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Rastreando possíveis elos científicos entre Claude Bernard e B. F. Skinner* * Apoio: CNPq. ,** ** O artigo foi fruto da dissertação de mestrado da autora. Agradecimentos especiais à Dr.ª Eleonora Arnaud Pereira Ferreira e ao Prof. Dr. François Jacques Tonneau pelas valiosas contribuições à pesquisa empreendida.

Investigating possible scientific connections between Claude Bernard and B. F. Skinner

Resumo

Vários estudos rastreando possíveis fontes que teriam norteado Skinner na construção do Behaviorismo sugeriram, de modo pouco preciso, elos científicos entre Claude Bernard e Skinner. Considerando o assunto, este trabalho realizou um comparativo sistemático entre ambos os autores, através das seguintes categorias: (1) interação organismo-ambiente; (2) mentalismo; (3) indução-dedução; e (4) delineamento do sujeito único. Embora diferenças tenham sido encontradas entre as categorias (1), a análise de variáveis externas, e na (2), rejeição de explicações sem bases científicas, essas diferenças estão presentes em ambas as teorias. Na categoria (3), Skinner e Bernard apresentaram posicionamento distintos. Quanto à análise do delineamento intrassujeito, ambos denotaram várias compatibilidades, diferenciando-se, principalmente, por conta de seus objetivos epistêmicos.

Palavras-chave:
Claude Bernard; B. F. Skinner; delineamento do sujeito único

Abstract

Several studies tracking down possible sources that would have given direction to Skinner in the development of Behaviorism, suggested an inaccurate scientific link between Claude Bernard and Skinner. Considering this subject, this work performed a systematic comparison between both authors, through the following categories: (1) organism-environment interaction; (2) mentalism; (3) induction-deduction; and method of the single case. Although differences have been found, in category (1), the analysis of the external variables, and in (2), rejection of explanation without scientific basis, were detected in both theories. In category (3), Skinner and Bernard show different opinions. As to the analysis of the intrasubject design, both detonated several compatibilities, differing, mainly because of its epistemic objectives.

Keywords:
Claude Bernard; B. F. Skinner; single subject design

B.F. Skinner (1904-1990) e Claude Bernard (1813-1878) não foram contemporâneos e cada um é expoente de uma disciplina acadêmica distinta, sendo o primeiro considerado fundador da Análise do Comportamento e o segundo identificado como pai da Fisiologia Experimental moderna (Dutra, 2003Dutra, L. H. A. (2003). Claude Bernard e a psicologia experimental.Manuscrito: revista internacional de filosofia, 26(1), 71-111. https://bit.ly/3H43eLm
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; Moreira & Medeiros, 2007Moreira, M. B., & Medeiros, C. A. de. (2007). Princípios básicos de análise do comportamento. Artmed.). Apesar de se encontrarem em épocas e áreas distintas, para Thompson (1984Thompson, T. (1984). The examining magistrate for nature: A retrospective review of Claude Bernard's an introduction to the study of experimental medicine. Journal of the Experimental Analysis of Behavior, 41(2), 211-216. doi.org/10.1901/jeab.1984.41-211
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), “paradoxalmente, a Análise Experimental do Comportamento tem mais afinidade com a tradição de Claude Bernard do que com Wundt ou Freud” (p. 211).

Em razão dessa proximidade, Skinner chegou a ser questionado sobre a possibilidade da ciência de Claude Bernard ter influenciado seus primeiros trabalhos em Análise do Comportamento (Thompson, 1984Thompson, T. (1984). The examining magistrate for nature: A retrospective review of Claude Bernard's an introduction to the study of experimental medicine. Journal of the Experimental Analysis of Behavior, 41(2), 211-216. doi.org/10.1901/jeab.1984.41-211
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). De acordo com Thompson (1984Thompson, T. (1984). The examining magistrate for nature: A retrospective review of Claude Bernard's an introduction to the study of experimental medicine. Journal of the Experimental Analysis of Behavior, 41(2), 211-216. doi.org/10.1901/jeab.1984.41-211
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), Skinner descartou ter entrado em contato com a obra de Claude Bernard antes de escrever The Behavior of Organisms (1938Skinner, B. F. (1938). The behavior of organisms. Appleton-Century. ). Apesar dessa negativa, o trabalho de McKerchar et al. (2011McKerchar, T. L., Morris, E. K., & Smith, N. G. (2011). A quantitative analysis and natural history of B. F. Skinner's coauthoring practices. The Behavior of Organisms Analyst, 34(1), 75-91. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3089415/
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), enumerando algumas fontes científicas que poderiam ter norteado Skinner na construção da ciência do comportamento, cita Claude Bernard entre os possíveis legados dos quais Skinner pode ter tido contato. Esse possível acesso teria ocorrido na época de fundação do Behaviorismo Radical em Harvard, particularmente, no período em que Skinner desenvolvia seu trabalho de doutorado (Morris & Braukmann, 1987Morris, E. K., & Braukmann, C. J. (Eds.). (1987). Behavioral approaches to crime and delinquency: A handbook of application, research, and concepts. Plenum Press.).

Skinner realizou seu doutorado na década de 1930, intercambiando entre os departamentos de psicologia e de fisiologia da universidade de Harvard (Cruz, 2011Cruz, R. N. (2011). Percalços na história da ciência: B. F. Skinner e a aceitação inicial da análise experimental do comportamento entre as décadas de 1930 e 1940. Psicologia: Teoria e Pesquisa,27(4), 545-554. dx.doi.org/10.1590/S0102-37722011000400020
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). Nesse contexto, ele manteve contato com os trabalhos de Ivan Pavlov, Jacques Loeb e William Crozier (Hackenberg, 1995Hackenberg, T. D. (1995). Jacques Loeb, B. F. Skinner, and the legacy of prediction and control. The Behavior of Organisms Analyst, 18(2), 225-236. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC2733711/
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; McKerchar et al., 2011McKerchar, T. L., Morris, E. K., & Smith, N. G. (2011). A quantitative analysis and natural history of B. F. Skinner's coauthoring practices. The Behavior of Organisms Analyst, 34(1), 75-91. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3089415/
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). Considerando isso, é possível que Skinner, ao acessar as perspectivas desses fisiologistas, possa também ter entrado em contato com as tradições experimentais nas quais eles se embasavam. Pavlov, por exemplo, utilizava-se de duas das principais tradições da fisiologia de sua época. Segundo Todes (2014Todes, D. P. (2014). Ivan Pavlov. A russian life in science. Oxford University Press.), “assim como seu mentor, Tsion, a visão científica de Pavlov integrava elementos das abordagens de Claude Bernard e Carl Ludwig à fisiologia” (p. 117). A própria “descoberta” do condicionamento pavloviano pode ter tido influência da ciência bernardiana (Gusso, 2008Gusso, H. L. (2008). Processos comportamentais identificados nas definições de cultura na antropologia: relações entre conceitos básicos de análise do comportamento e fenômenos sociais [Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de Santa Catarina]. http://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/123456789/92005
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; Todes, 2014Todes, D. P. (2014). Ivan Pavlov. A russian life in science. Oxford University Press.). Segundo Gusso (2008Gusso, H. L. (2008). Processos comportamentais identificados nas definições de cultura na antropologia: relações entre conceitos básicos de análise do comportamento e fenômenos sociais [Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de Santa Catarina]. http://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/123456789/92005
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), Claude Bernard já havia descrito sobre a relação de salivação dos cães, não apenas na presença da comida, mas até quando a pessoa que frequentemente lhe trazia o alimento entrava no ambiente. Conforme Gusso (2008Gusso, H. L. (2008). Processos comportamentais identificados nas definições de cultura na antropologia: relações entre conceitos básicos de análise do comportamento e fenômenos sociais [Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de Santa Catarina]. http://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/123456789/92005
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), ciente desta descrição feita por Claude Bernard, Pavlov ao observar o fato em seu laboratório teve seu interesse pela questão despertado.

Enquanto graduava-se em Harvard, Skinner fez de Pavlov uma de suas principais referências. Ao publicar The Behavior of Organisms em 1938, o fisiologista russo foi o mais citado por Skinner durante todo o livro, com um total de 44 citações (Catania & Laties, 1999Catania, A., & Laties, V. (1999). Pavlov and Skinner: Two lives in science (An introduction to B. F. Skinner’s “Some responses to the stimulus ‘Pavlov’”).Journal of the Experimental Analysis of Behavior,72(3), 455-461. doi.org/10.1901/jeab.1999.72-455
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). Em 1989, ao falar sobre Pavlov, Skinner declarou ter aprendido com ele a importância de controlar as condições experimentais. Dois dos professores de Pavlov, Séchenov e Tsion, trabalharam com Claude Bernard na França no século XIX (Virtanen, 1960Virtanen, R. (1960). Claude Bernard and his place in the history of ideas. University of Nebraska Press.; Wickens, 2014Wickens, A. P. (2014). A history of the brain: From stone age surgery to modern neuroscience. Psychology Press). Além disso, segundo Ruiz (2011Ruiz, O. G. (2011). El problema de la psique animal en los estudios de Pavlov acerca de la digestión [Comunicação]. XXIV Symposium de la Sociedad Española de Historia de la Psicología, Málaga, España.), enquanto trabalhou com Tsion, Pavlov “adquiriu também uma visão ‘bernardiana’ da fisiologia” (p.175).

Assim como Pavlov, Loeb e Crozier são mencionadas no contexto de fundação da Análise do Comportamento, (Hackenberg, 1995Hackenberg, T. D. (1995). Jacques Loeb, B. F. Skinner, and the legacy of prediction and control. The Behavior of Organisms Analyst, 18(2), 225-236. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC2733711/
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). Loeb morreu em 1924 deixando um legado profícuo e, por meio de Crozier, suas ideias continuaram sendo transmitidas (Hackenberg, 1995Hackenberg, T. D. (1995). Jacques Loeb, B. F. Skinner, and the legacy of prediction and control. The Behavior of Organisms Analyst, 18(2), 225-236. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC2733711/
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), sendo possível, através de Crozier, que Loeb possa ter influenciado o pensamento de Skinner. Em 1989Skinner, B. F. (1989). Recent issues in the analysis of behavior. Merril Publishing Company., ao relembrar desse período, Skinner menciona que Crozier era “o principal discípulo de Loeb” (p. 122) e diz que, assim como Loeb, ele (Skinner), “desejava estudar o comportamento do organismo como um todo” (p. 123). Por conseguinte, Loeb, em publicações feitas, se mostrou um exímio conhecedor da teoria instituída por Claude Bernard.

Em 1916, no livro “The Organism as a Whole, From a Physicochemical Viewpoint”, Loeb menciona Claude Bernard 17 vezes. Em um trecho desse livro, Loeb supõe ter elucidado um ponto polêmico da ciência bernardiana, declarando que “conseguimos então obter uma compreensão racional da menção que Claude Bernard costumava fazer, mas que no seu tempo permanecia misteriosa: a vida é a criação” (Loeb, 1916Loeb, J. (1916). The organism as a whole: From a physicochemical viewpoint. G. P. Putnam’s Sons., p. 354). Skinner (1989Skinner, B. F. (1989). Recent issues in the analysis of behavior. Merril Publishing Company.) relata que ao acessar a obra de Loeb, primeiro conheceu Comparative Physiology of the Brain and Comparative Psychology (1900) e depois The Organism as a Whole, From a Physicochemical Viewpoint (1916Loeb, J. (1916). The organism as a whole: From a physicochemical viewpoint. G. P. Putnam’s Sons.). Além disso, em trabalhos publicados na década de 1890, Loeb se mostrou atraído pela ideias de uma nova ciência, possivelmente inaugurada por Claude Bernard naquela época, a fisiologia geral (Andersen, 2005Andersen, O. S. (2005). A brief history of The Journal of General Physiology.The Journal of General Physiology,125(1), 3-12. doi.org/10.1085/jgp.200409234
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).

Após o falecimento de Loeb, Crozier não somente tornou-se um transmissor das ideias deste, mas também um notório representante da recém-criada fisiologia geral (Hackenberg, 1995Hackenberg, T. D. (1995). Jacques Loeb, B. F. Skinner, and the legacy of prediction and control. The Behavior of Organisms Analyst, 18(2), 225-236. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC2733711/
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; Skinner, 1979Skinner, B.F. (1979). The shaping of behaviorist: Part two of an autobiography. Alfred A. Knopf. ). Segundo Andersen (2005Andersen, O. S. (2005). A brief history of The Journal of General Physiology.The Journal of General Physiology,125(1), 3-12. doi.org/10.1085/jgp.200409234
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), o termo “fisiologia geral” foi criado por Claude Bernard, que o descreveu como "o estudo dos fenômenos comuns a animais e plantas". Skinner (1979Skinner, B.F. (1979). The shaping of behaviorist: Part two of an autobiography. Alfred A. Knopf. ) diz que a expectativa de Crozier sobre essa nova ciência era tão grande que ele não procurava ocultar seu desprezo por aqueles que não viam a fisiologia como o principal pilar da biologia. Embora Skinner tenha trabalhado com Crozier durante um tempo significativo, ambos nunca publicaram um trabalho empírico juntos; ainda assim, segundo McKerchar et al. (2011McKerchar, T. L., Morris, E. K., & Smith, N. G. (2011). A quantitative analysis and natural history of B. F. Skinner's coauthoring practices. The Behavior of Organisms Analyst, 34(1), 75-91. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3089415/
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), é provável que Crozier tenha influenciado o comportamento científico de Skinner por meio da ciência de Bacon e do controle experimental difundido por Loeb e Claude Bernard.

Além da possibilidade de Skinner ter entrado em contato com as ideias de Claude Bernard via Crozier, vale ressaltar também que outras autoridades acadêmicas, com quem Skinner interagiu em Harvard nos anos 1930, eram notórios seguidores da ciência de Claude Bernard. No início do século XX, as escolas experimentais da América do Norte, Rússia e Europa tinham a teoria de Claude Bernard na França e a fisiologia de Carl Ludwig na Alemanha, como as bases principais da fisiologia. (Todes, 2014Todes, D. P. (2014). Ivan Pavlov. A russian life in science. Oxford University Press.). Contudo, segundo Padula (2011Padula, A. E. M. (2011). Claude Bernard: fisiologia e filosofia. Dissertação de Mestrado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. https://tede2.pucsp.br/handle/handle/13251
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), apesar de as escolas da América do Norte terem sido influenciadas pela fisiologia da França, posteriormente, essa influência foi interrompida com a ascensão da fisiologia alemã. Embora isso possa ter acontecido, há indícios de que, pelo menos no período em que Skinner era um jovem cientista, no caso, integrante da Harvard Society of Fellows (de 1933 a 1936), a ciência de Claude Bernard em Harvard mantinha seu prestígio. Por exemplo, o fisiologista L. J. Henderson, considerado o primeiro grande bioquímico do século XX e professor de Skinner em Harvard, além de presidente da Harvard Society of Fellows (justamente no tempo em que Skinner foi um dos bolsistas), era um notório adepto das ideias de Claude Bernard (Skinner, 1979Skinner, B.F. (1979). The shaping of behaviorist: Part two of an autobiography. Alfred A. Knopf. ; Thompson, 1984Thompson, T. (1984). The examining magistrate for nature: A retrospective review of Claude Bernard's an introduction to the study of experimental medicine. Journal of the Experimental Analysis of Behavior, 41(2), 211-216. doi.org/10.1901/jeab.1984.41-211
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).

Das duas principais fisiologias desse período, o alcance da fisiologia alemã sobre Skinner esteve presente, por exemplo, no registro cumulativo. Lattal (2005Lattal, K. (2005). Ciência, tecnologia e análise do comportamento. In J. Abreu-Rodrigues & M. R. Ribeiro (Eds.). Análise do comportamento: Pesquisa, teoria e aplicação (pp.15-27). Artmed.) informa que esse instrumento, um dos equipamentos fundamentais para o sucesso dos primeiros trabalhos de Skinner, originou-se do quimógrafo, aparelho criado pelo fisiologista germânico Carl Ludwig e que Skinner teria customizado para estudo do comportamento dos organismos.

Ao contrário da fisiologia de Ludwig, cujo quimógrafo traduz um ponto do contato mantido por Skinner, o provável alcance da fisiologia de Claude Bernard sobre o pensamento skinneriano ainda é apenas sugerido, mas não ratificado, principalmente devido à ausência de estudos que tenham investigado especificamente essa possível conexão entre Skinner e Claude Bernard. Porém, mesmo sem que o provável contato de Skinner com as ideias de Claude Bernard esteja esclarecido, importantes relações entre as concepções científicas de ambos foram apontadas. Boa parte dessas relações foram principalmente levantadas no estudo de Thompson (1984Thompson, T. (1984). The examining magistrate for nature: A retrospective review of Claude Bernard's an introduction to the study of experimental medicine. Journal of the Experimental Analysis of Behavior, 41(2), 211-216. doi.org/10.1901/jeab.1984.41-211
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).

Na pesquisa de Thompson (1984Thompson, T. (1984). The examining magistrate for nature: A retrospective review of Claude Bernard's an introduction to the study of experimental medicine. Journal of the Experimental Analysis of Behavior, 41(2), 211-216. doi.org/10.1901/jeab.1984.41-211
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), Skinner e Claude Bernard foram aproximados com base em seus próprios escritos a respeito de temas específicos, por exemplo, método experimental, controle estatístico, raciocínio indutivo, etc. Entre os resultados encontrados, Thompson identificou semelhanças entre as concepções experimentais descritas por Claude Bernard (1865Bernard, C. (1865). Introduction à l'étude de la médecine expérimentale. Éditions Garnier-Flammarion.) e manejos utilizados por Skinner na condução de seus experimentos. Segundo o autor, assim como Claude Bernard, Skinner enfatizou o tratamento individual dos dados coletados. Além disso, nos pressupostos metateóricos sobre análise experimental dos fenômenos fisiológicos, Claude Bernard trazia um expresso determinismo em termos de predição e controle dos fenômenos investigados. Outras similaridades identificadas ficariam por conta dos seguintes aspectos: (a) rejeição da lógica hipotético-dedutiva; e (b) ênfase no controle experimental ao invés de priorizar a avaliação estatística.

Apesar da importância das conexões feitas por Thompson (1984Thompson, T. (1984). The examining magistrate for nature: A retrospective review of Claude Bernard's an introduction to the study of experimental medicine. Journal of the Experimental Analysis of Behavior, 41(2), 211-216. doi.org/10.1901/jeab.1984.41-211
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), as relações apontadas entre Skinner e Claude Bernard não foram acompanhadas de novas pesquisas. Além da ausência de outros estudos, o vínculo apontado entre Claude Bernard e Skinner, de modo geral, esteve limitado a breves citações, nas quais o legado bernardiano aparece, mas de maneira coadjuvante ou secundária. Porém, mesmo sem contar com pesquisas específicas, as referências aproximando Skinner e Claude Bernard têm ocorrido, podendo geralmente ser divididas em três grupos distintos:

Contextuais: referências em que o legado de Claude Bernard é colocado entre as contribuições que teriam norteado Skinner nos primórdios da Análise do Comportamento, em 1930, em Harvard. Nesse grupo, estariam as literaturas de McKerchar et al. (2011McKerchar, T. L., Morris, E. K., & Smith, N. G. (2011). A quantitative analysis and natural history of B. F. Skinner's coauthoring practices. The Behavior of Organisms Analyst, 34(1), 75-91. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3089415/
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) e a de Morris e Braukmann (1987Morris, E. K., & Braukmann, C. J. (Eds.). (1987). Behavioral approaches to crime and delinquency: A handbook of application, research, and concepts. Plenum Press.);

Ecos acadêmicos: referências aproximando Claude Bernard e Skinner a partir do trabalho de Thompson (1984Thompson, T. (1984). The examining magistrate for nature: A retrospective review of Claude Bernard's an introduction to the study of experimental medicine. Journal of the Experimental Analysis of Behavior, 41(2), 211-216. doi.org/10.1901/jeab.1984.41-211
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), ou seja, citações da citação. Nesse grupo, estão Blackman (1991Blackman, D. E. (1991). B. F. Skinner and G. H. Mead: On biological science and social science.Journal of the Experimental Analysis of Behavior,55(2), 251-265. doi.org/10.1901/jeab.1991.55-251
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), Lattal e Laipple (2003Lattal, K. A., & Laipple, J. S. (2003). Pragmatism and behavior analysis. In K. A. Lattal & P. N. Chase. Behavior theory and philosophy (pp. 41-61). Kluwer Academic/Plenum.), Lovaas (1993Lovaas, O. I. (1993). The development of a treatment-research project for developmentally disabled and autistic children. Journal of Applied Behavior Analysis, 26(4), 617-630. doi.org/10.1901/jaba.1993.26-617
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), Morris (1988Morris, E. K. (1988). Contextualism: The world view of behavior analysis. Journal of Experimental Child Psychology, 46(3), 289-323. doi.org/10.1016/0022-0965(88)90063-X
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), Morris et al. (2005Morris, E. K., Smith, N. G., & Altus, D. E. (2005). B. F. Skinner’s contributions to applied behavior analysis. The Behavior of Organisms Analyst, 28(2), 99-131. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC2755377/
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), Morriset al. (1990Morris, E. K., Todd, J. T., Midgley, B. D., Schneider, S. M., & Johnson, L. M. (1990). The history of behavior Analysis: Some historiography and a bibliography. The Behavior of Organisms Analyst, 13(2), 131-158. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC2733434/
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) e Schroeder (2012Schroeder, S. R. (2012). Ecobehavioral analysis and developmental disabilities: The twenty-first century. Springer Verlag.);

Conceituais: referências em que o nome de Claude Bernard esteve atrelado como possível antecedente do principal arranjo experimental formulado por Skinner para a Análise do Comportamento. Desse grupo, fazem parte Huitema (2011Huitema, B. E. (2011). Analysis of single-case reversal designs, in the analysis of covariance and alternatives: Statistical methods for experiments, quasi experiments, and single-case studies (2ª ed.). John Wiley & Sons, Inc.) e Matos (1990Matos, M. A. (1990). Controle experimental e controle estatístico: A filosofia do caso único na pesquisa comportamental. Ciência e Cultura, 42, 585-592. https://bit.ly/3LJ6Vtw
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).

Em cada um dos três grupos, há lacunas que podem ser apontadas mediante o vínculo ao qual fazem referência. Nas citações contextuais, por exemplo, tanto em McKerchar et al. (2011McKerchar, T. L., Morris, E. K., & Smith, N. G. (2011). A quantitative analysis and natural history of B. F. Skinner's coauthoring practices. The Behavior of Organisms Analyst, 34(1), 75-91. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3089415/
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) como em Morris e Braukmann (1987Morris, E. K., & Braukmann, C. J. (Eds.). (1987). Behavioral approaches to crime and delinquency: A handbook of application, research, and concepts. Plenum Press.), sugere-se que o raciocínio experimental de Claude Bernard, refinado por Loeb na fisiologia, teria alcançado Skinner por intermédio de Crozier. Porém, como a influência de Claude Bernard de fato poderia ter alcançado Skinner nesse contexto, ambos os estudos não acrescentam informações a respeito.

O segundo grupo, denominado ecos acadêmicos, compõe-se de citações da pesquisa feita por Thompson (1984Thompson, T. (1984). The examining magistrate for nature: A retrospective review of Claude Bernard's an introduction to the study of experimental medicine. Journal of the Experimental Analysis of Behavior, 41(2), 211-216. doi.org/10.1901/jeab.1984.41-211
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). Como constituem citações em plano secundário, a lacuna nesse caso aponta para a pesquisa em que se baseia. Analisando o estudo feito por Thompson, a leitura de Claude Bernard (1865Bernard, C. (1865). Introduction à l'étude de la médecine expérimentale. Éditions Garnier-Flammarion.) à que o autor teve acesso foi uma obra traduzida para o inglês e não estava em seu idioma original, o francês. A questão de fato não configura um problema em si, contudo, talvez a ausência da fonte primária em sua linguagem nativa pode ter contribuído (conforme será mostrado mais adiante) para um equívoco de interpretação feito por Thompson em sua pesquisa.

Quanto ao terceiro grupo de referências, identificado como citações conceituais, tem-se um possível vínculo metodológico entre Claude Bernard e o delineamento intrassujeito praticado na psicologia experimental. Nesse caso, tanto Matos (1990Matos, M. A. (1990). Controle experimental e controle estatístico: A filosofia do caso único na pesquisa comportamental. Ciência e Cultura, 42, 585-592. https://bit.ly/3LJ6Vtw
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) como Huitema (2011Huitema, B. E. (2011). Analysis of single-case reversal designs, in the analysis of covariance and alternatives: Statistical methods for experiments, quasi experiments, and single-case studies (2ª ed.). John Wiley & Sons, Inc.) fazem alusão a Claude Bernard como uma fonte provável para o delineamento de caso único em Análise do Comportamento. Em Matos, menciona-se que Claude Bernard pode ter sido a inspiração para o método experimental mais importante utilizado pelos behavioristas. Já Huitema cita Claude Bernard como fonte remota para o delineamento de sujeito único praticado na psicologia experimental. Segundo Huitema, nas primeiras décadas do século XX, a ênfase na avaliação estatística teria levado boa parte dessa área da Psicologia a migrar para estudos com grupos, fazendo com que o delineamento de caso único praticamente caísse em desuso. Em ambos os estudos (Huitema, 2011Huitema, B. E. (2011). Analysis of single-case reversal designs, in the analysis of covariance and alternatives: Statistical methods for experiments, quasi experiments, and single-case studies (2ª ed.). John Wiley & Sons, Inc.; Matos, 1990Matos, M. A. (1990). Controle experimental e controle estatístico: A filosofia do caso único na pesquisa comportamental. Ciência e Cultura, 42, 585-592. https://bit.ly/3LJ6Vtw
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), apesar de Bernard ser apontado como um possível antecedente acadêmico para o delineamento intrassujeito na Análise do Comportamento, as características entre o método bernardiano e o arranjo skinneriano que permitiriam esse vínculo não foram colocadas em evidência pelos autores.

Vale ressaltar que, apesar de não haver pesquisas rastreando a formação do delineamento intrassujeito em Análise do Comportamento, no estudo de Cruz (2011Cruz, R. N. (2011). Percalços na história da ciência: B. F. Skinner e a aceitação inicial da análise experimental do comportamento entre as décadas de 1930 e 1940. Psicologia: Teoria e Pesquisa,27(4), 545-554. dx.doi.org/10.1590/S0102-37722011000400020
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) o método foi apresentado como um delineamento proveniente dos trabalhos de Skinner nos anos 1930. Curiosamente, em 1938, quando Skinner apresentou o delineamento de sujeito único (no The Behavior of Organisms), ele foi alvo de duras críticas pela maioria de estudiosos da Psicologia. Conforme o próprio Cruz, o uso desse método por Skinner foi na contramão do que havia se tornado imprescindível na Psicologia Experimental norte-americana nos anos 1930, isto é, grupos com muitos sujeitos e ênfase no uso da estatística inferencial. Em contrapartida, segundo Hackenberg (1995Hackenberg, T. D. (1995). Jacques Loeb, B. F. Skinner, and the legacy of prediction and control. The Behavior of Organisms Analyst, 18(2), 225-236. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC2733711/
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), no Departamento de Fisiologia onde Skinner esteve, “Crozier era um forte defensor do método intrassujeito, enfatizando o controle experimental ao invés do controle estatístico” (p. 228).

Os prováveis atravessamentos epistêmicos a que Skinner esteve exposto nesse período (década de 1930), apesar da possibilidade de constituírem a própria história científica do Behaviorismo, nem sempre são acompanhados de estudos em Análise do Comportamento. Para Cruz (2014Cruz, R. N. (2014). Desconhecimento e liberdade no caminho de uma nova ciência do comportamento. Scientiæ Studia, 12(3), 465-90. dx.doi.org/10.1590/S1678-31662014000300004
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) a carreira de Skinner está integrada a história do Behaviorismo, entretanto, as menções a ela, quando feitas, apresentam-se em geral de modo pouco preciso, através de conjecturas não desenvolvidas e colocações genéricas sobre prováveis efeitos relacionados ao seu repertório e sua obra. Nesse sentido, os trabalhos de Catania e Laties (1999Catania, A., & Laties, V. (1999). Pavlov and Skinner: Two lives in science (An introduction to B. F. Skinner’s “Some responses to the stimulus ‘Pavlov’”).Journal of the Experimental Analysis of Behavior,72(3), 455-461. doi.org/10.1901/jeab.1999.72-455
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), envolvendo Pavlov e Skinner, e o de Hackenberg (1995Hackenberg, T. D. (1995). Jacques Loeb, B. F. Skinner, and the legacy of prediction and control. The Behavior of Organisms Analyst, 18(2), 225-236. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC2733711/
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), investigando Loeb e Skinner, ilustram como o comparativo de Skinner com outros pensamentos epistêmicos (que são apontados como contribuintes nos primórdios da Análise do Comportamento) é relevante para ratificar que, apesar de possíveis afinidades com tais propostas, a ciência skinneriana consolidou-se de maneira independente destas.

Portanto, considerando que uma parte importante das bases epistêmicas do Behaviorismo está inserida na carreira de Skinner e que alguns estudos, ao apontarem as fontes que o teriam norteado na construção da ciência do comportamento, sugeriram de modo pouco preciso elos científicos entre Claude Bernard e Skinner, este trabalho teve por objetivo analisar possíveis afinidades apontadas entre Skinner e Claude Bernard com base em seus próprios escritos, considerando o delineamento do sujeito único, assim como outras concepções sobre ciência relacionadas entre o pensamento de ambos.

Método

O estudo foi realizado em duas etapas: na Etapa I, houve a seleção de fontes para investigação; em relação a Bernard, vários estudos consultados (Bergson, 1950Bergson, H. (1950). La pensée et le mouvant. essais et conférences. Les Presses Universitaires de France. ; Padula, 2011Padula, A. E. M. (2011). Claude Bernard: fisiologia e filosofia. Dissertação de Mestrado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. https://tede2.pucsp.br/handle/handle/13251
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) apontaram que a síntese de seu legado está reunida no livro Introduction à L’étude de la Médecine Expérimentale (1865Bernard, C. (1865). Introduction à l'étude de la médecine expérimentale. Éditions Garnier-Flammarion.); foi selecionado também Leçons Sur les Phénomènes de la Vie Communes auxs Animauxs et auxs Végétauxs (1878Bernard, C. (1878). Leçons sur les phénomènes de la vie communes auxs animauxs et auxs végétauxs. Librarie J. Baillière et fils.), em razão dos estudos experimentais e argumentos epistemológicas contidos; no que diz respeito à Skinner, a obra The Behavior of Organisms: An Experimental Analysis (1938Skinner, B. F. (1938). The behavior of organisms. Appleton-Century. ) foi selecionada, tanto por apresentar as bases metodológicas e conceituais de seu pensamento na década de 1930 como por trazer boa parte das concepções científicas que constituiriam o legado skinneriano no século XX (Carrara, 2005Carrara, K. (2005). Behaviorismo radical: Crítica e metacrítica (2ª ed.). Editora Unesp.; Hineline, 1990Hineline, P. N. (1990). The origins of environment-based psychological theory. Journal of the Experimental Analysis of Behavior, 53(2), 305-320. doi.org/10.1901/jeab.1990.53-305
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), além de estar localizada próxima ao período em que ele intercambiava com o Departamento de Fisiologia em Harvard (Cruz, 2011Cruz, R. N. (2011). Percalços na história da ciência: B. F. Skinner e a aceitação inicial da análise experimental do comportamento entre as décadas de 1930 e 1940. Psicologia: Teoria e Pesquisa,27(4), 545-554. dx.doi.org/10.1590/S0102-37722011000400020
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); selecionou-se também o capítulo The Behavior of Organisms At 50, contido em Recent Issues inThe Analysis of Behavior (1989Skinner, B. F. (1989). Recent issues in the analysis of behavior. Merril Publishing Company.), por apresentar as narrativas de Skinner a respeito do contexto de confecção do seu livro de 1938.

Na Etapa II, as fontes selecionadas foram lidas em seus idiomas nativos; durante as leituras, destacou-se os trechos mais importantes para o estudo (no caso, as concepções epistêmicas de cada autor e as características relativas ao delineamento do sujeito único); concluída a demarcação, os trechos destacados foram agrupados em categorias; essas categorias foram geradas sob o critério “conteúdo temático”, ou seja, agrupou-se na mesma categoria os trechos que faziam menção ao mesmo tipo de assunto; ao todo, foram geradas seis categorias, respeitando o critério temático dos conteúdos selecionados e, para fins didáticos, elas foram agrupadas em dois conjuntos: (I) “Concepções científicas” e (II) “Características Relativas ao Delineamento de Sujeito Único”; no Conjunto I, tem-se: (I.1) interação entre organismo e ambiente, (I.2) mentalismo como embargo científico e (I.3) preferência pela indução/e ou dedução como lógica de pesquisa; compondo o Conjunto II estão: (II.1) tratamento individual dos dados, (II.2) ênfase no controle experimental ao invés da avaliação estatística e (II.3) pertinência do delineamento do sujeito único para o manejo de casos clínicos.

Para a apresentação e discussão dos dados em cada categoria, optou-se primeiro por apresentar de forma individual a noção de cada autor sobre o assunto, para em seguida fazer o comparativo entre o pensamento epistêmico de ambos.

Resultados e Discussão

Comparando os trechos obtidos das obras de Claude Bernard e de Skinner, apresenta-se e discute-se os seguintes resultados:

Conjunto de Análise I - Concepções Científicas

Interação organismo-ambiente. Foi detectado papel de destaque quanto à relação organismo-ambiente em ambas as teorias. Para Claude Bernard (1865Bernard, C. (1865). Introduction à l'étude de la médecine expérimentale. Éditions Garnier-Flammarion.), devido às constantes relações de troca e equilíbrio com o meio externo, o organismo alcança determinado nível de especialização que lhe permite estabelecer certa autonomia em relação ao ambiente. Segundo Bernard (1865Bernard, C. (1865). Introduction à l'étude de la médecine expérimentale. Éditions Garnier-Flammarion.), “à medida que o organismo se torna mais perfeito, o meio orgânico especializa-se, isolando-se cada vez mais do meio ambiente” (p. 90). Para Skinner (1938Skinner, B. F. (1938). The behavior of organisms. Appleton-Century. ), o “comportamento é aquela parte do funcionamento de um organismo que está engajado em agir sobre, ou em intercâmbio com o mundo externo” (p. 6). Ambos autores procuram erigir suas análises com base em variáveis externas. Em 1878, Claude Bernard reiterou: “já dissemos que as manifestações vitais não poderiam ser diretamente consideradas sob o controle de um princípio vital interno. A atividade de animais e plantas depende certamente de condições externas” (p. 37). Relembrando as concepções defendidas em 1938, Skinner reafirmou: “comportamento devia ser estudado como função de variáveis externas, excluindo-se quaisquer referências a estados ou processos mentais ou fisiológicos” (Skinner, 1989Skinner, B. F. (1989). Recent issues in the analysis of behavior. Merril Publishing Company., p. 130).

Apesar de as propostas de Claude Bernard e Skinner reconhecerem a importância de intercâmbios mantidos entre organismo e ambiente e das análises de suas ciências incluírem o estudo de variáveis externas, eles se distanciam quanto à perspectiva de pesquisa com que se concentrará cada autor. Claude Bernard se voltará para a especialização orgânica, enquanto Skinner se manterá no refinamento da interação estabelecida. Com a ciência de Claude Bernard tendo interesse no que acontece internamente, ela incluirá estudo de propriedades físico-químicas, anatomia e práticas como a dissecação; já a ciência de Skinner, em vez de estudar o “comportamento” de um órgão, se ocupará do estudo do comportamento do organismo como um todo, incluindo o ambiente à sua volta. Ratificando essa diferença feita em 1938, Skinner pontuou: “nunca questionei a importância da fisiologia [...] o que acontece dentro da pele de um organismo é parte do seu comportamento, mas não explica o que o organismo faz no espaço que o circunda até que tenha sido analisado”. (Skinner, 1989Skinner, B. F. (1989). Recent issues in the analysis of behavior. Merril Publishing Company., pp. 129-130).

Mentalismo como embargo científico. Na análise dessa categoria, considerou-se mentalismo no sentido de “atribuição das causas do comportamento aos eventos internos mentais que não possuiriam bases físicas” (Carvalho-Neto et al., 2012Carvalho-Neto, M. B., Tourinho, E. Z., Zilio, D., & Strapasson, B. A. (2012). B. F. Skinner e o mentalismo: uma análise histórico-conceitual (1931-1959). Memorandum, 22, 13-39. https://shorturl.at/bcnxX
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, p. 16). Nesse sentido, tanto Claude Bernard como Skinner são incisivos contra tradições acadêmicas que, tentando explicar fenômenos relacionados aos seres vivos, apelaram a elementos sobrenaturais ou extrafísicos que não podem ser submetidos à experimentação científica.

Para Claude Bernard (1865Bernard, C. (1865). Introduction à l'étude de la médecine expérimentale. Éditions Garnier-Flammarion.), “a crença de que os fenômenos relacionados aos seres vivos estariam dominados por uma força vital indeterminada fornece uma base falsa à experimentação e coloca uma palavra vaga no lugar de uma análise experimental precisa” (p. 282). Para Skinner (1938Skinner, B. F. (1938). The behavior of organisms. Appleton-Century. ), essas colocações são estéreis cientificamente “porque a maioria, senão todas, atribuem a entidades internas as propriedades determinantes do comportamento” (p. 2). No geral, os posicionamentos dos dois autores apresentam similaridades, já que, para ambos, esses tipos de explicações obstruem o verdadeiro exercício científico, por não se submeterem a testes e nem permitirem replicações. As diferenças ficam por conta da ciência, que defende o que os faz blindar suas propostas acadêmicas de explicações dessa natureza.

Destaca-se que o termo “força vital”, ao qual Claude Bernard dirige críticas, apesar de poder ser tomado como conceito de conotação mentalista (no sentido “de explicação sem bases físicas”), na realidade é parte integrante de um conjunto maior em fisiologia conhecido como vitalismo. Para fins didáticos, segundo Hwang (2012Hwang, S. (2012). Xavier Bichat’s medical thought in the historical context of french vitalism. Ui sahak, 21(1), 141-170. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/22739629/
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), vitalismo correspondia a um posicionamento adotado por alguns fisiologistas que defendiam que a vida envolve um princípio intangível (força vital) que não podia ser explicado em termos físicos e propriedades químicas. A despeito das especificidades denotadas pelo conceito, a concordância entre Claude Bernard (1865Bernard, C. (1865). Introduction à l'étude de la médecine expérimentale. Éditions Garnier-Flammarion.) e Skinner (1938Skinner, B. F. (1938). The behavior of organisms. Appleton-Century. ) é reiterada pela necessidade, conforme ambos, de se expelir da ciência sistemas explicativos construídos sobre hipóteses intangíveis. Assim, seja a abordagem de Skinner ou a fisiologia de Claude Bernard, a fim de blindar-se de sistemas desse tipo, teriam suas raízes fundamentadas sobre uma forte recomendação experimental.

Indução ou dedução? Nesta categoria, Claude Bernard e Skinner apresentaram posicionamentos distintos. Skinner (1938Skinner, B. F. (1938). The behavior of organisms. Appleton-Century. ) sinaliza que a ciência do comportamento se baseia no método indutivo de análise. Para ele, “uma ciência do comportamento não pode estar embasada estritamente na geometria ou mecânica newtoniana, porque seus problemas não são necessariamente do mesmo tipo.” (p. 432). Ao contrário de Skinner, Claude Bernard (1865Bernard, C. (1865). Introduction à l'étude de la médecine expérimentale. Éditions Garnier-Flammarion.) transita entre ambos os métodos, reivindicando que “as duas formas de raciocínio, investigativo (indução) e demonstrativo (dedutivo), pertencem a todas as ciências possíveis, porque em todas as ciências há coisas que não se sabem e outras que se sabem ou que se creem saber” (p. 66, itálicos e parêntese no original). Por conta desse trânsito duplo, Claude Bernard muitas vezes é classificado como hipotético-dedutivo (nesse método, indução e dedução encontram-se aglutinadas).

A noção faz sentido, porém, o conceito “hipotético-dedutivo” não é citado em momento algum por Claude Bernard nas obras analisadas (possivelmente por essa noção de pesquisa não ser reconhecida no século XIX). As bases do hipotético-dedutivo como o conhecemos (conhecimento prévio - problema -conjectura - hipóteses - falseamento) apenas ganhariam contorno científico no século XX, principalmente, com o trabalho de Karl Popper (1975Popper, K. S. (1975). A lógica da pesquisa científica (2ª Ed.) Cultrix.).

Apesar de essa lacuna temporal separar Claude Bernard do método em questão, a rota de pesquisa que ele aponta na obra de 1865Bernard, C. (1865). Introduction à l'étude de la médecine expérimentale. Éditions Garnier-Flammarion. (“Observação-Hipóteses-Experimentação-Resultado-Interpretação-Conclusão”) o aproxima de fato, mais do método hipotético-dedutivo que da indução ou dedução como rota de análise. Portanto, considerando tanto o fluxo que ele sugere no livro como seus argumentos em defesa da indução e dedução sem monopólios acadêmicos, é possível considerar Claude Bernard como um dos principais precursores do método hipotético-dedutivo na prática.

Nesse ponto, faz-se um adendo: os resultados aqui obtidos, indicando Skinner como indutivo e Bernard como precursor do hipotético-dedutivo, contrariam uma afirmação apresentada no início deste trabalho, feita por Thompson (1984Thompson, T. (1984). The examining magistrate for nature: A retrospective review of Claude Bernard's an introduction to the study of experimental medicine. Journal of the Experimental Analysis of Behavior, 41(2), 211-216. doi.org/10.1901/jeab.1984.41-211
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), de que, assim como Skinner, Claude Bernard era contrário à lógica hipotético-dedutiva. Essa informação, além de ser contrariada pelos argumentos supracitados neste trabalho (relacionando Claude Bernard ao hipotético-dedutivo), foi igualmente refutada quando se rastreou o trecho utilizado por Thompson (1984Thompson, T. (1984). The examining magistrate for nature: A retrospective review of Claude Bernard's an introduction to the study of experimental medicine. Journal of the Experimental Analysis of Behavior, 41(2), 211-216. doi.org/10.1901/jeab.1984.41-211
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) para afirmar que Claude Bernard dirigia críticas à lógica hipotético-dedutiva.

No trecho em questão, quando Claude Bernard (1865Bernard, C. (1865). Introduction à l'étude de la médecine expérimentale. Éditions Garnier-Flammarion.) colocou “estes homens partem de uma ideia mais ou menos fundada na observação, e que consideram como verdade absoluta. Utilizando a lógica e sem experimentar, de resultado em resultado, constroem um sistema que é lógico, porém, desprovido de realidade científica” (p. 37), diferentemente do que Thompson (1984Thompson, T. (1984). The examining magistrate for nature: A retrospective review of Claude Bernard's an introduction to the study of experimental medicine. Journal of the Experimental Analysis of Behavior, 41(2), 211-216. doi.org/10.1901/jeab.1984.41-211
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) afirmou, o fisiologista dirigia críticas ao raciocínio sistemático, indiferente à realidade muitas vezes exercido na matemática. Desse modo, em vez de propor críticas ao hipotético-dedutivo, o segundo foi interpretado por Thompson (1984), Claude Bernard discordava, na realidade, de problemas contidos no raciocínio dedutivo das ciências matemáticas pela hegemonia recorrente de conteúdos axiomáticos.

Reiterando os resultados obtidos nesta categoria, Claude Bernard como precursor do hipotético-dedutivo e Skinner adepto da indução na pesquisa têm, portanto, posicionamentos distintos.

Conjunto de Análise II - Características Relativas ao Delineamento de Sujeito Único

Tratamento individual dos dados. O delineamento do sujeito único tem como característica fundamental a análise individual de todos os sujeitos colocados sob as mesmas (ou semelhantes) condições experimentais (Matos, 1990Matos, M. A. (1990). Controle experimental e controle estatístico: A filosofia do caso único na pesquisa comportamental. Ciência e Cultura, 42, 585-592. https://bit.ly/3LJ6Vtw
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). Analisando a questão em Claude Bernard e Skinner, foram detectadas noções bem semelhantes. Ambos concordam sobre (a) a necessidade de se incluir uma análise individual dos sujeitos de pesquisa no escopo experimental e (b) que dados gerais têm pouco efeito para a compreensão da realidade científica dos organismos. Segundo Bernard (1865Bernard, C. (1865). Introduction à l'étude de la médecine expérimentale. Éditions Garnier-Flammarion.), “O fisiólogo e o médico devem considerar os organismos em seu conjunto e em seus detalhes, sem ignorar as condições especiais de todos os fenômenos particulares, cuja resultante constitui o indivíduo” (p. 125, itálico no original). De maneira semelhante, para Skinner (1938Skinner, B. F. (1938). The behavior of organisms. Appleton-Century. ): “Um médico tentando determinar, o falecimento do paciente antes do amanhecer, fará pouco uso de tabelas estimativas, assim o estudante do comportamento, se suas leis se aplicam apenas à grupos, não pode prever o que um único organismo fará” (p. 444).

Tanto Claude Bernard como Skinner reiteravam a importância da análise de dados individuais a fim de que a predição e o controle fossem mantidos, mesmo diante da complexidade dos fenômenos investigados. Na obra de 1878, Claude Bernard pontuou que “apenas o estudo do ser vivo pode nos ensinar sobre o mecanismo dos fenômenos que ele protagoniza e os agentes particulares que emprega” (p. 208). Relembrando essa estratégia de pesquisa nos estudos de 1938, Skinner reafirmou sua importância, dizendo “alguns críticos disseram que a pesquisa com sujeitos únicos ocasionava muito “ruído” nos dados. Os dados, porém, eram mais próximos ao que os organismos realmente faziam, e muitos deles estavam longe de ser ruídos” (Skinner, 1989Skinner, B. F. (1989). Recent issues in the analysis of behavior. Merril Publishing Company., p. 130).

A principal diferença entre as ideias de Bernard e Skinner nessa categoria fica por conta da natureza dos dados individuais que serão analisados. A ciência bernardiana se concentrará em dados de natureza estruturais relacionados ao funcionamento interno, enquanto Skinner enfatizará dados relacionados a modos de funcionamento, ou seja, à análise de interações. Conforme Skinner (1938), ao considerar o comportamento como um objeto científico, não se espera encontrar neurônios, sinapses ou qualquer outro aspecto de economia interna do organismo, pois dados desse tipo estão fora do campo de comportamento por ele definido.

Ênfase no controle experimental ao invés da avaliação estatística. Comparando Claude Bernard e Skinner sobre o tema dessa categoria, têm-se noções metodológicas afins. Skinner argumenta que sua proposição de ciência no The Behavior of Organisms (1938Skinner, B. F. (1938). The behavior of organisms. Appleton-Century. ) busca por predição e controle do comportamento e que dados estatísticos pouco contribuem nesse sentido por obscurecerem mensurações individuais em meio a generalidades quantitativas. De forma explícita, ele declara que “situando-se nessa posição, ganha a vantagem de um tipo de previsão sobre o indivíduo que é necessariamente não dependente de ciência estatística” (p. 443). Em uma linha de raciocínio semelhante, Claude Bernard ressalta que um dos principais propósitos de sua obra Introduction à l’étude de la médecine expérimentale (1865Bernard, C. (1865). Introduction à l'étude de la médecine expérimentale. Éditions Garnier-Flammarion.) é “a aplicação na medicina dos princípios do método experimental, a fim de que a mesma, ao invés de permanecer como ciência conjectural fundada na estatística, possa ser uma ciência precisa, com base no determinismo experimental” (p. 188).

Nessa diretriz, uma das razões da preferência de Claude Bernard e Skinner pelo delineamento do sujeito único seria pelo fato de, nesse método, o pesquisador concentrar sua análise na relação das variáveis e não em obter um volume meramente representativo de dados. Em razão disso, os dados obtidos com esse delineamento seriam mais precisos e menos relativos para lidar com os fenômenos relacionados aos organismos. Ratificando a questão, Claude Bernard (1878Bernard, C. (1878). Leçons sur les phénomènes de la vie communes auxs animauxs et auxs végétauxs. Librarie J. Baillière et fils.) diz que “as leis de cunho particular são precisas, as leis de cunho geral são relativas” (p. 341). Compartilhando seus objetivos sobre o uso do delineamento do sujeito único em 1938, Skinner destaca: “mesmo quando eu relatava uma curva de valores médios, eu quase sempre fornecia amostras individuais e argumentava que elas eram mais valorizáveis do que a média” (Skinner, 1989Skinner, B. F. (1989). Recent issues in the analysis of behavior. Merril Publishing Company., p. 131).

Apesar de bem próximas, as concepções de Claude Bernard e Skinner nesse quesito se distanciam pelo objetivo pretendido com a condução experimental. Em Claude Bernard (1865Bernard, C. (1865). Introduction à l'étude de la médecine expérimentale. Éditions Garnier-Flammarion./1878Bernard, C. (1878). Leçons sur les phénomènes de la vie communes auxs animauxs et auxs végétauxs. Librarie J. Baillière et fils.), o objetivo se voltará para o determinismo causal (causa imediata que determina a ocorrência do fenômeno), enquanto Skinner (1938Skinner, B. F. (1938). The behavior of organisms. Appleton-Century. ) se concentrará no estudo do comportamento como função de variáveis externas, objetivando, através do desenvolvimento de técnicas de medição, o controle e a predição individual. Vale ressaltar que a predição individual é um ponto-chave para que a análise estatística não seja imprescindível na ciência de Skinner, já que, segundo ele, tais procedimentos apenas “fazem referência indireta ao comportamento do indivíduo” (Skinner, 1938Skinner, B. F. (1938). The behavior of organisms. Appleton-Century. , p. 443).

Método em relação ao contexto clínico. Sobre o uso do delineamento do sujeito único na prática clínica, Skinner (1938Skinner, B. F. (1938). The behavior of organisms. Appleton-Century. ) não faz disso ênfase, mas também não traz restrições, porém admite que “a importância de uma ciência do comportamento deriva da possibilidade de uma eventual extensão às questões humanas” (Skinner, 1938Skinner, B. F. (1938). The behavior of organisms. Appleton-Century. , p. 441). Em contrapartida, seria um erro, segundo Skinner, que apenas questões de aplicação final determinassem o desenvolvimento de uma ciência em seu estágio inicial. Para Claude Bernard (1865Bernard, C. (1865). Introduction à l'étude de la médecine expérimentale. Éditions Garnier-Flammarion.) “o estudo experimental dessas diversidades de maneira única pode fornecer a explicação das diferenças individuais que são observadas no homem, seja nas diferentes raças ou em indivíduos da mesma raça, o que os médicos chamam de predisposição ou idiossincrasias” (p. 176)

Enquanto o posicionamento de Claude Bernard sugere nitidamente que o estudo experimental de modo único poderá beneficiar a prática clínica para a compreensão de idiossincrasias (casos raros), Skinner não emite um posicionamento direto sobre a questão em 1938Skinner, B. F. (1938). The behavior of organisms. Appleton-Century. . A explicação para isso foi fornecida pelo próprio Skinner 50 anos depois.

Em suas memórias do The Behavior of Organisms de 1938Skinner, B. F. (1938). The behavior of organisms. Appleton-Century. , Skinner (1989Skinner, B. F. (1989). Recent issues in the analysis of behavior. Merril Publishing Company.) destaca: “quase no final do livro, levantei a questão, se o comportamento humano tinha “propriedades... que exigirão uma diferente forma de tratamento (da que é a dada a animais não humanos)?” (p. 132, aspas, reticências e parênteses no original). O próprio Skinner, diante da pergunta levantada, declara: “achava que não poderia responder a essa questão, já que conhecia tão pouco sobre qualquer forma” (Skinner, 1989Skinner, B. F. (1989). Recent issues in the analysis of behavior. Merril Publishing Company., p. 132)

Desse modo, considerando o fato do próprio Skinner reconhecer que em 1938Skinner, B. F. (1938). The behavior of organisms. Appleton-Century. sabia muito pouco sobre que propriedades do comportamento humano exigiriam tratamento diferenciado das práticas utilizadas no laboratório com não humanos, sugere que talvez, em razão disso, não se tenha no livro um posicionamento direto de aplicação do delineamento intrassujeito ao contexto clínico.

É preciso destacar, porém, que, em 1938, quando apresentou suas propostas para uma ciência do comportamento, Skinner pontuou: “a formulação e a abordagem experimental geral que eu descrevi aqui não são tradicionais, mas suas idiossincrasias surgem de uma diferença de propósito e não de qualquer desacordo com o emprego tradicional” (Skinner, 1938Skinner, B. F. (1938). The behavior of organisms. Appleton-Century. , p. 230). Assim, ele ratificou que a ciência que estava propondo, apesar das particularidades advindas pelo objetivo de pesquisa, respeitava o rigor experimental. Em uma linha de raciocínio bem próxima, quando Claude Bernard trata do uso do delineamento do sujeito único na prática clínica, ele argumenta que “é sempre o mesmo método de observação e experimentação imutável em seus princípios, que apenas admite algumas particularidades de aplicação, mediante a complexidade relativa aos fenômenos” (Bernard, 1865Bernard, C. (1865). Introduction à l'étude de la médecine expérimentale. Éditions Garnier-Flammarion., p. 269). Nesse ponto, é possível apontar que Claude Bernard e Skinner (mesmo sem um posicionamento direto de Skinner em relação ao contexto clínico), concordam que: (a) sua abordagem experimental podia apresentar particularidades (em um contexto) por conta do objetivo da pesquisa; mas que, (b) as bases experimentais deveriam ser preservadas.

Contudo, a falta de um posicionamento direto de Skinner em 1938Skinner, B. F. (1938). The behavior of organisms. Appleton-Century. em relação à aplicação do método intrassujeito ao contexto clínico não fornece base para maiores desdobramentos nesta categoria, além da que já foi supracitada no decorre do item.

Considerações finais

Alguns estudos, tentando identificar as fontes acadêmicas que teriam norteado Skinner nos primórdios da ciência do comportamento, sugeriram, de modo pouco preciso, elos científicos entre Claude Bernard e Skinner. Considerando o delineamento do sujeito único como uma das principais conexões apontadas, este trabalho (além deste delineamento), procurou investigar também possíveis afinidades entre Skinner e Claude Bernard, com base nas seguintes categorias: (a) interação organismo-ambiente; (b) mentalismo (como obstáculo ao exercício científico); (c) preferências pela indução ou dedução enquanto lógica de pesquisa.

Do estudo sistemático das obras de Skinner (1938Skinner, B. F. (1938). The behavior of organisms. Appleton-Century. /1989Skinner, B. F. (1989). Recent issues in the analysis of behavior. Merril Publishing Company.) e Claude Bernard (1865Bernard, C. (1865). Introduction à l'étude de la médecine expérimentale. Éditions Garnier-Flammarion./1878Bernard, C. (1878). Leçons sur les phénomènes de la vie communes auxs animauxs et auxs végétauxs. Librarie J. Baillière et fils.), tanto semelhanças quanto diferenças puderam ser encontradas. Na interação organismo-ambiente, ambos conferem papel de relevância à questão, porém divergem sobre o que sucede à mesma. Para Skinner, o estudo será mantido refinando-se o processo de interação, enquanto Claude Bernard se voltará para a análise de processos orgânicos especializados. Quanto à questão do mentalismo (com base em explicações extrafísicas), os dois cientistas mantêm pensamentos compatíveis, descartando tais noções no exercício da ciência e procurando blindar suas proposições científicas do que consideram engodos epistêmicos. Sobre a preferência pela indução ou dedução como base de pesquisa, Skinner coloca-se ao lado da lógica indutiva, enquanto Bernard sugere que ambas estão a serviço da ciência, sendo complementares em vários momentos e não exclusivas de determinado domínio acadêmico.

Destaca-se que alguns dados obtidos nestas categorias supracitadas serviram tanto para corroborar quanto para refutar a principal pesquisa feita em Análise do Comportamento, aproximando os pensamentos de Skinner e Claude Bernard. No caso, a categoria “mentalismo” contribuiu para ratificar a colocação de Thompson (1984Thompson, T. (1984). The examining magistrate for nature: A retrospective review of Claude Bernard's an introduction to the study of experimental medicine. Journal of the Experimental Analysis of Behavior, 41(2), 211-216. doi.org/10.1901/jeab.1984.41-211
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), o qual sugeriu que, da mesma forma que Skinner combatia o mentalismo na Psicologia, Claude Bernard lutava contra ideias equivalentes na Fisiologia. Por outro lado, o item “Indução ou dedução?” forneceu um dado divergente do apontado por Thompson (1984Thompson, T. (1984). The examining magistrate for nature: A retrospective review of Claude Bernard's an introduction to the study of experimental medicine. Journal of the Experimental Analysis of Behavior, 41(2), 211-216. doi.org/10.1901/jeab.1984.41-211
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), revelando um Claude Bernard próximo e não contrário ao raciocínio hipotético-dedutivo, conforme o autor havia interpretado.

Das três características selecionadas para análise do delineamento intrassujeito (tratamento individual dos dados, controle experimental ao invés do estatístico e método em relação ao contexto clínico), apesar das divergências existentes na maior parte dos quesitos analisados, evidentes compatibilidades entre Skinner e Claude Bernard foram identificadas. As duas primeiras características foram as que denotaram concepções mais aproximadas. Já o último item, delineamento do sujeito único em relação ao contexto clínico, enquanto as colocações de Skinner (1938Skinner, B. F. (1938). The behavior of organisms. Appleton-Century. ) não enunciaram um posicionamento direto sobre o assunto, as colocações de Claude Bernard (1865Bernard, C. (1865). Introduction à l'étude de la médecine expérimentale. Éditions Garnier-Flammarion.) sugeriram que o estudo experimental de modo único poderia beneficiar a prática clínica na compreensão do que os médicos chamam de idiossincrasias. Nesse conjunto, de certa forma, a contribuição serve para mitigar a lacuna apontada em Huitema (2011Huitema, B. E. (2011). Analysis of single-case reversal designs, in the analysis of covariance and alternatives: Statistical methods for experiments, quasi experiments, and single-case studies (2ª ed.). John Wiley & Sons, Inc.) e Matos (1990Matos, M. A. (1990). Controle experimental e controle estatístico: A filosofia do caso único na pesquisa comportamental. Ciência e Cultura, 42, 585-592. https://bit.ly/3LJ6Vtw
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), que sugeriram afinidades entre Claude Bernard e o delineamento do sujeito único instituído por Skinner na Análise do Comportamento, mas não explicitaram os pontos afins. Em contrapartida, apesar de atenuar a lacuna, o comparativo aqui realizado deixa em aberto o seguinte questionamento: as afinidades entre o pensamento de Skinner e Claude Bernard ocorrem por conta de uma influência ou acontecem pelo modo como ambos escolheram fazer ciência? Ou seja, sob pilares experimentais, sem explicações que não podem ser submetidas a verificação científica e voltadas para predição e controle individual?

A resposta a essa questão, sem dúvida, evoca a necessidade de um rastreamento histórico, biográfico e documental consistente para investigar tal relação. Caso tais similaridades sejam confirmadas apenas como frutos de manejo acadêmico, seria mais um exemplo de como o empreendimento científico aproxima pensamentos, apesar do tempo (desde que norteados por um legitimo exercício epistêmico), tal como no caso Aristarco de Samos e Copérnico que, mesmo separados por séculos, aproximaram-se pela defesa do sistema heliocêntrico. Por outro lado, caso a influência fosse ratificada, um reparo retroativo poderia fornecer a Claude Bernard um espaço próprio ao lado dos principais fisiologistas que contribuíram com a construção do pensamento behaviorista. Dessa forma, assim como Pavlov, Loeb e Crozier, que são lembrados por contribuições específicas, o pensamento bernardiano poderia ganhar, na memória da Análise do Comportamento, o lugar que talvez lhe seja cientificamente devido.

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    Apoio: CNPq.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Out 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    02 Jun 2017
  • Aceito
    10 Set 2018
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