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Pulsão de Morte e Repetição: Psicanálise e História

Death Drive and Repetition: Psychoanalysis and Historyc

Na esteira da tradição inaugurada pelo próprio Freud (1914/2012Freud, S. (2012) Contribuição à história do movimento psicanalítico. In Obras completas, volume 11: totem e tabu, contribuição à história do movimento psicanalítico e outros textos (1912-1914). (pp. 245-327). (P. C. de Souza, Trad.). Companhia das Letras. (Texto original de 1914).; 1925/2011Freud, S. (2011) Autobiografia. In Obras completas, volume 16: O eu e o id, “autobiografia” e outros textos (1923-1925). (pp. 75-167). (P. C. de Souza, Trad.). Companhia das Letras. (Texto original de 1925).) em sua verve historiador, explicitada em textos como Contribuição à história do movimento psicanalítico e Autobiografia, se inscreve A construção da pulsão de morte freudiana: um estudo histórico da formação do conceito a partir de suas fontes, de Marcus Vinícius Neto Silva. Resultado de sua dissertação de mestrado na área de concentração em Estudos Psicanalíticos do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFMG, o autor parte de dois movimentos, analisando textos freudianos e ao mesmo tempo recuperando psicanalistas relegadas(os) ao esquecimento na história da psicanálise que foram fontes essenciais para Além do Princípio do Prazer, marco inaugural da pulsão de morte no pensamento de Freud (1920/2010Freud, S. (2010). Além do princípio de prazer. In Obras completas, volume 14: história de uma neurose infantil (“o homem dos lobos”), além do princípio do prazer e outros textos (1917-1920). (pp. 161-239). (P. C. de Souza, Trad.). Companhia das Letras. (Texto original de 1920).).

Neto Silva (2015Neto Silva, M. (2015). A construção da pulsão de morte freudiana: um estudo histórico da formação do conceito a partir de suas fontes. Editora Unimontes.) apresenta seu percurso numa via de mão dupla, já que ao mesmo tempo em que as fontes acessadas por Freud forneciam argumentos essenciais para seu texto, essas referências também eram guarnecidas pela escrita freudiana, que o tomavam como fonte de partida, ainda que explorassem conteúdos originais. O acesso de Freud aos textos desses autores fortalecia ou rejeitava definitivamente a validade de suas teses, dada a influência de seu pensamento e escrita.

A fim de extrair consequências para a elaboração e o estabelecimento do conceito de pulsão de morte na obra freudiana, Neto Silva (2015Neto Silva, M. (2015). A construção da pulsão de morte freudiana: um estudo histórico da formação do conceito a partir de suas fontes. Editora Unimontes.), prevenido quanto aos limites do alcance de suas elaborações, concentra sua pesquisa em torno de quatro principais esforços argumentativos, apresentados em formato de capítulos.

O primeiro, através de uma minuciosa análise teórico-conceitual de Além do Princípio do Prazer e de uma discussão a cerca da compulsão à repetição, pretende reconstruir o enlaçamento de quatro elementos - compulsão à repetição, regressão, princípio de Nirvana e agressividade - que sustentam a principal hipótese do livro, a saber, que “a compulsão à repetição é a manifestação de uma tendência à regressão, que atende em última instância ao princípio de Nirvana” (Neto Silva, 2015Neto Silva, M. (2015). A construção da pulsão de morte freudiana: um estudo histórico da formação do conceito a partir de suas fontes. Editora Unimontes., p. 24). Nesse capítulo, o autor demonstra fidelidade ao caráter investigativo de Freud, que lança hipóteses para depois abandoná-las com a mesma facilidade e ainda reinterpretá-las à luz de novas teses. Assim, no percurso do texto freudiano, Neto Silva (2015Neto Silva, M. (2015). A construção da pulsão de morte freudiana: um estudo histórico da formação do conceito a partir de suas fontes. Editora Unimontes.) indica o enlaçamento dos quatro elementos acima citados a partir da hipótese de que o aparelho psíquico tenderia a regredir ao estado original inanimado, onde se defendia de uma quantidade de estimulação que era incapaz de absorver.

O segundo capítulo concentra o debate sobre a regressão através da análise do conceito na obra de Freud e leituras atentas de textos de Sándor Ferenczi e August Stärcke que abordam a temática. No terceiro capítulo, as relações entre princípio de Nirvana e princípio de constância são examinadas através das incorporações, por parte de Freud, das elaborações de Josef Breuer e Barbara Low, de modo que o princípio de Nirvana cunhado por Low é incluído na teoria pulsional freudiana, operando ali a passagem da constância ao nirvana, que ainda que aparentemente surjam como princípios equivalentes, em alguns momentos são contraditórios, engodo dissolvido pelo autor.

No quarto e mais consistente dos capítulos, tendo como escopo teórico o debate entre os textos freudianos e as contribuições de Alfred Adler e Sabina Spielrein, Neto Silva investiga detidamente o impacto desses autores nas considerações de Freud sobre o tema. Assim, a agressividade proposta por Adler extingue a acepção generalizada que o termo sexual assume na obra de Freud, não restrito à atividade genital. Em Freud, a agressividade sofre diversos desvios, de modo que uma primeira abordagem do tema parece recusar tomar os impulsos agressivos como uma pulsão independente. Porém, ao examinar textos freudianos posteriores a 1920, Neto Silva (2015Neto Silva, M. (2015). A construção da pulsão de morte freudiana: um estudo histórico da formação do conceito a partir de suas fontes. Editora Unimontes.) destaca que a agressividade aparece atada de forma mais intensa à pulsão de morte. No que diz respeito à Sabrina Spielrein, o autor se debruça sobre seu texto de modo a marcar nos seus escritos dois componentes presentes nas pulsões descritas pela psicanalista russa, a destruição e o devir, investigados e descritos em diversas oportunidades, como em casos clínicos, obra literárias e mitos. Destacando o pioneirismo de Spielrein, levanta paralelos por vezes claros e por vezes implícitos do texto de Spielrein de 1912, com teorias freudianas posteriores a essa data. Tais pontos são elucidados por Neto Silva com cautela analítica, fazendo jus à originalidade e pertinência da teoria spielreiniana.

Entre a verdade extraída dos casos clínicos freudianos, as investigações puramente especulativas de Freud, o recurso a conclusões já esboçadas por outras(os) psicanalistas, esse livro revela sua essencial contribuição ao campo da história da psicanálise, demonstrando a importância do conceito de pulsão morte para a teoria, suas origens na primeira safra de psicanalistas e seu estabelecimento nos textos freudianos. Mesmo que não tratados nesse livro, dada a delimitação de seus objetivos histórico-conceituais, essa noção também sofre importantes desdobramentos operados por Melanie Klein, Jean Laplanche e Jacques Lacan, que podem ser lidos retroativamente à luz da pulsão de morte freudiana.

Afora sua maneira metódica em historizar o movimento psicanalítico de forma crítica - em especial, o conceito de pulsão de morte e seu contexto -, a narrativa da argumentação de Neto Silva se apresenta como um roteiro aberto para pesquisa e, ainda mais, como guia ao ensino desse conceito em cursos de graduação e pós-graduação, por seu aspecto didático destacado.

De forma marginal e talvez por isso tão potente, o trabalho pode ser tomado também como parte importante de um lembrete às diferentes incidências dos efeitos da compulsão à repetição na história de um campo epistêmico, visto que essa noção - compulsão à repetição - é analisada no livro apenas pelo viés metapsicológico. Essa ideia de Freud, parte essencial na formação do conceito de pulsão de morte, talvez permita articular de forma pontual história e psicanálise, já que, assim como no funcionamento psíquico, a tendência a reviver uma experiência que provoque desprazer acontece na história da humanidade de modo recorrente “a primeira vez como tragédia, a segunda, como farsa” (Marx, 1973, citado por Žižek, 2011Žižek, S. (2011). Primeiro como tragédia, depois como farsa (M. B. de Medina, Trad.). Boitempo., p. 15). Nesse sentido, partindo desse argumento, destacamos aqui alguns pontos que acreditamos possíveis de serem extraídos desse livro.

O primeiro talvez seja o modo como psicanalistas com contribuições originais que, de certa maneira, provocaram um desvio no percurso do próprio Freud, foram relegadas(os) a, no máximo, notas biográficas, quando não, deserdados da disciplina psicanalítica e atreladas(os) ao surgimento de linhas e vertentes psicológicas derivadas da psicanálise, casos de Adler, com a Psicologia Individual e, o mais lembrado, Jung com a Psicologia Analítica. Como Neto Silva (2015Neto Silva, M. (2015). A construção da pulsão de morte freudiana: um estudo histórico da formação do conceito a partir de suas fontes. Editora Unimontes.) apresenta em diversos trechos, algumas das proposições de Adler ou Spilrein, rejeitadas por Freud em diversos debates, mais tarde é incorporado por ele em seus textos.

Em especial, destaca-se a participação de inúmeras mulheres, essenciais à construção de conceitos e teses fundadoras da teoria psicanalítica, ofuscadas por homens que, em muitos momentos, fazendo uso de conceitos criados por elas, carregaram a notoriedade por todo o trabalho. Não estamos dizendo, contudo, que um campo do conhecimento se desenvolve sob a pena de um único sujeito. Obviamente, um pensamento elaborado previamente por alguém pode ser desenvolvido e ultrapassado em suas formulações por outros. O que enfatizamos aqui é a reiterada negligência da psicanálise com relação às mulheres pioneiras de seu campo. A título de exemplo, Sabrina Spielrein, com suas ideias acerca da destruição e do devir, sendo tomada como a amante problemática de Jung. Erro apenas recentemente reparado em ações como a de Renata Cromberg (2014Cromberg, R. (2014). Sabina Spielrein - uma pioneira da psicanálise (obras completas vol. 1). Livros da Matriz.), ao compilar as obras da autora, oferecendo uma edição crítica completa de seu pensamento acrescida de uma biografia intelectual. Como bem lembrado por Neto Silva e Érica Espírito Santo acerca dessas primeiras teóricas, “no campo da psicanálise, essas autoras acabam ocupando um lugar secundário em relação aos grandes nomes do movimento psicanalítico [...] As razões que as levam a serem colocadas em segundo plano podem ter alguma relação com o gênero” (Neto Silva & Espírito Santo, 2015Neto Silva, M. & Espírito Santo, E. (2015). A história das primeiras mulheres psicanalistas do início do século XX. história, histórias, 6(3), 135-156. https://periodicos.unb.br/index.php/hh/article/view/10913
https://periodicos.unb.br/index.php/hh/a...
, p. 155).

Outro ponto subjacente a esse texto, mesmo que à revelia das intenções principais do autor, é a oferta de ferramentas para reflexão da história das dissidências do movimento psicanalítico. Como destaca Mezan (2014Mezan, R. (2014). O tronco e os ramos. Companhia das Letras.), os desdobramentos do tronco freudiano em diferentes escolas de psicanálise podem ter seus fundamentos analisados através de diferentes dispersões, sejam elas geográficas, doutrinárias ou institucionais. Embora a difusão ao redor do mundo e o modo como cada instituição posterior a Freud se organiza não tenham sido o foco desse livro, a produção teórica e conceitual - aqui, em torno da pulsão de morte - fornecem princípios para refletir as compatibilidades e os limites que provocaram tais rompimentos. Visto que, como Neto Silva (2015Neto Silva, M. & Espírito Santo, E. (2015). A história das primeiras mulheres psicanalistas do início do século XX. história, histórias, 6(3), 135-156. https://periodicos.unb.br/index.php/hh/article/view/10913
https://periodicos.unb.br/index.php/hh/a...
) nos convoca a ponderar, semelhanças apenas aparentes que possuam conceitualidade deveras antagônicas e supostas discordâncias epistêmicas, em verdade, tenham mais correspondências que seus autores admitam.

Já presente na publicação independente Pré-história da pulsão freudiana (2010Neto Silva, M. (2010). Pré-história da pulsão freudiana. Publicação independente.), o raro cuidado metodológico e o grande apreço em extrair o que os conceitos têm a comunicar é traço ainda mais acentuado em A construção da pulsão de morte freudiana: um estudo histórico da formação do conceito a partir de suas fontes. Esse livro se distingue pelo gesto historiográfico que não deixa de ser psicanalítico, o que tem sido a marca do trabalho de Neto Silva.

Referências

  • Cromberg, R. (2014). Sabina Spielrein - uma pioneira da psicanálise (obras completas vol. 1) Livros da Matriz.
  • Freud, S. (2010). Além do princípio de prazer. In Obras completas, volume 14: história de uma neurose infantil (“o homem dos lobos”), além do princípio do prazer e outros textos (1917-1920) (pp. 161-239). (P. C. de Souza, Trad.). Companhia das Letras. (Texto original de 1920).
  • Freud, S. (2011) Autobiografia. In Obras completas, volume 16: O eu e o id, “autobiografia” e outros textos (1923-1925) (pp. 75-167). (P. C. de Souza, Trad.). Companhia das Letras. (Texto original de 1925).
  • Freud, S. (2012) Contribuição à história do movimento psicanalítico. In Obras completas, volume 11: totem e tabu, contribuição à história do movimento psicanalítico e outros textos (1912-1914) (pp. 245-327). (P. C. de Souza, Trad.). Companhia das Letras. (Texto original de 1914).
  • Mezan, R. (2014). O tronco e os ramos Companhia das Letras.
  • Neto Silva, M. (2010). Pré-história da pulsão freudiana Publicação independente.
  • Neto Silva, M. (2015). A construção da pulsão de morte freudiana: um estudo histórico da formação do conceito a partir de suas fontes Editora Unimontes.
  • Neto Silva, M. & Espírito Santo, E. (2015). A história das primeiras mulheres psicanalistas do início do século XX. história, histórias, 6(3), 135-156. https://periodicos.unb.br/index.php/hh/article/view/10913
    » https://periodicos.unb.br/index.php/hh/article/view/10913
  • Žižek, S. (2011). Primeiro como tragédia, depois como farsa (M. B. de Medina, Trad.). Boitempo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Out 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    22 Abr 2018
  • Aceito
    30 Maio 2018
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