Acessibilidade / Reportar erro

Conteúdo dos Estereótipos e Preconceito Racial: Efeitos da Cordialidade e da Competência

Content of Stereotypes and Racial Prejudice: Effects of Cordiality and Competence

Resumo

Utilizando o Modelo do Conteúdo dos Estereótipos (MCE), analisou-se, em dois estudos, as relações das dimensões de cordialidade e competência com as expressões de preconceito racial. No Estudo 1, participaram 169 universitários (M idade=21,7 anos, 47% pardos). Verificou-se a existência de preconceito implícito, a maior atribuição de competência aos brancos que aos negros e a relação positiva entre racismo moderno e atribuição de competência aos brancos. No Estudo 2, participaram 143 universitários (M idade=25,4 anos, 64,9% pardos). Verificou-se que negros descritos como malsucedidos-amáveis receberam maior estereotipia de competência do que brancos malsucedidos-frios. Concluiu-se que: 1) a dimensão da cordialidade não se aplicou aos negros e 2) existe uma relação entre o MCE e a expressão do preconceito racial.

Palavras-chave:
estereótipos; competência; cordialidade; preconceito implícito e explícito

Abstract

Using the Stereotype Content Model (SCT), we analyzed in two studies the relationship between the dimensions of warmth and competence of stereotypes with the racial prejudice expressions. In the first study, 169 undergraduates participated (M age=21.7 years, 47% brown skin). We found implicit prejudice, greater attribution of competence to whites than to blacks and a relationship between modern racism and attribution of competence to whites. In the second study, 143 undergraduates took part (M age=25.4, 64.9% brown skin). We found that blacks described as incompetent-friendly received greater competence stereotyping than whites incompetent-cold. We concluded that: 1) the dimension of warmth did not apply to blacks and 2) there is a relationship between SCT and racial prejudice expressions.

Keywords:
stereotypes; competence; warmth; implicit and explicit prejudice

Nas sociedades formalmente democráticas, as expressões do preconceito racial assumiram, desde a década de 1990, formas mais veladas e implícitas. Entretanto, o preconceito muda muito mais sua aparência do que sua essência (Zuriff, 2014Zuriff, G. E. (2014). Racism inflation. American Psychologist, 69, 309-310. http://dx.doi.org/10.1037/a0035807
http://dx.doi.org/10.1037/a0035807...
), pois, como ideologia, tem conteúdo e função (Shelby, 2014Shelby, T. (2014). Racism, moralism, and social criticism. Du Bois Review: Social Science Research on Race, 11(1), 57- 74. https://doi.org/10.1017/S1742058X14000010
https://doi.org/10.1017/S1742058X1400001...
), alterando suas formas de expressão conforme os contextos em que se manifesta, à semelhança de um vírus que se adapta sempre (Vala & Pereira, 2012Vala, J., & Pereira, C. (2012). Racism: An evolving virus. Proceedings of the British Academy, 179, 49-70. http://dx.doi.org/10.5871/bacad/9780197265246.003.0004
http://dx.doi.org/10.5871/bacad/97801972...
). As novas formas de expressão do preconceito decorrem de suas duas principais marcas: flexibilidade e resistência. O preconceito racial se adapta e é modulado pelas normas sociais de cada contexto, a fim de manter o status quo das relações que legitima (Lima, 2019Lima, M. E. O. (2019). O que há de novo no "novo" racismo do Brasil? Dossiê - Educação das Relações Étnico-Raciais na Contemporaneidade: Permanências e Transformações, 4(7), 157-177. Recuperado de http://costalima.ufrrj.br/index.php/REPECULT/article/view/317
http://costalima.ufrrj.br/index.php/REPE...
).

Essas novas formas de expressão do preconceito racial refletem uma mudança na valência e no conteúdo dos estereótipos. Nos EUA, os estereótipos atribuídos aos negros tornaram-se progressivamente menos negativos. Na década de 1930, mais de 80% dos estadunidenses brancos consideravam os negros supersticiosos; sessenta anos depois, em 1990, somente 3% afirmavam esse estereótipo (Brown, 1995). No Brasil, na década de 1950, 62% e 43% achavam que os negros eram preguiçosos e estúpidos, respectivamente; em 2001, esses percentuais caem para 5% e 8% (Lima, 2002Lima, M. E. O. (2002). Normas sociais e racismo: Efeitos do individualismo meritocrático e do igualitarismo na infra-humanização dos negros. (Tese de doutorado não publicada). Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa. ).

Entretanto, uma análise mais atenta mostra que a estereotipia e o preconceito apenas mudaram suas formas de expressão, tendo inclusive aumentado em alguns contextos (Dovidio & Gaertner 1986McConahay, J.B. (1986). Modern racism, ambivalence, and the modern racism scale. In J.F. Dovidio & S.L. Gaertner (Eds.), Prejudice, Discrimination, and Racism (pp. 91-125). Academic Press.), graças a uma transformação no conteúdo dos estereótipos. No Brasil, as descrições em termos de traços estereotípicos negativos foram substituídas, em larga medida, por descrições aparentemente positivadas. Na década de 1950, 22% afirmavam que os negros eram musicais, 45% que eram fisicamente fortes e 46% que eram alegres. Cinquenta anos depois, os valores sobem para 80%, 65% e 85%, respectivamente (Lima, 2002Lima, M. E. O. (2002). Normas sociais e racismo: Efeitos do individualismo meritocrático e do igualitarismo na infra-humanização dos negros. (Tese de doutorado não publicada). Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa. ). Uma análise do conteúdo desses novos estereótipos demonstrou que eles podem ser atribuídos igualmente a seres humanos e a animais, sendo, portanto, infra-humanizadores (Moscovici & Pérez, 1997Moscovici, S., & Pérez, J. A. (1997). Prejudice and social representations. Papers on Social Representations, 6, 27-36.). Ou seja, embora a valência dos estereótipos mude, altera-se principalmente o seu conteúdo, a fim de permitir que, face às pressões das normas antirracistas, as pessoas possam expressar seus preconceitos de forma mais sutil ou velada.

A relação entre o conteúdo dos estereótipos e as expressões do preconceito é um aspecto fundamental no entendimento de como as representações sobre os grupos interferem nas atitudes para com estes e seus membros. Todavia, pouca atenção tem sido dada pela literatura científica a essa importante relação. Numa consulta realizada no dia 10 de abril de 2020, inserindo na linha de busca por assunto o termo “Conteúdo dos Estereótipos”, para qualquer ano e considerando todos os itens de produção, apenas um trabalho foi encontrado nos Periódicos Capes (redigido em espanhol), e outros cinco nas bases Banco de Teses e Dissertações da Capes, Scielo e BVS-Psi.

Embora se saiba que as imagens mais negativas e as expressões mais flagrantes de preconceito contra os negros se alteraram nas últimas décadas para se tornarem pseudopositivas e veladas (Bonilla-Silva, 2015Bonilla-Silva, E. (2015). The structure of racism in color-blind, “post-racial” America. American Behavioral Scientist, 59(11) 1358-1376. https://doi.org/10.1177/0002764215586826
https://doi.org/10.1177/0002764215586826...
), não se dispõe de muita evidência empírica sobre como esses novos conteúdos dos estereótipos se associam às expressões explícitas e implícitas de preconceito. Uma exceção importante é o Modelo do Conteúdo dos Estereótipos (MCE), proposto por Fiske e colaboradores (Fiske, Cuddy, & Glick, 2002Fiske, S. T. , Cuddy, A. J. C. , & Glick, P. (2002). Emotion up and down: Intergroup emotions result from perceived status and competition. Em D. M. Mackie & E. R. Smith (Eds.), From prejudice to intergroup emotions: Differentiated reactions to social groups (pp. 247-264). Psychology Press., 2007Fiske, S. T. , Cuddy, A. J. C. , & Glick, P. (2007). Universal dimensions of social cognition: Warmth and competence. Trends in Cognitive Sciences, 11(2), 77-83. https://doi.org/10.1016/j.tics.2006.11.005
https://doi.org/10.1016/j.tics.2006.11.0...
; Fiske, Cuddy, Glick, & Xu, 2002Fiske, S. T. , Cuddy, A. J. C, Glick, P. , & Xu, J. (2002). A model of (often mixed) stereotype content: Competence and warmth respectively follow from perceived status and competition. Journal of Personality and Social Psychology, 82(6), 878-902. https://doi.org/10.1037/0022-3514.82.6.878
https://doi.org/10.1037/0022-3514.82.6.8...
).

O MCE propõe que as dimensões estereotípicas da cordialidade e da competência ocupam um papel central na cognição social humana, tanto nos julgamentos de indivíduos quanto nos julgamentos de grupos sociais. Pesquisas realizadas em vários países indicam que os estereótipos contra muitos grupos sociais, com destaque para grupos étnicos e raciais, podem ser enquadrados nesse modelo bidimensional (ver Cuddy et al., 2009Cuddy, A. J. C., Fiske, S. T., Kwan, V. S. Y., Glick, P., Demoulin, S., Leyens, J. P., Bond, M. H., Croizet, J., Ellemers, N., Sleebos, E., Htun, T. T., Kim, H., Maio, G., Perry, J., Petkova, K., Todorov, V., Rodríguez-Bailón, R., Morales, E., Moya, M., … Ziegler, R. (2009). Stereotype content model across cultures: Toward universal similarities and some differences. British Journal of Social Psychology. 48, 1-33. https://doi.org/10.1348/014466608X314935
https://doi.org/10.1348/014466608X314935...
). O objetivo deste artigo foi analisar as relações entre as expressões de preconceito racial explícito, medido pela Escala de Racismo Moderno, e de preconceito racial implícito, medido pelo Teste de Associações Implícitas, com o conteúdo dos estereótipos, especificamente com suas dimensões de competência e cordialidade previstas no MCE. Também buscou-se analisar o efeito da manipulação do status social dos grupos no conteúdo dos estereótipos atribuídos a brancos e negros.

O Modelo do Conteúdo dos Estereótipos: Competência versus Cordialidade

Os estereótipos são entendidos classicamente como “retratos em nossas mentes”, um conjunto de características que são associadas a uma etiqueta ou rótulo grupal (Stangor & Lange, 1994Stangor, C., & Lange, J. E. (1994). Mental representations of social groups: Advances in conceptualizing stereotypes and stereotyping. Advances in Experimental Social Psychology, 26, 357-416. https://doi.org/10.1016/S0065-2601(08)60157-4
https://doi.org/10.1016/S0065-2601(08)60...
). São estruturas cognitivas que contêm conhecimentos e expectativas e determinam juízos e avaliações sobre os grupos humanos e seus membros (Pereira, 2013Pereira, M. E. (2013). Cognição social. Em L. Camino, A. R. R. Torres, M. E. O. Lima, & M. E. Pereira (Eds.), Psicologia social: Temas e teorias (2ª ed., pp. 101-169). Technopolitik.). Os estereótipos se apresentam como processo e conteúdo. O processo de estereotipia é muito estudado na psicologia social, pois apresenta elementos mais constantes e universais. O conteúdo, por se apresentar como mais dinâmico e totalmente influenciado pelos contextos históricos e sociais das relações, é menos analisado.

Solomon Asch (1946Asch, S. E. (1946). Forming impressions of personality. The Journal of Abnormal and Social Psychology, 41(3), 258-290. https://doi.org/10.1037/h0055756
https://doi.org/10.1037/h0055756...
) foi pioneiro no estudo do conteúdo dos estereótipos, quando analisou os processos de formação de impressão. Asch propôs que as impressões sobre os outros eram definidas pela centralidade de determinados traços de personalidade. Alguns eram básicos e outros secundários, de forma que a variação de um traço (Warm vs. cold no original), numa lista de sete características, alterava a impressão formada sobre uma pessoa fictícia. Spence e Helmreich (1979Spence, J. X., & Helmreich, R. L. (1979). On assessing "androgyny”. Sex Roles, 5, 721-738. https://doi.org/10.1007/BF00287935
https://doi.org/10.1007/BF00287935...
), pioneiros a utilizar esse modelo bidimensional, demonstraram que as mulheres foram mais descritas em termos de características que indicavam capacidade de relacionamento social ou expressividade e os homens por características que indicavam instrumentalidade ou agência (atividade, diligência). No entanto, foram Susan Fiske e colaboradores que desenvolveram e testaram o modelo, denominando-o Modelo do Conteúdo dos Estereótipos (MCE - Stereotype Content Model, no original).

Fiske, Cuddy, Glick e Xu (2002Fiske, S. T. , Cuddy, A. J. C, Glick, P. , & Xu, J. (2002). A model of (often mixed) stereotype content: Competence and warmth respectively follow from perceived status and competition. Journal of Personality and Social Psychology, 82(6), 878-902. https://doi.org/10.1037/0022-3514.82.6.878
https://doi.org/10.1037/0022-3514.82.6.8...
) verificaram, numa série de estudos, que existem duas dimensões de conteúdo dos estereótipos: competência versus cordialidade. A dimensão da competência foi composta por características como independente, hábil, confiante e capaz. Já a dimensão da cordialidade integrou traços como simpático, confiável, sincero e amigável. De acordo com o MCE, os grupos dos outros (exogrupos) podem ser percebidos como competentes na medida em que possuam alto status e poder, ou como incompetentes, se são de baixo status e sem poder. Neste último caso, podem também ser percebidos como cordiais e simpáticos, desde que não disputem com o grupo de pertencimento daquele que os avalia (Fiske, Cuddy, & Glick, 2002Fiske, S. T. , Cuddy, A. J. C. , & Glick, P. (2002). Emotion up and down: Intergroup emotions result from perceived status and competition. Em D. M. Mackie & E. R. Smith (Eds.), From prejudice to intergroup emotions: Differentiated reactions to social groups (pp. 247-264). Psychology Press.).

Essas dimensões estereotípicas são usadas para descrever vários grupos sociais, definindo tipos diversos de preconceito. Idosos e pessoas com deficiência, por exemplo, são percebidos como possuidores de alta cordialidade e baixa competência, despertando um preconceito do tipo paternalista, ancorado no sentimento da pena; pobres, sem teto e outros grupos-alvo de políticas sociais são percebidos como possuindo baixa cordialidade e baixa competência, despertando um preconceito baseado no sentimento de desprezo; membros do endogrupo e aliados próximos são percebidos como possuindo alta competência e alta cordialidade, despertando admiração e orgulho; judeus, ricos e profissionais bem-sucedidos são percebidos como possuindo baixa cordialidade e alta competência, ensejando um preconceito baseado na inveja (Fiske, Cuddy, & Glick, 2002Fiske, S. T. , Cuddy, A. J. C. , & Glick, P. (2002). Emotion up and down: Intergroup emotions result from perceived status and competition. Em D. M. Mackie & E. R. Smith (Eds.), From prejudice to intergroup emotions: Differentiated reactions to social groups (pp. 247-264). Psychology Press.; Fiske, Cuddy, Glick, & Xu, 2002Fiske, S. T. , Cuddy, A. J. C, Glick, P. , & Xu, J. (2002). A model of (often mixed) stereotype content: Competence and warmth respectively follow from perceived status and competition. Journal of Personality and Social Psychology, 82(6), 878-902. https://doi.org/10.1037/0022-3514.82.6.878
https://doi.org/10.1037/0022-3514.82.6.8...
).

Como se sabe, o conteúdo dos estereótipos reflete os aspectos históricos e culturais das relações entre grupos. Janssens et al. (2015Janssens, H., Verkuyten, M., & Khan, A. (2015). Perceived social structural relations and group stereotypes: A test of the stereotype content model in Malaysia. Asian Journal of Social Psychology, 18(1), 52-61. https://doi.org/10.1111/ajsp.12077
https://doi.org/10.1111/ajsp.12077...
) aplicaram o MCE a estudantes universitários malaios. No Estudo 1, os autores observaram que os malaios percebem os chineses como mais competentes que os indianos e os indianos como mais cordiais que os chineses. Também perceberam o endogrupo como mais competente e como mais cordial que os dois exogrupos de comparação. No Estudo 2, observou-se que a percepção de competição econômica reduz a atribuição de cordialidade ao exogrupo. Eles concluíram afirmando que a estruturação dos estereótipos, nas dimensões competência e cordialidade, também se verifica na Malásia.

Durante et al. (2017Durante, F., Tablante, C. B., & Fiske, S. T. (2017). Poor but warm, rich but cold (and competent): Social classes in the stereotype content model. Journal of Social Issues, 73(1), 138-157. https://doi.org/10.1111/josi.12208
https://doi.org/10.1111/josi.12208...
), em quatro estudos, com amostras de vários países, verificaram que pessoas com alto nível socioeconômico são mais classificadas como competentes do que como cordiais, enquanto as pessoas com baixo nível socioeconômico são vistas como mais cordiais do que competentes ou igualmente cordiais e competentes. As pesquisadoras concluíram que a desigualdade de renda pode ser justificada pela sociedade por meio do conteúdo dos estereótipos de estrato social.

Cunha (2017Cunha, R. D. (2017). Estereótipos femininos: Competência e amabilidade em avaliações implícitas, explícitas e de empregabilidade (Dissertação de mestrado não publicada). Universidade de Brasília, Brasília - DF. ) analisou, em estudantes universitários brasileiros, se os estereótipos ambivalentes de homens e mulheres (com ou sem filhos) possuem relação com as intenções de empregabilidade. Os resultados indicaram que os homens foram avaliados como mais competentes que cordiais. No seu segundo estudo, o autor verificou que, embora a categoria “dona de casa” tenha sido avaliada como competente, assim como a categoria “empresária”, esta última foi avaliada como menos cordial em relação à primeira.

Roussos e Dunham (2016Roussos, G., & Dunham, Y. (2016). The development of stereotype content: The use of warth and competence in assessing social groups. Journal of Experimental Child Psychology, 141, 133-144. https://doi.org/10.1016/j.jecp.2015.08.009
https://doi.org/10.1016/j.jecp.2015.08.0...
) aplicaram o MCE a crianças entre cinco e dez anos e a adultos estadunidenses. Os autores constataram que as crianças de cinco a seis anos classificam as categorias sociais pobres, cegos e sem teto na dimensão baixa competência/baixa cordialidade e classificam cientistas, ricos, estadunidenses e professores na dimensão alta competência/alta cordialidade. As crianças de nove a dez anos de idade reproduzem esse resultado, com a única diferença de incluírem os idosos na dimensão da alta competência/alta cordialidade. Os adultos, por sua vez, incluem apenas professores na dimensão alta/alta e pobres e sem teto na dimensão baixa/baixa. Os adultos incluem ainda grupos nas dimensões de alta competência/baixa cordialidade (ricos e cientistas) e na dimensão baixa competência/alta cordialidade (idosos e cegos).

Na Romênia, Stanciu et al. (2017Stanciu, A., Cohrs, J. C., Hanke, K., & Gavreliuc, A. (2017). Within-culture variation in the content of stereotypes: Application and development of the stereotype content model in an eastern european culture. The Journal of Social Psychology, 157(5), 611-628. https://doi.org/10.1080/00224545.2016.1262812
https://doi.org/10.1080/00224545.2016.12...
) observaram que os grupos percebidos como possuindo alta competência e alta cordialidade foram: família, estudantes, mulheres e homens. Os grupos de baixa cordialidade e alta competência foram: ricos, homossexuais, algumas minorias étnicas e religiosas e roqueiros. Os de baixa competência e alta cordialidade foram: idosos, pessoas com deficiência, pobres, desempregados e portadores de HIV. Finalmente, os com baixa competência e baixa cordialidade foram: viciados em drogas, políticos, delinquentes e Romani (ciganos). Os autores afirmam que a contextualização do conteúdo dos estereótipos numa cultura pode ser influenciada por fatores regionais específicos, tais como a religiosidade e o pertencimento a minorias étnicas.

Poucos estudos analisaram, de forma específica, a aplicação do MCE aos negros. Exceção importante é o de Fiske et al. (2009Fiske, S. T, Bergsieker, H. B., Russell, A. M., & Williams, L. (2009). Images of black Americans: Then, “them,” and now, “Obama!”. Du Bois Review: Social Science Research on Race 6(1), 83-101. https://doi.org/10.1017/S1742058X0909002X
https://doi.org/10.1017/S1742058X0909002...
), que indagaram sobre as imagens dos negros nos Estados Unidos, logo depois da eleição de Barack Obama. O estudo demonstrou que, ainda que permaneçam traços negativos como agressivos, barulhentos e materialistas, foram formados subtipos para os negros bem-sucedidos. Estes se diferenciaram em relação aos negros pobres e pouco escolarizados; os primeiros ocuparam o quadrante da alta competência e alta cordialidade; enquanto os últimos permaneceram no da baixa competência e baixa cordialidade.

Não obstante a importância do MCE e seu caráter transcultural, no Brasil, poucos estudos utilizam esse modelo para analisar a estereotipia dos negros. Exceções importantes são os trabalhos de Almeida (2014Almeida, J. B. L. (2014). A invenção dos outros: Estereótipos étnicos, raciais e regionais no Brasil e na Espanha (Tese de doutorado não publicada). Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa - Paraíba.) e Batista et al. (2014Batista, J. R. M., Leite, E. L., Torres, A. R. R., & Camino, L. (2014). Negros e nordestinos: Similaridades nos estereótipos raciais e regionais. Revista Psicologia Política. 14(30), 325-345. ). Almeida (2014Almeida, J. B. L. (2014). A invenção dos outros: Estereótipos étnicos, raciais e regionais no Brasil e na Espanha (Tese de doutorado não publicada). Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa - Paraíba.), em um estudo com universitários, verificou que os brancos foram considerados mais competentes que os outros brasileiros, de forma geral, e que os negros, de forma particular. Em relação à cordialidade, verificou que os negros foram percebidos como mais cordiais que os demais brasileiros. Já Batista et al. (2014Batista, J. R. M., Leite, E. L., Torres, A. R. R., & Camino, L. (2014). Negros e nordestinos: Similaridades nos estereótipos raciais e regionais. Revista Psicologia Política. 14(30), 325-345. ) encontraram que os adjetivos atribuídos aos negros foram similares aos atribuídos aos nordestinos, predominando a percepção da baixa cordialidade e da baixa competência.

O presente trabalho objetivou analisar os estereótipos atribuídos aos negros, considerando as dimensões de cordialidade e competência, bem como sua relação com as expressões do preconceito. Para tanto, foram realizados dois estudos. O Estudo 1 investigou a relação entre as dimensões de conteúdo dos estereótipos e o preconceito implícito e explícito (Escala de Racismo Moderno ). Já o Estudo 2 analisou o efeito de situações de status social e amabilidade de sujeitos negros e brancos sobre o conteúdo dos estereótipos atribuídos a eles.

Estudo 1

O delineamento adotado foi correlacional com corte temporal transversal. Conforme o MCE, as nossas hipóteses preveem que: 1) os negros serão mais descritos como cordiais do que os brancos, 2) os brancos serão mais descritos como competentes do que os negros e 3) quanto maior a atribuição de traços de cordialidade aos negros, maior o preconceito implícito e explícito contra eles.

Método

Participantes

Participaram 169 estudantes universitários de vários cursos de uma universidade pública em Sergipe. A idade média dos participantes foi de 21,7 anos (DP= 3,17), sendo a maioria do sexo feminino (59,2%). Quanto à cor da pele, 46,7% dos participantes (79) foram classificados como brancos; 44,3% (75) como pardos e 9% (15) como pretos.

Procedimentos e Instrumentos

A coleta de dados ocorreu nas salas de aula. Os participantes eram abordados nos corredores de uma universidade pública e convidados a colaborar no estudo. A cor da pele dos participantes foi definida de acordo com a percepção de duas entrevistadoras, por meio de hetero classificação. Cada aplicadora identificava a cor da pele por meio de um post-it, que era afixado no questionário sociodemográfico. Somente os dados das classificações consensuais em cada uma das três categorias de cor (brancos, pardos e pretos) foram mantidos para as análises. O estudo foi composto por três fases. A primeira mediu o preconceito implícito contra os negros. A segunda analisou as imagens sociais dos negros, a fim de identificar o conteúdo dos estereótipos. A terceira mediu o preconceito explícito. Ao final, foram colhidas as informações sociodemográficas dos participantes.

Na primeira fase, foi utilizado o programa Inquisit para aplicação do Teste de Associação Implícita - TAI (Implicit Association Test). Adotou-se uma versão emocional do TAI. O material-estímulo foi composto por fotografias de membros exemplares de categorias sociais (brancos e negros) e palavras estereotípicas positivas e negativas para ambas as categorias. A apresentação das fotos e das palavras foi feita no computador. Os participantes deveriam classificar os estímulos utilizando os rótulos “pessoas brancas” ou “pessoas negras” e as categorias avaliativas “gosto” ou “não gosto”. Ainda nessa fase, apareciam as tarefas de associação incompatível com o preconceito: “pessoas negras ou gosto” e “pessoas brancas ou não gosto” e de associação compatível com o preconceito: “pessoas brancas ou gosto” e “pessoas negras ou não gosto”, apresentadas à esquerda ou direita da tela de um computador. Seguindo os procedimentos sugeridos por Greenwald et al. (1998Greenwald, A. G., McGhee, D. E., & Schwartz, J. L. K. (1998). Measuring individual differences in implicit cognition: The implicit association test. Journal of Personality and Social Psychology, 74(6), 1464-1480.), antes das análises de dados, substituiu-se por 300 ou 3.000 milésimos de segundos (ms) todas as latências inferiores a 300 ms e superiores a 3000 ms, respectivamente. Tal procedimento implicou a substituição de 9,7% das respostas (trials). As substituições não alteram os dados, pois ocorrem de forma aleatória em todas as condições da pesquisa. Para as análises estatísticas, as médias de latência de resposta foram logaritmizadas, a fim de controlar a dispersão das variâncias (Greenwald et al., 1998Greenwald, A. G., McGhee, D. E., & Schwartz, J. L. K. (1998). Measuring individual differences in implicit cognition: The implicit association test. Journal of Personality and Social Psychology, 74(6), 1464-1480.).

Na segunda fase, ainda no computador e no ambiente do Inquisit, os participantes foram submetidos a uma tarefa de associação livre, a partir dos termos indutores: “pessoas negras” e “pessoas brancas”. Na terceira fase do estudo, também no computador, aplicou-se a Escala de Racismo Moderno, desenvolvida por McConahay (1986McConahay, J.B. (1986). Modern racism, ambivalence, and the modern racism scale. In J.F. Dovidio & S.L. Gaertner (Eds.), Prejudice, Discrimination, and Racism (pp. 91-125). Academic Press.) e validada para o contexto brasileiro por Santos et al. (2006Santos, W. S., Gouveia, V. V., Navas, M. S., Pimentel, C. E., & Gusmão, E. E. S. (2006). Escala de racismo moderno: Adaptação ao contexto brasileiro. Psicologia em Estudo, 11(3), 637-645. https://doi.org/10.1590/S1413-73722006000300020
https://doi.org/10.1590/S1413-7372200600...
). A Escala foi composta por 14 itens, cujas respostas poderiam variar de 1 (discordo totalmente) a 5 (concordo totalmente). Seguindo os procedimentos de Santos et al. (2006Santos, W. S., Gouveia, V. V., Navas, M. S., Pimentel, C. E., & Gusmão, E. E. S. (2006). Escala de racismo moderno: Adaptação ao contexto brasileiro. Psicologia em Estudo, 11(3), 637-645. https://doi.org/10.1590/S1413-73722006000300020
https://doi.org/10.1590/S1413-7372200600...
), procedeu-se à Análise dos Componentes Principais, predefinindo dois fatores e adotando rotação Varimax. O Fator 1 foi o da “negação do preconceito”, composto por 9 itens (e.g., “Os negros têm conseguido mais do que merecem”) e o Fator 2 o da “afirmação das diferenças”, composto por 5 itens (e.g., “Os negros são mais habilidosos em trabalhos manuais”). Os valores próprios dos fatores foram, respectivamente, 3,62 e 1,65, a variância explicada 19,5% e 13,4% e a consistência interna (α) de 0,72 e 0,531 1 As duas dimensões de racismo moderno serão consideradas na análise de dados. . Os dados foram analisados por meio do Statistical Package for the Social Science (SPSS). Foram seguidos todos os procedimentos éticos para pesquisas com seres humanos, conforme previsto na Resolução CNS 510/2016.

Resultados e Discussão

Primeiramente, analisou-se a relação entre a cor da pele do participante e o Efeito TAI, que é entendido como o tempo gasto nas associações incompatíveis subtraído do tempo gasto nas compatíveis. Quanto maior seu valor, maior o preconceito implícito contra os negros. Uma Análise de Variância com medidas repetidas permitiu verificar que não houve efeito principal do tipo de associação nas respostas dos participantes [F (1, 166)=2,25; p=0,13]. Também não houve efeito principal da cor da pele dos participantes [F (1, 166) <1; p=0,90]. No entanto, verificou-se que a interação cor do participante versus Efeito TAI foi significativa [Lambda de Wilks=0,96; F (2, 166)=3,60; p=0,02], com tamanho do efeito (η²) igual a 0,04.

Uma comparação múltipla (post hoc) indicou que os participantes brancos apresentaram maior preconceito implícito que os pardos e pretos (Least Significance Difference - LSD; p <0,05). Não houve diferenças nos níveis de preconceito implícito de pretos e pardos. De forma complementar, testes t de Student contra o valor 0 (zero), indicaram que o maior Efeito TAI está nos brancos, sendo a média desse grupo a única que diferiu de 0 (zero), indicativo de ausência de Efeito TAI [t (78)=4,35; p <0,01]. No caso dos participantes pardos [t (74)=1,34; p=0,18] e dos pretos [t (14)=-0,35; p=0,52], as médias de preconceito implícito não diferiram de 0 (zero) (ver Figura 1).

Figura 1.
Médias de latência da interação cor da pele do participante com o preconceito implícito (Efeito TAI)

Em seguida, testou-se o efeito da cor da pele do participante sobre o preconceito racial explícito. Observou-se que a média de adesão à dimensão da negação do preconceito foi de 1,92 (DP=0,58) e a da afirmação das diferenças de 2,56 (DP=0,80); ambas abaixo do ponto médio da E(3), [t s(169) =- 6,99 e - 24,01; p <0,001]. Estes resultados indicaram que os participantes possuem baixa adesão ao preconceito racial explícito. Procedeu-se, então, ao teste de homogeneidade das variâncias de Levene, o qual apresentou um valor p superior a 0,05 nas duas dimensões de preconceito racial explícito, indicando o cumprimento dos pressupostos de normalidade da distribuição. A Análise de Variância sinalizou que não houve efeito da cor do participante, seja sobre a dimensão de negação do preconceito [F (2, 168) <1; p=0,38], seja sobre a dimensão de afirmação das diferenças [F (2, 168) <1; p=0,85].

Para analisar o conteúdo dos estereótipos formados, categorizou-se as enunciações feitas para os termos indutores “pessoas negras” e “pessoas brancas”. Foram produzidas 496 evocações para o termo “pessoas negras”, com predomínio das descrições em termos de “hierarquia social”, representando 21,3% das evocações (e.g., preconceito, desigualdade, discriminação e escravidão); em seguida, vieram as descrições em termos de “traços morais positivos” (e.g., batalhador, guerreiro, garra e trabalhador), com 21,1% das enunciações; a terceira categoria foi a representação em termos de “traços físicos positivos”, com 13% das respostas (e.g., bonito, beleza, forte e belo). Cabe referir que a atribuição de características físicas positivas aos negros pode se configurar como expressão de uma nova forma de preconceito racial quando denota processos de desculturalização e desumanização dos grupos (Lima, 2002Lima, M. E. O. (2002). Normas sociais e racismo: Efeitos do individualismo meritocrático e do igualitarismo na infra-humanização dos negros. (Tese de doutorado não publicada). Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa. ; Moscovici & Pérez, 1997Moscovici, S., & Pérez, J. A. (1997). Prejudice and social representations. Papers on Social Representations, 6, 27-36.).

O termo indutor “pessoas brancas” gerou 467 enunciações. A mais comum, com 18,6% das evocações, foi “riqueza/privilégio” (e.g., burguês, status, dinheiro, privilégio e favorecimento); seguida de “aparência física” (10,7%) (e.g., pálido, albino, cabelo liso e loiro) e de “opressores” (9,8%) (e.g., colonização, colonizadores, exploração, abuso e intolerância). A partir dessas enunciações, criaram-se duas dimensões de traços, seguindo o modelo de Fiske, Cuddy, Glick e Xu (2002Fiske, S. T. , Cuddy, A. J. C, Glick, P. , & Xu, J. (2002). A model of (often mixed) stereotype content: Competence and warmth respectively follow from perceived status and competition. Journal of Personality and Social Psychology, 82(6), 878-902. https://doi.org/10.1037/0022-3514.82.6.878
https://doi.org/10.1037/0022-3514.82.6.8...
). A dimensão de competência agregou os seguintes traços: empresário, dinheiro, elite, inteligente, poder, conquista, controle e desenvolvimento. A dimensão de cordialidade foi composta por alegre, cordial, feliz, educado, legal, sorriso, amigo e sincero.

Primeiramente, observou-se que 17,8% dos participantes atribuíram traços de competência aos brancos, enquanto 11,8% atribuíram traços de cordialidade aos negros. Importante referir que, das 44 atribuições de traços de cordialidade, 24 (54,5%) foram para o alvo negro e 20 (45,5%) para o branco. Entretanto, um teste Qui-Quadrado indicou que essa diferença não foi significativa [X 2 (1) <1; p=0,58]; enquanto, das 42 atribuições de traços de competência aos alvos, 32 (76%) foram para o branco contra 10 (24%) para o negro, sendo tal diferença significativa [X 2 (1)=11,52; p <0,001]. Ou seja, a dimensão da cordialidade dos estereótipos não diferenciou negros de brancos, ao passo que a competência foi percebida como “mais branca”. Todavia, em função das hipóteses deste trabalho, analisou-se a atribuição de traços de competência apenas para os brancos e de cordialidade apenas para os negros. Para tal, construiu-se duas variáveis dicotômicas, considerando a atribuição de competência ao branco em dois níveis: sim e não. O mesmo foi feito para a atribuição e cordialidade aos negros.

Testou-se, em seguida, o efeito da atribuição de competência aos brancos e de cordialidade aos negros como variável independente para explicar o preconceito racial explícito e implícito. O teste de homogeneidade das variâncias na Análise de Variância (ANOVA) One-way indicou a adequação da análise paramétrica apenas para a dimensão de afirmação das diferenças. Para essa dimensão, as análises dos resultados demonstraram que, tendencialmente, os participantes que atribuíram características de competência aos brancos, apresentaram maior índice de preconceito implícito contra os negros (M=2,81; DP=0,82) que os que não atribuíram (M=2,52; DP=0,80) [F (1, 168)=3,13; p=0,07]. Testes de Kruskal-Wallis indicaram a ausência de efeito da competência atribuída aos brancos sobre a dimensão da negação do preconceito racial [X 2 (1)=2,47; p=0,12] e sobre o preconceito implícito [X 2 (1, 169)=1,56; p=0,21] (ver Tabela 1).

Tipo preconceito Competência atribuída aos brancos Cordialidade atribuída aos negros Atribui Não atribui Atribui Não atribui Preconceito Implícito (Efeito TAI) 275,34 152,31 125,49 180,69 (825,44) (597,01) (682,35) (638,93) Preconceito Explícito (Escala de Racismo Moderno: negação do preconceito) 2,11a 1,88b 2,19a 1,89b (0,73) (0,55) (0,61) (0,58) Preconceito Explícito (Escala de Racismo Moderno: afirmação das diferenças) 2,80 2,52 2,73 2,55 (0,82) (0,80) (0,93) (0,79) Nota: Médias com subscritos diferentes são estatisticamente diferentes (p <0,05)

Em relação aos efeitos da dimensão da cordialidade atribuída aos negros, o teste de Levene indicou que as condições para análise paramétrica foram cumpridas para todas as VDs. A ANOVA confirmou parcialmente a nossa hipótese. Na dimensão do preconceito explícito, referente à afirmação das diferenças, não houve efeito do conteúdo do estereótipo [F (1,168) <1; p=0,37], o que também ocorreu para o preconceito implícito medido pelo Efeito TAI [F (1, 168) <1; p=0,72]. Entretanto, na dimensão de negação do preconceito, encontrou-se um efeito significativo da atribuição de cordialidade aos negros [F (1, 168) =4,78; p=0,03]. O resultado indica que aqueles que atribuíram traços do conteúdo estereotípico da cordialidade aos negros apresentaram maior escore de preconceito explícito contra os negros na dimensão de negação do preconceito (M=2,19; DP=0,61) que os que não atribuíram traços de cordialidade (M=1,89; DP=0,58) (ver Tabela 1).

Os resultados encontrados indicam que não se confirma nossa primeira hipótese, que previa que os negros seriam mais descritos como cordiais que os brancos. Viu-se que a diferença na atribuição de características de cordialidade para negros e brancos não foi significativa. A nossa segunda hipótese, que predizia que os brancos seriam mais descritos como competentes do que os negros, confirmou-se, o que corrobora parcialmente as asserções do MCE sobre a diferenciação dos grupos com base nas dimensões de cordialidade vs. competência, ressalvando-se uma diferença importante em relação ao MCE: ainda que os brancos tenham sido percebidos como mais competentes do que os negros, os negros não foram percebidos como mais cordiais do que os brancos. Pode-se supor que isso se deve ao estereótipo cultural ainda largamente difundido no Brasil dos negros como agressivos, desordeiros e rudes (Batista et al., 2014Batista, J. R. M., Leite, E. L., Torres, A. R. R., & Camino, L. (2014). Negros e nordestinos: Similaridades nos estereótipos raciais e regionais. Revista Psicologia Política. 14(30), 325-345. ).

Em relação à nossa terceira hipótese, que pressupunha que quanto maior a atribuição de características de cordialidade aos negros, maior o preconceito implícito e explícito contra eles, esta se confirmou parcialmente. Apenas uma das dimensões de preconceito explícito (negação do preconceito) foi influenciada pela atribuição de cordialidade aos negros. O preconceito implícito e a dimensão de afirmação das diferenças não foram influenciados. Também se verificou, de forma tendencial, que a atribuição de traços estereotípicos de competência aos brancos produziu maior índice de preconceito explícito contra os negros na dimensão de afirmação das diferenças. Esses resultados vão na mesma direção dos encontrados em outros estudos (Almeida, 2014Almeida, J. B. L. (2014). A invenção dos outros: Estereótipos étnicos, raciais e regionais no Brasil e na Espanha (Tese de doutorado não publicada). Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa - Paraíba.; Asbrock, 2010Asbrock, F. (2010). Stereotypes of social groups in Germany in terms of warmth and competence. Social Psychology, 41, 76-81. https://doi.org/10.1027/1864-9335/a000011.
https://doi.org/10.1027/1864-9335/a00001...
; Cuddy et al., 2009Cuddy, A. J. C., Fiske, S. T., Kwan, V. S. Y., Glick, P., Demoulin, S., Leyens, J. P., Bond, M. H., Croizet, J., Ellemers, N., Sleebos, E., Htun, T. T., Kim, H., Maio, G., Perry, J., Petkova, K., Todorov, V., Rodríguez-Bailón, R., Morales, E., Moya, M., … Ziegler, R. (2009). Stereotype content model across cultures: Toward universal similarities and some differences. British Journal of Social Psychology. 48, 1-33. https://doi.org/10.1348/014466608X314935
https://doi.org/10.1348/014466608X314935...
; Fiske, Cuddy, & Glick, 2002Fiske, S. T. , Cuddy, A. J. C. , & Glick, P. (2002). Emotion up and down: Intergroup emotions result from perceived status and competition. Em D. M. Mackie & E. R. Smith (Eds.), From prejudice to intergroup emotions: Differentiated reactions to social groups (pp. 247-264). Psychology Press.; Fiske, Cuddy, Glick, & Xu, 2002Fiske, S. T. , Cuddy, A. J. C, Glick, P. , & Xu, J. (2002). A model of (often mixed) stereotype content: Competence and warmth respectively follow from perceived status and competition. Journal of Personality and Social Psychology, 82(6), 878-902. https://doi.org/10.1037/0022-3514.82.6.878
https://doi.org/10.1037/0022-3514.82.6.8...
; Lee & Fiske, 2006Lee, T. L., & Fiske, S. T. (2006). Not an outgroup, not yet an ingroup: Immigrants in the stereotype content model. International Journal of Intercultural Relations, 30(6), 751-768. https://doi.org/10.1016/j.ijintrel.2006.06.005
https://doi.org/10.1016/j.ijintrel.2006....
) e demonstram que a nossa hipótese geral de relação entre as formas de expressão do preconceito e o conteúdo dos estereótipos se confirma.

Nesse primeiro estudo, foram apresentados rótulos genéricos para as categorias sociais, negros e brancos, e procedeu-se ao teste do MCE de forma posterior, a partir de uma análise de conteúdo das características atribuídas aos rótulos categoriais. Não foram manipuladas as posições de status social dos grupos. Um dos postulados básicos do MCE afirma que a estereotipia em termos de competência e cordialidade depende do status (Fiske, Cuddy, & Glick, 2002Fiske, S. T. , Cuddy, A. J. C. , & Glick, P. (2002). Emotion up and down: Intergroup emotions result from perceived status and competition. Em D. M. Mackie & E. R. Smith (Eds.), From prejudice to intergroup emotions: Differentiated reactions to social groups (pp. 247-264). Psychology Press.; Lee & Fiske, 2006Lee, T. L., & Fiske, S. T. (2006). Not an outgroup, not yet an ingroup: Immigrants in the stereotype content model. International Journal of Intercultural Relations, 30(6), 751-768. https://doi.org/10.1016/j.ijintrel.2006.06.005
https://doi.org/10.1016/j.ijintrel.2006....
). A fim de analisar o conteúdo dos estereótipos de cordialidade e competência, bem como testar o efeito da posição social dos grupos na estereotipia, foi realizado um segundo estudo.

Estudo 2

O objetivo deste segundo estudo foi verificar o efeito do status social, da amabilidade e da cor da pele dos grupos no conteúdo dos estereótipos a eles atribuídos. As nossas hipóteses principais preveem que: 1) os negros, na condição de baixo status social (malsucedidos), serão mais descritos como cordiais do que como competentes e 2) os brancos, na condição de alto status social (bem-sucedidos), serão descritos como mais competentes do que cordiais.

Método

Participantes

Participaram 143 estudantes universitários, 69,9% de sexo feminino, 16,8% autodeclarados como brancos, 64,9% como pardos e 18,3% como pretos, com idades variando de 17 a 60 anos (M=25,4; DP=7,1).

Procedimentos e Instrumentos

A coleta de dados foi realizada em salas de aula de uma universidade pública de Sergipe, mediante um questionário, no qual constavam cenários experimentais, questões sobre conteúdo dos estereótipos e dados sociodemográficos. O questionário foi estruturado com oito cenários diferentes, que descreviam um grupo de pessoas (brancas ou negras), que eram caracterizadas em função da sua amabilidade (amáveis ou frias) e do seu status social (bem-sucedidos ou malsucedidos) na criação e expansão de uma rede de lojas. Em seguida, os participantes deveriam atribuir ao grupo, sobre qual leram a história, cinco traços estereotípicos da dimensão da competência (determinados, persistentes, vencedores, bem-sucedidos e competentes) e cinco da dimensão cordialidade (legais, sinceros, simpáticos, gente boa e humildes). No final do questionário, a manipulação experimental foi checada pela seguinte questão: “Em que medida a história lhe pareceu ser verdadeira?”. Numa escala de sete pontos (1 = totalmente inverídica a 7 = totalmente verídica), observou-se que o cenário pareceu credível aos participantes, mediante um teste t de Student contra o ponto médio da escala [M=4,78; DP=1,5; t (142)=6,14; p <0,001].

Desenho

A pesquisa adotou um desenho experimental 2 (cor da pele dos grupos-alvo: brancos vs. pretos) X 2 (status social: bem-sucedidos vs. malsucedidos) X 2 (amabilidade: amáveis vs. frios). Em cada cenário, o grupo era retratado por uma figura com seis bonecos-palitos: três de sexo masculino e três de sexo feminino. Em quatro dos cenários, todos os bonecos tinham a cor da pele branca e, nos outros quatro, a cor era preta. Os participantes foram distribuídos de forma aleatória pelas oito condições. A variável dependente foi o conteúdo dos estereótipos atribuídos aos grupos da história em termos de cordialidade ou de competência, variando de 0 (zero), se o participante julgasse que nenhuma das cinco características se referia ao grupo do cenário, a 5 (cinco), se considerasse que as cinco características eram aplicáveis. Os dados foram analisados por meio do SPSS. Todos os procedimentos éticos previstos nas pesquisas com seres humanos foram seguidos, conforme a Resolução CNS 510/2016.

Resultados e Discussão

A fim de testar os efeitos dos cenários da pesquisa sobre o conteúdo dos estereótipos (competência vs. cordialidade) dos grupos, realizou-se uma ANOVA Multivariada, considerando o número de traços estereotípicos atribuídos em cada dimensão. Observou-se, primeiramente, o cumprimento dos pressupostos de normalidade no teste de Levene da distribuição para a dimensão da cordialidade [F (7, 116) <1; p=0,45]. No entanto, as condições de análise paramétrica não foram cumpridas para a dimensão da competência [F (7, 116)=12,02; p <0,001].

Em relação aos efeitos das condições sobre a atribuição de competência, um teste de Kruskal-Wallis indicou um efeito significativo da condição experimental na atribuição de competência aos grupos-alvo [X 2 (7)=86,33; p <0,001]2 2 Nessa análise, não foi possível controlar o efeito da cor da pele dos participantes, pois o teste Kruskal-Wallis não permite a inserção de covariáveis. . Observou-se que a maior atribuição de conteúdo estereotípico de competência foi feita para os grupos-alvo dos brancos amáveis e bem-sucedidos; enquanto a menor atribuição ocorreu na condição dos brancos frios e malsucedidos (ver Figura 2). Testes post hoc indicaram que as menores médias do conteúdo estereotípico da competência foram atribuídas aos brancos caracterizados como frios e malsucedidos, aos brancos descritos como amáveis e malsucedidos e aos negros descritos como frios e malsucedidos. As maiores atribuições de conteúdo da competência foram para os grupos de brancos e negros de forma indiferenciada, caracterizados como bem-sucedidos, sejam eles frios ou amáveis. Portanto, a única diferença que se mostrou significativa entre brancos e negros foi a de que os negros caracterizados como malsucedidos e amáveis receberam mais traços de conteúdo estereotípico da competência (M = 2,29; DP = 1,99) do que os brancos malsucedidos e frios (M=0,63; DP=0,90) (teste Scheffe, p <0,05).

Figura 2.
Ranque de médias da atribuição de conteúdo estereotípico de competência em função da cor da pele dos grupos-alvo, do status social e da amabilidade

Para testar os efeitos das condições experimentais sobre a atribuição de estereótipos de cordialidade, procedeu-se a uma ANOVA Univariada, tomando esta variável como dependente dos cenários experimentais. Para essa análise, a cor da pele dos participantes foi colocada como covariável. Encontrou-se um efeito da manipulação experimental [F (7, 125)=51,60; p <0,001] (η²=0,77). Os quatro grupos descritos como amáveis (i.e., brancos e negros incompetentes e amáveis, brancos e negros competentes e amáveis) receberam uma maior atribuição de conteúdo estereotípico da cordialidade (M=4,25; DP=1,01) do que os quatro grupos descritos como frios (M=0,81; DP=0,95) (teste Scheffe, p <0,05). Ou seja, não houve diferenciação entre os grupos-alvo de brancos e negros na atribuição de cordialidade. Esse resultado não foi influenciado pela cor da pele dos participantes que responderam ao estudo [F (1, 116) <1; p=0,32].

As nossas hipóteses para este segundo estudo previam que os negros, na condição de baixa competência, seriam mais descritos como cordiais do que como competentes e que os brancos, na condição de alta competência, seriam mais descritos como competentes do que como cordiais. Os resultados encontrados indicaram, primeiramente, que a percepção da cordialidade dos grupos não dependeu do seu desempenho profissional, uma vez que, aos grupos amáveis, caracterizados como bem ou malsucedidos, foi atribuído, de forma não diferenciada, o conteúdo estereotípico da cordialidade. Outrossim, os grupos bem-sucedidos foram descritos como mais competentes, independentemente de serem amáveis ou frios. Os negros descritos como malsucedidos e amáveis receberam mais traços de conteúdo estereotípico da competência do que os brancos malsucedidos e frios, de forma que o mau desempenho dos negros impactou menos a sua descrição em termos de competência do que o mau desempenho dos brancos.

A associação entre elevado status social e descrição estereotípica em termos de competência confirma, simultaneamente, a nossa hipótese, os postulados do MCE e os resultados de outros estudos (Almeida, 2014Almeida, J. B. L. (2014). A invenção dos outros: Estereótipos étnicos, raciais e regionais no Brasil e na Espanha (Tese de doutorado não publicada). Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa - Paraíba.; Durante et al., 2017Durante, F., Tablante, C. B., & Fiske, S. T. (2017). Poor but warm, rich but cold (and competent): Social classes in the stereotype content model. Journal of Social Issues, 73(1), 138-157. https://doi.org/10.1111/josi.12208
https://doi.org/10.1111/josi.12208...
; Fiske, Cuddy, & Glick, 2002Fiske, S. T. , Cuddy, A. J. C. , & Glick, P. (2002). Emotion up and down: Intergroup emotions result from perceived status and competition. Em D. M. Mackie & E. R. Smith (Eds.), From prejudice to intergroup emotions: Differentiated reactions to social groups (pp. 247-264). Psychology Press.; Fiske, Cuddy, Glick, & Xu, 2002Fiske, S. T. , Cuddy, A. J. C, Glick, P. , & Xu, J. (2002). A model of (often mixed) stereotype content: Competence and warmth respectively follow from perceived status and competition. Journal of Personality and Social Psychology, 82(6), 878-902. https://doi.org/10.1037/0022-3514.82.6.878
https://doi.org/10.1037/0022-3514.82.6.8...
). Todavia, como já previsto no MCE, a cordialidade não foi usada apenas para descrever grupos de baixo status social (malsucedidos), mas foi igualmente usada para descrever os bem-sucedidos, desde que caracterizados como amáveis. Novamente, como havia ocorrido no Estudo 1, os negros não foram percebidos como mais cordiais do que os brancos. Esse resultado corrobora os encontrados por Batista et al. (2014Batista, J. R. M., Leite, E. L., Torres, A. R. R., & Camino, L. (2014). Negros e nordestinos: Similaridades nos estereótipos raciais e regionais. Revista Psicologia Política. 14(30), 325-345. ), que constataram uma baixa atribuição de cordialidade aos negros, mas diverge dos de Almeida (2014Almeida, J. B. L. (2014). A invenção dos outros: Estereótipos étnicos, raciais e regionais no Brasil e na Espanha (Tese de doutorado não publicada). Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa - Paraíba.), que apontou que os negros foram percebidos como mais cordiais que os brasileiros de forma geral. Todavia, criando subtipos para os negros bem-sucedidos e malsucedidos, como fizeram Fiske et al. (2009Fiske, S. T, Bergsieker, H. B., Russell, A. M., & Williams, L. (2009). Images of black Americans: Then, “them,” and now, “Obama!”. Du Bois Review: Social Science Research on Race 6(1), 83-101. https://doi.org/10.1017/S1742058X0909002X
https://doi.org/10.1017/S1742058X0909002...
), confirma-se o pressuposto do MCE de que os negros bem-sucedidos ocupam o quadrante da alta competência. No entanto, o conteúdo estereotípico da cordialidade atribuído aos negros não se vinculou ao status social do grupo, mas às descrições de que eram amáveis nas relações com os outros, demonstrando que o conteúdo dos estereótipos é influenciado por contextos culturais específicos, como observaram outros estudos (e.g., Stanciu et al., 2017Stanciu, A., Cohrs, J. C., Hanke, K., & Gavreliuc, A. (2017). Within-culture variation in the content of stereotypes: Application and development of the stereotype content model in an eastern european culture. The Journal of Social Psychology, 157(5), 611-628. https://doi.org/10.1080/00224545.2016.1262812
https://doi.org/10.1080/00224545.2016.12...
).

Discussão Geral

Este trabalho teve como objetivo analisar as relações entre as expressões de preconceito moderno e implícito contra os negros, com o conteúdo dos estereótipos, focando, especificamente, as dimensões competência e cordialidade previstas no MCE. No Estudo 1, foram analisadas duas formas de expressão do preconceito: a implícita, utilizando o Teste de Associações Implícitas, e a explícita, utilizando a Escala de Racismo Moderno. No Estudo 2, foi introduzida uma manipulação experimental do status social de grupos de brancos ou de negros, descritos como amáveis ou frios. Além disso, utilizou-se como medida de conteúdo dos estereótipos uma lista de traços semelhante à utilizada nos estudos do MCE.

No primeiro estudo, observou-se a presença de preconceito implícito contra os negros somente nas avaliações dos participantes de cor branca. Trata-se de um dado relevante, uma vez que algumas pesquisas acabam por construir a imagem de que o preconceito implícito é automático e universal, constituindo-se como uma “associação compatível” (Greenwald et al., 1998Greenwald, A. G., McGhee, D. E., & Schwartz, J. L. K. (1998). Measuring individual differences in implicit cognition: The implicit association test. Journal of Personality and Social Psychology, 74(6), 1464-1480.). Os resultados confirmaram que existe uma maior atribuição de conteúdo estereotípico de competência para os grupos mais bem instalados na estrutura social de poder, no caso os brancos, assim como prevê o MCE. Nota-se também que houve relação dos níveis de preconceito explícito com o conteúdo dos estereótipos, trazendo uma evidência importante para o MCE. Quanto maior a atribuição de competência aos brancos, mais afirmação das diferenças em relação aos negros e, quanto maior a atribuição de cordialidade aos negros, mais negação do preconceito.

No segundo estudo, confirmou-se o pressuposto básico do MCE: mais atribuição de competência aos grupos com mais status social (bem-sucedidos) do que aos malsucedidos. Viu-se que a atribuição de cordialidade não foi influenciada pelo status social e sim pela descrição dos grupos como sendo amáveis. O único efeito da cor da pele dos grupos-alvo de avaliação encontrado não foi na direção das nossas hipóteses e dos postulados do MCE: os negros malsucedidos e amáveis foram mais descritos em termos de competência do que os brancos frios e malsucedidos. Esse resultado pode se dever a aspectos específicos na definição do ethos racista do Brasil. Trata-se da lógica do negro como “bom escravo e mau cidadão” (Moura, 1977Moura, C. (1977). O Negro: De bom escravo a mau cidadão. Conquista.). Um forte nicho de trabalho para os negros foi o trabalho doméstico, de caráter servil e desqualificado, mas, ao mesmo tempo, vinculado à amabilidade das antigas amas-de-leite (Holanda, 1936/1995Holanda, S. B. (1936/1995). Raízes do Brasil (26a ed.). Companhia das Letras. ). Dessa forma, pode-se afirmar que as representações formadas sobre os grupos em termos de estereótipos são dinâmicas e atuam como repertórios na legitimação das suas posições sociais (Lima, 2002Lima, M. E. O. (2002). Normas sociais e racismo: Efeitos do individualismo meritocrático e do igualitarismo na infra-humanização dos negros. (Tese de doutorado não publicada). Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa. ), tendo um conteúdo de docilidade, quando os grupos estão no “seu lugar” e não ameaçam o status quo das relações, ou de agressividade, quando os grupos se constituem em ameaça. Tais resultados parecem ir em direção das teses do paternalismo (Lima et al., 2014Lima, M. E. O., Neves, P. S. C., & Silva, P. B. (2014). A implantação das cotas na universidade: Paternalismo e ameaça à posição dos grupos dominantes. Revista Brasileira de Educação, 19(56), 141-163.), do senso de posição grupal (Blumer, 1958Blumer, H. (1958). Race prejudice as a sense of group position. The Pacific Sociological Review, 1, 3-7. https://doi.org/10.2307/1388607
https://doi.org/10.2307/1388607...
) e dos achados de Janssens et al. (2015Janssens, H., Verkuyten, M., & Khan, A. (2015). Perceived social structural relations and group stereotypes: A test of the stereotype content model in Malaysia. Asian Journal of Social Psychology, 18(1), 52-61. https://doi.org/10.1111/ajsp.12077
https://doi.org/10.1111/ajsp.12077...
), que constataram que a percepção de competição econômica reduzia a atribuição de traços de cordialidade aos negros.

Esses resultados permitem afirmar que a manipulação do conteúdo dos estereótipos feita no Estudo 2 agrega elementos importantes para as discussões dos postulados do MCE. Nesse modelo, competência e cordialidade são tomadas como variáveis dependentes, que servem para descrever os grupos em função de uma dada situação social e econômica. A estratégia por nós adotada permite demonstrar que tais dimensões são contextuais, isto é, não apenas dependem da posição dos grupos, mas legitimam tais posições e variam juntamente com elas. Com efeito, os negros foram descritos como mais competentes do que os brancos apenas quando estes foram retratados no cenário experimental como malsucedidos.

No nosso primeiro estudo, pode-se dizer que havia um negro e um branco genéricos, definidos apenas pelos rótulos categoriais gerais. Naquele estudo, as predições do MCE se confirmaram. No segundo estudo, negros e brancos foram classificados como bem ou malsucedidos, deixando de ser genéricos e, assim, moderando as predições do MCE. Com efeito, no cenário de pesquisa criado no segundo estudo, dois grupos de negros eram representados como malsucedidos e dois, como bem-sucedidos, fato que pode ter impactado o efeito da dimensão da cordialidade e da competência na diferenciação social dos grupos.

De uma forma geral, os dois estudos demonstraram que as dimensões competência versus cordialidade permanecem relevantes para a descrição estereotípica dos grupos. Entretanto, aventa-se que esses atributos são ainda mais centrais na descrição de minorias sociais cujos papéis definidos na estrutura social focam o cuidado e o bem-estar do outro, em oposição às maiorias vocacionadas para a manutenção material dos grupos, como é o caso das relações de gênero na nossa estrutura social sexista; ou ainda, na descrição de outras minorias que são alvo de políticas públicas de proteção, a exemplo de pobres, imigrantes e refugiados. Para a descrição de brancos e negros, como visto no primeiro estudo, tais dimensões corresponderam a menos de 10% dos estereótipos atribuídos. Além disso, a dimensão da cordialidade não se mostrou relevante na caracterização dos negros.

A pesquisa aqui relatada apresenta algumas limitações dignas de nota. No segundo estudo, ela foi utilizada como estratégia para categorização da cor da pele dos grupos bonecos-palitos. O uso desse recurso pode criar situações de baixo grau de realismo ou verossimilhança. Mesmo considerando que a checagem da manipulação experimental indicou que a mensagem da cor da pele dos grupos-alvo foi assimilada pelos participantes, pode-se pensar que o uso de imagens de grupos sociais com pessoas reais poderia fortalecer os resultados. Outra limitação se refere ao caráter quase pleonástico de descrever os grupos como bem ou malsucedidos, amáveis ou frios e, depois, pedir aos participantes que atribuíssem traços estereotípicos de competência e cordialidade. Todavia, metade dos grupos descritos tinha a pele preta e a outra metade, a pele branca, fato que, numa sociedade racista, torna menos redundante a tarefa dos participantes.

Não obstante essas e outras limitações, os resultados encontrados demonstram que uma direção futura para as pesquisas sobre os estereótipos dos negros no Brasil pode ser a de focalizar, primeiramente, de forma qualitativa, os novos conteúdos que podem estar emergindo na representação estereotípica dessa categoria social. Tal asserção se torna mais importante quando se considera que vive-se, no Brasil atual, um novo cenário de relações racializadas, emergido com as Políticas de Ações Afirmativas a partir da década de 1990, e atravessado, mais recentemente, pela ressurgência de expressões mais abertas de preconceito racial em discursos conservadores (Lima, 2019Lima, M. E. O. (2019). O que há de novo no "novo" racismo do Brasil? Dossiê - Educação das Relações Étnico-Raciais na Contemporaneidade: Permanências e Transformações, 4(7), 157-177. Recuperado de http://costalima.ufrrj.br/index.php/REPECULT/article/view/317
http://costalima.ufrrj.br/index.php/REPE...
). Esse cenário pode estar alterando a imagem dos negros do polo da ingênua cordialidade e da malandragem para o polo da competição e da busca por espaço, ameaçando o senso de posição dos grupos e, assim, produzindo novas manifestações de preconceito racial e novos conteúdos estereotípicos sobre essa categoria social no Brasil.

Referências

  • Almeida, J. B. L. (2014). A invenção dos outros: Estereótipos étnicos, raciais e regionais no Brasil e na Espanha (Tese de doutorado não publicada). Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa - Paraíba.
  • Asbrock, F. (2010). Stereotypes of social groups in Germany in terms of warmth and competence. Social Psychology, 41, 76-81. https://doi.org/10.1027/1864-9335/a000011
    » https://doi.org/10.1027/1864-9335/a000011
  • Asch, S. E. (1946). Forming impressions of personality. The Journal of Abnormal and Social Psychology, 41(3), 258-290. https://doi.org/10.1037/h0055756
    » https://doi.org/10.1037/h0055756
  • Batista, J. R. M., Leite, E. L., Torres, A. R. R., & Camino, L. (2014). Negros e nordestinos: Similaridades nos estereótipos raciais e regionais. Revista Psicologia Política 14(30), 325-345.
  • Blumer, H. (1958). Race prejudice as a sense of group position. The Pacific Sociological Review, 1, 3-7. https://doi.org/10.2307/1388607
    » https://doi.org/10.2307/1388607
  • Bonilla-Silva, E. (2015). The structure of racism in color-blind, “post-racial” America. American Behavioral Scientist, 59(11) 1358-1376. https://doi.org/10.1177/0002764215586826
    » https://doi.org/10.1177/0002764215586826
  • Cuddy, A. J. C., Fiske, S. T., Kwan, V. S. Y., Glick, P., Demoulin, S., Leyens, J. P., Bond, M. H., Croizet, J., Ellemers, N., Sleebos, E., Htun, T. T., Kim, H., Maio, G., Perry, J., Petkova, K., Todorov, V., Rodríguez-Bailón, R., Morales, E., Moya, M., … Ziegler, R. (2009). Stereotype content model across cultures: Toward universal similarities and some differences. British Journal of Social Psychology 48, 1-33. https://doi.org/10.1348/014466608X314935
    » https://doi.org/10.1348/014466608X314935
  • Cunha, R. D. (2017). Estereótipos femininos: Competência e amabilidade em avaliações implícitas, explícitas e de empregabilidade (Dissertação de mestrado não publicada). Universidade de Brasília, Brasília - DF.
  • Durante, F., Tablante, C. B., & Fiske, S. T. (2017). Poor but warm, rich but cold (and competent): Social classes in the stereotype content model. Journal of Social Issues, 73(1), 138-157. https://doi.org/10.1111/josi.12208
    » https://doi.org/10.1111/josi.12208
  • Fiske, S. T, Bergsieker, H. B., Russell, A. M., & Williams, L. (2009). Images of black Americans: Then, “them,” and now, “Obama!”. Du Bois Review: Social Science Research on Race 6(1), 83-101. https://doi.org/10.1017/S1742058X0909002X
    » https://doi.org/10.1017/S1742058X0909002X
  • Fiske, S. T. , Cuddy, A. J. C. , & Glick, P. (2002). Emotion up and down: Intergroup emotions result from perceived status and competition. Em D. M. Mackie & E. R. Smith (Eds.), From prejudice to intergroup emotions: Differentiated reactions to social groups (pp. 247-264). Psychology Press.
  • Fiske, S. T. , Cuddy, A. J. C. , & Glick, P. (2007). Universal dimensions of social cognition: Warmth and competence. Trends in Cognitive Sciences, 11(2), 77-83. https://doi.org/10.1016/j.tics.2006.11.005
    » https://doi.org/10.1016/j.tics.2006.11.005
  • Fiske, S. T. , Cuddy, A. J. C, Glick, P. , & Xu, J. (2002). A model of (often mixed) stereotype content: Competence and warmth respectively follow from perceived status and competition. Journal of Personality and Social Psychology, 82(6), 878-902. https://doi.org/10.1037/0022-3514.82.6.878
    » https://doi.org/10.1037/0022-3514.82.6.878
  • Greenwald, A. G., McGhee, D. E., & Schwartz, J. L. K. (1998). Measuring individual differences in implicit cognition: The implicit association test. Journal of Personality and Social Psychology, 74(6), 1464-1480.
  • Holanda, S. B. (1936/1995). Raízes do Brasil (26a ed.). Companhia das Letras.
  • Janssens, H., Verkuyten, M., & Khan, A. (2015). Perceived social structural relations and group stereotypes: A test of the stereotype content model in Malaysia. Asian Journal of Social Psychology, 18(1), 52-61. https://doi.org/10.1111/ajsp.12077
    » https://doi.org/10.1111/ajsp.12077
  • Lee, T. L., & Fiske, S. T. (2006). Not an outgroup, not yet an ingroup: Immigrants in the stereotype content model. International Journal of Intercultural Relations, 30(6), 751-768. https://doi.org/10.1016/j.ijintrel.2006.06.005
    » https://doi.org/10.1016/j.ijintrel.2006.06.005
  • Lima, M. E. O. (2002). Normas sociais e racismo: Efeitos do individualismo meritocrático e do igualitarismo na infra-humanização dos negros (Tese de doutorado não publicada). Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa.
  • Lima, M. E. O. (2019). O que há de novo no "novo" racismo do Brasil? Dossiê - Educação das Relações Étnico-Raciais na Contemporaneidade: Permanências e Transformações, 4(7), 157-177. Recuperado de http://costalima.ufrrj.br/index.php/REPECULT/article/view/317
    » http://costalima.ufrrj.br/index.php/REPECULT/article/view/317
  • Lima, M. E. O., Neves, P. S. C., & Silva, P. B. (2014). A implantação das cotas na universidade: Paternalismo e ameaça à posição dos grupos dominantes. Revista Brasileira de Educação, 19(56), 141-163.
  • McConahay, J.B. (1986). Modern racism, ambivalence, and the modern racism scale. In J.F. Dovidio & S.L. Gaertner (Eds.), Prejudice, Discrimination, and Racism (pp. 91-125). Academic Press.
  • Moscovici, S., & Pérez, J. A. (1997). Prejudice and social representations. Papers on Social Representations, 6, 27-36.
  • Moura, C. (1977). O Negro: De bom escravo a mau cidadão Conquista.
  • Pereira, M. E. (2013). Cognição social. Em L. Camino, A. R. R. Torres, M. E. O. Lima, & M. E. Pereira (Eds.), Psicologia social: Temas e teorias (2ª ed., pp. 101-169). Technopolitik.
  • Roussos, G., & Dunham, Y. (2016). The development of stereotype content: The use of warth and competence in assessing social groups. Journal of Experimental Child Psychology, 141, 133-144. https://doi.org/10.1016/j.jecp.2015.08.009
    » https://doi.org/10.1016/j.jecp.2015.08.009
  • Santos, W. S., Gouveia, V. V., Navas, M. S., Pimentel, C. E., & Gusmão, E. E. S. (2006). Escala de racismo moderno: Adaptação ao contexto brasileiro. Psicologia em Estudo, 11(3), 637-645. https://doi.org/10.1590/S1413-73722006000300020
    » https://doi.org/10.1590/S1413-73722006000300020
  • Shelby, T. (2014). Racism, moralism, and social criticism. Du Bois Review: Social Science Research on Race, 11(1), 57- 74. https://doi.org/10.1017/S1742058X14000010
    » https://doi.org/10.1017/S1742058X14000010
  • Spence, J. X., & Helmreich, R. L. (1979). On assessing "androgyny”. Sex Roles, 5, 721-738. https://doi.org/10.1007/BF00287935
    » https://doi.org/10.1007/BF00287935
  • Stanciu, A., Cohrs, J. C., Hanke, K., & Gavreliuc, A. (2017). Within-culture variation in the content of stereotypes: Application and development of the stereotype content model in an eastern european culture. The Journal of Social Psychology, 157(5), 611-628. https://doi.org/10.1080/00224545.2016.1262812
    » https://doi.org/10.1080/00224545.2016.1262812
  • Stangor, C., & Lange, J. E. (1994). Mental representations of social groups: Advances in conceptualizing stereotypes and stereotyping. Advances in Experimental Social Psychology, 26, 357-416. https://doi.org/10.1016/S0065-2601(08)60157-4
    » https://doi.org/10.1016/S0065-2601(08)60157-4
  • Vala, J., & Pereira, C. (2012). Racism: An evolving virus. Proceedings of the British Academy, 179, 49-70. http://dx.doi.org/10.5871/bacad/9780197265246.003.0004
    » http://dx.doi.org/10.5871/bacad/9780197265246.003.0004
  • Zuriff, G. E. (2014). Racism inflation. American Psychologist, 69, 309-310. http://dx.doi.org/10.1037/a0035807
    » http://dx.doi.org/10.1037/a0035807
  • 1
    As duas dimensões de racismo moderno serão consideradas na análise de dados.
  • 2
    Nessa análise, não foi possível controlar o efeito da cor da pele dos participantes, pois o teste Kruskal-Wallis não permite a inserção de covariáveis.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Set 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    15 Maio 2018
  • Aceito
    09 Dez 2020
Instituto de Psicologia, Universidade de Brasília Instituto de Psicologia, Universidade de Brasília, 70910-900 - Brasília - DF - Brazil, Tel./Fax: (061) 274-6455 - Brasília - DF - Brazil
E-mail: revistaptp@gmail.com