SILVA, Kelly, PALMER, Lisa, CUNHA, Teresa. Introduction. In: Economic Diversity in Contemporary
Timor-Leste. Leiden University Press, 2023.
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SILVA, Kelly, PALMER, Lisa, CUNHA, Teresa. Introduction.
In: Economic Diversity in Contemporary Timor-Leste.
Leiden University Press, 2023.
Marina Puzzilli Comin
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Orcid: https://orcid.org/0009-0007-3184-5785
1. Introdução
A coletânea de artigos apresenta discussões sobre transformações econômicas em Ti-
mor-Leste, país do sudeste asiático, e como estas se relacionam com as mudanças na vida social
como um todo. É demonstrado que falar de vida econômica em Timor-Leste é também falar da
vida religiosa, das relações entre a população e instituições tanto estatais quanto de mercado
, de migrações laborais, de organização urbana e de terras, de alimentação, entre outras di-
versas esferas da vida social, que também se alteram juntamente com a economia. O livro é
uma importante contribuição ao campo da Antropologia Econômica.
A obra joga luz sobre as práticas econômicas tradicionais em Timor, que em geral ten-
dem a ser invisibilizadas pelos dados oficiais produzidos pelo estado timorense, visto que bus-
cam construir uma narrativa oficial da existência de uma única economia de mercado nacional.
Os autores objetivam demonstrar a heterogeneidade da produção econômica em Timor e, para
isso, não se limitam à ideia de produção capitalista e mercadológica, que esta lógica, presente
na produção de dados estatais, acaba homogeneizando práticas econômicas das mais variadas.
O livro está dividido em três partes: 1) contextos econômicos coloniais; 2) dinâmicas
econômicas locais (rituais, casas e comunidades); 3) transformações econômicas (importadas),
e é composto por 14 capítulos de diferentes autorias, além da introdução das organizadoras.
Ainda que estejam divididos em eixos, os capítulos são conectados entre si por demonstrarem
ecologias econômicas que contribuem para uma argumentação de não hegemonia do capita-
lismo, como defendido por Gibson e Graham (1996). Duas linhas de análise podem ser identi-
ficadas na obra, sendo elas as relações econômicas, mas também relações entre pessoas e insti-
tuições, seja com o estado timorense em diversos períodos colônia portuguesa, ocupação in-
donésia e independência e redemocratização , seja com estados de outros países.
Nesta resenha, apresentarei algumas discussões que apontam para o fato de que as re-
configurações promovidas pelos governos foram feitas com o objetivo de expandir uma lógica
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Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social na Universidade de Brasília (UnB), bacharel
em Antropologia e licenciatura em Ciências Sociais pela mesma universidade. E-mail: mari.pcomin@gmail.com
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capitalista de produção de forma a tentar desenraizar a economia. Ou seja, isolar a vida econô-
mica, o que levou a alterações sociais.
Em seguida, também apresentarei a lógica contrária, isto é, como alterações sociais pro-
movidas pelas diferentes governamentalidades (Foucault, 1979) que também ocasionaram
transformações econômicas. Em suma, demonstrarei como a vida econômica e demais esferas
de relações sociais são interdependentes e enraizadas umas às outras.
2. Das relações econômicas
Na introdução, as organizadoras definem economia a partir de Polanyi (2000), arranjos
de produção, troca, distribuição e consumo por meio dos quais populações e instituições se
reproduzem ao reabastecerem-se de coisas e pessoas (Silva et al., 2023, p. 13). Apoiando-se
nos apontamentos de Gibson e Graham (1996), expõem que a economia se faz por meio de
articulações entre diversos sistemas lógicos de organização de práticas que respondem às ne-
cessidades e às aspirações de um todo social.
Ainda na introdução, é apresentado o que se faz ver em Timor-Leste como ecologias
econômicas: partes de certa forma autônomas que coexistem no espaço e no tempo paralela-
mente constituindo um sistema complexo e heterogêneo (Silva et al., 2023, p. 30). Algo que
Tsing (2022) chamaria de uma assembleia polifônica.
A partir de Polanyi (2000), vejo a economia tradicionalmente realizada em Timor en-
quanto enraizada (embedded) na vida social, e não deve ser entendida como algo avulso e se-
parado da sociedade, enquanto, ao contrário, o mercado capitalista pretende fazer ver-se como
tal. Isso pôde ser visto no capítulo 2, em que Hicks (2023) descreve as mudanças ocorridas em
50 anos no basaar (feira ao ar livre) de uma aldeia.
Ao focar em gênero, classe social, etnia e identidade dos feirantes, ele demonstra como
as mudanças ocorridas ao longo de várias alterações de conjuntura política com a sucessão de
diferentes formas de governo alteraram não somente o dia a dia da feira, mas toda a lógica que
a guiava tradicionalmente e vários aspectos da vida social atrelados intrinsecamente a ela. O
uso cada vez maior do dinheiro, imposto como política de governo pelos portugueses, e refor-
çado nas décadas seguintes pelos indonésios, transformou a lógica das trocas realizadas nas
feiras. Isso fez com que se enfraquecesse a lógica anterior que fazia a manutenção dos laços de
interdependência que conectavam as pessoas umas às outras por meio das trocas, e que passa-
ram a realizar transações nos moldes de uma economia de mercado o dinheiro simboliza
trocas que se findam no momento da transação e não implicam a manutenção das relações no
tempo como na lógica da dádiva (Mauss, 1974).
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no capítulo 5, também é apresentado reconfigurações nos modos tradicionais de re-
lações econômicas à medida em que outras lógicas adentram a vida social. Nele, os autores
argumentam que o sistema de trocas rituais ligados ao matrimônio não deixam de existir, mas
são reconfigurados com a inserção de outros recursos, tais como o dinheiro (Fidalgo-Castro;
Alonso-Población, 2023). As trocas de mulheres entre casas sagradas (Uma Lulik), que tradici-
onalmente dependiam da troca de bens e de comida em regime de dádiva tal como descrito
por Mauss (1974) , passam a incluir o uso de dinheiro, constituindo, assim, formas de crédito
entre as famílias de doadores e recebedores de fertilidade (umane/mane-fon), mantendo a ideia
de redes de solidariedade, agora com um novo fator, o monetário.
Esse exemplo demonstra como a narrativa da homogeneização ocasionada pela expan-
são de uma economia de mercado reforça o poder de tal lógica, mas trabalhos etnográficos
como os apresentados no livro permitem vislumbrar cenários que se complexificam. Recursos
econômicos trazidos pelo mercado capitalista não necessariamente substituem lógicas tradicio-
nais de economia, mas podem reconfigurá-las, bem como outros aspectos da vida social, visto
que estas diversas esferas estão enraizadas umas às outras.
3. Das relações institucionais
Na obra, nos deparamos com reflexões acerca da maneira como a governamentalidade
regimento de condutas e populações por meio do poder e governança de estados nacionais
(Foucault, 1979) de cada forma de governo que existiram e existe em Timor-Leste tinham
algo em comum: a consolidação de uma economia de mercado capitalista nacional. Os governos
objetivaram “superar” formas tradicionais de economia, passando por um processo de “desen-
raizamento” da economia (Polanyi, 2000) com o crescente uso de dinheiro e a reorganização
das dinâmicas locais.
No capítulo 3, essa governamentalidade é demonstrada por Grainger (2023) mediante
análise dos projetos de urbanização durante o período colonial português, onde a forma como
se construiu complexos de moradia populares apoiou a construção de uma economia de produ-
ção em massa e a racialização dos espaços urbanos.
Por sua vez, no capítulo 9, Crespi (2023) demonstrou como a construção de um complexo
de exploração de petróleo leva à compra de terras, aentão administradas de forma tradicional e
coletiva, pela empresa estatal responsável. A lógica utilizada pela empresa e o uso do dinheiro
para tais compras interfere em todo o tecido social local, desagregando a lógica de terras comuns
e colocando em xeque a conexão sagrada que a comunidade mantinha com o território.
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A partir disso, disputas começam a surgir na população, mas os modos de solução de
conflitos costumeiros são reconfigurados com uma nova lógica imposta, a da necessidade do
uso de dinheiro, que impacta várias esferas da vida.
Considerações finais
Os casos examinados nesta resenha exemplificam o argumento principal da obra, ao
demonstrarem de que forma as transformações ocorridas em Timor-Leste são fruto de esforços
estatais pela expansão da narrativa homogeneizante de uma economia de mercado nacional.
Essas pticas de governamentalidade, longe de extinguir as experiências e os modos
tradicionais de economia em Timor, as reconfiguram, ao aportar complexas conseqncias
para a vida social de suas comunidades, não econômicas, mas religiosas, políticas, raci-
ais, infraestruturais, dieticas e etc. Ao explicitar essas complexidades locais, o livro con-
tribui com o esforço de desafiar a dita hegemonia do mercado capitalista, muito defendido
por Gibson e Graham (1996).
Recebido em 24/06/2024
Aprovado em 11/07/2024
Publicado em 16/08/2024
Referências bibliográficas
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