar uma incógnita, se apresenta o furo, que desmonta o discurso fantasioso para entrar em contato com outro aspecto, então retorna o sujeito deslocado da posição que mantinha e é remetido à falta que consiste na própria estruturação do sujeito e do grupo. Inicia-se um processo onde a configuração da falta do amor materno se torna falta do grupo por compartilhar o mesmo significante: “Essa noite eu lembrei dela”, “Sinto falta desse abraço desse carinho de mãe”, “Hoje em dia falo de boa, mas eu chorava. É muito complicado esse negócio gente, é muito triste”.

Foi necessário trincar o elo que ligava o mito e a fantasia, mito este que posicionavam os sujeitos e o próprio grupo incapazes de refletir, pois “o mito fracassa em dar ao homem mais poder material sobre o meio” (Lévi-Strauss, 1989Lévi-Strauss, C. (1989). Mito e significado. Edições 70., p. 28). Já a fantasia que articulava a posição da mãe como hostil, falando na verdade de um desejo, ela “é a encenação de um desejo imperioso que não pode ser saciado na realidade” (Nasio, 2007Nasio, J. D. (2007). A fantasia: O prazer de ler Lacan. Zahar., p. 10).

Fazemos uso da história do “patinho feito” para demonstrar que toda a reconstrução ocorre em meio a este mito, reproduzido na condição edípica, e que segue na estrutura de um inconsciente atemporal (Freud, 1915/1996Freud, S. (1996). O inconsciente. In S. Freud. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 14). Imago. (Obra original publicada em 1915).), onde o que afeta o sujeito e o faz sofrer não é marcado somente por seu tempo cronológico ou acontecimentos recentes, mas pelo retorno de questões infantis que organizam a vida adulta. Pontua ainda Freud (1931/2019Freud, S. (2019). Sobre a sexualidade feminina. In S. Freud. Amor, Sexualidade, Feminilidade. Autentica. (Obra original publicada em 1931).):

Em primeira linha, pode ser mencionado o ciúme de outras pessoas: irmãos, rivais, ao lado dos quais o pai também tem lugar. O amor da criança é desmedido, exige exclusividade. Contudo, uma segunda característica é que esse amor, afinal, também não tem meta, é incapaz de uma satisfação plena e, fundamentalmente por isso, está condenado a terminar em decepção e a dar lugar a uma posição hostil. (p. 293)

O filho não amado e rejeitado entre os irmãos repete-se. Apresentam no outro materno a insuficiência de uma função que obviamente nunca satisfará o grupo, por ser uma solicitação do Supereu, que por característica sempre exigirá muito e consequentemente o alcançado nunca será o suficiente. Reencontrar este amor que se torna representante da falta repete-se incessantemente, pois está sempre a buscar e não encontrar. O investimento pulsional se desloca para o grupo imaginariamente, criando esse espaço em que a falta pode ser preenchida associando o espaço de fala, escuta e respeito como ambiente materno, completo, onde o patinho possui a oportunidade de se tornar um cisne com características valorizadas, podendo ser amado e que reencontra o amor no grupo de outros que compartilham a mesma fantasia. E, ao confrontar a relação da realidade com a fantasia, furos vão aparecendo e tentam ser suturados, mas sempre há um vazio, impossível de se cobrir, mas que se segue tentando imaginariamente. Essa fresta insiste em se abrir através do que Freud (1921/2011) nos aponta como ideal do eu.

Para Kaës (2011Kaës, R. (2011).Um singular plural: A psicanálise à prova do grupo. Edições Loyola Jesuítas.) a dessujeição é um processo complexo que se baseia na experiência de separação das alianças inconscientes alienantes que produziam alienação. No grupo o que é dito não pode ser apagado, é sustentado pelas relações intersubjetivas e retornando como questão na tarefa do grupo. Segundo Jasiner (2007Jasiner, G. (2007). Coordinando grupos: una lógica para los pequeños grupos. Lugar Editorial.),

el lugar de la tarea refiere a lo inacabable, incompletable, que nunca se deja asir del todo, que falta realizar y que a la vez marca una ilusión, un ideal, y cada vez, desde el dispositivo, está planteado que será necessário el outro para su realización. (p. 28)

Logo, a tarefa tem essa função de investimento, organização e desorganização da estrutura atual, de ressignificação em três níveis, o intrapsíquico, o intersubjetivo e o espaço do grupo.

O Sofrimento Pessoal: A Religião

Ao se formar, o grupo integra partes da história dos sujeitos nesse “momento grupal” e configura uma lógica, na qual alguns aspectos se tornam mais determinantes em detrimentos de outros, principalmente no modo como compreendem a realidade e o sofrimento. Torna-se característica do grupo a utilização da religião para explicar e sustentar dois pontos: o primeiro é a religião como suporte para passar pelo sofrimento, pois sem ela, é impossível; o segundo é o designo do sofrimento, em que sentem que são destinadas a passar por ele.

Nestes fragmentos de sessões, podemos encontrar nas falas a percepção de Deus como aquele capaz de ajudar a suportar o sofrimento.

(sessão 2) Sara: Realmente a dor de perder alguém próximo é grande, perdi meus pais e isso é uma dor que corrói, que com o tempo vai passando e Deus pode ajudar muito.

(sessão 19) Camila: Você pega essa tristeza e o amor que você tem por Deus é grande, entrega pra Deus.

(sessão 20) Bete: Meu marido foi muito bom na minha vida, mas agora sofro criando a Silvia (neta), agora a Gisele (bisneta), por essas coisinhas assim, eu tenho de tudo graças à Deus, ninguém precisa me ajudar, quem me ajuda é Deus.

O processo de desenvolvimento cultural é marcado pela tentativa do domínio da natureza, utilizando-se de várias explicações ao longo da história, seja através do mito, pelos deuses ou a própria ciência. Entretanto, insiste em falhar; há sempre enigmas que não são possíveis de responder, elevando nossa frustração, desamparo “e, junto com ele, seu anseio pelo pai e pelos deuses” (Freud, 1927/1996Freud, S. (1996). O futuro de uma ilusão. In S. Freud. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 21). Imago. (Obra original publicada em 1927)., p. 26). Por isso, a cultura encontra na religião inquestionáveis certezas para eufemizar o contato com nossa própria falta. No decorrer das sessões, outro aspecto do poder da divindade aparece, onde propõe o destino, esse desconhecido e sem sentido para os humanos.

(Sessão 2) Vanessa: Perdi meu pai, me aproximei dele nos últimos momentos e essa perda dói, mas Deus sabe o que faz, portanto é na hora dele.

(Sessão 10) Simone: Isso foi um trauma, porque eu cuidei deles (refere-se aos irmãos). Até hoje eu penso, Deus escreve certo por linhas tortas, de eu não estar lá por passar por isso (morte do irmão).

(Sessão 15) Amanda: O meu último sonho é casar, se um dia Deus quiser, construir minha família.

(Sessão 24) Bete: Sempre eu falava pra ela desse moço, ele foi preso dentro da minha casa, eu tinha bandido dentro da minha casa, falei pra ele: - Você é ladrão! Olha a coragem, porque eu via, você acredita que ele queria me matar dentro do meu apartamento? Percebi, Deus levou ele embora.

O destino e a permissão estão diretamente ligados à divindade para “reconciliar os homens com a crueldade do Destino, particularmente a que é demonstrada na morte, e compensá-los pelos sofrimentos e privações que uma vida civilizada em comum lhes impôs” (Freud, 1927/ 1996Freud, S. (1996). O futuro de uma ilusão. In S. Freud. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 21). Imago. (Obra original publicada em 1927)., p. 26). Podemos definir que “a Providência Divina exprime a vontade divina nas leis que regem o mundo. Evidentemente, estas regras são necessariamente benévolas, pois Deus não conteria nada em si que pregaria sua destruição” (Coppieters, 2003Coppieters, L. (2003). A Providência Divina e o Homem de Bem. Primeiros Escritos, (6), 115-122. https://doi.org/10.11606/issn.2594-5920.primeirosestudos.2003.104673
https://doi.org/10.11606/issn.2594-5920....
, p. 117). Somente sua aparência seria severa, mas com finalidades que nos protegeriam de forças externas e que seriam recompensadas de algum modo, seja nesta vida ou após a morte (Freud, 1927/1996Freud, S. (1996). O futuro de uma ilusão. In S. Freud. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 21). Imago. (Obra original publicada em 1927).). De acordo com Freud (1921/2011), o grupo é resistente quando se trata de abrir mão de seus investimentos pulsionais e repele todo aquele que busca fazê-lo.

Coordenador: Então vocês não têm controle de nada?

Mariana: Não, a gente não tem.

Coordenador: Estamos aqui à toa, então?

Sara: Pode parar. Claro que tenho, venho porque quis, mesmo me arrastando.

Anna: Eu penso não ter controle de nada, porque penso minha vida todinha, estruturo tudo, quando chego lá na frente...

Sara: Não sai do jeito que a gente planeja.

Mariana: Nunca sai.

Coordenador: Se são providências, vocês querem mudar o quê?

Anna: Providência em uma certa situação.

Sara: (risos)

Anna: Mas nessa situação envolve um monte de coisas, que não pode ser a mesma pessoa, se for pra ser a mesma pessoa, porquê vem essa providência?

Obviamente, destituir Deus não foi uma escolha interventiva, acarretaria diversos problemas, pois negar o que até o momento é constituinte da subjetividade, intermediador das relações, e estruturante da psique dos sujeitos e do grupo seria fracassar na ética da escuta analítica (Lacan, 1959-1960/2008Lacan, J. (2008). O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Jorge Zahar. (Obra original publicada em 1959-1960)), provavelmente nos direcionando a uma interpretação selvagem (Freud, 1910/2013Freud, S. (2013). Sobre Psicanálise “Selvagem”. In S. Freud. Obras completas. Companhia das Letras. (Obra original publicada em 1910)). Assim, os riscos seriam inimagináveis, retirar do grupo o mecanismo pelo qual faz uso para não se haver com a angústia de um não saber. Isso levaria o grupo a resistências devastadoras, até mesmo à sua dissolução ou. por outro lado (pouco provável), aceitação sobre a condição de troca, que levaria ao coordenador assumir a posição de detentor da verdade, antes nas mãos de Deus, que levaria o analista a fracassar novamente em sua escuta.

A religião é parte importante da cultura, influenciando diretamente a vida psíquica das pessoas. Ela proporciona um aparato de explicações que significam as experiências da vida, orientam a moral e a organização social desde os tempos primitivos (Freud, 1914/2012Freud, S. (2012). Totem e tabu. In S. Freud. Obras completas (Vol. 11). Companhia das Letras. (Obra original publicada em 1914)). Durkheim (1960/2008Durkheim, É. (2008). As formas elementares da vida religiosa. (3a ed.). Paulus. (Obra original publicada em 1960)) fundamenta, dentre os aspectos primordiais da religião, um no qual é necessário destacar: o sobrenatural como explicação dos fatos.

Uma noção que geralmente é considerada como característica de tudo aquilo que é religioso é a de sobrenatural. Com esse termo entende-se que toda ordem de coisas que vai além do alcance do nosso entendimento; o sobrenatural é o mundo do mistério, do incognoscível, do incompreensível. A religião seria, assim, uma espécie de especulação sobre tudo aquilo que escapa à ciência e, mais geralmente, ao pensamento distinto. (pp. 54-55).

Podemos então pensar a religião como um desdobramento do mundo anímico, mais organizado e com seu modelo de transmissão sendo feito pela família de maneira a fundamentar comportamentos, ou seja, em sua potencialidade moral.

O Que é Ser Mulher?

O segundo ponto a ser discutido abre espaço para como a figura da mulher vem a se constituir uma representação no grupo. Na sessão 17, refletimos sobre o que seria ser mulher.

Amanda: A mulher tem muita determinação, tem mulher que é casada, solteira, mãe, independente. Acho que todas as mulheres, na rua, independente de idade, vive com insegurança e com medo do que vai acontecer, acontece muita violência verbal, ser mulher é ser discriminada, a sociedade julga. Ser mulher é tudo isso, tem que ser forte, determinada.

Coordenador: Essa é a realidade?

(Todas concordam em silêncio, simplesmente com o movimento da cabeça).

Bete: A gente tem que ser bem forte. Mas nem todas tem a capacidade igual a nós, uma é diferente da outra. Eu acho que desde quando nasci eu sou assim, o que vir na frente você enfrentar.

Coordenador: Mulher é enfrentar? Vocês concordam.

Mariana: Sim, é o alicerce, suporte, a família, força coragem, mas resumindo é força, é fortaleza, ser mulher é ser forte.

Coordenador: Além de enfrentar, tem que ser a base de tudo?

Anna: Acredito que seja isso mesmo. Quando tem problema na família a primeira pessoa que eles procuram, filho, marido, é o suporte familiar que é a base feminina.

A principal característica que constrói a mulher para este grupo é a força que ela possui, por enfrentar diariamente as adversidades da vida e também por ser a “base”, remetendo a um duplo sentido: àquela que pode prover a família, ser fértil e que deve suportar como uma base estrutural os investimentos de terceiros, sendo forte ou, em outros termos. passiva. Mas cabe o termo passivo não ser tomado em seu aspecto moral, mas em seu aspecto libidinal tendo em vista que “é preciso uma grande porção de atividade para que uma meta passiva se estabeleça” (Freud, 1933/2019Freud, S. (2019). A feminilidade. In S. Freud. Amor, Sexualidade, Feminilidade. Autêntica. (Obra original publicada em 1933), p. 317). E é devido a essa proporção investida para ser passiva, para receber o que o outro deposita em mim, que podemos pensar no grupo como mantenedor de um modo singular de sofrimento.

Recorremos à Molina (2011Molina, J. A. (2011). O que Freud dizia sobre as mulheres. Cultura Acadêmica.), que corrobora à ideia de mulher como uma posição de existência, e por ser uma posição é suscetível de mudanças. Entretanto,

As formações de linguagem precedem os indivíduos e os inscrevem em determinadas posições na ordem simbólica; “homem” e “mulher” são os primeiro significantes que nos designam assim que chegamos ao mundo, antes de qualquer possibilidade de escolha, antes que o infans se constitua em sujeito de desejo. (Kehl, 2008Kehl, M. R., (2008). Deslocamentos do feminino (2a ed.). Imago., p. 9).

Fornecer às gerações subsequentes posições definidas é uma característica fundamentalmente cultural, onde a feminilidade se construirá somente a partir da identificação com estas posições, pelas escolhas do sujeito, “a feminilidade é um objeto de pensamento inapreensível, e por outro lado, para as próprias mulheres, faz parte do registro do ser inefável que não tem necessidade alguma de ser pensado para ser” (André, 1998André, S. (1998). O que quer uma mulher? Zahar., p. 190).

Nada do que dizem ser uma mulher é questionado, tudo é certeza. A mulher é forte e deve continuar a ser. A representação que se faz é a emergência da posição ocupada por elas entre os aspectos restringidos que a cultura forneceu e à escolha que fizeram desses aspectos, a partir de suas identificações.

O ideal do Grupo

E há no grupo quem encarne a “Mulher” possuidora daquilo que falta a todas, assumindo a função fórica de porta ideal. É através de Bete que isso se torna possível. É a mais idosa do grupo (78 anos), viúva há 16 anos e cuida da bisneta de 6 anos de idade, pois a neta está detida por tráfico de drogas. Em um período da vida, conviveu com um traficante por ser namorado da neta. Todos moravam juntos na mesma casa e Bete afirmava que ele planejava matá-la. Sente-se abandonada pela família (irmãos e irmãs), mas relata não possuir rancor e declara em vários encontros que devemos ser fortes, além de não se sentir culpada.

(Sessão 12) Bete: Eu não me culpo assim. Eu posso ter feito coisas erradas na minha consciência, mas eu não me culpo não, mas tem pessoas que falam: - Eu sou a culpada. Isso é triste pra você ouvir. É no dia a dia que vai acontecer coisas boas, tudo muda, no dia a dia vai mudar.

É apresentada uma função que coloca Bete como o porta ideal, não se culpar. Ela nos mostra que não sente culpa como as demais do grupo. Em um encontro, que ficou definido a leitura de uma carta expressando quem eram, somente Bete escreveu e, portanto, foi a única a ler. Após a leitura, comoveu todas as participantes.

Sara: Uau.

Bete: É o que eu achei para escrever, demorei dois dias pensando e depois eu escrevi.

Sara: Que lição.

Anna: Está ótimo, deu uma lavada em nós.

Sara: Gostei Bete, agora eu criei coragem, essa é uma grande reflexão para a gente.

Bete apresenta aspectos admiráveis ao grupo, como a fé, a força, o enfrentamento dos problemas, mas algo primordial foi a apresentação da carta. Ela foi capaz de executar a tarefa proposta, o que nenhuma outra participante fez, colocando-se em uma posição diferente. O que o Eu não foi capaz de fazer, somente o ideal consegue. Bete é o exemplo prático disso. Ela causa admiração das demais participantes, ela se desloca do “não fazer” para “o fazer” rompendo com o ECRO.

(Sessão 21) Anna: Eu acho ela muito forte (referindo-se a Bete), quero chegar nesse estágio ai.

Bete: Lá onde eu moro, todas as pessoas vêm falar comigo: - Ah, eu amo a senhora, a senhora é uma guerreira. Eu dou atenção pra todas iguais.

Camila: A senhora é uma pessoa de fé.

Como Freud (1921/2011) elaborou, os sujeitos da massa escolhem um objeto e o colocam no lugar de ideal de eu, assim se identificando uns aos outros por via do Eu. Bete é este objeto, e traz traços em que se identificam, como a fé e também por atributos que desejam. Não devemos esquecer que Bete ocupa a função fórica, e “os sujeitos que as preenchem desfrutam certos benefícios e sofrem alguns inconvenientes” (Kaës, 2011Kaës, R. (2011).Um singular plural: A psicanálise à prova do grupo. Edições Loyola Jesuítas., p. 165). Ampliamos nosso olhar para Bete como quem possui benefícios por aceitar ser colocada no lugar de portal ideal, mas que só pode se confirmar na medida em que se sustente tal posição. Ela cede ao inconsciente que nos apresenta o seu caráter transformador, que é a prova real daquilo que o grupo almeja.

O ideal é um conceito que surge juntamente com a proposição de função fórica. A função fórica é um lugar assumido por um membro do grupo, onde enuncia algo do grupo e suas relações, “é portador de sinais: um semáforo... do processo de simbolização que pode se apoiar sobre esses sinais” (Kaës, 2011Kaës, R. (2011).Um singular plural: A psicanálise à prova do grupo. Edições Loyola Jesuítas., p. 170). Ser o porta ideal é necessariamente carregar as características do ideal de eu. Freud (1921/2011) descreve como instância que se separa do Eu, e que na medida em que as exigências externas não podem ser satisfeitas pelo Eu, seria no ideal do Eu que ele encontraria esta satisfação. Ele pode encarnar “na figura do líder, que recebe e representa a parte abandonada das formações do ideal de cada um” (Kaës, 2011Kaës, R. (2011).Um singular plural: A psicanálise à prova do grupo. Edições Loyola Jesuítas., p. 164).

O Efeito do Grupo Operativo

O grupo é um espaço de encontro que atravessa o campo dos significados, onde se ouve para além do que é dito, “uma metacomunicação, ou seja, simultaneamente comunica algo mais” (Fernandes, 2003eFernandes, W. J. (2003e). O processo comunicativo vincular e a psicanálise dos vínculos. In W. J. Fernandes, B. Svartman & B. S. Fernandes (Orgs.), Grupos e configurações vinculares (pp. 43-55). Artmed., p. 49).

(sessão 10) Lisa: Pra mim o grupo é importante porque vejo que todo mundo tem problemas, porque a gente pensa que é só a gente! Começa a ouvir histórias diferentes, que cada um age de uma forma.

(sessão 26) Camila: Aquela coisa, graças a Deus eu ainda consigo sorrir por fora, mas tem hora que a gente chora por dentro né, mas vem aqui, e a gente fala, fala, fala, mas consigo voltar bem pra casa, não resolvi aqui ainda tudo, é o que ela falou, aqui a gente pode falar das nossas mazelas...

Identificar que os outros possuem problemas é ver através do outro a si mesmo, que até então estava sozinho. Em situações como essa, a angústia é compartilhada e, no simples ato de se escutar, o sentimento de acolhimento é elevado, propiciando alívio momentâneo. A fala que é propiciada pelo grupo e, onde é possível sofrer, oportuniza a escuta de diferentes histórias, coloca o sujeito para pensar, refletir a partir do lugar do outro que, na tentativa de ajudá-lo, encontra ferramentas para as próprias questões.

(sessão 20) Bete: Eu adoro participar, eu quis vir mesmo. Aqui eu quis continuar, um lugar pra abrir meu coração, tenho irmão, tenho irmã, mas não ligam, então aqui é um encontro.

(sessão 27) Sara: Pra mim parece que é uma família, parece que é uma família, entende?! É muito gostoso, pra mim é muito bom.

É a partir da família que se descobre e se faz humano. Ela geralmente é o mediador entre a civilização e esse organismo puramente pulsional que vem ao mundo, nos proporciona a linguagem, transmitida através dos afetos e suas representações. A família é um encontro, seja por laços sanguíneos ou por outras vias. É por ali que o sujeito começa a caminhar. E o grupo é o espaço onde se aprende a caminhar novamente, de outras maneiras. É um novo Outro, que permite discursar e oportuniza ouvir a nossa própria voz grupal. É ali que pode advir um desejo, é o espaço que foi capaz de absorver o que nenhuma família anterior conseguiu, onde a falta de um membro é falada e sentida. O grupo encarna a metáfora familiar, nos diz daquilo que sentimos falta nas famílias de cada um, o lugar onde possamos dizer sem julgamentos morais, mas que também apresenta as próprias falhas.

A dialética do grupo remonta um cenário capaz de aproximar o sujeito de seu passado, presente e futuro, contrastando com outros sujeitos e que criam uma realidade própria, em um devir da experiência que não se pode apreender temporalmente, “o sujeito é submetido à prova das alianças inconscientes de que ele foi parte integrante e das quais ele tem que se libertar para alçar à consciência de que essas alianças foram, por um lado, constitutivas de sua subjetividade” (Kaës, 2011Kaës, R. (2011).Um singular plural: A psicanálise à prova do grupo. Edições Loyola Jesuítas., p. 218). É necessário salientar que a mudança não se encontra somente no âmbito do comportamento, mas que o atravessa, modificando como o sujeito inconsciente se posiciona perante aquilo que lhe faz sofrer, perante o desejo e a falta.

(Sessão 22) Anna: Apesar de eu estar com muita saudade da minha mãe faz muitos anos, mas hoje eu resolvi mandar uma mensagem

(Todas apreciam a ação).

As resistências vão sendo fragmentadas, pensadas, e colocadas à prova até o limite que é possível suportar a angústia.

A adaptação ativa à realidade e a aprendizagem estão indissoluvelmente ligadas. O sujeito sadio, à medida que apreende o objeto e o transforma, também modifica a si mesmo, entrando num interjogo dialético no qual a síntese que resolve uma situação dilemática se transforma no ponto inicial ou tese de outra antinomia, que deverá ser resolvida nesse contínuo processo em espiral. A saúde mental consiste nesse processo, em que se realiza uma aprendizagem da realidade através do confronto, manejo e solução integradora dos conflitos. (Pichon-Rivière, 2005Pichon-Rivière, E. (2005). O Processo Grupal (7a ed.). Martins Fontes., p. 12).

Este fragmento da sessão demonstra que a aprendizagem da realidade que Pichon nos indica pode ultrapassar os limites de uma realidade objetiva, caminhando para uma aprendizagem da realidade psíquica organizada pela fantasia do sujeito inconsciente, que busca sempre a realização do desejo. Anna relata ao grupo que há uma saudade de muitos anos em relação à mãe, que não faz sentido quando relacionamos essa saudade à mãe real, pois no decorrer das sessões as principais queixas se fazem em torno dos encontros com essa mãe, dos conflitos frequentes e entre as opiniões divergentes. Seu discurso é organizado pela fantasia que busca meios de satisfazer o desejo inconsciente de substituir a mãe e retomar o lugar que hipoteticamente era dela.

Na relação de aprendizagem e no avanço das resistências, é necessário considerar as fantasias e seus respectivos desejos, para que o sujeito possa se direcionar na particularidade de sua saúde mental. E, ao nos inclinarmos um pouco mais sobre as representações, “matar” e “saudade”, nos deparamos com afetos totalmente diferentes, que separadamente o Eu teria dificuldade em lidar com cada um. Torna-se muito angustiante e até insuportável a ideia de matar, principalmente se tratando da mãe, mas que ao ser adicionado um composto dócil como a saudade se faz permitido a suspensão do recalque, para que apareça na representação.

Outro aspecto a se destacar é como o grupo exerce influência sobre a psique individual do indivíduo, mas além disso “a existência grupal permite viver realizações do desejo inconsciente segundos as modalidades originais, inacessíveis de outra maneira” (Kaës, 2017Kaës, R. (2017).O aparelho psíquico grupal. Ideias & Letras., p. 313). A experiência de Anna nos esboça duas possibilidades: em primeiro lugar possibilitar o grupo de atualizar a fantasia e o desejo inconsciente, e em segundo momento a experiência que o próprio aparelho psíquico grupal produziu, capaz “de elaborar suas respostas às interrogações que todos se fazem sobre a origem e fim, a sexualidade e a morte, o desejo e o interdito, a diferença e a semelhança, as relações entre as gerações” (Kaës, 2017Kaës, R. (2017).O aparelho psíquico grupal. Ideias & Letras., p. 313).

(Sessão 22) Sara: Essa pergunta é reveladora, ela cutuca profundamente, isso é muito bacana, é sofrido, dói, mas é muito revelador, estou me descobrindo com cinquenta e sete anos, estou aprendendo a saber o que eu quero de verdade, meu sonho, minha meta, o caminho que devo tomar.

Como já expressado, o sujeito do inconsciente não é temporal, portanto, ele aprende sobre si, como se ainda estivesse no infans, como se nunca soubesse quem era. Aprender não significa o mesmo que reconhecer apenas cognitivamente o mundo, mas aproximar-se das emoções, dos sonhos, das metas, que podem ser capturadas por um momento na experiência, pois aprender é também algo do desejo e “o desejo [é] sempre um desejo de Outra coisa” (Lacan, 1957/1999Lacan, J. (1999). O Seminário, livro 5: as formações do inconsciente. Jorge Zahar. (Obra original publicada em 1957), p. 16).

Considerações Finais

O grupo enquanto dispositivo apresentou-se como uma ferramenta possível de articular e instalar um equívoco, onde a certeza, o destino e a própria vulnerabilidade puderam ser questionados, e que na transferência, o berço do vínculo, foi desenvolvida a sensibilidade de suportar a angústia e desenvolver olhares diferentes sobre alguma problemática da mulher e/ou do grupo. O modelo centrado na tarefa possui efeito que atinge o sujeito em dois níveis principais, o manifesto e o latente, reorganizando a posição do sujeito. Nesse âmbito, podemos compreender que o grupo operativo com mulheres em condição de vulnerabilidade social foi se demonstrando efetivo com o passar dos encontros e desenvolveu capacidades simbólicas adormecidas até então. Além disso, o grupo operativo forneceu a possibilidade de buscar autonomia, retomar o olhar sobre si e reestruturar a própria maneira de promover a saúde. A fala singular transitou entre outras sem perder sua identidade, ganhando potência pela contribuição grupal, e retorna como produto, que exigiu responsabilização não só pelo que se disse, mas por tudo que foi falado.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Set 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    26 Jul 2020
  • Aceito
    15 Maio 2021
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