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Características Estruturais e Funções das Redes Sociais Significativas de Mulheres Ex-Abrigadas* * Apoio: CNPq e CAPES

Resumo

O objetivo deste estudo qualitativo foi compreender as características estruturais e funções das redes sociais significativas de mulheres que sofreram violência, após a passagem por uma casa-abrigo. Participaram seis mulheres que haviam sido acolhidas numa casa-abrigo da região Sul do Brasil. Para coleta de dados, utilizou-se a entrevista semiestruturada e o Mapa de Redes. A organização e análise dos dados ocorreram com base na Grounded Theory e contou com o auxílio do software Atlas.ti 7.0. Observaram-se redes de tamanho médio e grande, com maior grau de proximidade afetiva e predomínio de membros da família. As principais funções foram apoio emocional e guia cognitivo e de conselhos. Destaca-se o empoderamento das participantes em reativar e ressignificar a qualidade do vínculo relacional com suas redes sociais significativas.

Palavras-chave:
violência contra a mulher; redes sociais; abrigo

Abstract

The aim of this qualitative study was to understand the structural characteristics and functions of the significant social networks of women subjected to violence, after their stay in a shelter. Six women admitted to a shelter in southern Brazil participated in the study. Semi-structured interviews and Network Maps were used for data collection. Data were organized and analyzed according to Grounded Theory, using the software Atlas.ti 7.0. Medium and large networks were found, with a high degree of affective proximity and the predominance of family members. The main functions were Emotional Support, and Cognitive Guidance and Advice. Participants were considerably empowered by reactivating their significant social networks and resignifying the quality of their relational bond with them.

Keywords:
violence against women; social networks; shelter

A violência contra a mulher está entre os principais problemas de saúde pública e de violação dos direitos humanos, sobretudo quando praticada por parceiro íntimo. É compreendida como qualquer ato violento, incluindo ameaças, coerções, privação da liberdade baseada no gênero, que resulte ou possa resultar em danos nas esferas física, sexual e/ou emocional (United Nations [ONU], 1993United Nations. (1993). Declaration on the elimination of violence against women. Geneve.).

Os índices mundiais mostram que 35% das mulheres admitem já ter sofrido violência física ou sexual por seu parceiro ao longo da vida e que 38% dos assassinatos contra mulheres são cometidos por seu parceiro ou ex-parceiro íntimo (World Health Organization [WHO], 2017United Nations. (1993). Declaration on the elimination of violence against women. Geneve.). De acordo com a Organização Mundial da Saúde (WHO, 2017World Health Organization (2017). Violence against women. Intimate partner and sexual violence against women. https://www.who.int/en/news-room/fact-sheets/detail/violence-against-women
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), quase um terço das mulheres (30%) que estão em um relacionamento relataram sofrer violência física e/ou sexual cometida por seu parceiro íntimo. Vivenciar uma situação de violência prejudica o desenvolvimento vital das mulheres, podendo acarretar em problemas graves para a saúde física, mental, sexual e reprodutiva, em curto e longo prazo, gerando altos custos econômicos e sociais (WHO, 2017World Health Organization (2017). Violence against women. Intimate partner and sexual violence against women. https://www.who.int/en/news-room/fact-sheets/detail/violence-against-women
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). Estima-se que no Brasil, no ano de 2018, pouco mais de 12 milhões de mulheres tenham sofrido ofensas verbais e/ou ameaças e que, em média, 536 mulheres sofreram algum tipo de violência física por hora (Brasil, 2019Brasil. (2019). 13º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Presidência da República. ). No mesmo ano, foram registrados no país 1.206 casos de feminicídio, 61% deles contra mulheres negras, com média de idade de 30 anos e, em 88% dos casos, o autor do crime foi o companheiro ou ex (Brasil, 2019Brasil. (2019). 13º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Presidência da República. ).

Frente aos índices mundiais e nacionais de violência contra a mulher e aos prejuízos acarretados para a saúde, o fenômeno da violência implica o desenvolvimento e aperfeiçoamento de políticas públicas que visam ações e medidas para sua prevenção e seu enfrentamento, além da promoção de práticas sociais da não violência. No contexto brasileiro, dentre as ações desenvolvidas ao longo da construção histórica dos movimentos para o enfrentamento da violência contra a mulher, destacam-se a Delegacia Especializada para o Atendimento de Mulheres, a Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres e a Lei Maria da Penha.

Destas ações, sublinha-se a Lei Maria da Penha (11.340/2006), reconhecida pela Organização das Nações Unidas como uma das três melhores legislações do mundo sobre a violência. Essa Lei visa o controle e inibição da violência contra a mulher e propõe a criação de uma rede que ofereça assistência, prevenção e proteção às mulheres, como o seu encaminhamento para casas-abrigo (Brasil, 2006Brasil. (2006). Lei Maria da Penha. Lei federal nº 11 340, de 07 de agosto de 2006. Presidência da República.). As casas-abrigo são locais seguros e sigilosos, que oferecem proteção e segurança à vida das mulheres e seus filhos que se encontram em risco iminente de morte. Nesses locais, as mulheres recebem atendimento psicológico, assistencial e jurídico, e permanecem abrigadas até estarem em condições psicológicas e de segurança adequadas para serem reinseridas socialmente (Brasil, 2006Brasil. (2006). Lei Maria da Penha. Lei federal nº 11 340, de 07 de agosto de 2006. Presidência da República.).

Tanto as casas-abrigo quanto as demais medidas criadas para prevenção e enfrentamento da violência contra a mulher fazem parte dos setores da rede de suporte social. Nesse estudo, o suporte social é entendido como o conjunto de instituições e organizações formais que desenvolvem suas práticas dirigidas à prestação de serviços de prevenção e promoção de saúde do indivíduo na comunidade (Ornelas, 2008Ornelas, J. (2008). Psicologia Comunitária. Fim de século.). Complementar a isto, Campos (2005Campos, E. P. (2005). Quem cuida do cuidador. Uma proposta para os profissionais da saúde. Vozes.) afirma que as pessoas da rede de suporte social podem ser nomeadas como significativas por desempenharem funções de apoio e proteção que favorecem a diminuição do estresse e o aumento do bem-estar das pessoas.

Além da rede de suporte social, mulheres em situação de violência também buscam e/ou recebem ajuda dos membros de sua rede social significativa. Entende-se por rede social significativa o conjunto de pessoas que, em uma determinada situação estressora do ciclo vital do indivíduo e/ou da família, oferece algum tipo de ajuda, auxiliando na tomada de decisão necessária, seja para enfrentar a situação, seja para promover o desenvolvimento vital das pessoas nela envolvidas (Moré et al., 2014Moré, C. L. O. O., Santos, A. C. W., & Krenkel, S. (2014). A rede social significativa de mulheres que denunciaram a violência sofrida no contexto familiar. In R. M. S., Macedo (Eds.). Família e comunidade: Pesquisa em diferentes contextos (pp-209-240). Juruá. ). Nessa perspectiva, para Sluzki (2003Sluzki, C. E. (2003). A rede social na prática sistêmica: Alternativas terapêuticas. Casa do Psicólogo.), a rede social significativa é percebida e nomeada pelo sujeito de acordo com sua experiência relacional e com os significados atribuídos a cada membro de sua rede. Fazem parte dela: familiares, amigos, colegas de trabalho ou estudo e pessoas da comunidade, incluindo os serviços de saúde e assistenciais, vizinhos e credo religioso (Sluzki, 2003Sluzki, C. E. (2003). A rede social na prática sistêmica: Alternativas terapêuticas. Casa do Psicólogo.).

A qualidade das relações e a dinâmica das redes sociais significativas podem ser compreendidas por meio das características estruturais, das funções e dos atributos dos vínculos estabelecidos entre seus membros, ao longo do tempo (Moré & Crepaldi, 2012Moré, C. L. O. O., & Crepaldi, M. A. (2012). O mapa de rede social significativa como instrumento de investigação no contexto da pesquisa qualitativa. Nova Perspectiva Sistêmica, 43, 84-98. https://www.revistanps.com.br/nps/article/view/265
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). As características estruturais se referem às propriedades da rede em seu conjunto e podem ser entendidas de acordo com: a) o tamanho, ou seja, o número de pessoas que compõem a rede. Considera-se uma rede pequena aquela constituída por até sete pessoas, redes médias são compostas por oito a 12 pessoas e redes grandes aquelas com 13 pessoas ou mais; b) a densidade, que está relacionada com a qualidade da relação e com a influência que os membros podem exercer no indivíduo; c) composição ou distribuição, que indica a posição que cada membro ocupa de acordo com o grau de proximidade; d) dispersão, relacionada com a distância geográfica entre os membros da rede; e e) homogeneidade ou heterogeneidade, que se referem às diferenças e semelhanças quanto ao gênero, idade, cultura e nível socioeconômico que podem favorecer as trocas ou gerar tensões (Sluzki, 2003Sluzki, C. E. (2003). A rede social na prática sistêmica: Alternativas terapêuticas. Casa do Psicólogo.).

Em relação às funções dos vínculos, estas podem ser: a) companhia social, que diz respeito à realização de atividades conjuntas ou simplesmente estar juntos; b) apoio emocional, caracterizado pelos intercâmbios com uma atitude emocional positiva, clima de compreensão e empatia; c) guia cognitivo e de conselho, que consiste na oferta de informações pessoais, sociais e modelos de referência; d) regulação social, que, por sua vez, reafirma as responsabilidades e os papéis, além de favorecer a resolução de conflitos; e) ajuda material ou de serviços, caracterizada pela contribuição financeira ou por meio de indicações a serviços com especialistas; e f) acesso a novos contatos, que diz respeito à abertura de portas para novas conexões com pessoas e redes que até então não faziam parte da rede do indivíduo/família (Sluzki, 2003Sluzki, C. E. (2003). A rede social na prática sistêmica: Alternativas terapêuticas. Casa do Psicólogo.).

Por fim, cada vínculo estabelecido com as pessoas das redes possui atributos, que são propriedades específicas presentes em cada relação. São eles: a) a(s) função(ões) predominante(s) do vínculo, ou seja, qual ou quais funções se destacam neste vínculo; b) multidimensionalidade, isto é, quantas funções a pessoa desempenha; c) reciprocidade, quer dizer, se a pessoa desempenha as mesmas funções que recebe de sua rede; d) intensidade, que caracteriza o grau de compromisso da relação; e) frequência dos contatos, referente ao número de vezes que as pessoas entram em contato umas com as outras; e f) história da relação, referindo-se a desde quando as pessoas se conheceram e o que estimula a manutenção da relação (Sluzki, 2003Sluzki, C. E. (2003). A rede social na prática sistêmica: Alternativas terapêuticas. Casa do Psicólogo.).

Estudos sobre as redes sociais significativas realizados com mulheres em situação de violência mostram que a família e os amigos são as pessoas mais procuradas em busca de ajuda, sendo que as principais funções desempenhadas são as de Apoio Emocional e Ajuda Material e de Serviços (Alencar-Rodriguez & Cantera, 2014Alencar-Rodriguez, R., & Cantera, L. M. S. (2014). Cómo mujeres inmigrantes enfrentan la violencia en la relación de pareja? Estudos de Psicologia, 19(1). doi:10.1590/S1413-294X2014000100002
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; Gomes et al., 2015Gomes, N. P., Diniz, N. M. F., Reis, L. A., & Erdmann, A. L. (2015). Rede social para o enfrentamento da violência conjugal: Representações de mulheres que vivenciam o agravo. Texto & Contexto Enfermagem, 24(2), 316-324. doi: 10.1590/0104-07072015002140012
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; Sylaska & Edwards, 2014Sylaska, K. M., & Edwards, K. M. (2014). Disclosure of intimate partner violence to informal social support network members: A review of the literature. Trauma, Violence and Abuse, 15(1), 3-21. doi: 10.1177/1524838013496335
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; Taket et al., 2014Taket, A., O’Doherty, L., Valpied, J., & Hegarty, K. (2014). What do Australian women experiencing intimate partner abuse want from family and friends? Qualitative Health Research, 24(7), 983-996. doi: 10.1177/1049732314540054
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; Vieira et al., 2015Vieira, L. B., Souza, I. E. O., Tocantins, F. R., & Pina-Roche, F. (2015). Apoio à mulher que denuncia o vivido da violência a partir de sua rede social. Rev. Latino-Am. Enfermagem, 23(5), 865-873. doi: 10.1590/0104-1169.0457.2625
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). Para as mulheres participantes do estudo de Carneiro et al. (2020Carneiro, J. B., Gomes, N. P., Estrela, F. M, Paixão, G. P. N., Romano, C. M. C., & Mota, R. S. (2020). Desvelando as estratégias de enfrentamento da violência conjugal utilizada por mulheres. Texto & Contexto Enfermagem, 29, 1-11. doi:10.1590/1980-265x-tce-2018-0396
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), o apoio ofertado pela família contribui para o rompimento do ciclo da violência. Nas pesquisas de Katerndahl et al. (2013Katerndahl, D., Burge, S., Ferrer, R., Becho, J., & Wood, R. (2013). Differences in social network structure and support among women in violent relationships. Journal of interpersonal violence, 28(9), 1948-1964. doi: 10.1177/0886260512469103
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), Sylaska e Edwards (2014Sylaska, K. M., & Edwards, K. M. (2014). Disclosure of intimate partner violence to informal social support network members: A review of the literature. Trauma, Violence and Abuse, 15(1), 3-21. doi: 10.1177/1524838013496335
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) e Rocha et al. (2019Rocha, R. Z., Galeli, P. R., & De Antoni, C. (2019). Rede de apoio social e afetiva de mulheres que vivenciaram violência conjugal. Contextos Clínicos, 12(1), 124-152. doi: 10.4013/ctc.2019.121.06
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), os amigos foram as pessoas mais procuradas, em sua maioria mulheres, com funções predominantemente de companhia social e apoio emocional. Por sua vez, no estudo realizado por Krenkel et al. (2015Krenkel, S., Moré, C. L. O. O., & Motta, C. C. L. (2015). The significant social networks of women who have resided in shelters. Paidéia, 25(60), 125-133. doi: 10.1590/1982-43272560201515
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), pessoas da comunidade, sobretudo profissionais da casa-abrigo, foram as mais mencionadas, oferecendo às mulheres apoio emocional e ajuda material e de serviços.

Uma característica presente nas situações de violência contra a mulher é o isolamento social ou afastamento das redes, que pode ser tanto afetivo quanto geográfico. Dentre os fatores envolvidos nesse comportamento, estão medo, culpa, vergonha e fronteiras familiares enrijecidas, que contribuem para a situação de vulnerabilidade (Netto et al., 2017Netto, L. A., Moura, M. A. V., Queiroz, A. B. A., Leite, F. M. C., & Silva, G. F. (2017). Isolamento de mulheres em situação de violência pelo parceiro íntimo: Uma condição em redes sociais. Escola Anna Nery, 21(1). doi: 10.5935/1414-8145.20170007
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; Terra et al., 2015Terra, M. F., D´Oliveira, A. F. P. L., & Schraiber, L. B. (2015). Medo e vergonha como barreiras para superar a violência doméstica de gênero. Athenea Digital, 15(3), 109-125. doi: 10.5565/rev/athenea.1538
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; Vieira, et al., 2015Vieira, L. B., Souza, I. E. O., Tocantins, F. R., & Pina-Roche, F. (2015). Apoio à mulher que denuncia o vivido da violência a partir de sua rede social. Rev. Latino-Am. Enfermagem, 23(5), 865-873. doi: 10.1590/0104-1169.0457.2625
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). Conforme afirma Sluzki (2003Sluzki, C. E. (2003). A rede social na prática sistêmica: Alternativas terapêuticas. Casa do Psicólogo.), o apoio recebido pelas pessoas da rede faz com que o indivíduo tenha o sentimento de pertencer a um grupo, fortalece a autoestima, dá sentido à vida, melhora a qualidade dos relacionamentos e a capacidade de adaptação (Sluzki, 2003Sluzki, C. E. (2003). A rede social na prática sistêmica: Alternativas terapêuticas. Casa do Psicólogo.). Nesse sentido, entende-se que conhecer a qualidade do vínculo presente nas relações estabelecidas entre as mulheres e as pessoas da sua rede social significativa, contribui para a compreensão de como as redes interferem e/ou auxiliam no enfrentamento da violência.

Diante do exposto e da constatação quanto à escassa produção científica que aborde as configurações das redes de mulheres anos após a experiência de violência e abrigamento, o objetivo do presente estudo foi compreender as características estruturais e funções das redes sociais significativas de mulheres que sofreram violência, após a passagem por uma casa-abrigo. Estima-se que os resultados desta pesquisa ofereçam subsídios para a prática profissional, no que concerne ao conhecimento dos vínculos afetivos e às funções desempenhadas pelos membros da rede social significativa de mulheres ex-abrigadas. Além disso, que contribua para o uso das redes como um recurso no conjunto de estratégias de intervenção, de modo a auxiliar no enfrentamento do problema da violência, promoção da saúde e desenvolvimento individual, familiar e relacional dos envolvidos na situação.

Método

Participantes

Este foi um estudo qualitativo, do qual participaram seis mulheres que sofreram violência pelo parceiro íntimo e foram acolhidas em uma casa-abrigo da região Sul do Brasil. Os critérios para a inclusão das participantes nesse estudo foram: a) ser maior de 18 anos; b) ter vivenciado violência familiar; c) ter passado pela casa-abrigo nos anos de 2012 ou 2013, d) ter permanecido na casa-abrigo por pelo menos 10 dias; e) residir no município onde está localizada a casa-abrigo; e f) ter participado de projeto de pesquisa anterior a este, sobre redes de mulheres em situação de violência, vinculado ao Laboratório ao qual pertencem as autoras deste artigo.

As participantes tinham idade entre 23 e 45 anos; 3 delas estavam casadas com o autor da violência, 2 estavam solteiras (namorando) e 1 vivia em união estável com novo companheiro. Duas participantes tinham Ensino Médio completo, duas, Ensino Fundamental completo e duas, incompleto. Quanto à ocupação, três mulheres estavam trabalhando, duas estavam desempregadas e uma aposentada por invalidez. Todas tinham filhos e a renda média familiar era de R$ 2.300,00 mensal. As seis participantes mencionaram ter uma crença espiritual ou religiosa: três delas se referiram à religião evangélica, duas, à religião católica e uma afirmou crer no espiritismo.

Na ocasião em que as participantes foram abrigadas (2012/2013), a violência havia sido perpetrada pelo parceiro íntimo afetivo com quem, até o momento do abrigamento, as mulheres mantiveram um relacionamento, que durou entre 1,5 e 14,6 anos. Os tipos de violências relatadas foram física, psicológica, sexual e financeira, dentre as quais as participantes destacaram a violência psicológica. O tempo de permanência na casa-abrigo variou entre 12 e 117 dias. Cabe destacar que o tempo desde a saída da casa-abrigo até o momento da coleta de dados para esta pesquisa foi de três anos. A escolha por esse espaço de tempo ocorreu com o intuito de visualizar a rede de relações construída pelas participantes, as quais poderiam recorrer em busca de ajuda, considerando a experiência de passagem por uma casa-abrigo.

Instrumentos e técnicas de coleta de dados

Para a coleta de dados, foram utilizados os seguintes instrumentos e técnicas:

- Entrevista semiestruturada - Os itens norteadores da entrevista semiestruturada referiram-se a: a) dados sociodemográficos; b) estratégias de enfrentamento utilizadas pelas participantes após a saída da casa-abrigo; e c) pessoas das redes sociais significativas que auxiliaram no enfrentamento da situação de violência. A entrevista semiestruturada subsidiou a construção do Mapa de Redes.

- Mapa de Redes (Sluzki, 2003Sluzki, C. E. (2003). A rede social na prática sistêmica: Alternativas terapêuticas. Casa do Psicólogo.) - Esse instrumento permite identificar o grau de intimidade e compromisso relacional entre a pessoa e os membros de sua rede social significativa em um momento específico de vida. O Mapa de Redes é constituído por três círculos concêntricos e quatros quadrantes. O círculo interno se refere às relações íntimas ou cotidianas, o círculo intermediário às relações com menor grau de intimidade, com contato pessoal/social, e o círculo externo representa as relações ocasionais ou com conhecidos. Os quadrantes correspondem às pessoas da família, amizades, comunidade (vizinhos, clubes, igreja, serviços de saúde e assistenciais) e relações de trabalho e/ou estudo (Sluzki, 2003Sluzki, C. E. (2003). A rede social na prática sistêmica: Alternativas terapêuticas. Casa do Psicólogo.). Considerando a relação das participantes da pesquisa com as pessoas (mulheres (ex-) abrigadas e profissionais) da casa-abrigo em que estiveram, foi inserida uma subdivisão no quadrante da Comunidade, incluindo o item “Casa-abrigo”, conforme Figura 1. A consigna para a construção do Mapa foi: “Pensando hoje, no seu momento de vida atual, quem são as pessoas que lhe ajudam, que lhe dão suporte pra enfrentar os momentos difíceis da sua vida, desde a saída da casa-abrigo?”.

Figura 1.
Modelo de Mapa de Redes proposto por Sluzki (2003Sluzki, C. E. (2003). A rede social na prática sistêmica: Alternativas terapêuticas. Casa do Psicólogo.) adaptado com adição do item Casa-Abrigo.

Procedimentos

Coleta de dados. A coleta de dados iniciou a partir do levantamento dos nomes e contatos das 12 mulheres que haviam participado do projeto de pesquisa anterior a este. De modo a atender aos aspectos éticos, inicialmente o contato foi realizado por telefone pela coordenadora da casa-abrigo, na presença da pesquisadora. Foi possível contatar 10 das 12 mulheres. Dessas, duas delas haviam mudado para outra cidade e outras duas desistiram de participar da pesquisa um dia antes da entrevista, totalizando, então, seis participantes. A coleta de dados foi agendada conforme disponibilidade das mulheres e ocorreu na Secretaria de Assistência Social (quatro participantes), no Centro de Referência Especializado de Assistência Social - CREAS (uma participante) e em uma das Universidades do município em que se realizou a pesquisa (uma participante). Todas as entrevistas, junto à construção do Mapa de Redes, foram gravadas e transcritas, sendo posteriormente analisadas.

Organização e análise dos dados. O processo de organização e análise dos dados ocorreu com base na Grounded Theory (Teoria Fundamentada nos Dados), proposta por Strauss e Corbin (2008Strauss, A., & Corbin, J. (2008). Pesquisa qualitativa: Técnicas e procedimentos para o desenvolvimento de teoria fundamentada. Artmed. ), a qual permite comparar, sistematizar e categorizar dados provenientes de diferentes instrumentos. Tendo em vista que, no cenário atual da pesquisa qualitativa, a Grounded Theory é utilizada tanto com a finalidade de criar uma teoria, quanto de análise de dados, a utilização desta perspectiva metodológica no presente estudo se sustentou na análise dos dados a partir de uma proposta indutiva, por meio da qual as informações e significados emergem dos dados (Cho & Lee, 2014Cho, J. Y., & Lee, E.-H. (2014). Reducing confusion about grounded theory and qualitative content analysis: Similarities and differences. The Qualitative Report, 19(32). https://nsuworks.nova.edu/tqr/vol19/iss32/2
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). Assim, esta pesquisa seguiu o referencial de análise sistemática por três etapas de codificação interdependentes: aberta, axial e seletiva (Strauss & Corbin, 2008Strauss, A., & Corbin, J. (2008). Pesquisa qualitativa: Técnicas e procedimentos para o desenvolvimento de teoria fundamentada. Artmed. ). Esse processo contou com o auxílio do software de análise qualitativa Atlas.ti 7.0 e dele emergiram cinco categorias centrais de análise: a) Características estruturais das Redes Sociais Significativas; b) Rede da família; c) Rede das amizades; d) Rede da comunidade; e e) Rede do trabalho e/ou estudos. A nomeação das categorias foi baseada na literatura sobre o tema e nos quadrantes do Mapa de Redes, conforme proposta de Moré e Crepaldi (2012Moré, C. L. O. O., & Crepaldi, M. A. (2012). O mapa de rede social significativa como instrumento de investigação no contexto da pesquisa qualitativa. Nova Perspectiva Sistêmica, 43, 84-98. https://www.revistanps.com.br/nps/article/view/265
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).

Considerações éticas

O presente estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa com Seres Humanos da Universidade e seguiu os preceitos da Resolução 466/2012, do Conselho Nacional de Saúde. Para preservar o sigilo das informações das participantes, cada uma delas está identificada pela letra P, seguida do número estabelecido pela ordem de entrevista, idade e tempo de permanência na casa-abrigo (Por exemplo: P1, 45 anos, abrigada por 53 dias).

Resultados e Discussão

Para melhor contextualizar os resultados deste estudo, cabe mencionar que, antes de irem para a casa-abrigo, as participantes sofreram ameaça de morte e/ou tentativa de homicídio por seus parceiros íntimos, viviam isoladas socialmente e suas atividades laborais e de estudo eram controladas pelo parceiro. Diante do risco de morte, após a violência chegar a um nível extremo, as participantes denunciaram o autor da violência e foram acolhidas em uma casa-abrigo, a fim de preservar sua integridade física. As categorias que integram este artigo mostram a rede social significativa das mulheres em termos de características estruturais e funções, três anos após terem sido abrigadas.

Características Estruturais da Rede

Esta categoria aborda as características estruturais que correspondem às propriedades da rede apresentadas em seu conjunto: tamanho, composição, dispersão, funções e multidimensionalidade dos vínculos (Sluzki, 2003Sluzki, C. E. (2003). A rede social na prática sistêmica: Alternativas terapêuticas. Casa do Psicólogo.). Quanto à nomenclatura, foi utilizado “membro/pessoa/integrante” da rede, ao se referir a uma pessoa mencionada pelas participantes de maneira específica e “grupo” para as pessoas aludidas em conjunto, por exemplo, grupo de vizinhos e grupo da igreja.

Quanto ao tamanho da rede, três participantes tinham redes consideradas grandes (P1, P2 e P6), compostas por 22 a 28 pessoas. As demais (P3, P4 e P5) tinham redes de tamanho médio, compostas por 8 a 12 pessoas. Os resultados apresentados nesta pesquisa se diferem daqueles encontrados no estudo de Vieira et al. (2015Vieira, L. B., Souza, I. E. O., Tocantins, F. R., & Pina-Roche, F. (2015). Apoio à mulher que denuncia o vivido da violência a partir de sua rede social. Rev. Latino-Am. Enfermagem, 23(5), 865-873. doi: 10.1590/0104-1169.0457.2625
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), em que as mulheres que denunciaram a violência tinham redes médias e pequenas. Outra pesquisa (Katherndahl et al., 2013Katerndahl, D., Burge, S., Ferrer, R., Becho, J., & Wood, R. (2013). Differences in social network structure and support among women in violent relationships. Journal of interpersonal violence, 28(9), 1948-1964. doi: 10.1177/0886260512469103
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), desta vez comparativa, revelou que mulheres em situação de violência tem redes menores do que aquelas que não vivenciavam a situação. Nessa perspectiva, a diferença encontrada no tamanho das redes entre estudos realizados com mulheres em situação de violência pode estar relacionada ao momento em que a situação de violência foi revelada e/ou ao fato de terem ou não passado por uma casa-abrigo. Isto se evidencia na medida em que, por meio dos relatos das participantes deste estudo, observou-se que a proposta de acolhimento na casa-abrigo favoreceu o resgate e rearticulação com as redes sociais significativas das abrigadas.

Para Sluzki (2003Sluzki, C. E. (2003). A rede social na prática sistêmica: Alternativas terapêuticas. Casa do Psicólogo.), as redes médias são mais efetivas em termos de ajuda do que as redes numerosas ou pequenas. O autor aponta que redes numerosas podem correr o risco de serem inefetivas, pelas pessoas suporem que alguém esteja cuidando do problema. Já nas redes pequenas, pode haver sobrecarga e consequente afastamento da pessoa que está passando por uma situação de crise. Assim, as redes de tamanho médio favorecem o diálogo e o desempenho de diferentes funções entre seus membros, na busca por estratégias de resolução do problema (Sluzki, 2003Sluzki, C. E. (2003). A rede social na prática sistêmica: Alternativas terapêuticas. Casa do Psicólogo.).

No que se refere à composição, houve predomínio de pessoas da rede da família (50 membros), seguida pela comunidade (29 membros e 2 grupos), amizades (15 membros) e relação de trabalho ou estudo (10 membros), totalizando 104 membros e 2 grupos (vizinhos e igreja). A busca por familiares, amigos, vizinhos e colegas de trabalho frente à situação de violência também ocorreu em outros estudos (Taket et al., 2014Taket, A., O’Doherty, L., Valpied, J., & Hegarty, K. (2014). What do Australian women experiencing intimate partner abuse want from family and friends? Qualitative Health Research, 24(7), 983-996. doi: 10.1177/1049732314540054
https://doi.org/10.1177/1049732314540054...
; Vieira et al., 2015Vieira, L. B., Souza, I. E. O., Tocantins, F. R., & Pina-Roche, F. (2015). Apoio à mulher que denuncia o vivido da violência a partir de sua rede social. Rev. Latino-Am. Enfermagem, 23(5), 865-873. doi: 10.1590/0104-1169.0457.2625
https://doi.org/10.1590/0104-1169.0457.2...
), sendo os familiares as pessoas mais procuradas. Destes, as participantes esperavam que fossem escutadas, compreendidas, respeitas e não julgadas (Taket et al., 2014Taket, A., O’Doherty, L., Valpied, J., & Hegarty, K. (2014). What do Australian women experiencing intimate partner abuse want from family and friends? Qualitative Health Research, 24(7), 983-996. doi: 10.1177/1049732314540054
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).

No que tange à dispersão, ou seja, ao grau de compromisso relacional, em todos os quadrantes, a maior parte (55 pessoas e 1 grupo) esteve distribuída no primeiro círculo, o de maior intimidade, conforme mostra a Figura 2. Nas relações intermediárias, foram 36 membros e, nas relações ocasionais, 13 pessoas e 1 grupo. Isso indica que a maior parte dos membros da rede são pessoas com as quais as participantes têm uma relação íntima, de proximidade. Quanto maior o grau de intimidade, mais fácil é o acesso da pessoa aos membros da sua rede e mais rápida é a resposta ao pedido de ajuda. Uma rede intermediária ou com muitas relações ocasionais dificulta a busca por ajuda e a eficácia de resposta (Sluzki, 2003Sluzki, C. E. (2003). A rede social na prática sistêmica: Alternativas terapêuticas. Casa do Psicólogo.). Os resultados deste estudo evidenciaram que o fato de ter maior número de pessoas distribuídas no primeiro círculo favorece o acesso aos membros como recursos a serem acionados frente a situações de crise.

Figura 2: ”
Mapa de Redes Geral

Das funções mencionadas, houve predomínio do apoio emocional, atribuído pelas participantes a 80 membros e caracterizado por terem com quem desabafar, se sentir ouvidas e estabelecerem relações afetivas. A segunda função mais citada foi a de guia cognitivo e de conselhos (42 membros), representada pela ajuda na tomada de decisão referente aos filhos e/ou outra situação pessoal, além de aconselhar a não se submeter à violência novamente, a denunciar o autor de violência se necessário e a buscar ajuda na secretaria de assistência social. A função de ajuda material e de serviços foi desempenhada por 28 membros e esteve vinculada principalmente ao cuidado com os filhos e à ajuda financeira. As demais funções da rede - companhia social, regulação social e acesso a novos contatos - foram ofertadas pelo total de 39 membros e serão descritas nas demais categorias.

No que tange à multidimensionalidade, 61 pessoas e 2 grupos desempenharam mais de uma função. Isso significa que foram atribuídas mais de uma função a um terço do total de pessoas das redes das participantes, promovendo a versatilidade nos vínculos. Esse resultado revela que houve a identificação, por parte das mulheres, das qualidades específicas presentes em cada relação e que podem ser acionadas como recursos para o enfrentamento de situações de violência ou outras situações de crise. Cabe lembrar que os membros de uma rede e as funções apontadas no Mapa são uma escolha pessoal, com base na experiência de vida, na história da relação e na qualidade dos vínculos estabelecidos entre a pessoa e os integrantes de sua rede, de acordo com o momento de vida.

Diante do exposto, os resultados apresentados permitem evidenciar que, se por um lado é positivo que um membro da rede desempenhe mais de uma função, por outro, em termos de intervenção profissional, é preciso estar atento para que os membros não estejam sobrecarregados com múltiplas funções. Nesse sentido, pontua-se que os profissionais podem auxiliar mulheres em situação de violência a reconhecerem as funções a serem desempenhadas por outras pessoas da sua rede, promovendo, assim, a multidimensionalidade dos vínculos e evitando a sobrecarga de alguns membros.

Rede da Família

Esta categoria apresenta elementos referentes ao vínculo estabelecido entre as mulheres ex-abrigadas e as pessoas da sua rede familiar, bem como as funções desempenhadas pelos membros dessa rede desde a saída das participantes da casa-abrigo. No conjunto de quadrantes do Mapa de Redes, a família foi o grupo com maior número de integrantes com base nos Mapas Individuais de todas as participantes, exceto da Participante 2, que mencionou mais pessoas da casa-abrigo do que da família.

A forma de contato entre as participantes e algumas pessoas da sua rede familiar ocorria, principalmente, por telefone, WhatsApp e Facebook, por meio dos quais recebiam apoio emocional e conselhos de familiares que viviam em outras cidades. Ainda que a distância física da rede afete a eficácia e rapidez de resposta diante de um problema vivenciado (Sluzki, 2003Sluzki, C. E. (2003). A rede social na prática sistêmica: Alternativas terapêuticas. Casa do Psicólogo.), esses meios de comunicação utilizados para contatar a família possibilitaram às mulheres interagirem com as pessoas e receberem apoio. Observou-se, ao longo da construção dos Mapas de Redes, que as participantes mencionaram os membros de sua rede de acordo com o grau de proximidade afetiva, não necessariamente de proximidade física.

Dentre as pessoas citadas, destacaram-se os filhos(as), os irmãos, a mãe e o pai. A principal função desempenhada por esses membros foi a de apoio emocional, por meio da escuta, acolhimento e palavras de incentivo. A família extensa foi representada pelos tios, sobrinhos, netos e avós, colocados nos dois últimos círculos do Mapa. Às pessoas da família, foram atribuídas as funções de apoio emocional, companhia social e ajuda material e de serviços, tal como nos estudos de Gomes et al. (2015Gomes, N. P., Diniz, N. M. F., Reis, L. A., & Erdmann, A. L. (2015). Rede social para o enfrentamento da violência conjugal: Representações de mulheres que vivenciam o agravo. Texto & Contexto Enfermagem, 24(2), 316-324. doi: 10.1590/0104-07072015002140012
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) e Sylaska e Edwards (2014Sylaska, K. M., & Edwards, K. M. (2014). Disclosure of intimate partner violence to informal social support network members: A review of the literature. Trauma, Violence and Abuse, 15(1), 3-21. doi: 10.1177/1524838013496335
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). Conforme apontam Gomes et al. (2015), a participação dos familiares como membros da rede de mulheres em situação de violência faz com que tenham sensação de bem-estar, ameniza o sofrimento e as fortalece para buscar soluções para o problema. Já a falta de apoio da família dificulta o processo de ruptura e enfrentamento da violência.

Cabe apontar que, após a saída da casa-abrigo, pais, mães, irmãos e avós também foram referidos como importantes por oferecerem conselhos às participantes quando precisaram tomar decisões em torno de mudanças de trabalho e de moradia. A família de origem auxiliou, ainda, com ajuda material e de serviços ao acolherem as mulheres em suas casas até elas conseguirem se reorganizar financeiramente. Esses resultados mostram que a rede da família esteve entre as estratégias bem-sucedidas para o enfrentamento da violência utilizada pelas mulheres em busca de apoio emocional e ajuda material, tal como no estudo de Alencar-Rodriguez e Cantera (2014Alencar-Rodriguez, R., & Cantera, L. M. S. (2014). Cómo mujeres inmigrantes enfrentan la violencia en la relación de pareja? Estudos de Psicologia, 19(1). doi:10.1590/S1413-294X2014000100002
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).

Cinco participantes colocaram em seus Mapas de Redes Individuais os atuais companheiros, sejam estes de novos relacionamentos ou os mesmos com quem estavam quando foram para a casa-abrigo (autor da violência). As funções atribuídas a eles foram apoio emocional, companhia social, ajuda material e de serviços, sobretudo no que se refere aos cuidados com os filhos (comida, banho, levar para a escola), além da função de regulação social, conforme ilustra o relato a seguir:

Ele [novo namorado] é meu companheiro, meu parceiro, tá comigo assim, como eu posso dizer... eu sei que ele quer o meu bem, ele quer ver eu bem, ele quer ver eu crescer, ele me apoia, ele pega no meu pé se eu tô errada também. Eu mudei muito depois que eu conheci ele, até em relação a mim, a olhar com outros olhos e a me dar valor realmente (P5, 34 anos, abrigada por 12 dias).

Na rede da família, a função de companhia social foi pouco citada e observou-se que as participantes se referiam a ela sendo desempenhada por filhos(as), netos e sobrinhos(as) como forma de distração, o que as ajudavam a esquecer de eventuais problemas pelos quais pudessem estar passando. A regulação social foi outra função pouco mencionada, referindo-se ao questionamento de comportamentos das participantes junto aos conselhos ofertados pelos companheiros, mãe e filhos. Com base nesses resultados, considera-se que os diálogos ocorridos entre as mulheres e sua família geraram reflexões e problematizações que favoreceram algum tipo de mudança de comportamento e a busca por estratégias para o enfrentamento de situações difíceis que vivenciavam em seu cotidiano. O fato de essa função ter sido pouco citada indica que, nas relações das participantes com os membros de suas redes, são priorizadas as funções mais voltadas ao afeto em detrimento à regulação social. Isso evidencia aos profissionais uma lacuna a ser trabalhada com as mulheres, a fim de identificar pessoas da sua rede de relações que poderiam desempenhar esta função para auxiliá-las em seus problemas cotidianos.

Ainda que houvesse um pedido às participantes para identificar as funções das redes, durante a coleta de dados, a função de acesso a novos contatos foi a única não aludida à rede da família. Considera-se que a referida função pode estar presente junto aos conselhos/indicações de ajuda que ocorreram, eventualmente, durante as conversações com a família e não ter sido identificada pelas participantes, quando questionadas.

De acordo com os relatos, no período que antecedeu a ida para a casa-abrigo, as mulheres estavam afastadas de seus familiares e/ou não recebiam apoio, seja por não falarem sobre a situação de violência, seja porque a família não acreditava ao contarem sobre as agressões sofridas. Conforme apontam os resultados do estudo de Carneiro et al. (2020Carneiro, J. B., Gomes, N. P., Estrela, F. M, Paixão, G. P. N., Romano, C. M. C., & Mota, R. S. (2020). Desvelando as estratégias de enfrentamento da violência conjugal utilizada por mulheres. Texto & Contexto Enfermagem, 29, 1-11. doi:10.1590/1980-265x-tce-2018-0396
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), realizado com 29 mulheres em situação de violência, atendidas em duas Varas da Justiça e Paz em Casa, a falta de apoio da família, seja ele emocional e/ou financeiro, pode resultar na permanência ou no retorno da relação com o autor da violência. Nesse sentido, deve-se ter em conta que o apoio vindo da família das participantes do presente estudo ocorreu após a saída da casa-abrigo. Assim, acredita-se que o fato de as mulheres terem sido acolhidas em uma casa-abrigo pode ter contribuído tanto para a revelação da violência quanto para os familiares acreditarem no problema por elas vivenciado.

Observou-se que a disponibilidade dos membros da família, ao exercerem suas funções auxiliando as participantes após a experiência de abrigamento, favoreceu a abertura de portas para a re-conexão das mulheres e seus familiares, antes impossibilitada pelo afastamento provocado pela situação de violência. Diante do exposto, em termos de intervenção profissional, os resultados apresentados chamam a atenção para a importância de se estar atento à característica de dispersão das redes e funções desempenhadas por seus membros, pois isto auxilia na compreensão da dinâmica estabelecida entre as mulheres e seus familiares, sendo possível visualizar formas de contato e pessoas capazes de oferecer ajuda em momentos de difíceis.

Rede das Amizades

Esta categoria reúne um conjunto de elementos referentes às funções desempenhadas pelas(os) amigas(os) das participantes. A rede de amizade foi composta por 15 membros distribuídos nos 3 círculos do Mapa, sendo 9 alocados no primeiro círculo, de maior intimidade. Na construção dessa rede, duas participantes não citaram nenhuma pessoa e o maior número de amigas(os) mencionadas(os) individualmente totalizou quatro. Ainda que tenham sido apontados poucos membros nesse quadrante, as participantes relataram ter oportunidade de conhecer pessoas e fazer novas amizades desde que saíram da casa-abrigo. Outras, por sua vez, disseram que permaneceram em suas vidas aqueles “considerados verdadeiros”.

Na Rede de Amizades, observou-se predomínio de mulheres (13) em detrimento aos homens (2), o que também foi identificado no estudo de Katerndahl et al. (2013Katerndahl, D., Burge, S., Ferrer, R., Becho, J., & Wood, R. (2013). Differences in social network structure and support among women in violent relationships. Journal of interpersonal violence, 28(9), 1948-1964. doi: 10.1177/0886260512469103
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), em que as mulheres tinham mais amigas e consideravam o apoio oferecido por elas como mais efetivo. Na pesquisa de Rocha et al. (2019Rocha, R. Z., Galeli, P. R., & De Antoni, C. (2019). Rede de apoio social e afetiva de mulheres que vivenciaram violência conjugal. Contextos Clínicos, 12(1), 124-152. doi: 10.4013/ctc.2019.121.06
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), as amigas foram aquelas que incentivaram a denúncia da situação de violência e estiveram com as mulheres na delegacia, bem como as acompanharam a lugares públicos, para protegê-las do autor da violência. Disto, destacam-se as características homogêneas entre as mulheres e suas amigas, tais como ser do mesmo sexo, ter idade aproximada, estarem na mesma fase do ciclo vital (com filhos pequenos), o que pode favorecer a identificação com a situação vivenciada pelas participantes e resultar na proximidade relacional e oferta de apoio (Sluzki, 2003Sluzki, C. E. (2003). A rede social na prática sistêmica: Alternativas terapêuticas. Casa do Psicólogo.). Além disso, a competência do amigo refere-se às questões afetivas, no sentido de compartilhar as alegrias e dores do outro, guardar segredo, ser leal e até tomar distância quando julgar necessário (Gomes et al., 2015Gomes, N. P., Diniz, N. M. F., Reis, L. A., & Erdmann, A. L. (2015). Rede social para o enfrentamento da violência conjugal: Representações de mulheres que vivenciam o agravo. Texto & Contexto Enfermagem, 24(2), 316-324. doi: 10.1590/0104-07072015002140012
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).

Os dois homens mencionados na rede de amizade das participantes já eram seus amigos antes delas irem para a casa-abrigo. O número reduzido de amigos homens pode estar relacionado ao isolamento social vivenciado pelas mulheres durante a relação com o autor da violência, aos ciúmes por parte do companheiro e/ou à falta de confiança em homens, tendo em vista a situação de violência pela qual passaram. Mesmo tendo poucos amigos homens, estes desempenharam funções importantes para as participantes, como a de apoio emocional caracterizadas por se sentir ouvida, “ter com quem desabafar” e “contar para o que for preciso em todas as horas”. Outras funções mencionadas foram a de regulação social e guia cognitivo e de conselhos, principalmente em torno da relação com o parceiro, conforme ilustra a narrativa a seguir:

Ele [amigo] é companheiro assim, quando a gente precisa de alguma coisa eu vou falar com ele que eu sei que ele vai me dizer o que tem que fazer, que ele vai pegar no meu pé, ele vai dizer que tô errada, ele não fala ah não, vou fazer pra agradar entendeu? Ele fala o que tem que ser dito (P5, 34 anos, abrigada por 12 dias).

A Rede de Amizade em si também ofereceu ajuda material e de serviços por meio de auxílio financeiro, acolhimento das mulheres na própria residência e cuidado com seus filhos. Também às pessoas dessa Rede foi atribuída a função de companhia social, ao proporcionarem momentos de descontração estando junto às mulheres. O acesso a novos contatos foi caracterizado pela apresentação de novos amigos, além de receber a indicação para um novo emprego. Nessa direção, a pesquisa de Sylaska e Edwards (2014Sylaska, K. M., & Edwards, K. M. (2014). Disclosure of intimate partner violence to informal social support network members: A review of the literature. Trauma, Violence and Abuse, 15(1), 3-21. doi: 10.1177/1524838013496335
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) revela que, em alguns casos, amigos são as primeiras pessoas buscadas pelas mulheres para compartilhar a situação de violência e que consideram as funções de apoio emocional e os conselhos as mais úteis. Indo ao encontro desses resultados, os amigos mencionados pelas participantes dos estudos de Krenkel et al. (2015Krenkel, S., Moré, C. L. O. O., & Motta, C. C. L. (2015). The significant social networks of women who have resided in shelters. Paidéia, 25(60), 125-133. doi: 10.1590/1982-43272560201515
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) e de Vieira et al. (2015Vieira, L. B., Souza, I. E. O., Tocantins, F. R., & Pina-Roche, F. (2015). Apoio à mulher que denuncia o vivido da violência a partir de sua rede social. Rev. Latino-Am. Enfermagem, 23(5), 865-873. doi: 10.1590/0104-1169.0457.2625
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) foram os principais incentivadores para que as mulheres denunciassem a situação de violência e buscassem ajuda na rede de suporte social.

Nesta pesquisa, em termos numéricos, a rede de amizades pode ser considerada uma rede pequena, em que houve predomínio de mulheres, com alto grau de intimidade e compromisso relacional e que desempenharam principalmente as funções de apoio emocional e guia cognitivo e de conselhos. Destacou-se pela qualidade da relação em termos de proximidade e no desempenho das funções que foram efetivas diante da situação pela qual as mulheres passaram. De acordo com as participantes, o número reduzido ocorre por considerarem a qualidade do vínculo e não pela quantidade de pessoas em si. Outro aspecto a ser pontuado é que, após saírem da casa-abrigo e/ou se separarem do companheiro, as mulheres disseram que se tornaram mais seletivas no estabelecimento de novas relações amorosas, de trabalho ou amizade, por terem mais dificuldades em confiar nas pessoas.

Conforme apontam Terra et al. (2015Terra, M. F., D´Oliveira, A. F. P. L., & Schraiber, L. B. (2015). Medo e vergonha como barreiras para superar a violência doméstica de gênero. Athenea Digital, 15(3), 109-125. doi: 10.5565/rev/athenea.1538
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), o medo de confiar nas pessoas e de ser traída consiste em uma das barreiras no desenvolvimento das relações interpessoais de mulheres que sofreram violência por parceiro íntimo. Um ambiente que proporciona acolhimento e respeito favorece a abertura para uma relação de confiança. Na medida em que as mulheres que estiveram em situação de violência se sentem compreendidas em sua história de vida, o grau de proximidade e a qualidade do vínculo também se modificam. Em termos profissionais, os resultados desta categoria permitem afirmar que as relações estabelecidas com a rede de amizades, junto às funções desempenhadas por seus membros, podem ser incorporadas ao conjunto de estratégias de intervenção profissional. Disso decorre a importância de mapear as pessoas significativas da vida dessas mulheres e a qualidade do vínculo relacional que existe entre si.

Rede da Comunidade

Esta categoria reuniu elementos sobre o vínculo estabelecido entre as participantes e as pessoas da comunidade em geral (vizinhos, credo religioso), serviços de saúde e assistenciais e da casa-abrigo. Traz à tona, também, as características estruturais dessa Rede e as funções atribuídas às pessoas do contexto comunitário.

Em termos de tamanho, a Rede da Comunidade foi a segunda mais numerosa, com 29 membros e 2 grupos (vizinhos e pessoas da igreja). As pessoas que compuseram essa rede estão distribuídas principalmente nos dois primeiros círculos e apenas uma participante não citou ninguém da comunidade em seu Mapa. Do credo religioso, foi mencionado o bispo, frequentadores e dirigentes da igreja, como um grupo que oferece apoio emocional e conselhos, além de auxiliar com roupas e comida após a saída da casa-abrigo. Segundo Gomes et al. (2015Gomes, N. P., Diniz, N. M. F., Reis, L. A., & Erdmann, A. L. (2015). Rede social para o enfrentamento da violência conjugal: Representações de mulheres que vivenciam o agravo. Texto & Contexto Enfermagem, 24(2), 316-324. doi: 10.1590/0104-07072015002140012
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), dentre os objetivos das organizações religiosas está dar apoio às pessoas, o que faz com que se sintam valorizadas e aceitas pelo grupo. Adicional a isso, na presente pesquisa, o fato de as participantes mencionarem integrantes da igreja pode sinalizar que estas visualizam pessoas que lhes trazem benefícios emocionais, as quais podem ser acessadas mais facilmente frente a uma situação de dificuldade.

Os vizinhos foram apontados como pessoas significativas no Mapa de uma única participante que, antes de ir para a casa-abrigo, não se relacionava com nenhum deles, impedida pelo ex-companheiro. Após sair da casa-abrigo e se separar, os vizinhos passaram a se aproximar dela. A comunicação entre eles ocorria de duas formas: pessoalmente, tendo como função o apoio emocional e pelo WhatsApp, meio pelo qual avisavam quando iam viajar e pediam para olhar as casas uns dos outros ou solicitavam ajuda para uma situação prática/material específica. Esses resultados evidenciam a possibilidade e capacidade da participante construir uma rede antes inexistente, mostrando que os vizinhos podem ser ou se tornar um recurso de proteção emocional e material. O presente estudo avança em relação à pesquisa de Netto et al. (2017Netto, L. A., Moura, M. A. V., Queiroz, A. B. A., Leite, F. M. C., & Silva, G. F. (2017). Isolamento de mulheres em situação de violência pelo parceiro íntimo: Uma condição em redes sociais. Escola Anna Nery, 21(1). doi: 10.5935/1414-8145.20170007
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) que trata sobre a situação de isolamento social vivenciado por mulheres em situação de violência, quanto à possibilidade de resgate da rede. Cabe apontar que as participantes desta pesquisa passaram por uma casa-abrigo, em que as práticas profissionais nela realizadas podem ter contribuído para a reaproximação com os membros de suas redes e visibilização de pessoas a serem acionadas em momentos futuros, uma vez que as mulheres precisariam de ajuda e apoio quando saíssem do local.

Quando saíram da casa-abrigo, foi oferecido às participantes atendimentos psicológico e assistencial no CREAS, bem como entregue números de telefone da casa-abrigo e da secretaria de assistência social, caso precisassem de informações ou ajuda em algum momento. Três das seis participantes foram atendidas por estes profissionais pelo tempo aproximado de um ano. Após, foram encaminhadas para atendimento em algum dos setores da rede de proteção próximo às suas residências. As participantes que não foram atendidas disseram que não achavam necessário naquele momento. Nessa perspectiva, no que se refere aos serviços de saúde e assistenciais, as mulheres ex-abrigadas colocaram em seus Mapas psicólogas(os) e assistentes sociais do CREAS. As funções mencionadas foram as de apoio emocional, acesso a novos contatos (ao encaminhar as mulheres para outros profissionais e/ou CREAS) e ajuda material, com doação de comida, auxílio com transporte e financeiro.

Indo ao encontro desses resultados, o estudo de Rosa e Nascimento (2018Rosa, N. F, & Nascimento, C. R. R. (2018). O CREAS PAEFI na perspectiva de mulheres vítimas de violência e profissionais: uma análise a partir da Teoria Bioecológica do Desenvolvimento Humano. Psicologia em Revista, 24(3), 661-685. doi: 10.5752/P.1678-9563.2018v24n3p661-685
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) revela que o CREAS é um importante local na promoção de mudanças das mulheres que sofrem violência, apontando como positiva a relação entre profissionais e usuárias do serviço. Nessa direção, a inclusão de profissionais da assistência social e da casa-abrigo e respectivas funções nos Mapas das participantes desta pesquisa mostra o quanto as (os) consideravam pessoas significativas, que auxiliaram no seu fortalecimento para enfrentar a situação de violência.

No que concerne às pessoas da casa-abrigo, foram citadas: uma colega ex-abrigada, a coordenadora, as educadoras, a cozinheira e o motorista do local, somando 19 pessoas. A forma de contato entre as mulheres e os membros dessa Rede ocorria via Facebook, por telefone ou pessoalmente, ao fazerem parte do almoço de Natal proporcionado todos os anos pela instituição. No Mapa da Participante 2, a subdivisão da casa-abrigo foi a mais numerosa. Pondera-se que esta participante que mantinha a relação com o autor da violência retornou para a casa-abrigo. Disse que realizou a denúncia por saber que “teria para onde ir”, o que revela efetividade da casa-abrigo em termos de segurança e proteção. As participantes relataram que se sentiram acolhidas, ouvidas e apoiadas pelas profissionais da casa-abrigo, além de terem recebido conselhos que passaram a seguir após saírem do local:

Quando a gente vai pra lá, a gente não acredita que tem vida, eu não enxergava uma luz no final do túnel. Depois, conversando com uma pessoa e conversando com outra, todas as pessoas me mostravam um caminho. Então, quando eu saí de lá eu vi que tinha um mundo, que tinha um mundo aqui fora e que eu não tava enxergando. Então pra mim foi muito importante, pra minha vida, o fato de eu ter passado pelo abrigo “casa-abrigo”. Se eu tô bem hoje é graças à minha passagem por lá (P1, 45 anos, abrigada por 53 dias).

De acordo com os relatos das participantes, o trabalho desenvolvido pelas(os) profissionais da casa-abrigo gerou reflexões sobre suas próprias vidas e ajudou a recuperarem a autonomia e autoestima, além de se reaproximarem de alguns familiares. De acordo com Campos (2005Campos, E. P. (2005). Quem cuida do cuidador. Uma proposta para os profissionais da saúde. Vozes.), a qualidade e a forma de relacionamento entre profissionais e usuárias de um serviço são determinantes para o sentimento de proteção e acolhimento.

O fato de terem mencionado em seus Mapas profissionais da assistência social e da casa-abrigo e, em contrapartida, não terem citado nenhum profissional vinculado a instituições de saúde requer reflexões sobre a necessidade de uma formação qualificada e de intervenções interdisciplinares e intersetoriais, em que o trabalho conjunto possa favorecer as práticas assistenciais em torno das situações de violência nos diferentes níveis de proteção social. É por meio da articulação entre os serviços assistências e de saúde que se torna possível o trabalho com as mulheres em situação de violência, a fim de promover mudanças e ajudá-las na reconstrução de suas vidas (Rosa & Nascimento, 2018Rosa, N. F, & Nascimento, C. R. R. (2018). O CREAS PAEFI na perspectiva de mulheres vítimas de violência e profissionais: uma análise a partir da Teoria Bioecológica do Desenvolvimento Humano. Psicologia em Revista, 24(3), 661-685. doi: 10.5752/P.1678-9563.2018v24n3p661-685
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).

Rede do Trabalho e/ou Estudos

A presente categoria congregou elementos em torno das características estruturais, vínculos estabelecidos entre as participantes e os membros da sua rede de trabalho e/ou estudos, bem como as funções atribuídas a eles. Quanto ao tamanho, esta foi a Rede com menos integrantes (10). Cabe lembrar que três das seis participantes (P1, P2 e P5) não estavam trabalhando ou estudando no momento da entrevista. Nas relações de estudos, foram mencionadas uma professora e duas colegas. As funções desempenhadas por elas foram apoio emocional e guia cognitivo e de conselhos. Nas relações de trabalho, as participantes citaram chefes e colegas e, adicional às funções já descritas, está a de regulação social.

A gente [colega de trabalho] conversa bastante, ela me dá conselhos, diz que se acontecer de novo qualquer coisa semelhante ao que já havia acontecido que é pra eu sempre prestar atenção. E ela foi uma das pessoas que invés de me criticar ou me apontar, ela simplesmente me ouviu (P6, 23 anos, abrigada por 36 dias).

Relacionado ao número reduzido de pessoas nesse quadrante da Rede, pode-se supor que, conforme descrito na pesquisa de Krenkel et al. (2015Krenkel, S., Moré, C. L. O. O., & Motta, C. C. L. (2015). The significant social networks of women who have resided in shelters. Paidéia, 25(60), 125-133. doi: 10.1590/1982-43272560201515
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), as mulheres em situação de violência não se sentiam à vontade para falar sobre sua vida pessoal no ambiente de trabalho, por vergonha ou medo de serem julgadas. Por outro lado, os resultados da referida pesquisa também mostraram que, quando souberam da situação de violência, chefes e colegas de trabalho auxiliaram as mulheres financeiramente, com adiantamento de férias e doando móveis, o que revela a capacidade dos membros desta Rede em ajudar as mulheres em situação de violência.

Diante do exposto, os resultados desta categoria evidenciaram, por um lado, uma rede de tamanho pequeno no contexto de trabalho e/ou estudos. Por outro, mostrou que as relações estabelecidas podem configurar vínculos efetivos, como recursos atuais ou futuros, no enfrentamento de situações cotidianas difíceis. Nesse sentido, em termos de intervenção profissional, os resultados evidenciam que a rede de trabalho e/ou estudo pode ser uma aliada nas ações de cuidado, uma vez que as relações de confiança estabelecidas nesse contexto podem auxiliar nas necessidades emocionais e financeiras de mulheres que estão em situação de violência.

Com base na análise de todas as categorias, as principais funções mencionadas pelas participantes em relação aos membros de sua rede social significativa foram as de apoio emocional, ajuda material e de serviços e guia cognitivo e de conselhos. Quanto às especificidades do tipo de ajuda ofertada pelos membros da Rede, em todos os quadrantes do Mapa o apoio emocional ocorreu por meio da escuta, do acolhimento, do apoio e da disponibilidade para ouvir. Ao analisar como a função de guia cognitivo e de conselho foi desempenhada, observou-se que a ajuda oferecida pela família esteve voltada ao cotidiano das mulheres, por meio de conselhos sobre trabalho e moradia. Já os conselhos vindos da rede de amizades e do trabalho e/ou estudo referiram-se à denúncia e busca por ajuda frente a uma nova situação de violência, tal como nos estudos de Alencar-Rodriguez e Cantera (2014Alencar-Rodriguez, R., & Cantera, L. M. S. (2014). Cómo mujeres inmigrantes enfrentan la violencia en la relación de pareja? Estudos de Psicologia, 19(1). doi:10.1590/S1413-294X2014000100002
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) e Krenkel et al. (2015Krenkel, S., Moré, C. L. O. O., & Motta, C. C. L. (2015). The significant social networks of women who have resided in shelters. Paidéia, 25(60), 125-133. doi: 10.1590/1982-43272560201515
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).

Quanto à função de ajuda material e de serviços, o ponto comum é que as redes da família e das amizades contribuíram com o cuidado dos filhos das participantes do estudo, além de acolherem as mulheres em suas casas. A participação da comunidade quanto a esse tipo de ajuda esteve voltada ao oferecimento de recursos financeiros, pelos serviços assistenciais, enquanto que os vizinhos ofereceram ajuda material principalmente com a casa.

Diante disso, os resultados deste estudo permitem afirmar que as funções desempenhadas pela rede da família se referiram mais a questões pragmáticas, para o restabelecimento das mulheres em termos de moradia, trabalho e relação com os filhos. As demais redes (amizade, comunidade e trabalho e/ou estudo) desempenharam suas funções voltadas ao cuidado e proteção da mulher, no intuito de produzir rupturas em torno de situações de violência atuais ou futuras. No que tange à prática profissional, estes resultados mostram a importância de conhecer a especificidade de cada função, ou seja, o tipo de ajuda que os membros das redes podem oferecer, para que seja possível pensar em diferentes estratégias de intervenção, visando atender às necessidades das mulheres em situação de violência, com base nos recursos que a rede disponibiliza para ajudá-las.

Considerações finais

O presente estudo procurou compreender as características estruturais e funções atribuídas às redes sociais significativas de mulheres ex-abrigadas por situação de violência. Pode-se considerar que as pessoas que compõem as redes das participantes foram um importante recurso para o enfrentamento da violência e para seu processo de reinserção social. O ineditismo e avanço deste estudo, no contexto da produção de conhecimento, ocorrem na medida em que não foram encontradas pesquisas sobre as especificidades das redes de mulheres que estiveram abrigadas, anos após a experiência de abrigamento. Por meio da reaproximação e do acompanhamento das participantes, foi possível conhecer e aprofundar as singularidades presentes nas funções desempenhadas pelos membros que compõem suas redes, o que torna possível criar estratégias de atuação profissional.

O estudo mostrou que a passagem pela casa-abrigo e as intervenções realizadas contribuíram tanto para que as participantes nomeassem as(os) profissionais em seus Mapas, mesmo após terem saído do local, quanto para resgatarem e ressignificarem a qualidade relacional com os membros da sua rede, principalmente com a família. Cabe apontar, ainda, o papel das mídias sociais digitais (WhatsApp, Facebook) utilizadas como espaços de comunicação e interação social para retomar ou manter o contato das participantes com as pessoas da sua rede.

A complexidade presente nos contextos de violência muitas vezes impede ou impossibilita que os envolvidos identifiquem recursos que os auxiliem a sair dessa situação. Assim, em termos metodológicos, o Mapa de Redes favoreceu a visualização dos membros das redes e do vínculo relacional estabelecido com as participantes, sobretudo no que se refere às funções desempenhadas. Nesse sentido, o Mapa de Redes também pode ser utilizado como uma ferramenta de intervenção profissional efetiva, pois permite visualizar pessoas das redes capazes de auxiliar no cuidado de mulheres e famílias em situação de violência.

Dentre as limitações desta pesquisa, aponta-se para a dificuldade de encontrar as participantes após três anos desde a saída da casa-abrigo. A este fato, está relacionada a mudança de número de telefone e endereço, que ocorre comumente para as mulheres se afastarem do autor da violência, resultando também na perda de contato com a própria Secretaria de Assistência Social do município. Tendo em vista que o objetivo das políticas públicas é criar ações e medidas que visam prevenção, enfrentamento e eliminação de problemas sociais e que a ausência de redes pode ser um indicador de retorno ou manutenção da situação de violência, faz-se necessário o aperfeiçoamento dos programas de acompanhamento de mulheres que vivenciaram situação de violência, a fim de oferecer proteção e possibilitar a promoção da saúde, por meio da articulação dos diferentes setores da rede de suporte social.

No marco da caracterização desse estudo como qualitativo, tendo em conta o contexto como um gerador de significado e as diferenças socioculturais e institucionais existentes, sugere-se que novas pesquisas sejam realizadas com mulheres que estiveram em outras casas-abrigo, de diferentes regiões do país. Da mesma forma, estudos longitudinais, de acompanhamento de mulheres que passaram por situações extremas de violência, podem ser úteis tanto para a prevenção de novos /outros episódios de violência quanto para a prática profissional, tendo em vista a possibilidade de conhecer os recursos utilizados por elas e com isso ampliar as estratégias de prevenção do problema. Considera-se, ainda, que os resultados do presente estudo podem subsidiar reflexões sobre a formação e práticas profissionais quanto à necessidade de acompanhamento efetivo de mulheres que estiveram abrigadas e planejamento de ações e medidas para o enfrentamento da violência contra a mulher, sustentadas na visibilização e funções desempenhadas pelos membros da sua rede social significativa.

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  • * Apoio: CNPq e CAPES

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Out 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    19 Maio 2017
  • Aceito
    27 Abr 2018
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