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Itinerários Terapêuticos Percorridos por Pessoas que Tentaram Suicídio* * Apoio: CAPES - Código de Financiamento 001.

Therapeutic Itineraries Followed by People Who Attempted Suicide

Resumo

Esta pesquisa analisou itinerários terapêuticos de usuários do Sistema Único de Saúde que tentaram suicídio. Foi realizada uma análise de conteúdo das entrevistas feitas com dez usuários que tentaram suicídio e seis referências técnicas da rede de saúde. Os resultados apontaram a presença de solidão e desamparo nos usuários; indicaram acolhimento adequado realizado pelos profissionais de saúde; ressaltaram a não identificação dos usuários com os serviços de saúde mental para os quais foram encaminhados; assinalaram o não seguimento dos casos na atenção primária e mostraram que os caminhos terapêuticos ultrapassaram as práticas biomédicas. Este estudo aponta a necessidade de políticas públicas específicas para esse público, que articulem a rede intersetorial de serviços e itinerários não técnicos de apoio à vida.

Palavras-chave:
itinerários terapêuticos; tentativa de suicídio; saúde pública

Abstract

In this research, were analysed the therapeutic itineraries of patients from the Unified Health System who attempted suicide. An analysis of interviews produced with ten patients who attempted suicide and with six health network references were performed. The results indicated the presence of loneliness and helplessness in patients; indicated adequate reception by health professionals; emphasized about a non-identification of patients with mental health units to which they are sent; indicate the non-follow-up of cases in primary care; and showed that therapeutic pathways surpassed biomedical practices. This study demonstrates the need for specific public policies which articulate the multisectoral network of services and non-technical life support itineraries for those people.

Keywords:
therapeutic itineraries; suicide attempt; public health

O comportamento suicida (ideação, planos, tentativas e suicídio completo) é um grave problema de saúde pública e está relacionado a múltiplas causas. É um fenômeno complexo, mas que pode ser prevenido. Segundo a Organização Mundial da Saúde (World Health Organization [WHO], 2019World Health Organization. (2019). Suicide in the world. Global health estimates. https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/326948/WHO-MSD-MER-19.3-eng.pdf?sequence=1&isAllowed=y
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), o suicídio foi a segunda principal causa de morte na faixa etária entre 15 a 29 anos e a terceira para a faixa etária de 15 a 19 anos, em 2016. Estima-se que as tentativas de suicídio sejam de 10 a 20 vezes mais frequentes do que o suicídio completo e a tentativa prévia é o maior fator de risco para uma nova tentativa ou para o suicídio concretizado (WHO, 2014World Health Organization. (2014). Mental health: Preventing suicide - A global imperative. http://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/131056/9789241564878_eng.pdf;jsessionid=AD1521414C2F0083E358854991C7DCE8?sequence
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). Além das tentativas prévias, presença de transtorno mental, dificuldade de acesso a serviços de saúde mental, violência de gênero, traumas e abusos, doenças incapacitantes e dores crônicas também são fatores de risco para o suicídio.

Lessa (2018Lessa, M. B. M. F. (2018). Um estudo sobre a moralização do Suicídio. Em A. M. L. C. Feijoo (Org.), Suicídio: entre o viver e o morrer (pp. 105-144). IFEN. ) reitera o argumento, apresentado em documento de orientação técnica produzido pelo Conselho Federal de Psicologia (2013Conselho Federal de Psicologia. (2013). O suicídio e os desafios para a psicologia. https://site.cfp.org.br/publicacao/suicidio-e-os-desafios-para-a-psicologia/
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), que afirma que os países de baixa e média renda, incluindo o Brasil, têm escassos locais específicos de atendimento aos usuários que tentam suicídio ou que perderam familiares por esse tipo de morte. A autora denuncia as estratégias ainda precárias de capacitação, identificação, avaliação e manejo do usuário em risco suicida.

Em estudos qualitativos realizados em hospitais brasileiros não psiquiátricos, Bastos et al. (2019Bastos, L., Escorsim, S. M., Lima, M. C. D. de, & Rodrigues, N. C. S. (2019). Desafios no atendimento a mulheres com risco e/ou tentativa de suicídio em uma maternidade de alto risco. R. Saúde Pública, 2(1), 43-56. https://doi.org/10.32811/25954482-2019v2n1p43
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), Freitas e Borges (2017Freitas, A. P. A. de, & Borges, L. M. (2017). Do acolhimento ao encaminhamento: O atendimento às tentativas de suicídio nos contextos hospitalares.Estudos de Psicologia (Natal),22(1), 50-60.https://dx.doi.org/10.22491/1678-4669.20170006
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), Liba et al. (2016Liba, Y. H. A. de O., Lemes, A. G., Oliveira, P. R. de, Nascimento, V. F. do, Fonseca, P. I. M. N, da, Volpato, R. J., Almeida, M. A. S. O., & Cardoso, T. P . (2016). Percepções dos profissionais de enfermagem sobre o paciente pós-tentativa de suicídio. Journal Health NPEPS, 1(1), 109-121. https://periodicos.unemat.br/index.php/jhnpeps/article/view/1437/1498
https://periodicos.unemat.br/index.php/j...
) e Oliveira et al. (2016Oliveira, C. T. de, Collares, L. A., Noal, M. H. O., & Dias, A. C. G. (2016). Percepções de uma equipe de saúde mental sobre o comportamento suicida. Revista Interinstitucional de Psicologia, 9(1),78-89.) observam a falta de capacitação da equipe sobre o comportamento suicida, comprometendo a devida identificação, o acolhimento e o encaminhamento adequado no momento da alta hospitalar para seguimento de cuidados. Sousa et al. (2019Sousa, J. F. de, Sousa, V. C. de, Carvalho, C. M. S. de., Amorim, F. C., M., Fernandes, M. A., Coelho, M.C.V.S., & Silva, J. S. (2019). Prevenção ao suicídio na atenção básica: Concepção de enfermeiros.Revista Cuidarte,10(2). https://doi.org/10.15649/cuidarte.v10i2.609.
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) e Silva et al. (2017da Silva, N. K. N., de Carvalho, C. M. S., Magalhães, J. M., de Carvalho Junior, J. A. M., Sousa, B. V da S., & Moreira, W. C. (2017). Ações do enfermeiro na atenção básica para prevenção do suicídio. SMAD Revista Eletrônica Saúde Mental Álcool e Drogas, 13(2), 71-77. https://dx.doi.org/10.11606/issn.1806-6976.v13i2p71-77.
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) realizaram estudos qualitativos com enfermeiras da atenção básica e, além da falta de capacitação, não identificaram ações específicas destinadas aos pacientes com comportamento suicida.

Freitas e Borges (2017Freitas, A. P. A. de, & Borges, L. M. (2017). Do acolhimento ao encaminhamento: O atendimento às tentativas de suicídio nos contextos hospitalares.Estudos de Psicologia (Natal),22(1), 50-60.https://dx.doi.org/10.22491/1678-4669.20170006
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), Dianin (2015Dianin, I. M. B. (2015). Suicídio: Políticas e ações de enfrentamento a partir da política nacional de saúde pública (2006), no Vale do Rio Pardo [Tese de Doutorado, Universidade de Santa Cruz do Sul]. Repositório institucional UNISC. http://repositorio.unisc.br:8080/jspui/bitstream/11624/806/1/IreneDianin.pdf
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) e Storino et al. (2018Storino, B. D., Campos, C. F. e, Chicata, L. C. de O, Campos, M. de A., Matos, M. S. da C., Nunes, R. M. C. M., & Vidal, C. E. L. (2018). Atitudes de profissionais da saúde em relação ao comportamento suicida. Cadernos Saúde Coletiva, 26(4), 369-377. https://doi.org/10.1590/1414-462x201800040191
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) pontuam o preconceito dos profissionais de saúde que, muitas vezes, não se sentem confortáveis atendendo pacientes que tentaram suicídio. Há ainda muitos mitos em relação ao comportamento suicida que reforçam esses preconceitos, como o julgamento da tentativa como um ato para chamar a atenção de familiares, amigos e outras referências afetivas. Quem tenta suicídio está vivenciando um sofrimento extremo que necessita de cuidados e fortalecimento dos fatores protetivos (WHO, 2014World Health Organization. (2014). Mental health: Preventing suicide - A global imperative. http://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/131056/9789241564878_eng.pdf;jsessionid=AD1521414C2F0083E358854991C7DCE8?sequence
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). Por isso, a necessidade de capacitação dos profissionais para que compreendam a complexidade envolvida no comportamento suicida e desenvolvam ações específicas para esse público.

Dianin (2015Dianin, I. M. B. (2015). Suicídio: Políticas e ações de enfrentamento a partir da política nacional de saúde pública (2006), no Vale do Rio Pardo [Tese de Doutorado, Universidade de Santa Cruz do Sul]. Repositório institucional UNISC. http://repositorio.unisc.br:8080/jspui/bitstream/11624/806/1/IreneDianin.pdf
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) aponta a frequência com a qual os usuários com comportamento suicida abandonam o tratamento porque se sentem desacreditados da família e deles mesmos, além de terem vergonha de abordar o assunto com os profissionais de saúde. A Organização Mundial da Saúde (WHO, 2014World Health Organization. (2014). Mental health: Preventing suicide - A global imperative. http://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/131056/9789241564878_eng.pdf;jsessionid=AD1521414C2F0083E358854991C7DCE8?sequence
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) relaciona o estigma referente ao suicídio à dificuldade de se buscar ajuda, o que torna mais grave o sofrimento apresentado.

Os fatores de proteção para o suicídio incluem diversos atores e ações da sociedade: apoio da família, de amigos e de outros relacionamentos significativos; crenças religiosas, culturais e étnicas; envolvimento na comunidade; uma vida social satisfatória; e integração social (WHO, 2014World Health Organization. (2014). Mental health: Preventing suicide - A global imperative. http://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/131056/9789241564878_eng.pdf;jsessionid=AD1521414C2F0083E358854991C7DCE8?sequence
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). A construção de laços sociais promotores de saúde mental, segundo Silva e Costa (2010Silva, M. de N. R. M. O., & Costa, I. I. da (2010). A rede social na intervenção em crise nas tentativas de suicídio: Elos imprescindíveis da atenção. Revista Tempus Actas Saúde Coletiva, 4(1): 19-29.), representa um emaranhado de pessoas que apresentam vínculos de solidariedade e afetividade, promovendo um tecido social fortalecedor. Pode-se questionar o quanto os imperativos contemporâneos, tais como individualismo, competitividade e consumismo, fragilizam os fatores protetivos, tornando os laços sociais debilitados. Durkheim (2000Durkheim, E. (2000). O suicídio: Estudo sociológico. Martins Fontes.) analisa o suicídio como um fato social. Pondera que, em sociedades industriais, os vínculos sociais são frágeis e os sujeitos ficam desamparados e solitários, aspectos que acarretam o aumento do número de suicídios, denominados por ele como suicídio egoísta.

Os elevados custos emocional, social e econômico que representa o comportamento suicida para o usuário, os familiares e os serviços de saúde é inexorável, haja vista o sofrimento decorrente de sequelas ocasionadas pela tentativa e o sofrimento dos familiares que perdem um parente por suicídio. Não obstante, na maioria desses casos, o sofrimento que culmina na tentativa de suicídio poderia ser prevenido ou tratado se mecanismos intersetoriais tivessem sido acionados em momento oportuno, formando uma rede de apoio capaz de amparar o indivíduo em sofrimento. Segundo a Organização Mundial da Saúde (WHO, 2014World Health Organization. (2014). Mental health: Preventing suicide - A global imperative. http://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/131056/9789241564878_eng.pdf;jsessionid=AD1521414C2F0083E358854991C7DCE8?sequence
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), a prevenção do suicídio deve incluir não só o setor da saúde, mas também a educação, a justiça, a assistência social, entre outros setores da sociedade, desde a garantia de acesso adequado a serviços de saúde até as políticas de restrição de métodos letais.

O Brasil assumiu um passo importante ao formular a Lei nº 13.819 (2019Lei nº 13.819, de 26 de abril de 2019 (2019). Institui a Política Nacional de Prevenção da Automutilação e do Suicídio, a ser implementada pela União, em cooperação com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios; e altera a Lei nº 9.656, de 3 de junho de 1998. Presidência da República. Retirado de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13819.htm
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), que institui a Política Nacional de Prevenção da Automutilação e do Suicídio, trazendo em seus objetivos: a garantia de atendimento psicossocial para as pessoas com histórico de ideação e tentativa de suicídio, bem como de automutilação; a necessidade de articulação de diversos dispositivos da rede intersetorial para a concretização da prevenção do suicídio; e a necessidade de capacitação permanente para os profissionais e gestores da saúde (Lei nº 13.819, 2019Lei nº 13.819, de 26 de abril de 2019 (2019). Institui a Política Nacional de Prevenção da Automutilação e do Suicídio, a ser implementada pela União, em cooperação com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios; e altera a Lei nº 9.656, de 3 de junho de 1998. Presidência da República. Retirado de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13819.htm
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). A concretização desses objetivos deve envolver articulação e escuta das diferentes práticas e dos diversos saberes, priorizando o saber do usuário e da sua rede de apoio social. Para Cassorla (2017Cassorla, R. M. S. (2017). Suicídio: Fatores inconscientes e aspectos socioculturais - Uma introdução. Blucher.), os avanços científicos devem tentar buscar a compreensão do homem em seus aspectos socioculturais e psicológicos, sem cair em reducionismos.

Os itinerários terapêuticos são caminhos percorridos pelos usuários em busca de tratamento e cura de suas doenças. Consideram ações que envolvam não só a biomedicina, mas também cuidados que provenham da medicina tradicional, da medicina alternativa e de práticas religiosas. Seu principal interesse é a percepção do usuário sobre sua doença e tratamento e a trajetória traçada em busca de ajuda (Cabral et al. 2011Cabral, A. L. L. V., Martinez-Hemáez, A., Andrade, E. I. G., & Cherchiglia, M. L. (2011). Itinerários terapêuticos: O estado da arte da produção científica no Brasil.Ciência & Saúde Coletiva, 16(11), 4433-4442. https://doi.org/10.1590/S1413-81232011001200016
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). Nesse sentido, a pesquisa com itinerários terapêuticos aponta fatores protetivos como mecanismos de cuidado e valores culturais que, acompanhados de práticas biomédicas, podem ser potencializados na comunidade e contribuir para a prevenção do suicídio.

Martinez-Hemáez (2006Martinez-Hemáez, A. M. (2006). Los itinerários terapéuticos y la relación médico-paciente. (V. J. Barreto, Trad.). Universidad Rovira i Virgili. ) afirma que os indivíduos não reproduzem as instruções médicas ou seguem as determinações biomédicas de forma única e linear, mas que as formas de tratamento são mistas e os profissionais de saúde devem reconhecê-las para desenvolverem estratégias adequadas de comunicação clínica, estabelecendo uma previsão sobre as condutas dos pacientes e aproveitando os recursos locais existentes.

Quando o suicídio é anunciado, passa a ocupar os discursos de jornalistas, psiquiatras, psicólogos, filósofos e sociólogos. Entretanto, o que dizem os sujeitos que tentam o suicídio sobre essas tentativas e sobre o tratamento que buscam e que recebem? O que as falas desses sobreviventes podem ensinar sobre as formas de cuidado necessárias? Como as referências técnicas da saúde mental cuidam e se sentem frente a esse público?

As questões levantadas nesta investigação têm origem no trabalho realizado por uma das autoras em um hospital de urgência-emergência, na cidade de Belo Horizonte, com usuários que tentaram o suicídio. O objetivo central da pesquisa foi compreender os itinerários terapêuticos de usuários que tentaram suicídio no que tange aos cuidados recebidos, procurados e demandados.

Método

Via de regra, todos os usuários que tentam o suicídio e passam pelo hospital de urgência-emergência já citado, no momento da alta, são encaminhados para a rede de saúde: o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), conhecido também como Centro de Referência em Saúde Mental (CERSAM), Hospital Psiquiátrico, ou Centro de Saúde. O usuário é conduzido diretamente para o referido serviço de saúde mental com o familiar, na ambulância do hospital ou no transporte de sua cidade. Esta ação visa o acolhimento imediato após a alta hospitalar, na tentativa de favorecer a adesão do usuário ao tratamento.

O critério adotado para a inclusão do usuário foi ter sido admitido após a tentativa de suicídio em um hospital de urgência-emergência, no período de 02/2017 a 04/2018, e que tivesse recebido alta, pelo menos, a quatro meses da realização da entrevista. Os critérios de exclusão incluíram ter menos de 18 anos, ser considerado juridicamente incapaz e não residir em Belo Horizonte. O critério de inclusão dos profissionais de saúde foi ser a referência técnica do usuário nos serviços de saúde, após a alta hospitalar. A referência técnica alude ao profissional responsável por articular o cuidado com o usuário, podendo ser o enfermeiro, o terapeuta ocupacional, o psicólogo, o assistente social, entre outros.

Os usuários foram selecionados pela data crescente de admissão, no período citado. Após a seleção do usuário, a referência técnica do serviço para o qual o paciente havia sido encaminhado era contatada e questionada sobre a possibilidade de sua participação na pesquisa. Portanto, a estratégia inicial era então entrevistar as referências técnicas, antes de chegar ao usuário. Nesses contatos iniciais, foram agendadas entrevistas com seis técnicos de referência: dois eram lotados em Centros de Saúde e quatro em centros de atenção psicossocial, chamados de CERSAM, em Belo Horizonte.

Logo após a realização das entrevistas com os técnicos, e com seu consentimento, uma das pesquisadoras fazia contato telefônico com o usuário da citada referência técnica e tentava agendar uma entrevista. Por meio dessa estratégia inicial, chegou-se a três usuários: uma técnica não considerou viável que a usuária que ela atendera fosse entrevistada, e duas outras técnicas, referências para um mesmo caso em diferentes equipamentos de saúde, validaram o acesso à usuária, mas a mãe recusou que a filha participasse da pesquisa, pois ela se via incapacitada de falar, em decorrência de uma traqueostomia. O acesso a outros técnicos foi dificultado durante essa etapa inicial.

Com a devida autorização do Comitê de Ética em Pesquisa da instituição proponente, passou-se ao contato direto com outros sete usuários. Ao final, foram entrevistadas dez pessoas que tentaram o suicídio. Durante as entrevistas realizadas com três deles, em suas respectivas casas, foi inevitável a participação de alguns familiares. As falas desses parentes foram desconsideradas nos processos de análise, uma vez que não haviam sido previstas nem informadas na tramitação ética do projeto de pesquisa.

As entrevistas só foram feitas após a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), documento apresentado aos profissionais e aos usuários entrevistados. O local e horário da entrevista foram agendados de acordo com a disponibilidade de cada participante.

Quanto ao tratamento dos dados, foi utilizada a análise de conteúdo (Bardin, 2016Bardin, L. (2016). Análise de conteúdo. Edições 70.; Moraes, 1999Moraes, R. (1999). Análise de conteúdo. Revista Educação, 22(37), 7-32. https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4125089/mod_resource/content/1/Roque-Moraes_Analise%20de%20conteudo-1999.pdf
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). Moraes (1999Moraes, R. (1999). Análise de conteúdo. Revista Educação, 22(37), 7-32. https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4125089/mod_resource/content/1/Roque-Moraes_Analise%20de%20conteudo-1999.pdf
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) argumenta que a análise de conteúdo oferece ao leitor crítico informações sub-reptícias nas entrelinhas de uma mensagem, abrindo alternativas para a conscientização sobre o conhecimento social, que, de outra forma, ficaria inacessível. O material transcrito das 16 entrevistas constituiu o corpus desta pesquisa.

O processo de análise de conteúdo das entrevistas compreendeu: transcrição das entrevistas; leitura das entrevistas transcritas, visando apreender temas principais; identificação dos temas relacionados ao objeto de estudo desta investigação; identificação e seleção das unidades de análise; categorização; análise interpretativa e discussão.

A pesquisa foi aprovada em 2018 pelos Comitês de Ética em Pesquisa da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), pela Fundação Hospitalar de Minas Gerais (FHEMIG) e pela Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte (SMSA-BH).

Resultados e Discussão

O suicídio é a 4ª maior causa de morte entre 15 e 29 anos de idade, sendo que entre os homens é a 3ª maior causa e entre as mulheres, a 8ª; o Brasil registrou aumento da taxa de mortalidade em decorrência de suicídio por 100 mil habitantes: em 2011, foram 10.490 óbitos e, em 2015, 11.736; entre 2011-2016, 69% das tentativas foram de mulheres e 31% de homens; envenenamento ou intoxicação são os principais meios utilizados, representando 57,6%; as mulheres são mais reincidentes na tentativa de suicídio, mas os homens morrem 3,6% vezes mais por suicídio que as mulheres (Ministério da Saúde, 2017Ministério da Saúde. (2017). Agenda estratégica de prevenção de suicídio. Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. http://portalarquivos2.saude.gov.br/images/pdf/2017/setembro/21/Coletiva-suicidio-21-09.pdf
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).

Dos dez usuários entrevistados, três eram homens, um transexual e seis mulheres. A idade variou entre 19 e 64 anos, com predomínio de faixa etária entre 20 e 30 anos. Todos eram moradores de diferentes regionais de Belo Horizonte, sendo encaminhados, após alta, para seis diferentes centros de atenção psicossocial.

Seis desses usuários tinham histórico de comportamento suicida prévio às tentativas que os levaram até o hospital. Um dos usuários tinha tentado o suicídio, novamente, no ínterim entre a passagem no hospital e a ligação sondando sobre a possibilidade de participar da pesquisa. Esses dados vão ao encontro das estatísticas mundiais, demonstrando que a tentativa de suicídio anterior é o maior fator de risco para uma nova tentativa (WHO, 2014World Health Organization. (2014). Mental health: Preventing suicide - A global imperative. http://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/131056/9789241564878_eng.pdf;jsessionid=AD1521414C2F0083E358854991C7DCE8?sequence
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).

A maioria (sete) utilizou abuso de medicações na tentativa de suicídio. Esse dado suscita reflexões sobre o quanto as medicações estão acessíveis de uma forma desregulada à população, o que parece ser mediado por interesses econômicos, e o quanto isso interfere sobremaneira nos números de suicídio. A proibição e restrição legais ao uso de armas de fogo e substâncias tóxicas constitui fator relevante para a prevenção de suicídio (WHO, 2014World Health Organization. (2014). Mental health: Preventing suicide - A global imperative. http://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/131056/9789241564878_eng.pdf;jsessionid=AD1521414C2F0083E358854991C7DCE8?sequence
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). Legislações que facilitam o acesso à arma de fogo, sem dúvida, preocupam os interessados na prevenção desse fenômeno.

Das unidades de análise, selecionaram-se as seguintes categorias:

  1. Tentativa de suicídio como consequência de processos de sofrimento;

  2. Desafios e potencialidades em relação ao cuidado da rede de saúde;

  3. Itinerários terapêuticos percorridos por pessoas que tentaram o suicídio.

Essas categorias são discutidas a seguir, com base nas falas dos usuários entrevistados, representados pela letra U, e por falas de profissionais, representados pela letra T. Além desse recurso para garantir o sigilo dos participantes, por vezes, os sexos também foram trocados nas falas analisadas.

Tentativa de Suicídio como Consequência de Processos de Sofrimentos

O comportamento suicida pode ser definido como um ato extremo resultante de um processo longo e progressivo de sofrimento, atravessado por várias e diferentes causas. Botega (2015Botega, N. J. (2015). Crise suicida: avaliação e manejo. Artmed.) pontua esse sofrimento como “uma turbulência emocional que, sucedendo um acontecimento doloroso, é vivenciada como um colapso existencial” (p.12). Os fragmentos das falas de U1 e U6 referiram a esse sofrimento extremo: “Aí, os pensamentos ruins começaram a voltar. Penso muito em dar um fim na minha vida. Sinto-me muito só, me sinto muito sozinha, me sinto muito sozinha, e cansada” (U1); “O dia que eu comecei a pensar em suicídio, eu fui ao posto, procurei ajuda, porque estava doendo muito, eu não queria acabar com a vida, mas eu queria acabar com a dor” (U6).

Os imperativos contemporâneos fragilizam a relação do sujeito com a sociedade, ao se sustentarem em discursos e práticas que cultuam ideais econômicos que, por sua vez, reforçam o individualismo, a competitividade e o consumismo. Nessa linha de raciocínio, a falta de emprego e as exigências de produtividade foram narradas como motivo de sofrimento por U4: “Muito difícil viver com a doença e os limites impostos. Eu era muito ativo e trabalhador, agora, dou trabalho para todos. Foi um momento de muita dor e angústia quando tentei o suicídio”. Essa questão foi também assinalada por U8: “O mundo aqui fora não é assim, as pessoas só dizem que é frescura, que tem que arrumar emprego, lá não (Igreja)... Eles entendem, porque já passaram pelo mesmo problema”.

Por sua vez, U3 acentuou a não identificação com os ideais econômicos da sociedade contemporânea: “Acho que nasci no lugar errado, quero simplicidade, não estou disposto a abrir mão disso. Meus amigos que cresceram comigo e fizeram coisas piores, sabe... Drogas, desrespeito, mas hoje eles têm de tudo: o pai comprou tudo para eles. Eu não escolhi nada, não”.

Angerami (2017Angerami, V. A. (2017). Suicídio: Uma alternativa à vida - Fragmentos de psicoterapia existencial. Artesã.) postula o que provoca o suicídio é a total falta de sentido da vida e o que os sujeitos apresentam é um imenso desamparo, marcado por uma sociedade autodestrutiva em que o outro é abandonado a todo o momento. O fragmento da entrevista com U3 ressaltou a precariedade das trocas sociais em sua trajetória:

“Nunca tive uma pessoa para investir em mim, sempre vivi muito largado. O pouco que tenho, é muito pouco, mesmo, consegui com meu trabalho. Mas era muita dor. Quando eu procurei ajuda espiritual, até nisso encontrei obstáculo. Ele (pai) abandonou a gente, eu era pequenininho. Até então, deu tudo errado na minha vida, tudo errado. Quando vi minha tia daquele jeito (morrendo), aí pensei que não tinha nada a perder: família, emprego, a morte da minha tia, não tenho pai, aí fiz o que fiz...” (U3).

Todos os usuários associaram a tentativa de suicídio a momentos de dor emocional intensa. Desamparo, solidão e tristeza foram os sentimentos que mais apareceram nas falas dos indivíduos entrevistados. Duas entrevistadas relacionaram a tentativa de suicídio também à violência física que sofreram por parte de seus companheiros. Dados da Organização Mundial da Saúde (WHO, 2014World Health Organization. (2014). Mental health: Preventing suicide - A global imperative. http://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/131056/9789241564878_eng.pdf;jsessionid=AD1521414C2F0083E358854991C7DCE8?sequence
http://apps.who.int/iris/bitstream/handl...
) demonstram que casos de violência de gênero estão fortemente associados ao comportamento suicida. Outros dois usuários relacionaram a tentativa de suicídio ao uso abusivo de substâncias psicoativas. Segundo a Organização Mundial da Saúde (WHO, 2014World Health Organization. (2014). Mental health: Preventing suicide - A global imperative. http://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/131056/9789241564878_eng.pdf;jsessionid=AD1521414C2F0083E358854991C7DCE8?sequence
http://apps.who.int/iris/bitstream/handl...
), dentre os transtornos mentais mais frequentemente associados com o comportamento suicida estão os transtornos relacionados ao uso de álcool. Esse fato foi constatado na fala de U7: “Estava muito desesperado, quando minha esposa me expulsou de casa, comecei a beber mais ainda, e depois tentei me matar”.

Quatro técnicos associaram as tentativas de suicídio dos usuários, por eles atendidos, a processos de sofrimento psíquico intenso, e três ainda pontuaram o sofrimento advindo do trauma e das sequelas deixadas no corpo, após a tentativa de suicídio. T1 ressaltou: “a usuária já era acompanhada pelo CERSAM. Tentou o suicídio em um momento de surto e se machucou muito; quebrou a coluna”.

Em relação às sequelas apresentadas pelos usuários após tentativa de suicídio, Botega (2015Botega, N. J. (2015). Crise suicida: avaliação e manejo. Artmed.) destaca o impacto socioeconômico “representado pela utilização dos serviços de saúde e pelo efeito psicológico e social do comportamento sobre o indivíduo e seus familiares, além do ônus decorrente da incapacitação de longa duração que pode ser ocasionada pelo ato suicida” (p. 52).

A depressão, doença frequentemente associada a tentativas de suicídio (Botega, 2015Botega, N. J. (2015). Crise suicida: avaliação e manejo. Artmed.; Cassorla, 2017Cassorla, R. M. S. (2017). Suicídio: Fatores inconscientes e aspectos socioculturais - Uma introdução. Blucher.; WHO, 2014World Health Organization. (2014). Mental health: Preventing suicide - A global imperative. http://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/131056/9789241564878_eng.pdf;jsessionid=AD1521414C2F0083E358854991C7DCE8?sequence
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), foi mencionada por T2: “No caso da usuária citada, ela chegou lá (CERSAM) muito angustiada, não pensando necessariamente em se matar, mas com muita angústia. As sequelas do ato foram horríveis. O ato foi precedido por um processo de depressão que se arrastava há muito tempo.”

Analogias com esvaziamento e solidão foram acentuadas por T3, que se perguntou “o que faz o sujeito chegar a esse ponto de auge de angústia, de auge de nada?” (T3). Por sua vez, T4 correlacionou o suicídio à “radicalidade do mundo: à solidão do mundo. Um sofrimento que não pode ser amparado pelo outro” (T4).

Cassorla (2017Cassorla, R. M. S. (2017). Suicídio: Fatores inconscientes e aspectos socioculturais - Uma introdução. Blucher.) afirma que o comportamento suicida inclui um pedido de ajuda e que, através de ambientes propícios e da atuação de profissionais especializados, a dor vivenciada poderá ser suportada.

Desafios e Potencialidades da Rede de Serviços

A Organização Mundial da Saúde (WHO, 2014) orienta que a prevenção do comportamento suicida envolva ações intersetoriais contextualizadas e planejadas que abarquem não só a saúde, mas também educação, assistência social, mídia, entre outros.

Com base nas falas dos usuários que tentaram suicídio e de profissionais que atendem esse público no município de Belo Horizonte, pode-se observar que não há um conjunto de ações planejadas para o cuidado a essas pessoas. Só um dos CERSAMs, que trabalha com população de rua, mencionou ações intersetoriais. Os demais serviços envolvidos na pesquisa, incluindo o hospital de urgência-emergência, não apresentaram ações que tenham articulado a rede de serviços. Esse hospital tem um protocolo para atendimento aos usuários que tentaram suicídio. Os demais locais pesquisados afirmaram que o manejo do caso parte do usuário, que não há protocolos específicos. Essa ausência de protocolo, por um lado, é pontuada como um dificultador, por não padronizar as ações frente a um público considerado pelos profissionais como desafiador. Um dos técnicos entrevistados demarcou as diferentes posturas de acolhimento de casos e manifestou o ganho que se teria com a “formalização da experiência”:

“Pode ser que o colega que acolhesse teria tido uma prática diferente da minha. Não há um protocolo estabelecido, mas há uma orientação, o saber que circula, a gente faz discussão para se interrogar sobre o fluxo de trabalho, sobre o que funciona ou não. Poder formalizar nossa experiência ajuda muito, inclusive não responder de forma pessoal” (T4).

Por outro lado, o protocolo pode ser considerado desnecessário, já que o tratamento se direciona para o caso a caso, pela escuta singular, como afirmado por T3, neste excerto: “Não há protocolos específicos, trabalha-se com a singularidade de cada caso”. De modo semelhante, T1 afirma:

“Trabalho com o singular: ... a gente pode dizer que o projeto terapêutico envolve que o usuário não abandone sua família, que reconstrua seus laços psicossociais, para que possa construir sua vida, no caso de tentativas de vida, para que possam construir uma trajetória de vida”. (T1)

Todos os profissionais afirmaram que acompanhar esse público é um trabalho que exige grande investimento pessoal e profissional e que é desafiador, porque não se pode garantir que não ocorrerão outras tentativas. Alguns compartilharam situações angustiantes de tentativas de suicídio dentro do serviço e de perdas de usuários por esse motivo. Em suas falas, os profissionais entrevistados revelaram competência e engajamento no cuidado desses usuários.

A esta altura, vale questionar se os serviços oferecem respaldo e cuidado a esses profissionais para enfrentarem a angústia despertada pelos usuários a seu encargo. Nesse sentido, T1 argumentou que “o paciente pode voltar, por melhor que esteja; isso mobiliza muito e não se pode ter certeza absoluta de que o tratamento será totalmente eficaz, que isso não vai se repetir; isso é o ponto mais angustiante de lidar com esses casos” (T1).

Das dificuldades em relação à rede de saúde apontadas pelos usuários, pode-se destacar a solicitação de internação em hospital psiquiátrico e o não atendimento da rede a esse rogo. A usuária U1, em uma de suas passagens pelo hospital de urgência-emergência, pediu para ser encaminhada para um hospital psiquiátrico, requisição não aceita pela psiquiatria do referido hospital, sob o argumento de que a usuária já era do CERSAM. Outro usuário pediu internação para tratamento de sua dependência de substância psicoativa, mas se queixou que não foi atendido, como revela em sua fala:

“Os tratamentos não foram ruins não, eu que não me identifiquei com a ajuda. Foi tudo ótimo, excelente, faltou da minha parte. Não me identifiquei em ficar no tratamento que me propuseram, preciso de internação, ter que voltar para rua à noite é ruim... Na rua não tem nada, só droga” (U2).

Uma usuária criticou o fato de o hospital não ter olhado para ela de forma integral. Queixou-se, durante a entrevista, de que seu problema emocional tinha relações com sua doença física, mas que ninguém no hospital de urgência-emergência conseguiu ouvir isso e encaminhá-la adequadamente. Para ela, os profissionais do hospital: “Não querem saber de onde vem a dor; estava com sobrepeso, sofrendo por isso, mas ninguém, de lugar algum, me deu um papel que pudesse me ajudar. Precisava de soluções práticas, que me enxergassem como um todo” (U5).

Dois usuários criticaram o fato de terem saído do hospital ainda sonolentos, quando encaminhados para o CERSAM. Três usuários afirmaram que passaram pelo CERSAM, mas não foram encaminhados para outro serviço da rede. Duas usuárias questionaram a desumanização da psicóloga e do psiquiatra que as atenderam, conforme os fragmentos que se seguem.

“Consegui passar pela psicóloga duas vezes (no centro de saúde). Na segunda vez, ela disse que tinha casos muito mais graves e que de todos o meu era o que menos importaria, que ela não poderia continuar me atendendo (choro)... Se no primeiro momento que procurei ajuda, a psicóloga tivesse olhado para mim, me tratado de outra forma... Foi o único erro dessa caminhada” (U6).

“E lá (CERSAM) fui atendida por uma enfermeira muito boa, muito educada, me tranquilizou. O atendimento com ela foi muito bom, mas com o psiquiatra foi muito ruim, péssimo, horrível, não tive nem coragem, nem vontade de voltar lá. Entrei na sala e ele disse: “você está com falta de vergonha na cara”. Me deu vontade só de chorar. Aí ele me passou um tanto de exame e remédio que eu não sabia se tomava ou não. Eu fiquei muito surpresa. Falou que me encaminharia para a psicóloga do Centro de Saúde, mas isso nunca aconteceu” (U10).

Depoimentos como os de U6 e U10 levam a pensar na necessidade de mais treinamento e capacitação dos técnicos sobre o comportamento suicida: há ainda muitas reações negativas dos profissionais a esse público, confirmando os dados da literatura. Outro usuário ainda contou:

“Tem uma salinha lá (CERSAM) que as pessoas ficam trancadas lá... A mulher de lá me disse: “se você tentar suicídio de novo, vai ficar trancado aqui nessa salinha durante sete dias, sem visita de ninguém”, foi um profissional que falou. Aí, falou que a pessoa fica lá pensando se quer ou não morrer mesmo. Isso me assustou. Pensei: não vou fazer mais nada não” (U8).

Esse mesmo usuário tentou suicídio, novamente, dois meses após a tentativa de suicídio que o havia levado ao hospital de urgência-emergência e ao CERSAM. Nessa outra tentativa de suicídio, sofreu fraturas graves, pois utilizou um método muito violento. Ele foi entrevistado após quatro meses dessa última tentativa.

Atitudes ameaçadoras ou de julgamento, como as relatadas por U6, U8 e U10, não contribuem para a prevenção e o tratamento do comportamento suicida. No entanto, torna-se difícil julgar esses profissionais, tendo em vista as condições de trabalho oferecidas e a ausência de capacitação que os preparem tecnicamente e emocionalmente para lidarem com esse público. Não deve ser uma tarefa tranquila ter que fazer uma triagem e escolher os casos mais graves para atender, porque não existem recursos suficientes para se efetivar um trabalho de melhor qualidade, inclusive, amparado por qualificações permanentes que guiem as práticas dos profissionais. Essa angústia em relação ao trabalho aparece na fala de T3: “São 20 horas por semana, para reuniões e atendimentos. Isso é um pouco angustiante, a demanda é muito grande” (T3). A sobrecarga de trabalho foi também mencionada por T6:

“Um problema de gestão, que eu vejo: o psiquiatra e o psicólogo, ou o terapeuta ocupacional da saúde mental já ficam sobrecarregados com os casos que já explodiram. Aqueles casos que você está vendo na linha do horizonte que vai acontecer alguma coisa, mas que não aconteceu ainda, ficam em segundo plano...” (T6).

Embora alguns usuários ainda tenham se queixado da dificuldade de os profissionais compreenderem a complexidade de seus sofrimentos, percebe-se uma melhora no acolhimento ao usuário, superando uma visão focada apenas no biológico. Nove dos dez usuários entrevistados disseram que foram bem acolhidos no serviço de saúde, inclusive os três usuários que se queixaram da conduta da psicóloga, do psiquiatra e, também, da “sala que ficaria trancada”. Eles elogiaram os outros profissionais que os acolheram. Houve uma percepção positiva dos usuários quanto ao acolhimento dos serviços, independentemente de terem se identificado ou não com ele. A fala de U7 retrata as posições de outros usuários: “no hospital só tenho a agradecer, eles salvaram minha vida, o pessoal do CERSAM me tratava muito bem” (U7).

Esses resultados diferem das conclusões a que Vidal e Gontijo (2013Vidal, C. E. L., & Gontijo, E. D. (2013). Tentativas de suicídio e o acolhimento nos serviços de urgência: A percepção de quem tenta. Cadernos de Saúde Coletiva, 21(2), 108-14. https://doi.org/10.1590/S1414-462X2013000200002
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) chegaram em sua pesquisa. Os autores pontuam a falta de humanização de profissionais de um serviço de emergência médica que, muitas vezes, agiam de forma hostil e desumana, sem conseguirem perceber o sofrimento e adoecimento mental do usuário que havia tentado suicídio, deixando de encaminhá-lo, ou fazendo simples encaminhamentos burocráticos. No entanto, duas profissionais entrevistadas ainda pontuaram o preconceito contra esses usuários, como se pode observar na fala de T2:

“Acho que a gente precisa estar mais atento a esses casos. Em alguns casos, nós, profissionais de saúde, também minimizamos o pedido de ajuda desses pacientes. Eu acho que temos preconceitos enraizados dentro da gente que o usuário que fala não vai fazer, fez para chamar a atenção, é uma cena…” (T2).

O bom acolhimento realizado pela rede surgiu nas falas dos profissionais, como um fator facilitador do cuidado ao usuário que tenta suicídio, ajudando, segundo esses trabalhadores da rede, sobretudo na adesão ao tratamento. Porém, alguns usuários, mesmo se sentindo bem acolhidos, não continuaram o tratamento, apontando outras variáveis como determinantes desse processo.

Uma usuária que já era acompanhada no CERSAM apresentou ideação suicida no momento da entrevista. Uma das pesquisadoras telefonou para o CERSAM informando esse dado, já que a próxima consulta daquela usuária estava agendada para um mês daquela data. A resposta foi que a única coisa a ser feita seria orientar o esposo a levá-la ao serviço. Assim, o marido foi novamente orientado a levar a usuária ao CERSAM e, depois, foram feitas várias tentativas de contato telefônico com a usuária, que atendeu uma vez e disse que havia ido ao serviço.

Quanto à família, os profissionais do CERSAM afirmaram que contam com as equipes de saúde mental, que fazem reuniões de matriciamento com a equipe de saúde da família para dar o suporte necessário. Uma trabalhadora informou que atendia o familiar junto com a usuária e uma profissional afirmou que a esposa de outro usuário era atendida por psicólogo de plano de saúde.

Um dado importante que apareceu nas falas dos usuários foi a queixa em relação à medicação psiquiátrica. Sete dos entrevistados apresentaram queixas em relação aos efeitos colaterais dos remédios: sonolência (U1 e U4); U3 reclamou que o remédio “não ajudava em nada”; U5 afirmou que os remédios a deixaram calma e que, com a calma, os “pensamentos ruins” retornavam; U8 afirmou que o remédio a deixava agitada; U9 reclamou que o remédio tirava todo o seu prazer pela vida e U10 alegou que não confiou na prescrição, tomou só um dos remédios passados e ficou agitada, interrompendo, por isto, o uso. U6 afirmou não conseguir um remédio no centro de saúde. U2, U6 e U7 não se queixaram dos efeitos da medicação.

Nove dos dez usuários entrevistados não se identificaram com o CERSAM. A maioria dos usuários afirmou que se assustaram ao chegarem nesse serviço, após serem encaminhados pelo hospital de urgência-emergência. Uma usuária afirmou que, posteriormente, adaptou-se. Sete dos nove entrevistados que não se identificaram com o serviço, não se identificaram com os demais usuários julgados por eles, como pessoas com quadros graves, muitas vezes agitados e agressivos. Mesmo a usuária com transtorno grave e persistente, como reportado em documento da psiquiatra apresentado por ela, durante a entrevista, não se identificava com os usuários do serviço. Uma usuária relatou: “Fui ao CERSAM, entendo sua preocupação, mas só tinha gente doida. Pensei: o que a psicóloga achou que sou?” (U3). Um fragmento com maior detalhamento de suas impressões sobre o serviço é destacado da entrevista com U6: Quando cheguei no CERSAM, foi difícil, eu assustei um pouco, muito esquizofrênico, pessoas que não eram como eu, que demonstravam mais... No CERSAM, eu assustei, quem atendia o telefone eram os próprios usuários. Vi gente amarrada” (U6).

Não se pode desconsiderar o estigma da loucura presente nas falas dos usuários, mas o fato é que eles não se identificaram com o serviço, o que traz questionamentos sobre quais locais seriam adequados para o encaminhamento desse público. Nessa linha de pensamento, considerações a respeito da atenção primária são levantadas na discussão sobre a categoria itinerários terapêuticos.

O bom acolhimento na rede, a reunião matricial, supervisão dos casos e ajuda das equipes de saúde da família, com destaque para o agente comunitário de saúde, apareceram nas falas dos trabalhadores como facilitadores do trabalho com os usuários que apresentam comportamento suicida.

Como fatores dificultadores, apareceram nas falas dos profissionais: ausência de suporte familiar (embora o CERSAM com grande demanda de moradores de rua não tenha colocado essa questão); distância entre o local de tratamento e a residência do usuário; diagnóstico grave; hotelaria precária para o pernoite; o uso abusivo de substâncias psicoativas como comorbidade; grande volume de trabalho que gera sobrecarga e impossibilita ações, como a visita domiciliar; dificuldade de contato telefônico com a rede; ausência de um prontuário único; ausência de políticas públicas específicas; não aderência do usuário ao cuidado proposto.

Em três falas dos profissionais, surgiram como obstáculo o pacto com a morte que dificulta, sobejamente, o tratamento, fator aqui sintetizado no fragmento de T1: “Muito do trabalho vai depender do sujeito querer apostar na vida. Há um limite do profissional” (T1).

Frente a esses apontamentos em relação à rede de cuidados, a seguir, serão discutidos os itinerários terapêuticos relatados pelos usuários e profissionais, a respeito do comportamento suicida.

Itinerários Terapêuticos e Suicídio

Cabral et al. (2011Cabral, A. L. L. V., Martinez-Hemáez, A., Andrade, E. I. G., & Cherchiglia, M. L. (2011). Itinerários terapêuticos: O estado da arte da produção científica no Brasil.Ciência & Saúde Coletiva, 16(11), 4433-4442. https://doi.org/10.1590/S1413-81232011001200016
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) definem itinerários terapêuticos como:

... todos os movimentos desencadeados por indivíduos ou grupos na preservação ou recuperação da saúde, que podem mobilizar diferentes recursos que incluem desde os cuidados caseiros e práticas religiosas até os dispositivos biomédicos predominantes (atenção primária, urgência, etc.). Referem-se a uma sucessão de acontecimentos e tomada de decisões que, tendo como objeto o tratamento da enfermidade, constrói uma determinada trajetória (p. 4434).

Bergeron e Castel (2011Bergeron, H., & Castel, P. (2011). Continuity, capture, network: The professional logics of the organization of care. Sociologie du Travail, 53(S1), 1-18. https://doi.org/10.1016/j.soctra.2011.09.002
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), por sua vez, analisaram itinerários terapêuticos desenhados por um corpo técnico e aqueles selecionados pelos usuários. Os autores assinalaram que “a seleção do usuário deve ser analisada sistematicamente e não apenas do ponto de vista dos profissionais de saúde” (p. 8, tradução livre). O conhecimento dos itinerários terapêuticos, segundo Martinez-Hemáez (2006Martinez-Hemáez, A. M. (2006). Los itinerários terapéuticos y la relación médico-paciente. (V. J. Barreto, Trad.). Universidad Rovira i Virgili. ) é de grande utilidade para o profissional de saúde realizar uma avaliação das dificuldades e das possíveis contradições entre os comportamentos, as ideias dos usuários e as expectativas dos profissionais.

Em uma pesquisa etnográfica em saúde, sobre percepção social de categorias de risco do suicídio entre colonos alemães de uma região do noroeste do Rio Grande do Sul, Heck (2004Heck, R. M. (2004). Percepção social sobre categorias de risco do suicídio entre colonos alemães do noroeste do Rio Grande do Sul.Texto & Contexto - Enfermagem, 13(4), 559-567. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-07072004000400008
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) cita três setores de cuidado à saúde que influenciaram no cuidado às pessoas com risco suicida: a família, a vizinhança e os amigos representando o setor popular; os profissionais como médicos e enfermeiros representando a biomedicina; e os especialistas da cura, como benzedeiros e curandeiros, dentro do setor considerado folk. Concluíram que os especialistas têm pouco poder no tratamento das pessoas que sofrem com o comportamento suicida.

Através das trajetórias narradas pelos usuários, pode-se avaliar a rede de serviços para tomadas de decisões que subsidiem capacitações, aperfeiçoamentos e criação de programas destinados aos públicos estudados. Na análise dos itinerários de pessoas que tentaram suicídio, foram consideradas as diversas formas de as pessoas se cuidarem ou não em relação ao sofrimento intrínseco ao comportamento de suicídio, desde práticas biomédicas até práticas religiosas. Foram considerados o contexto sociocultural e os aspectos da subjetividade dos usuários envolvidos.

Em relação aos itinerários desenhados na busca de tratamento relacionado ao comportamento suicida, o hospital de urgência-emergência foi a porta de entrada de seis usuários. Dois usuários foram encaminhados para acompanhamento psiquiátrico em hospitais gerais, enquanto cuidavam de doenças no corpo. Um usuário buscou ajuda espiritual e a de um médico, devido às suas ideias suicidas, e dois usuários buscaram o centro de saúde antes da tentativa de suicídio e se queixaram de que não foram ouvidos (desses, um foi o mesmo que foi encaminhado para a psiquiatria do hospital geral). Todos os dez usuários foram encaminhados para os CERSAMs, após a passagem pelo hospital de urgência-emergência. Nenhum deles estava sendo acompanhado pela saúde mental da atenção primária no momento da entrevista. Dois usuários continuavam em atenção ambulatorial no CERSAM. Um usuário informou que, de forma irregular, continuava indo ao CERSAM, para cuidar da questão do uso abusivo de substâncias psicoativas. Seis usuários buscaram a religião, sendo que dois deles afirmaram que estavam bem.

A realização de cursos profissionalizantes apareceu em três itinerários apontando caminhos de vida, enquanto o esporte, os estudos e a música apareceram em um itinerário, sendo considerados saídas para o sujeito. Em um dos itinerários, apareceu a leitura de histórias de superação como um dos motivos para se continuar vivendo.

Não apareceram encaminhamentos da rede de saúde para outros setores. Na rede de saúde, além do CERSAM e do Centro de Saúde, uma usuária foi encaminhada para o Centro de Convivência, mas afirmou que não se adaptou. Os usuários apontaram como saídas e estratégias para continuarem a viver: a religião (seis usuários), a família (seis usuários), esportes, estudo e música (um usuário), cursos profissionalizantes (três usuários), ajuda de amigos (um usuário) e ajuda do trabalho (um usuário), ajuda de histórias de superação (um usuário).

Tanto a família quanto a religião, ou os cursos profissionalizantes, representam suporte e apoio social para o indivíduo e parecem sustentar a vida do sujeito, por promoverem integração ao meio social e agirem como fatores protetivos em relação ao suicídio.

Ao analisar as religiões na Europa, no século XIX, Durkheim (2000Durkheim, E. (2000). O suicídio: Estudo sociológico. Martins Fontes.) afirma que a integração religiosa, política e doméstica varia de forma inversa ao número de suicídio. Infere-se que não é a religião em si, que pode ser um fator protetivo contra o suicídio, mas o modo como ela provoca integração social.

Quanto à trajetória na rede de saúde e a baixa aderência na atenção primária, três usuários disseram que não foram encaminhados do CERSAM, quatro informaram terem sido encaminhados para o centro de saúde, sendo que três usuários se queixaram da demora deste equipamento para marcar atendimentos, além de denunciarem a falta de profissionais nesses locais. Desses encaminhados, um mostrou resistência ao centro de saúde e afirmou que lá ninguém havia ainda agendado para ele uma consulta com psicólogo, mas que a agente comunitária de saúde o tinha procurado em casa duas vezes, sem encontrá-lo. Uma se queixou de demora e falta de profissionais, desistindo, por isso, do serviço. Um reclamou da demora do centro de saúde e afirmou que só vai lá para renovar a prescrição médica, e outro relatou que não havia se adaptado às medicações e, por isso, não queria mais voltar, além de alegar ser mais fechado e não gostar muito de falar com o psicólogo.

Sete usuários seguiam sem acompanhamento na rede de saúde mental, sendo que duas se consideravam bem. Os outros cinco usuários ainda demonstravam considerável sofrimento psíquico, mas haviam abandonado o tratamento na rede de saúde. Desses cinco, a usuária que mantinha ideação suicida foi reencaminhada ao CERSAM após a entrevista e os outros quatro foram orientados a buscarem os serviços de saúde. Três deles demonstraram descrença e resistência em relação aos profissionais da saúde mental e um havia concluído o tratamento no CERSAM, mas voltou a fazer uso abusivo de substância psicoativa e não procurou o serviço novamente, embora tenha reportado na entrevista que os técnicos lhe afirmaram que estariam de portas abertas, caso ele precisasse deles novamente.

Esses resultados corroboram com dados da literatura, exemplificados na investigação realizada por Aguiar (2011Aguiar, M. A. F. (2011). Tentativas de suicídio por uso de medicamentos: As percepções dos adolescentes [Tese de doutorado, Universidade Federal de Minas Gerais]. Repositório institucional da UFMG. https://repositorio.ufmg.br/bitstream/1843/BUOS-8N2J49/1/mafaguiar__p_s_defesa_final_.pdf
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) através de uma pesquisa com dez adolescentes que tentaram suicídio e foram atendidos em um serviço de urgência/emergência de Minas Gerais, mostrando uma baixa adesão aos encaminhamentos feitos depois da alta, com as mais diversas justificativas: dificuldade de marcação de consultas no centro de saúde; desvalorização do trabalho do psicólogo e dos serviços de saúde mental; estigma relacionado aos transtornos mentais (“eu não sou doido”); falta de recursos financeiros para se deslocar.

Dueweke e Bridges (2018Dueweke, A. R., & Bridges, A. J. (2018). Suicide interventions in primary care: A selective review of the evidence. Families, Systems, & Health, 36(3), 1-15. https://psycnet.apa.org/doi/10.1037/fsh0000349
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) afirmam, através de uma revisão de literatura sobre intervenções frente ao suicídio, que 75% dos profissionais da atenção primária nos Estados Unidos relatam ter, pelo menos, um paciente tentando suicídio a cada ano; metade das pessoas que morrem por suicídio visitaram a atenção primária um mês antes de cometer o ato final e, 20%, uma semana antes. As autoras afirmam a necessidade de desenvolvimento e avaliação de programas na atenção primária frente a esses pacientes. Esses serviços, por estarem em contato longitudinal com os usuários, “estão em posição privilegiada para avaliação dos usuários em risco de suicídio” (Vidal & Gontijo, 2013Vidal, C. E. L., & Gontijo, E. D. (2013). Tentativas de suicídio e o acolhimento nos serviços de urgência: A percepção de quem tenta. Cadernos de Saúde Coletiva, 21(2), 108-14. https://doi.org/10.1590/S1414-462X2013000200002
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, p. 113), podendo identificar, acompanhar e monitorar os usuários com fatores de risco para o suicídio, agindo em conjunto com os demais serviços de saúde e com a família dos usuários, além de articular uma rede intersetorial de cuidados. Para isso, os profissionais e gestores precisam estar capacitados para atenderem a essa demanda. Os dados desta pesquisa mostram o quanto a atenção primária está distante desses cuidados longitudinais destinados a usuários com comportamento suicida. O hospital foi a porta de entrada da maioria dos usuários, o que reforça o modelo hospitalocêntrico de atenção, confirmando que o usuário recebe ajuda no momento em que o comportamento suicida já está por demais escancarado.

Os caminhos oferecidos ou buscados pelos usuários no processo de tratamento que se seguiu à tentativa de suicídio, mais frequentemente, articulam-se na sequência hospital de urgência-emergência, CERSAM e centro de saúde, para as redes de serviços e na busca por religião ou espiritualidade, familiares e iniciativas de formação (cursos) nas redes pessoais. A análise realizada não visa a generalização, dada a natureza restrita e o local da amostra. Contudo, a compreensão dos dados da população estudada aprimora a reflexão sobre a atenção destinada a esses usuários na saúde pública de Belo Horizonte.

Considerações Finais

O comportamento suicida revela um processo de sofrimento intenso vivenciado pelo sujeito. Nas entrevistas realizadas com usuários que tentaram suicídio e que passaram por um hospital de urgência-emergência, a presença da dor e da solidão é claramente evidenciada nas narrativas.

Ações intersetoriais foram apontadas apenas em um serviço, embora os próprios indivíduos tenham traçado caminhos que envolveram outros setores, como a educação e a religião, que representaram fatores protetivos em relação ao suicídio. Também não apareceram nos discursos dos usuários ações de grupos voluntários, como o Centro de Valorização da Vida (CVV), considerados importantes na prevenção do suicídio.

Percebeu-se, através de suas narrativas, o quanto os trabalhadores sofrem com a sobrecarga de seus serviços e o quanto necessitam ser aparados no contexto institucional, para o compartilhamento de desafios e estratégias de cuidado diante de casos de tentativa de suicídio. Por outro lado, os usuários apontaram que, em seus caminhos terapêuticos, há profissionais com capacidade acolhedora e que demonstram preocupação pela situação vivenciada pelos usuários através de atitudes humanizadas. Apesar disso, nem sempre os pontos positivos foram suficientes para garantir a aderência do usuário aos tratamentos nos serviços de saúde.

Gestores e trabalhadores de diversos setores, junto aos usuários, devem pensar em formas de articulação de seus saberes para a qualificação de práticas em prol dos sujeitos que sofrem com o comportamento suicida. Este trabalho aponta, entre outras possibilidades, as necessidades de: capacitação, sensibilização e articulação da rede intersetorial a respeito do comportamento suicida; mais pesquisas que escutem usuários e familiares sobre os cuidados demandados e buscados em seus itinerários terapêuticos; políticas públicas específicas destinadas aos sujeitos que sofrem com os comportamentos suicidas ou com os fatores de risco relacionados a tal sofrimento, sobretudo, na atenção primária; e cuidado com os profissionais que acompanham esses usuários, tendo em vista a angústia que sentem ao atendê-los.

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    Apoio: CAPES - Código de Financiamento 001.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Out 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    01 Out 2018
  • Aceito
    05 Maio 2021
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