DI DEUS, Eduardo. A dança das facas: trabalho e técnica em seringais paulistas. Brasília: Editora
UnB, 2022.
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DI DEUS, Eduardo. A dança das facas: trabalho e técnica
em seringais paulistas. Brasília: Editora UnB, 2022.
Israel Araújo
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ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0239-7171
O presente livro se origina na tese de doutoramento de Eduardo Di Deus que se dedica
a compreender e analisar criteriosamente a realidade técnica e antropologicamente histórica dos
seringais paulistas. A pesquisa do autor não deixa de angariar um cunho pessoal: criado entre
Rio Branco (AC) e São José do Rio Preto (SP), sua cidade natal, Di Deus passa a notar uma
transformação importante na paisagem rural paulista.
Esta transformação diz respeito à presença pungente de plantações de seringueiras no
trajeto que fazia até sua cidade natal. Dessa forma, Di Deus (2022) desenvolve uma análise
lastreada em uma antropologia histórica do trabalho dos seringueiros paulistas, enfatizando sua
dimensão tecno-ambiental. Assim, o autor entende técnica a partir de uma perspectiva antropo-
lógica que lhe permite observá-la como lócus privilegiado de análise das dimensões sócio-his-
tóricas da prática, das pessoas e das relações elicitadas que enfatiza dimensões da aprendiza-
gem, da produção da vida e do trabalho habilidoso.
O autor propõe, nessa guisa, um entrelaçamento de perspectivas e análises de diferentes
escalas de relações que vão desde a habilidosa prática da sangria das seringueiras, ou seja, a
relação com o vegetal-árvore, incluindo também as relações com patrões e outros sujeitos que
perpassam a realidade seringueira no interior paulista.
Duas dimensões vernaculares de seu trabalho se destacam: o estudo da técnica de inte-
ração humano-vegetal lapidada nas motricidades da atividade de sangria bem como suas
transformações. E o mundo do trabalho rural repensado enquanto um modo de engajamento
particular que estipula a formação de certas habilidades laborais. Pesquisar a técnica da sangria,
para Di Deus, é adentrar uma multiplicidade escalar de relações sociotécnicas que se constituem
ao longo da história e de espaços complexos.
Ao longo de seu trabalho, ele buscará usar esta atividade como ponto de partida da com-
preensão da constituição desses seringais paulistas, mas também como aspecto vernacular de
uma realidade complexa. Esta que se traduz em um mundo atravessado duplamente por relações
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Mestrando em Antropologia Social na Universidade de Brasília (PPGAS/UnB) com bolsa do Conselho Nacional
de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Mestre em Biodiversité, Écologie et Évolution no Muséum
National d’Histoire Naturelle (SeB/MNHN) com gratificação do edital Master d’Excellence (IBEES/ASU). É ba-
charel em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Pará (UFPA). E-mail: israelmacs@gmail.com.
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rítmicas íntimas entre humano-vegetais. E relações mais amplas que propulsionam fluxos que
afetam a paisagem paulista e o mundo produtivo e do trabalho rural da região.
No primeiro catulo testemunhamos as transformações históricas das técnicas de extração
da borracha. Observamos as formas como as relações com as árvores foram tecidas e o exploradas
a partir das transformações técnicas e conceituais dessas relões desde o período de exploração
amazônica, passando pelas viagens globais desse sistema sociocnico, aterrissando na paisagem
rural paulista. A caracterização da história antropológica dos sistemas sociotécnicos da sangria
conta com explorões com o antigo método do arrocho, a a exploração pela machadinha, inclu-
indo outras formas de explorão recorridas e desenvolvidas no contexto asiático. O autor ressalta
que as viagens não são de elementos particulares, mas de sistemas técnicos inteiros.
No capítulo 2 existe uma transformação paisagística: tanto no sentido semiótico quanto
no sentido prático-processual das atividades e relações. Processos de reconversão de espaços ca-
feeiros vão dando lugar, paulatinamente, à presença da Hevea brasiliensis. Longe de uma oposi-
ção total, o autor ressalta que a seringueira “resgata” e transforma relações do período cafeeiro.
Em seguida, o autor desdobra o que considera o coração da sua tese. No capítulo 3, Di
Deus desenrola todo o sistema técnico da sangria, que passa por uma apreciação minuciosa de
extração do látex. Desde uma consideração das modalidades de gestos e as formas das facas
implicadas, passando pelo processo da sangria enquanto alinhamentos de ritmos que geram
fluxos, até especificidades como a maneira de sangrar, profundidade de corte, bem como outras
modalidades de ações e escolhas técnicas etnografadas.
Algumas noções correntes da antropologia da técnica ajudam a visualizar esse processo.
Noções como fluxo e ritmo, tributadas à Leroi-Gourhan (2002), permitem observar níveis dife-
rentes de relação e fluidez da condução de gestos, ferramentas e pessoas dentro de um sistema
particular. Ressalta-se também esse continuum humanos-ferramentas e, porque não, ambiente,
que é igualmente pertinente.
Para tanto, o autor centraliza a sangria na etnografia. Ele considera que a prática da extra-
ção do látex é, acima de tudo, um ato preciso e fino em situações regulares. Ele enxerga a sangria
como uma prática de mediação entre ritmos: o humano e o vegetal, mas também de interação em
que o estímulo humano, conduzido pela dança das facas dos seringueiros, produz fluxos.
Essas noções permitem acessar de forma processual e sinergicamente múltiplas relações
sociais e com os vivos em geral. Não obstante, é perceptível que existe uma preocupação do
autor em coadunar uma perspectiva que entende a dimensão do vital e da vida intimamente
ligada à dimensão técnica.
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Após uma rica e extensa etnografia, bem como uma consideração sobre a história das
transformações sociotécnicas da sangria, o autor nos oferece um caso emblemático. No capítulo
4, o autor explora desdobramentos de transformações técnicas na sangria no cenário histórico
paulista. Sua análise compreende desde processos migratórios de sangradores, até diferenças
entre formas de explorar e operar na atividade.
Talvez o aspecto mais significativo de seu capítulo seja sua exploração de um fato re-
cente, que chama de “linhagem técnica” da sangria. Di Deus (2022) analisa as implicações
sociotécnicas do processo de rejeição da faca elétrica na atividade da sangria dos trabalhadores
paulistas. O autor explora essa rejeição para além de uma oposição entre tradição e moderni-
dade, ou uma cristalização teimosa por parte dos sangradores. Levar em consideração o caráter
inventivo e inovador do trabalho da sangria por parte dos paulistas é um elemento que conduz
uma análise que se atém a diferentes maneiras e formas de se apropriar ou não de certos objetos
técnicos. É uma análise que recupera as contribuições de Akrich (1987) sobre a implementação
de um sistema sociotécnico de fornecimento de energia na Costa do Marfim.
As relações de trabalho também são trabalhadas no capítulo 5 onde Di Deus expõe ca-
racterísticas ambíguas da atividade nos seringais paulistas. A primeira diz respeito a não ser
nem um trabalho totalmente artesanal, apesar da especialização, nem totalmente industrial, ape-
sar da dimensão e caráter da exploração. Mesmo sendo uma atividade rural, Di Deus (2022)
explicita que ela não se enquadra plenamente no conceito de campesinato.
O tema do trabalho tamm aparece de forma significativa quando discute as passagens dos
tipos de relões trabalhistas no interior paulista. Das transformações do colonato para o assalaria-
mento nos cultivos paulistas, o autor ressalta o caráter único da heveicultura: a parceria agrícola
ou uma economia da confiança. Essa parceria “gera um compromisso, um engajamento com o ciclo
[agrícola] e com o vivente” (Di Deus, 2022, p. 334). Assim, entende que as relações com a árvore
o fundamentais para entender as relões com os patrões, e que também conectam “os processos
vivos das árvores aos patrões” (Di Deus, 2022, p. 334). Relões essas que têm sido tensionadas
por mudanças nas parcerias que buscam limitar as escolhas cnicas de sangradores.
A própria noção de trabalho é repensada pelo autor. A noção a priori de trabalho como
exploração negativa da força de trabalho é questionada e trabalho passa a ser visto, também,
como uma forma de produção engajada. Pensando trabalho como “interação com ltiplos
seres e materiais, com ênfase nas conexões promovidas por processos e objetos técnicos” (Di
Deus, 2022, p.341). Dessa forma, o autor se preocupa em lançar uma perspectiva mais holística
e ecológica da noção aplicada de trabalho ao contexto dos seringais, levando em consideração
as habilidades, conhecimentos e inventividade dos trabalhadores (Di Deus, 2022).
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A obra do autor é, sem dúvida, um marco na compreensão de um fenômeno que está
razoavelmente calejado nas ciências humanas. O estudo de seringueiras, borracha e seringueiros
não é uma novidade na literatura, sobretudo amazônica, como bem reconhece o autor. Mas a
compreensão de outros desdobramentos de um sistema sociotécnico que se origina na Amazô-
nia a partir de uma perspectiva que centraliza a técnica como maneira de alcançar viagens,
mudanças, transformações e sentidos particulares sobre trabalho e vida é uma novidade. Não
só isso, seu ângulo de análise enfatizando temporalidades, espacialidades e a dimensão ontoge-
nética da técnica na sangria é um desdobramento frutífero para estudos na temática.
É perceptível que a importância do seu trabalho transpõe um mero preenchimento de
uma lacuna do saber. O percurso da abordagem do autor oferece uma possibilidade criativa e
pertinente de compreender relações humano-vegetais que escapam descrições e análises pura-
mente econômicas, políticas ou “culturais”. Dessa forma, entrega sob o signo da antropologia
histórica uma análise que alcança múltiplas escalas relacionais, usando como fio condutor a
prática da sangria enquanto sistema técnico de associação entre humanos, ferramentas e árvo-
res, mediados por modalidades de gestos, ações e ritmos.
Esse fio condutor nos ajuda a entender o caráter intrinsicamente transformado e trans-
formativo da atividade e que exemplifica o potencial antropológico inegável da exploração des-
sas relações humano-vegetais quando se levam a sério as relações entre espaço, técnica, pessoa,
vegetais e história, como elementos de uma investigação holística dos modos de existir e se
relacionar no mundo. Acima disso, verifica-se que o autor pretende realçar uma antropologia
do trabalho rural em que os processos práticos e de engajamento com processos ambientais,
técnicos e da ordem do vivo são centralizados e articulados.
Recebido em 17/06/2024
Aprovado em 26/06/2024
Publicado em 16/08/2024
Referências bibliográficas
AKRICH, Madeleine. Comment décrire les objets techniques? Techniques & Culture, 54-55,
p. 205-219, 2010.
DI DEUS, Eduardo. A dança das facas: trabalho e técnica em seringais paulistas. Brasília:
Editora UnB, 488p., 2022.
LEROI-GOURHAN, André. O Gesto e a Palavra: Memória e Ritmos. Perspectivas do Homem,
Edições 70, vol. 2, 248p., 2002.