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Resenha: A Invenção da Psicologia Moderna

Book Review: The Invention of Modern Psychology

Paicheler-Harrous, G.. (2018). A invenção da psicologia moderna (Patto, M. H. S.; Moreira, L. E. de V. , Trad.). Benjamin Editorial.

De autoria da socióloga francesa Geneviève Paicheler-Harrous, o livro procura esclarecer as condições e acontecimentos relacionados à delimitação de um campo profissional e científico específico para os psicólogos. Em sua visada sócio-histórica, enraizada na sociologia das disciplinas e das profissões, a autora perscruta os meandros acadêmicos, as demandas sociais e econômicas, bem como as características das instituições universitárias e corporativas nas quais os principais personagens da psicologia moderna americana irão disputar e encontrar (ou não) salvaguarda para ideias e práticas emergentes.

Sim, “Psicologia Moderna”, como diz o título, mas com uma ponderação. A tese (não explicitada) da autora é que a Psicologia Moderna coincide com aquela exercida nos Estados Unidos, o que acaba por generalizar para os demais países uma prática desenvolvida especificamente no contexto estadunidense. Isto porque a história narrada transcorre majoritariamente nos Estados Unidos da América, partindo do advento da frenologia no país em meados do século XIX, e indo até 1929, quando do 9º Congresso Internacional de Psicologia na Universidade de Yale. Segundo ela, os dois marcos fazem referência, respectivamente, aos primórdios da área no país e ao momento em que “o centro de gravidade da produção científica da Psicologia deslocou-se para o oeste, atravessando o oceano" e “a supremacia europeia chegava ao fim” (p. 227). Mesmo que concordemos com a afirmação e argumentação não desenvolvidas no livro de que, após os anos 1930, a psicologia se tornou hegemonicamente estadunidense, as operações envolvidas na constituição desta hegemonia e da globalização de seu campo de saberes envolvem uma série de processos locais que contribuem para essa representação, ao mesmo tempo em que a contradizem e lhe oferecem suporte. Isso não poderia passar despercebido nem à historiadora, nem à socióloga ocupada com a constituição do campo (Bourdieu, 2003Bourdieu, P. O Campo Científico. In: ORTIZ, Renato. (Org.). A Sociologia De Pierre Bourdieu. São Paulo: Olho D’água, 2003, p.112-143.). Quando o texto o faz, em nome de uma suposta unidade da Psicologia Moderna, ele reifica aquilo que é construído.

Do ponto de vista da teoria sobre a origem e a institucionalização das profissões liberais, foco da revisão teórica e metodológica do primeiro capítulo, Paicheler-Harrous cuida em diferenciar-se do modelo funcionalista, subscrevendo com pontuais reservas a perspectiva genético-fenomenológica. Para o primeiro modelo, uma profissão deveria alinhavar um saber teórico que embasasse competências específicas, desenvolver uma rede de ensino especializado, avaliar competências dos profissionais atuantes, organizar os profissionais, instituir um código profissional e oferecer serviços de forma altruísta. Essa visão teria sido já alvo de críticas da Escola de Chicago, por não fazer mais do que sublinhar o caráter tautológico e a imagem valorizada que as profissões teriam de si mesmas. No modelo subsequente, o funcionalismo seria então criticado por assumir a visão social dominante e silenciar-se sobre os poderes e privilégios envolvidos no controle dos membros de determinada profissão. O controle do exercício de determinada expertise, verdadeira “missão das profissões”, seria então ocultado em detrimento de uma “universalização simbólica de interesses particulares” (Ibidem, p.42), que o trabalho de Paicheler-Harrous explicita.

Nessa perspectiva, imbuída de um referencial histórico-sociológico variado que vai da sociologia das profissões, como Magali Larson e Eliot Freidson, à sociologia do conhecimento de Thomas Kuhn e Pierre Bourdieu, a autora passa ao largo das tentativas de conciliação teórico-prática ou de consagração a um passado idílico da disciplina. Como ela (2018, p.235) mesma enuncia, “(...) a invenção da psicologia moderna não se fez com serenidade. Estamos longe da imagem dos pioneiros unidos pelo desinteresse e pela harmonia na procura da verdade”, de modo que se torna importante descobrir quais interesses atravessam as lutas e conflitos, individuais e coletivos, sob os quais certa visão de psicologia acaba por constituir-se de forma hegemônica. Segue desse arcabouço referencial a ideia de que os fundamentos da disciplina “não se encontram na objetividade constituída da ciência” (p. 239), mas nas lutas pela monopolização. A importância do livro residiria na necessidade da Psicologia explicar a racionalidade que escolheu. Racionalidade que, como o livro sugere, estaria comprometida menos com a compreensão de seus processos do que com a normalização e a exclusão - as quais acabam por constituir o mesmo motor de legitimação da Psicologia perante seu público e comunidade de pares.

Seguem dessa visada teórica os quatro planos de análise envidados pela autora em sua obra: 1) o da produção intelectual e da reprodução do saber; 2) o da produção e delimitação das práticas de aplicação; 3) o da institucionalização; e 4) o dos esforços de convencimento do público leigo. A partir desse recorte e das imbricações materiais constituídas em torno desses planos, torna-se possível compreender um conjunto de questões.

Por exemplo, como a frenologia, a despeito de sua superação enquanto teoria científica, viria a exercer papel tão relevante para a Psicologia ao construir uma demanda junto à população norte-americana por conhecimentos úteis aos indivíduos. Demanda essa que atuaria como verdadeiro “abre-alas” para os ramos psicológicos aplicados e seu arsenal explicativo. É possível compreender também por que o Behaviorismo se torna hegemônico nos pós-guerra (e não antes). Considerando que o Behaviorismo se beneficia dos avanços científicos da psicologia funcionalista, dos acertos e fracassos empíricos dos grandes nomes da testagem e das teorias raciais já estudados por Jay Gould (2014Gould, S. J. A falsa medida do homem. São Paulo: Editora WMF, 2014.), bem como da atuação de figuras como J.B. Watson. O Behaviorismo abre caminho, por sua vez, graças à sua prática laboratorial, para a inserção da Psicologia na área da Educação.

A análise de Paicheler-Harrous, com olhar atento à materialidade dos fenômenos em questão, permite compreender ainda que a psicologia universitária não se apresenta como antecessora da psicologia aplicada - como seria de se supor -, mas sim em conflito com os profissionais estabelecidos no mercado, frente aos quais as associações profissionais de pesquisa e de Psicologia, bem como de publicações científicas na área, teriam exercido um papel decisivo. Daí os esforços de cientistas partidários do evolucionismo em manter cadeiras de psicologia animal frente ao avanço de áreas aplicadas, como a Educacional.

Por meio do relato detalhado oferecido pela autora, muitas teses históricas eventualmente consolidadas em nosso modo de conceber a Psicologia vão sendo sucessivamente desmontadas, em prol de uma imagem mais complexa e coerente de seus eventos constitutivos. A ideia de que a consolidação da Psicologia como disciplina acadêmica seria predecessora de sua difusão profissional, por exemplo, é posta em questão, uma vez que o modelo universitário estadunidense conferia particular prestígio ao saber aplicável. Se por um lado, então, a aplicabilidade dos testes e a utilidade da Psicologia para a classe média nascente oferecem impulso à institucionalização da matéria nas universidades, por outro, as teorias científicas de que a Psicologia se faz herdeira assemelham-se a uma “bricolagem” de metafísica, frenologia, positivismo, idealismo, empirismo, engenharia humana e calvinismo biológico, saberes que se transformam no processo de constituição do campo, conformando a partir daí (e menos de sua própria estrutura interna) um corpo mais coerente de conhecimentos, em função do maior ou menor sucesso de seus pesquisadores e profissionais, dentro e fora da universidade.

Um dos casos mais surpreendentes no bojo desta argumentação é aquele do surgimento e da defesa dos testes psicológicos: criados com a finalidade de classificar indivíduos para a indústria, na sequência empregados pelo Exército americano durante a Primeira Guerra Mundial (como uma espécie de balão de ensaio para a utilização em larga escala), e logo convertidos em instrumento na defesa de teses eugenistas. Nesse percurso, os fundamentos pseudocientíficos dos testes se coadunariam às medidas anti-imigração subsequentes, justificadas pela debilidade mental cientificamente comprovada por resultados de aplicações que apontavam o QI inferior de imigrantes oriundos do leste e sul europeus - e, claro, da população negra, cuja “idade mental” média, na base da pirâmide, alcançaria apenas 10,41 anos. Isso em um contexto, como a autora lembra (Guthrie, 1976, como citado em Paicheler-Harrous, 2018, p.22), no qual “até mesmo os ratos dos laboratórios eram brancos”, e que a primeira onda de imigração trazia milhares de estrangeiros ao país (fato que resulta, como sabemos, na criação do centro de inspeção e deportação de imigrantes da ilha de Ellis, em 1892 - desativado apenas em 1954). Nesse cenário, a autora mostra, os debates científicos pautavam-se menos pelo interesse legítimo em teses psicológicas fundamentais do que na busca de oportunidades dos profissionais interessados em uma melhor colocação e/ou no financiamento para suas iniciativas, assim como no lobby junto ao Exército americano para que os soldados fossem submetidos à empreitada “megalométrica” inaugurada por psicólogos como Robert M. Yerkes e Walter D. Scott.

De forma coerente, a autora não se furta à exposição de questões profissionais e debates teóricos, que circundaram o sucesso ou o fracasso de seus principais personagens na implementação de propostas e convencimento teórico que marcam a história da Psicologia moderna nos Estados Unidos. Questões que abarcam tanto a anuência do Estado Maior na aplicação de testes (como no exemplo citado acima) quanto a permanência ou não de psicólogos em universidades de prestígio, assim como sua formação e carreira, a manutenção de laboratórios, as possibilidades profissionais fora da academia, os acordos políticos, a circulação das ideias científicas, a fundação de revistas e associações, as disputas internas e externas.

Assim, um dos grandes méritos do livro de Paicheler-Harrous é o de conseguir mostrar as contradições, conflitos e movimentos que participaram da “invenção” da Psicologia como disciplina própria, furtando-se a generalizações cômodas ou à apresentação de uma história que está longe de ser linear e progressiva. À pergunta de Hugues (1952, como citado em Paicheler-Harrous, 2018), que indaga se a psicologia deveria ser considerada uma ciência ou uma profissão, ela responde: “Sua proeza institucional está no fato de que ela se constituiu ao mesmo tempo como ciência profissional e profissão científica.” (Ibidem, p.238)

A descrição, aliás, dos modos como vão sendo delimitados e consolidados os ramos Educacional, Industrial e do Trabalho na Psicologia americana, oferece atrativo especial para seus profissionais, pois, na medida em que a autora analisa os acontecimentos relacionados ao avanço da Psicologia em cada uma dessas áreas, ela evidencia pontos eventualmente disputados ou tecidos em colaboração com áreas lindeiras, bem como questões econômicas, políticas, corporativas, ideológicas e institucionais da época, que seguem atravessando seu exercício presente e possibilitando uma reflexão acurada sobre suas condicionantes.

Em defesa da relevância deste trabalho para o público brasileiro, lembramos que a Psicologia estadunidense exerceu notável influência também na constituição da Psicologia em nosso país, especialmente a partir da década de 1940 (Dadico & Monteiro, 2021Dadico, L; Monteiro, R. Henri Piéron, Roberto Mange e a História da Psicotécnica no Brasil: representações em disputa. Revista História da Educação (Online). 2021. ). Um ponto interessante a observar nesse sentido é que o uso de testes de inteligência se dá no Brasil em período ligeiramente posterior ao americano, de modo que o relato de Paicheler-Harrous contribui para a reflexão tanto sobre a gênese da área quanto sobre o uso desse ferramental no Brasil. O fato possivelmente está por trás da iniciativa de verter a obra para o português. Ressaltamos, seguindo esta argumentação, que a presente tradução conta com a mão da professora emérita Maria Helena Souza Patto, um dos grandes nomes da história da Psicologia Escolar e Educacional brasileira, e uma das críticas mais contundentes aos usos e apropriações da psicometria no país (Patto, 2015Patto, M. H. S. A produção do fracasso escolar : histórias de submissão e rebeldia. 4a. edição, revista e aumentada. São Paulo: Intermeios, 2015.).

Muito embora a edição francesa não seja recente (data de 1992), a carência de bons livros de história da Psicologia no Brasil e a qualidade da obra de Paicheler-Harrous chancelam a escolha dos tradutores. A tradução reproduz o formato original da publicação francesa, embora tenham sido omitidos, na versão brasileira, os interessantes textos originais, como anexo, de Watson, Cattell e outros. Do ponto de vista editorial, há que se elogiar a opção pela Benjamin como casa editorial para a publicação: o livro recebeu um tratamento visual e material esmerados, que contribuem para o prazer da leitura, e manteve o bem-vindo índice de autores citados, algo raro de ocorrer em edições nacionais. Os tradutores apostaram em uma editora pequena - caso diverso da L’Harmattan francesa -, mas com um catálogo especializado e de qualidade, em linha com sua congênere europeia.

Para concluir esta breve resenha, gostaríamos de acrescentar um último comentário. Ao assumir a tese de uma profunda identidade entre a Psicologia constituída como disciplina e as demandas postas pela organização social e econômica, bem como pela ascensão da classe média dos Estados Unidos, Paicheler-Harrous não apenas explica o estrondoso sucesso profissional dos psicólogos naquele país, como justifica a própria estrutura de seu livro, buscando suporte para a tese de que a invenção da Psicologia moderna teria sido consolidada no momento justo em que a hegemonia da Psicologia americana efetiva-se no cenário internacional. Momento este que poderia ser representado pelo I Congresso Internacional de Psicologia da Universidade de Yale, evento capaz de atrair os principais nomes da Psicologia Europeia, em 1929. Esse florescimento da Psicologia americana é atribuído, em alguma medida, ao modelo universitário americano, capaz de angariar contribuições generosas da iniciativa privada, mas que acabaria, pela mesma razão, por fazer-se refém das necessidades do setor produtivo. Daí a rápida “conversão” de um privilégio catedrático em prol da profissionalização e do fato de que os primeiros setores onde a Psicologia americana encontrou aplicação são justamente a Publicidade e, em parceria com os engenheiros, a Organização do Trabalho, já sob a égide da administração científica de Charles Taylor.

Se o ponto de partida do livro de Paicheler-Harrous é a França - país cuja tradição acadêmica teria compelido seus primeiros profissionais da Psicologia a um esforço conciliatório entre Filosofia e Medicina (formação dupla exigida dos primeiros catedráticos) -, esta escolha apenas acentua as diferenças de tradição e interesse inicialmente postos em causa para a disciplina nascente nos Estados Unidos e naquele país. Diferença essa que expressa, como sabemos, também as disputas e contradições que permeiam as origens da Psicologia brasileira. A afinidade com a Psicologia francesa estaria no modelo clínico (herdeiro dos alienistas do século XIX) influenciado pelo positivismo, pela história natural e pelo empirismo inglês. Empirismo que trouxe, por sua vez, inspiração para o método científico biológico-experimental no qual a Psicologia moderna iria buscar fundamentação, afastando-se, em parte, da Filosofia. Um percurso que não coincide, porém, com aquele alemão - caso que constitui uma das lacunas do livro, a despeito das importantes referências ao pioneirismo de Wundt e da episódica menção à fortuna da Gestalt e aos conflitos da Psicologia americana com a Psicanálise.

Ainda que as primeiras Cadeiras de Psicologia tenham sido estabelecidas nas grandes universidades francesas com relativa rapidez, os cursos autônomos de Psicologia teriam aparecido somente em 1948, sinalizando um desprestígio que marcaria a disciplina naquele país até os dias de hoje. Questão que, na condição de diretora aposentada do Le Cermes 3 (laboratório multidisciplinar de análises sociais do CNRS - Centre national de la recherche scientifique francês) e responsável por programas de prevenção à Aids naquele país, certamente Paicheler-Harrous vivenciou em sua prática profissional. Para além da indefinição acerca de seus limites enquanto ciência, uma das razões para a atualidade dessa crise na Psicologia francesa estaria na ambiguidade de sua posição entre a adaptação e a crítica social necessária, desde que o confronto com as práticas disciplinares permeia, de forma intrínseca, a atuação do psicólogo nos mais diferentes campos de intervenção. Note-se que o caso francês, nesse sentido, também guarda diferenças frente àquele norte-americano.

O livro não se apresenta, portanto, como um manual de história da Psicologia dotado de qualquer pretensão totalizante ou generalização indevida, mas antes como esforço para mostrar o processo pelo qual foi possível inventar uma nova disciplina, com todos os méritos e senões dessa iniciativa. Iniciativa carregada de contradições, que se expressam em imagens como aquela destacada pela própria autora, do “mascate anônimo que atravessava o território estadunidense para apalpar as bossas dos crânios e vender brochuras que permitiam conhecer melhor o caráter” (Paicheler-Harrous, 2018, p.231).

Referências

  • Bourdieu, P. O Campo Científico. In: ORTIZ, Renato. (Org.). A Sociologia De Pierre Bourdieu São Paulo: Olho D’água, 2003, p.112-143.
  • Dadico, L; Monteiro, R. Henri Piéron, Roberto Mange e a História da Psicotécnica no Brasil: representações em disputa. Revista História da Educação (Online) 2021.
  • Gould, S. J. A falsa medida do homem São Paulo: Editora WMF, 2014.
  • Patto, M. H. S. A produção do fracasso escolar : histórias de submissão e rebeldia 4a. edição, revista e aumentada. São Paulo: Intermeios, 2015.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Out 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    11 Jun 2019
  • Revisado
    02 Nov 2019
  • Aceito
    08 Dez 2020
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