GODOI, Rodolfo. Pesquisa de Mapeamento de artistas transformistas no Distrito Federal e Entorno.
1. ed. Brasília: Distrito Drag; Instituto LGBT+, 2022.
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GODOI, Rodolfo. Pesquisa de Mapeamento de artistas
transformistas no Distrito Federal e Entorno. 1. ed.
Brasília: Distrito Drag; Instituto LGBT+, 2022.
Natanael de Freitas Silva
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ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7532-4312
Arte transformista ou drag queen? Essa é uma das questões tratadas na “Pesquisa de
Mapeamento de artistas transformistas no Distrito Federal e Entorno”, sob coordenação de Ro-
dolfo Godoi, publicada em 2022. Na última década, a arte drag queen tem ganhado visibilidade
com a ascensão de artistas como Pabllo Vittar, Gloria Groove, entre outras. Destaca-se também
o reality show norte-americano RuPaul’s Drag Race e sua capacidade de transformar a arte
drag queen em um produto vendável e rentável mundialmente por intermédio da televisão e
dos programas de streaming
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(Bezerra, 2018).
Se quisermos saber e conhecer sobre a arte transformista, primeiro precisamos entender
que é uma arte plural e vai além do modelo norte-americano midiaticamente popularizado e em
parte retratado no filme Paris is Burning (1990) e na série Pose (2018). Nos EUA, o transfor-
mismo nasce à margem da sociedade, nos salões de bailes, na cultura ballroom, onde as drags
batalham entre si por troféus nas mais diversas categorias. As performances envolvem maqui-
agem, habilidade com a dança, principalmente o estilo Vogue, o canto e a postura.
Por sua vez, na América Latina, o transformismo surge no âmbito dos teatros e das casas
noturnas, inspirados pelas grandes divas do cinema e envolvido de muitos paetês, plumas e
pedrarias. Em sua maioria, eram protagonizados por travestis e pessoas trans. Já no Brasil, além
do teatro, muitas ocupavam o cinema e os programas de televisão, tendo como mais conhecidas
Rogéria e Elke Maravilha
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Conforme tratado por Vencato (2002), no início dos anos 2000, não existia um consenso
entre as drags sobre a inclusão de transformistas como uma variação ou tipo de drag. Para as
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Doutor em História pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e especialista em Educação e
Diversidade pelo Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ/CPar). É membro do Laboratório de estudos das rela-
ções de gênero, masculinidades e transgêneros (LabQueer/UFRRJ) e do Núcleo de Estudos de Teoria da História
e História da Historiografia (Histor/UFRRJ). Também é colaborador da rede de Historiadorxs LGBTQIA+. E-
mail: natanaelfreitass@gmail.com.
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No Brasil, criou-se também outros reality shows, como o Academia de Drags, em 2014, inspirado no modelo
norte-americano, exibido no Youtube, produzido pelo cineasta Alexandre Carvalho e apresentado pelas drag que-
ens brasileiras Silvetty Montilla e Alexia Twister. Em 2023, produziu-se o Drag Race Brasil e o Caravana das
Drags, este apresentado por Xuxa Meneghel e a drag paulistana Ikaro Kadoshi.
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Madrinha do grupo Dzi Croquettes, por sua estética considerada exagerada, ao longo dos anos 1970, Elke era,
muitas vezes, confundida como travesti ou drag queen (Felitti, 2021).
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que concordavam com essa inclusão, “a drag transformista seria aquela que faz a imitação de
alguma atriz ou cantora, que faz ‘o clone’ de alguém, aproximando-se muito visualmente de
uma mulher” (Vencato, 2002, p. 67).
Como uma forma de resistência a uma colonização da arte da montação
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no Brasil, Go-
doi opta pela designação arte transformista:
como uma aposta na nomenclatura nacional do fenômeno artístico em questão, salien-
tando sua trajetória local, mas operando como um nome guarda-chuva que engloba o
que massivamente é apresentado no campo de pesquisa como arte drag queen (Godoi,
2022, p. 12).
Com a publicação da Portaria 54, da Secretaria de Estado de Cultura e Economia
Criativa do Distrito Federal (SECEC DF), em 2021, e a partir da solicitação efetuada pelo Dis-
trito Drag e Instituto LGBT+, a arte transformista passou a ser reconhecida “como um campo
autônomo que dialoga com diversas outras artes, linguagens e veículos de comunicação. Tam-
bém produz suas próprias referências, saberes, práticas, vertentes e modos de circulação e co-
mercialização” (Godoi, 2022, p. 9).
A partir de um conjunto de entrevistas semiestruturadas, mapeou-se dados quantitativos
como renda, local de moradia, escolaridade, idade, cor/raça, identidade de gênero, sexualidade
e modalidade de transporte das 40 artistas entrevistadas (Godoi, 2022, p. 15). Enquanto no âm-
bito qualitativo, focalizou-se nas narrativas de memórias e influências artísticas, bem como os
desafios, as violências que muitos artistas transformistas experienciam, como isso afeta os sen-
tidos e significados psicoemocionais e o fazer da arte transformista.
As artistas entrevistadas foram Allice Bombom, Andyva Divã, Angelina Bower, Anon
Dratico Anônimo, Ayobambi, Baby Brasil , Bonnie Butch, Bopety, Brenda Max, Cassandra
Monster, Dakota Caliandra Corote Overdose, lia del Mar, Dávila, Dita Maldita, Donna Karão,
Fran Ferrari, Hellen Quinn, Invictor, K-halla, Katrina Jones, Licorina, Likidah, Linda Brondi,
Lushonda, Mary Gambiarra, Medu Zaa, Melina Imperia, Mozilla Firefox, Pikineia, Raykka Rica,
Rojava, Rubi Ocean, Ruth Venceremos, Samiallien, Sereia Punk, Shayennie Aparecida, Simone
Demoqueen Lafond, Tiffany a drag cênica , Verônica Strass e Xantara Thompson. Todas ex-
pressam a potencialidade e a multiplicidade da arte transformista no coração do ps.
Dentre os dados sociodemográficos, destaca-se a faixa etária das artistas entrevistadas.
Duas eram nascidas na década de 1970; três de 1980-1984; dez de 1985-1989; nove de 1990-
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É o nome dado para o processo de caracterização a partir de maquiagens, perucas, roupas, figurinos, adereços e
performances gestuais e corporais atribuídos e/ou característicos ao gênero feminino.
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1994; e dezesseis de 1995-2000. Quanto à identidade de gênero e sexualidade, na sua maioria,
homens cisgêneros
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gays ou bissexuais.
Ao longo do trabalho, fica evidente como esse “encontro de gerações” na arte transfor-
mista também é efeito dos avanços na conquista de direitos da população LGBTQIAPN+, assim
como na maior visibilidade de histórias e de personagens LGBTs em novelas e em programas
televisivos (Nascimento, 2015).
No campo do marcador geracional ou etário, a reflexão sobre a memória social permite
compreender quais as experiências do passado inspiram o repertório criativo e subjetivo das
artistas transformistas entrevistadas. Neste caso, entre as nascidas até o final dos anos 1980, as
respostas eram Vera Verão e Silvio Santo, enquanto RuPaul aparece apenas para as que nasce-
ram após o ano de 1996.
Já no campo das relações sociais e familiares, Godoi destaca a tensão que artistas trans-
formistas vivenciam ao terem que revelar sua persona artística em seus núcleos familiares,
que “a arte transformista não se destaca da identidade de gênero e sexual, mas a ela vincula-se”
(Godoi, 2022, p. 41). Dessa maneira, a concepção de família tende a ser ampliada e ressignifi-
cada para o campo dos afetos e para além da consanguinidade, numa espécie de potência polí-
tica da amizade entendida como uma característica da sociabilidade de sujeitos e/ou grupos
dissidentes da heteronorma desde a segunda metade do século XX (Silva, 2022). A amizade,
neste caso, não é mero intuito sexual, mas uma forma de criar laços afetivos e novos modos de
vida para escapar da normalidade social e sexual.
Além disso, a reflexão sobre a arte transformista oferece caminhos para uma melhor
compreensão dos debates e dos embates sobre como as performances de gênero afetam e são
afetadas pela teoria da performatividade de gênero (Carlson, 2010; Colling, 2021). Ao refletir
sobre o filme Female Trouble, estrelado por Indaga Butler, como Divine: “seria o drag uma
imitação de gênero, ou dramatizaria os gestos significantes mediante os quais o gênero se esta-
belece? (Butler, 2003, p. 8). Essa é uma questão que permanece em aberto e instiga diversas
pesquisas sobre a arte transformista, suas possibilidades e limites e como a arte transformista
ocupa o “entre-lugar” dentro da comunidade LGBT brasileira (Bortolozzi, 2015).
Por fim, a Pesquisa de Mapeamento de artistas transformistas no Distrito Federal e
Entorno é um trabalho que amplifica a compreensão da arte transformista no país, ao abordar
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Sobre a noção de cisgeneridade, seus usos, implicações, possibilidades e limites, ver: SILVA, Natanael de Freitas.
Dzi Croquettes e Secos & Molhados: masculinidades disparatadas. Tese (Doutorado em História) Programa de
Pós-Graduação em História, Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal Rural do Rio de Ja-
neiro, Rio de Janeiro, 2022.
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seus aspectos quantitativos na economia criativa e qualitativos no campo dos das identidades e
performatividades de gênero e sexualidade, que ocupam boa parte dos debates e embates con-
temporâneos, seja na conquista de direitos, seja na busca por uma igualdade efetiva e insur-
gente, bem como pela representatividade LGBT.
A arte transformista existe e resiste!
Recebido em 24/06/2024
Aprovado em 07/07/2024
Publicado em 16/08/2024
Referências bibliográficas
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decolonial. Dissertação (Mestrado em Sociologia) Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2018.
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decolonial. Quaderns de Psicologia, v. 17, n. 3, p. 123-134, 2015.
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CARLSON, Marvin. Performance uma introdução crítica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.
COLLING, Leandro. O que performances e seus estudos têm a ensinar para a teoria da
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Tese (Doutorado em História) Programa de Pós-Graduação em História, Instituto de Ciências
Humanas e Sociais, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2022.
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queens em territórios gays da Ilha de Santa Catarina. Dissertação (Mestrado em Antropologia
Social) Universidade Federal de Santa Catarina, Ilha de Santa Catarina, 2002.