O Ensino de Sociologia se “descola” da escola: o surgimento das graduações e da pós-graduação em
Ciências Sociais no Rio de Janeiro e em São Paulo e seu impacto na Sociologia escolar (1930-1942)
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O Ensino de Sociologia se “descola” da escola: o
surgimento das graduações e da pós-graduação em
Ciências Sociais no Rio de Janeiro e em São Paulo e seu
impacto na Sociologia escolar (1930-1942)
Sociology Teaching is “detached” from school: the emergence of undergraduate and
postgraduate courses in Social Sciences in Rio de Janeiro and São Paulo and its impact on
school sociology (1930-1942)
La enseñanza de la sociología está “desligada” de la escuela: el surgimiento de las carreras
de grado y posgrado en Ciencias Sociales en Río de Janeiro y São Paulo y su impacto en la
sociología escolar (1930-1942)
Vinícius Carvalho Lima
1
ORCID: 0000-0002-0123-8593
Resumo
Este artigo analisa o surgimento da disciplina Sociologia a partir do processo de
sistematização do conhecimento sociológico no Rio de Janeiro e em São Paulo,
capturando, assim, os sentidos assumidos a partir de sua efetiva implementação na
década de 1930. O artigo também explora sua consolidação no currículo escolar e a
posterior saída da escola, indagando por que as sociologias escolar e acadêmica
perdem o fio que as conectara na década de 1930. A investigação consiste no olhar
acerca da institucionalização das Ciências Sociais tendo como enfoque principal a
sua consolidação escolar e acadêmica para investigar o processo de descolamento
entre elas no período 1930-1942. Nos dedicaremos a pensar a história do Ensino de
Sociologia na região sudeste, em específico São Paulo, com a Universidade de São
Paulo (USP) e a Escola Livre de Sociologia e Política (ELSP), e Rio de Janeiro, com a
Universidade do Distrito Federal (UDF), e sua relevância para institucionalizar o Ensino
de Sociologia na graduação e pós-graduação brasileiras. Partimos da hipótese de que
estes entes foram relevantes para a institucionalizar o Ensino de Sociologia no país,
uma vez que observamos um esforço sistemático de criar as “regras” do campo
acadêmico, embora reconheçamos que tais instituições não podem ser lidas como
representativas de todo o cenário nacional, dada a vasta e diversificada forma de
1
Professor de Sociologia do quadro permanente do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio
de Janeiro (IFRJ), graduado e licenciado em Ciências Sociais (IFCS), especialista em Ensino de Sociologia (FE)
e mestre em Planejamento Urbano e Regional (IPPUR), pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Doutor em Sociologia pelo Programa de Pós-graduação em Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Huma-
nas (IFCH) na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Integra a pós-graduação em Educação em Di-
reitos Humanos (PEDH/IFRJ) e, como pesquisador, o Grupo Interdisciplinar de Pesquisas e Práticas em Educação
(GIPPEd). Atualmente, realiza estágio de pós-doutorado no Pós-graduação em Sociologia da Universidade de
Brasília (UnB) sob supervisão do Prof. Dr. Marcelo Pinheiro Cigales e compõe o Laboratório de Ensino de Soci-
ologia Lélia Gonzalez na mesma universidade. Tem experiência em pesquisa nas áreas Ensino de Sociologia e
Sociologia urbana, atuando nas seguintes temáticas: Ensino de Sociologia, História e institucionalização da Soci-
ologia no Brasil, juventude, direitos humanos, ensino integrado e movimentos sociais. E-mail: vini-
cius.lima@ifrj.edu.br.
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inserção do ensino da disciplina no país. As fontes remetem a uma análise bibliográfica
sobre os estudos da história das disciplinas escolares, realizados no âmbito de um
estudo de doutoramento do qual este artigo é originado. Em suma, investigamos
relação estabelecida entre a Sociologia escolar e a sua ciência de origem no Brasil e
alguns dos rebatimentos desta no período recortado.
Palavras-chave: ensino de sociologia, universidade, escola, graduação, pós-
graduação.
Abstract
This article aims to analyze the emergence of the discipline Sociology from the process
of systematization of sociological knowledge in Rio de Janeiro and São Paulo, thus
capturing the meanings assumed from its effective implementation in the 1930s. The
article explores its consolidation in the curriculum school and later leaving school,
asking why school and academic sociologies lose the thread that connected them in
the 1930s. The investigation consists of looking at the institutionalization of Social
Sciences - with its main focus on its school and academic consolidation - to investigate
the detachment process between them in the period 1930-1942. We will dedicate
ourselves to thinking about the history of Sociology Teaching in the southeast region,
specifically in São Paulo with the University of São Paulo (USP) and the Free School of
Sociology and Politics (ELSP), and Rio de Janeiro with the University of the Federal
District (UDF), and its relevance for institutionalizing the teaching of Sociology in
Brazilian undergraduate and postgraduate courses. We start from the hypothesis that
these entities were relevant to institutionalize the Teaching of Sociology in the country,
since we observed a systematic effort to create the "rules" of the academic field,
although we recognize that such institutions cannot be read as representative of the
entire scenario. national, given the vast and diverse way in which the subject is taught
in the country. The sources refer to a bibliographical analysis of studies on the history
of school subjects, carried out within the scope of a doctoral study from which this
article originates, we investigated the relationship established between school
Sociology and its science of origin in Brazil and some of its repercussions in the period
covered.
Keywords: sociology teaching, university, school, undergraduate, graduate.
Resumen
Este artículo tiene como objetivo analizar el surgimiento de la disciplina Sociología a
partir del proceso de sistematización del conocimiento sociológico en Río de Janeiro y
São Paulo, capturando así los significados asumidos a partir de su implementación
efectiva en la década de 1930. El artículo explora su consolidación en el currículo
escolar y. abandono posterior de la escuela, preguntándose por qué las sociologías
escolar y académica pierden el hilo que las unía en los años 1930. La investigación
consiste en mirar la institucionalización de las Ciencias Sociales - con su foco principal
en su consolidación escolar y académica - para indagar en el proceso de desvinculación
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entre ellas. en el período 1930-1942. Nos dedicaremos a pensar la historia de la
Enseñanza de la Sociología en la región sureste, específicamente en São Paulo con la
Universidad de São Paulo (USP) y la Escuela Libre de Sociología y Política (ELSP), y en
o de Janeiro con la Universidad de Distrito Federal (UDF), y su relevancia para la
institucionalización de la enseñanza de la Sociología en las carreras brasileñas de
pregrado y posgrado. Partimos de la hipótesis de que estas entidades fueron
relevantes para institucionalizar la Enseñanza de la Sociología en el país, ya que
observamos un esfuerzo sistemático por crear las "reglas" del campo académico,
aunque reconocemos que tales instituciones no pueden leerse como representativas
del todo el escenario nacional, dada la amplia y diversa forma en que se imparte la
materia en el país. Las fuentes remiten a un análisis bibliográfico de estudios sobre la
historia de las materias escolares, realizado en el ámbito de un estudio doctoral del
que surge este artículo. origina, investigamos la relación que se establece entre la
Sociología escolar y su ciencia de origen en Brasil y algunas de sus repercusiones en el
período cubierto.
Palabras clave: enseñanza de sociología, universidad, escuela, pregrado, posgrado
1. Introdução: O Ensino de Sociologia entra e sai de cena
Nas primeiras décadas do século XXI, o subcampo de pesquisas sobre o Ensino de So-
ciologia tem sido responsável por iniciar um renovado processo de investigação do processo de
institucionalização da disciplina no Brasil. Faz isto, entre outros instrumentos, retomando e
recuperando temáticas e processos ainda pouco explorados da implementação da disciplina no
currículo escolar no século XX. Essa retomada se dá, primordialmente, pela consideração e pela
análise da produção antes do “corte” entre o período considerado “pré-científico” (século XIX
até a década de 1930) e o período “científico” da disciplina (1930 em diante), trazendo para o
centro do debate a reflexão sobre a produção de ideias sociológicas mesmo aquelas que não
foram produzidas no ambiente acadêmico.
Este artigo se filia a esta inflexão teórica e pretendemos analisar o surgimento da disci-
plina a partir do processo de sistematização do conhecimento sociológico e de sua efetiva imple-
mentação na década de 1930, sua consolidação escolar, sua saída da escola, e, primordialmente,
porque as sociologias escolar e acadêmica perdem o fio que as tornara próximas neste período.
A temática principal deste artigo, originado de um estudo de doutoramento (Lima, 2020),
consiste na investigão da institucionalizão das Ciências Sociais no Rio de Janeiro e em o
Paulo, tendo como enfoque principal a sua presença escolar e acadêmica para investigar o processo
de descolamento entre essas duas sociologias (Lima, 2020). Para tanto, nos interessa analisar a
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relão no período 1930-1942 entre os momentos de reconhecimento institucional da disciplina
no currículo escolar, sua posterior retirada do mesmo e sua institucionalização acadêmica.
Definimos como descolamento o processo no qual sentidos, práticas e orientação da
disciplina voltados ao espaço escolar tornaram-se sentidos, práticas e orientação voltados à So-
ciologia científica e ao espaço universitário. Pretendemos analisar este processo por meio da
constituição das bases que marcaram a presença da disciplina na escola em oposição à confor-
mação de um discurso científico posterior. Entre outras palavras, uma vez que a Sociologia se
constitui como disciplina escolar e/ou acadêmica, seu objetivo era ensinar/disciplinar/formar
quem? Para quê? Onde? A partir da inserção em quais diretrizes?
Por isso, nossa intenção não é comparar os sentidos atribuídos à disciplina nas décadas
escolhidas para análise, mas pensar a construção destes no período, acompanhando a formula-
ção das ideias, bem como acompanhar alguns dos movimentos/processos de formação profis-
sional chaves da comunidade intelectual. Temos a dimensão que discutir os rumos da Sociolo-
gia na escola, graduação e pós-graduação significa pensar seu processo de institucionalização,
e este nos leva a diferentes caminhos interpretativos e delimitações históricas, embora exista
consenso que os anos 1930 e 1940 cumprem papel crucial nesta trajetória.
Os anos 1930 são considerados profícuos nas Ciências Sociais, que foi nesta década
em que de fato se iniciaram os debates sobre o Ensino de Sociologia, motivados pela intensa
produção bibliográfica de manuais dedicados ao ensino secundário, da “Revista Sociologia:
Didática e Científica”, a publicação das obras clássicas dos chamados “intérpretes” do Brasil e
pelo fato que, nesta época, a disciplina ocupara um lugar central no país, que articulava três
ideais: o da ciência, o da modernidade e o da educação.
Para termos uma ideia inicial, as propostas de inclusão da Sociologia como disciplina
nos sistemas educacionais brasileiros datam do final do século XIX (Bodart; Cigales, 2021).
No entanto, somente em 1925, com a Reforma Rocha Vaz, a disciplina foi incluída no Ensino
Secundário e nas Escolas Normais de Recife e do Rio de Janeiro. Neste mesmo ano também foi
introduzida no currículo do Colégio Pedro II, dando início a um processo de nacionalização.
Na reforma Francisco Campos de 1931, ela permaneceu nos cursos complementares e, em 1942,
foi retirada pela reforma Gustavo Capanema, e retornou aos bancos escolares em 2008 por
força da Lei nº 11.684.
Essa recuperação histórica “relâmpago” da trajetória da disciplina nos mostra que esta-
mos quase um século da efetiva entrada da disciplina na educação brasileira. No entanto,
tirando períodos específicos da história das Ciências Sociais no Brasil, o Ensino de Sociologia
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escolar constituiu um objeto científico oculto, com poucos debates e relativa invisibilidade pelo
menos até os anos 2000.
Esse fenômeno certamente teve implicações que não foram ainda avaliadas nos estudos
sobre a Sociologia no Brasil. Sobretudo, porque as interpretações sobre o surgimento da disci-
plina no nosso país foram realizadas, inicialmente, a partir de vieses que privilegiaram a histó-
rica acadêmica e/ou científica da disciplina (Miceli, 1989), o que acabou por marginalizar aque-
las produções que teriam sido geradas fora desses padrões e lógicas.
Nesse sentido, o próprio campo de pesquisas no Ensino de Sociologia tem sido responvel,
principalmente a partir de 2008, por iniciar um renovado processo de investigão do processo de
institucionalização da disciplina, trazendo para o centro do debate a reflexão sobre a prodão de
ideias sociológicas mesmo aquelas que o foram produzidas no ambiente acadêmico.
Isto é o que motiva a escrita deste artigo: ir além da interpretação consolidada sobre
a presença da disciplina no secundário, a partir da tese de sua presença intermitente (Machado,
1987), mas considerar que os períodos estudados, especialmente o período compreendido entre
1931 e 1942, como não monolíticos, mas como expressão dos debates em torno da institucio-
nalização da disciplina.
Sendo assim, embora sua entrada efetiva no secundário seja nos anos 1920, não re-
gistros suficientes sobre a abrangência da aplicação da disciplina, tampouco existem evidências
plenamente corretas acerca de quantos alunos, professores, escolas e estados tiveram efetivo
contato e/ou aplicaram a disciplina. Neste cenário, ainda podemos apontar a inexistência de
cursos superiores que formassem exclusivamente professores de Sociologia, fazendo com que
profissionais de outras áreas assumissem a disciplina nas escolas.
Com efeito, a Sociologia estava garantida naquele espaço, mas nos perguntamos com
qual caráter/abordagem. Nos parece que a disciplina no período, em termos curriculares, corro-
borava com o regime varguista e com a visão dos ministros que ocuparam a pasta educacional.
Tendo em vista que a disciplina não tem um sentido contido nela mesma, mas que estes são
disputados socialmente, não como escapar da interpretação de que a presença da disciplina
na escola nesse período reforçou ideais nacionalistas, além de uma concepção educacional cal-
cada na “moral e cívica”, e sua “função” também é demarcada como um saber necessário para
a entrada nos cursos superiores.
Sociologia não significava, portanto, necessariamente, produção de ciência, questio-
namento acerca da realidade e da investigação dos problemas sociais brasileiros, mas uma
ferramenta para reprodução das desigualdades no campo educacional, à medida que está
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presente na escola, mas como saber restrito e destinado aos estudantes que chegassem aos
cursos complementares, num modelo em que o próprio acesso ao ensino secundário neste
período se mostrava restrito.
Embora o debate sobre o Ensino de Sociologia floresça e a disciplina continue no currí-
culo escolar na década de 1930 pelo efeito da Reforma Campos, acreditamos que este adquira
novo sentido na década de 1940, isto porque a década começa com um forte golpe. Em 1942, a
Reforma Gustavo Capanema excluiu a Sociologia das escolas, restringindo-a aos cursos nor-
mais e aos primeiros de graduação em Ciências Sociais criados ainda na década de 1930.
Essa retirada da Sociologia do currículo escolar, como deixa evidente Schwartzman
(2000), representou o pacto bem-sucedido entre o Ministério da Educação e a Igreja Católica.
Práticas como as propostas pelo movimento da Escola Nova de ensino, gestadas ainda nos anos
1930, voltado para construção autônoma dos estudantes, deveriam ser rechaçados, e isto incluía
o Ensino de Sociologia.
Neste contexto, a disciplina, em face escolar, aparecia como uma maneira de interpre-
tar/compreender racionalmente a história e auxiliar a ruptura brasileira com o seu passado. Seu
ensino, nas escolas do secundário, foi encarado como um instrumento para elevar o nível inte-
lectual das grandes massas (Fernandes, 1976) e um efetivo instrumento de mudança social e
democratização da sociedade brasileira, pois produziria respostas aos problemas sociais exis-
tentes. O debate acerca do Ensino de Sociologia se inscreveu num objetivo político de reforma
social e de democratização da sociedade brasileira, embora, na prática, seu currículo e materiais
didáticos apresentassem uma visão distante desse objetivo.
A partir da criação das faculdades e dos cursos de Ciências Sociais
2
, inaugurou-se a era
da produção científica, do amadurecimento e do desenvolvimento da disciplina no nosso terri-
tório, período no qual os estudos teriam adquirido tom científico dando início à fase moderna
da Sociologia brasileira.
Terá início, portanto, o processo de institucionalização da Sociologia no campo acadê-
mico. Elide Rugai Bastos (1998), por exemplo, localiza o início deste processo com a obra
“Casa Grande & Senzala”, de Gilberto Freyre, que representaria “um ponto de inflexão, o fe-
chamento de um ciclo: marca o momento em que a teoria social deixa de se apresentar como
manifestação dispersa e surge como um sistema: a Sociologia” (Bastos, 1998, p. 146). Esse fato
ilustraria “o abandono do discurso jurídico” e a “incorporação do discurso sociológico”, de
2
Na Escola Livre de Sociologia e Política, em 1933, na Universidade de São Paulo (USP) e na Universidade do
Distrito Federal (UDF), no Rio de Janeiro, ambas em 1934.
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forma que a “metamorfose do jurídico ao sociológico é o componente fundamental do processo
de institucionalização das Ciências Sociais no Brasil” (Bastos, 1998, p. 146).
Outro que esse amadurecimento da teoria sociológica em outro período é Renato
Ortiz (2002), que delimita esse processo na emergência da geração de sociólogos da USP na
década de 1940, quando a Sociologia emerge como “ciência”, ou quando o trabalho intelectual
passa a ser pautado por normas, valores e ideais do saber científico.
Este será o recorte da nossa pesquisa do ponto de vista da Sociologia acadêmica. Ao
concentrar a nossa análise na região Sudeste, incluímos a hipótese de que o modelo de Ciências
Sociais produzido nessa região tem influência nas formas de institucionalização da Sociologia
no país, dado que parte significativa dos quadros universitários na área são advindos dessa re-
gião. No entanto, temos consciência que esta região não representa, sozinha, “a” história do
Ensino de Sociologia no Brasil, inclusive a literatura histórica como nos trabalhos de Trindade
(2018) indicam que se trata de “uma” parte dessa história. No entanto, nos parece que o peso
da consolidação da ideia de pesquisa e do recorte científico ganha seus contornos iniciais nessas
instituições e, então, se espraia para outros centros acadêmicos do país.
Por um lado, esse processo teria significado “uma ruptura em relação ao senso comum,
o discurso dos juristas, jornalistas e críticos literários”, por outro, “um distanciamento em
relação à aplicação imediata do método sociológico para a resolução dos problemas sociais:
uma crítica de sua utilidade” (Ortiz, 2002, p.182). Como explicam Segatto e Bariani (2010), a
Sociologia passa a ser considerada efetivamente uma ciência no Brasil, pois passou a atender a
alguns critérios específicos antes não verificados:
as interpretações que consideram a institucionalização como marco inicial ou ponto de
mutação das ciências sociais no Brasil, em geral, compreendem alguns elementos co-
muns ou frequentes que, para efeito de interpretação, consideraremos como uma cons-
trução conceitual tipológica relativamente ideal. Tais elementos supostos compreendem
uma noção da sociologia como ciência empírico-indutiva, baseada no rigor metodoló-
gico e num elevado padrão de trabalho científico, no distanciamento com relação a va-
lores, na integração entre ensino e pesquisa, no funcionamento regular de formas de
pós-graduação, financiamento à pesquisa, divisão do trabalho, quantidade e estabilidade
da atuação, mormente em regime integral numa comunidade marcada pelos ethos aca-
dêmico e por meios próprios de hierarquização, legitimação e divulgação/controle da
produção (Segatto; Bariani, 2010, p. 8).
Partindo das demarcações acima, o espaço universitário será entendido como elemento
forjador de um profissional, a partir da consolidação de um mercado capaz de absorvê-lo. Havia
necessidade de um novo tipo de cientista social capaz de adquirir conhecimento especializado
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referente à sociedade brasileira, conhecimento este capaz de auxiliar na resolução dos impasses
que ali se colocavam (Arruda, 1995).
A construção de um campo disciplinar acontece a partir da definição de um objeto pró-
prio e do estabelecimento de processos que envolvem a diferenciação em relação aos campos
correlatos
3
. Precisamos, portanto, para melhor entendermos, investigar as relações entre a con-
figuração deste saber e o processo de racionalização que avança nas primeiras décadas do sé-
culo XX. A análise do surgimento da Sociologia nestes espaços passa por investigar as tensões
e as lutas empreendidas por seus praticantes frente ao universo cultural da sociedade na qual a
disciplina está sendo implementada.
Acreditamos que os primeiros sintomas do descolamento (Lima, 2020) da disciplina da
escola para a universidade se desenvolvem justamente com o surgimento desses cursos de Ci-
ências Sociais, que privilegiaremos em nossa análise. Embora nosso movimento seja destacar
peculiaridades de cada processo, cabe-nos lembrar que tanto na USP quanto na UDF, as Ciên-
cias Sociais se originaram dentro das faculdades que formavam professores para o ensino se-
cundário. Portanto, em termos de criação, o grande impulso desses cursos seria o magistério
secundário, que sofreu grande revés com a Reforma Capanema.
O que redirecionará os cursos para valorização da formação especializada, científica, o
desempenho profissional, a considerar de forma renovada o mercado de trabalho e as fontes de
financiamento. Processo que será consolidado com a criação, em 1941, do primeiro curso de
pós-graduação em Ciências Sociais no Brasil.
Nesse sentido, nas próximas subdivisões do artigo, analisaremos o surgimento das gra-
duações em Ciências Sociais, seus impactos na criação, a assunção de critérios de cientificidade
para a disciplina, seus impactos na formação de professores e sua presença/retirada da escola.
2. As Ciências Sociais no Rio de Janeiro: Universidade do Distrito Federal, a
formação da Faculdade Nacional de Filosofia nos anos 1930-1940, suas crises e
distanciamento de sua finalidade inicial.
A Universidade do Distrito Federal (UDF) esteve no centro da disputa entre escolano-
vistas e católicos. Um grande revés para os primeiros foi a ascensão de Alceu Amoroso Lima
3
Este complexo processo não está desligado de acontecimentos políticos, econômicos e sociais. Há, portanto, uma
variedade de grupos envolvidos neste empreendimento no momento inicial da montagem destas instituições e
cursos: grupos doutrinários, como os ligados à Igreja Católica; grupos inseridos na estrutura do ensino secun-
dário, como os catedráticos do Colégio Pedro II; do ensino superior, como os professores das Escolas Superiores
e da extinta UDF; a elite paulistana no caso uspiano; técnicos pertencentes a burocracia do Estado, ligados a
órgãos como o IBGE, o Museu Nacional; quadros do Ministério da Educação, como o próprio ministro Gustavo
Capanema; além do próprio presidente Getúlio Vargas.
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como reitor da universidade em 1938, acelerando, inclusive, seu posterior processo de extinção.
A argumentação em torno da extinção da UDF teve como aspecto a argumentação legalista, a
partir de sua suposta não adequação ao modelo do Ministério da Educação (Oliveira, 1995).
O próximo passo no ministério foi a criação da Universidade do Brasil, prevista no
Decreto-Lei de 5 de julho de 1937 e regulamentada pelo Decreto-Lei nº 1.190, de 4 de abril de
1939, o mesmo em que a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras passa a denominar-se Fa-
culdade Nacional de Filosofia (FNFi). Esse instrumento legal estabeleceu que seriam as seguin-
tes finalidades: a) preparar trabalhadores intelectuais para o exercício das altas atividades cul-
turais de ordem desinteressada ou técnica; b) preparar candidatos ao magistério do ensino se-
cundário e normal; c) realizar pesquisas nos vários domínios da cultura, que constituam objeto
de seu ensino (Brasil, 1939).
Em 1939, a FNFi inaugurou seus cursos ordinários, que conferiam o tulo de bacharel ou
de licenciado, e seus cursos extraordinários, de aperfeiçoamento, especialização e doutorado, em
quatro seções fundamentais: Filosofia, Ciências, Letras e Pedagogia, além do setor de Didática.
No período que vai de 1935 a 1945, a FNFi não apenas formou os docentes de ciências
humanas que tomariam em suas mãos o ensino dessas disciplinas, como preparou diversos pes-
quisadores que passaram a integrar os quadros das instituições públicas. Nesse mesmo ciclo
iniciaria o programa de formação de professores para o ensino secundário. A História, a Soci-
ologia e a Antropologia também adquiriram, portanto, a possibilidade de institucionalizar seu
ensino de modo autônomo.
Deste modo, a FNFi deu forma nova a uma tradição emergente, denunciando os “defei-
tos” de formação de sucessivas gerações de professores, em especial o autodidatismo e a im-
provisação. A pesquisa que era igualmente privilégio de umas poucas instituições, passou a
integrar a formação curricular. Como reação, procurou-se incorporar institucionalmente o in-
tercâmbio com instituições estrangeiras, a coleta sistemática de bibliografia e a realização de
simpósios e seminários como ferramentas de trabalho dos cientistas e dos pesquisadores brasi-
leiros (PAIM, 1982).
O primeiro curso de Ciências Sociais da cidade do Rio de Janeiro, portanto, não ganhou
vida no âmbito da FNFi, em 1939, em razão de iniciar as atividades com um total de trinta
alunos e parte da turma provinha da UDF. Alguns estudantes trabalhavam e tinham idade bem
acima da média dos jovens oriundos de famílias abastadas, que também começavam sua for-
mação universitária. Aqueles que testemunharam sua abertura em 1939 não poderiam prever
que o ato desencadeasse uma prática de ensino e formação, cuja regularidade se impôs até o dia
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de hoje, com a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e o Instituto de Filosofia e
Ciências Sociais (IFCS) (Villas Bôas, 1997).
Nos anos 1930 e 1940, este curso foi herdeiro direto do legado da UDF, no que diz respeito
às disputas internas. Exemplo disto é que a Igreja Católica e o Ministério da Educação que se
uniram para a montagem do curso e do quadro docente da FNFi. Convidado para dirigir a FNFi
de modo a dar prosseguimento ao trabalho iniciado na UDF , Alceu condicionou sua aceitação
a não incorporação dos profissionais da extinta universidade. Como isso, não pôde ser atendido
integralmente, e em 23 de dezembro de 1941 assumiu como reitor Francisco Clementino San
Tiago Dantas, por indicação do ministro Capanema, mantendo a hegemonia católica.
A montagem do quadro docente não foi pacífica: os primeiros problemas surgiram já na
seleção e na chegada de professores estrangeiros, contratados para iniciar o departamento de
Ciências Sociais, que provocaram a reação dos que aqui se julgavam capacitados a assumir as
cátedras, o que obrigou o próprio ministro Capanema a argumentar e justificar esta presença,
vista como uma intrusão (Oliveira, 1995).
O complexo processo do qual um profissional era indicado professor catedrático ou au-
xiliar sofria influências múltiplas de dentro e de fora da universidade. A carreira também seguia
as mais diferentes trilhas, que se definiam pela presença ou ausência de obstáculos de ordem
diversa, como catedráticos interinos que permaneciam como tal até a aposentadoria e a não
realização de concursos. Este confuso processo de constituição causou problemas e perseguição
aos aspirantes às cadeiras na universidade, a fez também perder quadros para instituições nas-
centes de pesquisa do estado (Oliveira, 1995).
Nos anos 1930, é notável que a universidade não foi no, Rio de Janeiro, locus de debate
acadêmico, já que não foi criada a partir dela uma cultura organizacional capaz de fazê-la con-
viver com o acirramento das lutas políticas. A vida intelectual de fato se concentrou em insti-
tutos de pesquisa como o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) e o Centro Brasileiro
de Pesquisas Educacionais (CBPE), que podem ser tomados como espaços de debate político-
ideológico, mas não como instituições acadêmicas ou universitárias que objetivavam o ensino
ou a pesquisa na área das Ciências Sociais.
Como destaca Trindade (2018, p. 28),
no Rio de Janeiro, essa institucionalização foi mais tardia e diversificada, em decorrên-
cia do fechamento, pelo Ministério de Educação, da Universidade do Distrito Federal
(UDF), concebida e instituída por Anísio Teixeira, em 1935. Além disso, a nova Facul-
dade de Filosofia da Universidade do Brasil ficou controlada por professores e deres
católicos ligados ao Centro Dom Vital e revista A Ordem, fundada por Jackson Fi-
gueiredo e dirigida por Alceu Amoroso Lima, que recrutou outra Missão Francesa com
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orientação oposta da USP. Nessa dispersão, foram criadas outras instituições com
perspectivas interdisciplinares. A primeira delas foi o Instituto Brasileiro de Economia,
Sociologia e Política (1953), posteriormente reconvertido no Instituto Superior de Es-
tudos Brasileiros (1955).
Com isso, os institutos de pesquisa se tornaram uma alternativa frente aos problemas
que a universidade vivia, que possuíram recursos da UNESCO e da Fundação Ford, por
exemplo (Miceli, 1987). Esta rápida visão da montagem inicial da FNFi nos alerta sobre a com-
plexa relação entre instâncias políticas e a organização de uma faculdade de Filosofia que pre-
tendia ser o padrão das demais no Brasil. Porém, a parca autonomia didática e administrativa,
a ausência de critérios explícitos ou mesmo a não obediência aos implícitos por ocasião de
formação de quadros novos levaram de fato à ausência de uma carreira universitária nas Ciên-
cias Sociais do Rio de Janeiro e, principalmente, a falta de um espaço social onde deveria acon-
tecer a vida acadêmica e a universidade, mas seus quadros pareciam muito mais próximos da
vida política da então capital (Oliveira, 1995).
No entanto, embora esse desenvolvimento e direcionamento tenham sido prejudicados,
como vimos, por disputas político-ideológicas e centralização na pesquisa, no contexto do Rio
de Janeiro, nos chama a atenção a ausência de preocupação com o debate escolar, educacional
e para a própria formação de professores que eram seus objetivos iniciais no decreto-Lei
para atuação no secundário, mesmo nos períodos com a presença da disciplina no currículo
escolar do período, o que será diferente, ao menos num primeiro momento no contexto paulista.
3. As Ciências Sociais em São Paulo: a Universidade de São Paulo e a busca inicial
de professores que desemboca na Sociologia científica
A criação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) foi fundamental no con-
texto uspiano, que representava seus valores fundadores e as virtudes, tais como o lugar do
refúgio do espírito crítico e objetivo, promoção da ciência e da cultura livre. Bem como foi
entendida como o local onde seriam formados os novos quadros de dirigentes capazes de ultra-
passar a visão profissional e técnica restrita que caracterizava os cursos superiores dominantes
até então (Hey; Catani, 2006).
As Ciências Sociais no Brasil foram marcadas, até a década de 1930, por cancia de qua-
dros formados cientificamente para atuão na área. Desta forma, uma das maneiras encontradas
pelos criadores da USP para realizarem a contento este projeto ideológico e potico foi o mesmo
da UDF/FNFi: recorrer à contratação de professores estrangeiros para as primeiras cadeiras da
FFCL. Raes de ordem política, ideológica e científica podem ser apontadas neste movimento:
O Ensino de Sociologia se “descola” da escola: o surgimento das graduações e da pós-graduação em
Ciências Sociais no Rio de Janeiro e em São Paulo e seu impacto na Sociologia escolar (1930-1942)
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parte-se, implicitamente, do princípio de que o Brasil, tendo entrado tarde para o con-
junto das nações de civilização ocidental, entre as quais floresceram as ciências, se vira
impedido de desenvolver proposições cientificamente válidas, a não ser quando ensina-
das por mestres vindos do exterior; dessa forma, antes da organização do ensino siste-
mático na área do conhecimento que se chamou das ciências humanas e sociais, ne-
nhuma contribuição nacional teria sido efetivamente válida. Os cientistas estrangeiros,
isso sim, haviam trazido consigo conhecimentos de valor e práticas inovadoras, que
transmitiam aos nacionais, capacitando-os a analisar os dados do real para diagnosticar,
com mais acerto, processos sociais em curso e, talvez, aventar alguma solução possível
a problemas intrincados (Queiroz, 1996, p. 229-230).
De acordo com o anuário de 1934-1935, para a composição do corpo docente da FFCL,
entendeu-se que seria preciso buscar professores estrangeiros, além dos nacionais. Com efeito,
professores estrangeiros constituíram a maior parte do corpo docente da FFCL durante os pri-
meiros anos da USP (Petitjean, 1996).
Os especialistas estrangeiros, como Emílio Willems, Roger Bastide, Horace Davis, T.
Lynn Smith, Claude Lévi-Strauss, Paul Arbouse-Bastide, entre outros, foram contratados para
ajudar na tarefa de introduzir a investigação de campo e fazer a disciplina caminhar na direção
dos padrões e dos ideais do trabalho científico. Em outras palavras, o alcance de um status de
disciplina científica envolveria a transformação da análise histórico-sociológica em investiga-
ção positiva e a introdução da pesquisa de campo como recurso sistemático de trabalho.
A busca por conhecimento especializado envolveu uma crítica para aqueles que, até
então, se dedicavam a pensar e a escrever sobre as coisas brasileiras e atacava-se o antigo lite-
rato, jurista, pensador, ensaísta, oriundo de família abonada, que podia se dedicar às atividades
do pensamento de forma diletante (Oliveira, 1995). Com efeito, os cientistas estrangeiros go-
zavam de uma posição específica no campo científico nacional: foi a eles creditado um capital
científico superior aos da maior parte dos professores nacionais, que, no geral, se caracterizam
pelo autodidatismo e pela formação apenas secundária.
Os estrangeiros seriam, neste contexto, considerados mais preparados, pois estudaram e
se formaram em escolas superiores e seriam capacitados a prover um ensino satisfatório e, prin-
cipalmente, orientar/formar uma elite intelectual brasileira por meio do desenvolvimento de
pesquisas “desinteressadas”.
Embora não tenha funcionado exatamente sem conflitos
4
, o sistema se completaria com a
absorção destes conhecimentos e todos pelos professores assistentes brasileiros, encarregados
4
Irene Cardoso (1982, p. 183) fornece explicação abrangente a respeito, a partir de sua entrevista com Roger
Bastide, constatando que havia um clima hostil missão francesa por parte dos católicos, “que julgavam os pro-
fessores franceses de esquerda; por parte das escolas profissionais, que achavam que o Brasil não precisava de
humanismo, mas de técnicos para o seu progresso econômico; por parte dos integralistas, que defendiam um na-
cionalismo de direita e julgavam dispensável a presença de professores franceses na Faculdade. A reação das
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Ciências Sociais no Rio de Janeiro e em São Paulo e seu impacto na Sociologia escolar (1930-1942)
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de propagá-los e de no futuro substituir seus mestres nas cátedras das universidades. Os professores
franceses foram peça-chave para que os projetos de universidade criados pelos fundadores da USP
funcionassem e se disseminassem nos campos científico e potico brasileiros.
Lembremos que a USP ao contrário da UDF que estava no centro do governo federal
e em conflito com ele, a partir do embate de Anísio Teixeira e a Igreja Católica
5
estava no
centro do poder econômico e social, tendo seu nascedouro na elite paulista. A universidade
pôde aí encontrar situação fértil para consolidar-se e desenvolver-se e “logo enveredou por um
processo acelerado de profissionalização, e, por conseguinte, dando margem à constituição de
uma cultura acadêmica como substituto envolvente de uma ideologia meramente corporativa
ou profissional (Miceli, 1987, p. 8)
Embora nos momentos iniciais não tenha sido dessa maneira, Miceli (1987) ainda
aponta que os responsáveis pelos cursos de Ciências Sociais conseguiram consolidar sua con-
tinuidade institucional se mostrando empenhados, no início, em contribuir na formação de do-
centes para o ensino secundário que, àquela altura, constituía um espaço profissional seguro,
onde até mesmo vinha buscar colocação uma parcela expressiva dos acadêmicos de Direito
necessitados de complementar suas rendas ou financiar, eles próprios, seus estudos.
No entanto, à medida que a disciplina sai da escola, em 1942, e a universidade e a pes-
quisa começam a operar autonomamente voltada sobretudo para a formação de seus futuros
quadros “reprodutores” e  produção científica –, a formação de seus egressos passava a depen-
der cada vez mais da renovada demanda suscitada pela própria categoria intelectual em forma-
ção, e não mais para docência no ensino secundário.
4. A Escola Livre de Sociologia e Política (ELSP) e a formação dos sociólogos
profissionais
Na mesma conjuntura em que foram criadas a USP e a UDF, também nasceu em São
Paulo, em 1933, a Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo (ELSP). Concebida como
escola isolada, essa instituição teve por objetivo contribuir para a formação de uma elite instru-
ída segundo a moderna ciência e com capacidade de antes de agir, compreender o meio social
em que vivemos (ELSP, 1933).
faculdades profissionais da própria Universidade expressava a luta interna que foi travada para a implantação da
FFCL, expressa nos debates do Conselho Universitário, contra a ideia da integração naquela Faculdade de todas
as cadeiras de conteúdo não profissionalizante da Universidade”.
5
Maria Hernia Tavares de Almeida (1987) nos fornece caminhos para esse entendimento: “semelhante USP na
concepção, a UDF o dispunha, contudo, da mesma rede social de apoio. A instituão paulista foi percebida, pelas
elites locais, como parte de um projeto de redeão política através da afirmação da hegemonia cultural paulista. E,
como tal, legitimou-se e pode ficar relativamente ao abrigo de tempestades poticas” (Almeida, 1987, p. 140).
O Ensino de Sociologia se “descola” da escola: o surgimento das graduações e da pós-graduação em
Ciências Sociais no Rio de Janeiro e em São Paulo e seu impacto na Sociologia escolar (1930-1942)
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Como veremos, a escola terá como norte primordial a formação de cientistas sociais,
além da Sociologia e da Antropologia como disciplinas norteadoras de seu currículo. No en-
tanto, se diferenciará da experiência da UDF e da USP, criando sentido próprio para disciplina
e para atuação do cientista social/sociólogo no Brasil, o que consolidará a especialização pro-
fissional a partir dos cursos de pós-graduação, do afastamento da disciplina dos bancos escola-
res e da universidade na formação para docência no secundário.
Tendo como base seu documento de fundação, vemos que já está presente a demarcação
da ELSP como formadora da elite paulista, o que desemboca na formação acadêmica oferecida,
e a necessidade de formar elites está acima da necessidade de formar profissionais para educa-
ção básica, por exemplo.
Para seus signatários, a história registra “grandes civilizações construídas sem base na
instrução popular. Mas não exemplo de civilização alguma que não tivesse por alicerce elites
intelectuais sábia e poderosamente constituídas” (ELSP, 1933). Estas elites também deveriam
ser formadas para a ação política e social, ou seja, a Escola seria uma tentativa de formar pro-
fissionais para o corpo dirigente da sociedade, seja à frente dos empreendimentos privados, e
sobretudo para a atuação na área pública
6
. O próprio conceito de atuação nos diz bastante sobre
a ELSP, já que a ideia não era atuar dentro da esfera pública de forma passiva, mas de pensar e
atuar em intervenções práticas na vida social.
Na prática, num primeiro momento, a ELSP se dedicou menos para as preocupações tri-
cas e conceituais e muito mais para a compreensão das transformações pelas quais passava o país.
Se a questão fosse o Brasil ou a sociedade brasileira, para am de formar quadros para nessa reali-
dade atuar, a ideia de seus dirigentes foi tornar a Sociologia a disciplina cienfica mais competente
em gerar o conhecimento necesrio que fizesse jus a tais pretensões (Del Vecchio, 2009).
A busca por um modelo que privilegiasse os critérios acima aponta diretamente para a
Sociologia norte-americana, já que a disciplina ganha status científico e lugar na universidade
daquele país para também pensar formas de resolver objetivamente seus problemas sociais,
oriundos dos conflitos entre o norte e o sul do país
7
. Ao adicionarmos a influência americana
nos anos 1930
8
, podemos asseverar que a Sociologia brasileira construiu seu sentido a partir da
6
O mesmo manifesto prega que a nova escola ofereça queles que a frequentem “[...] preparo indispensável para
eficiente atuação na vida social” (ELSP, 1933).
7
Como destaca Del Vecchio (2009), essa adoção do modelo americano mostrava-se inadequada se transposto sem
críticas à realidade brasileira, que a sociedade norte-americana dos anos 1930 não era bastante diferente,
como a reprodução de seu processo de desenvolvimento só poderia servir de modelo para empreendedores brasi-
leiros de origem abastada, tais como Simonsen.
8
Como demarcamos, nos anos 1930, a posição ocupada pelo Departamento de Sociologia de Chicago era de
liderança e hegemonia incontrastáveis no meio acadêmico americano. Os famosos estudos de ecologia humana,
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Ciências Sociais no Rio de Janeiro e em São Paulo e seu impacto na Sociologia escolar (1930-1942)
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combinação/contato de múltiplas referências e modelos. E levando em conta que o processo de
constituição da disciplina científica obedece a esse percurso histórico singular, não podemos
dizer o mesmo sobre as questões com que se defronta e para as quais deve apresentar soluções
de natureza diferente.
Desde o fim do Império, a Sociologia no Brasil assumiu (ou foi assumida) como a ciên-
cia que ajudaria a construir e unificar a nação, de modo racional
9
. Este processo, portanto, não
se deu como nos países do norte global, onde a ciência se preocupava em estudar a sociedade
industrial e como setores ou grupos se adaptam a ela. Seu objetivo em solo brasileiro se conec-
tou, até a década de 1930, à construção do tecido social para afirmação da nação.
Desse modo, a ELSP aparece como elemento a bagunçar essa estrutura, que questi-
ona, mesmo que de forma não intencionada, a disciplina como elemento de edificação da nação,
a partir da reivindicação de uma constituição dela mesma como ciência, recorrendo à investi-
gação e à intervenção frente aos problemas nacionais. Em suma, os problemas brasileiros levam
a Sociologia a percorrer um caminho diferente daqueles trilhados pelas sociologias estrangeiras
e contam com o auxílio de mestres fundadores oriundos desses países.
Deste modo, se explicam as razões que, em 1934, levaram os primeiros mestres os norte-
americanos, Horace Davis e Samuel Lowrie, a aportarem em terras paulistanas para lecionar na
ELSP. Estes professores, além de Sérgio Milliet e Bruno Rudolfer, exerciam, em mais de um
posto, essa militância pela institucionalização das ciências humanas que se operava de forma
intensa na São Paulo dos anos 1930
10
.
Esses cientistas participavam não da construção de um complexo aparato de produção
e difusão das “humanidades”, mas também da empreitada de desenvolvimento de uma modali-
dade de Sociologia até então não praticada no país, fundada em métodos e técnicas que incor-
poravam o tratamento quantitativo e que apontava para a resolução prática dos problemas
que tiveram por origem a pesquisa e a intervenção em situações de inadaptação social na Chicago das três primeiras
décadas do século passado, projetavam os sociólogos de Chicago em escala mundial, influenciando em terras
brasileiras, não só a ELSP, como também Gilberto Freyre (Vianna, 2007).
9
Como destaca Glaucia Villas Bôas: “quando a Sociologia surge no Brasil como disciplina acadêmico-científica,
não indaga o fundamento da associação entre os homens, à maneira dos franceses, nem a possibilidade teórica e
metodológica de conhecer a sociedade, à maneira dos alemães. Tampouco a ela interessam as reformas sociais ou
a integração de grupos de diferentes origens étnicas, a exemplo dos sociólogos norte-americanos que fundaram o
Departamento de Sociologia da Universidade de Chicago. A pergunta que funda a disciplina já estava inscrita na
tradição sobre o Brasil e dizia respeito à identidade da sociedade brasileira. Interessava investigar os problemas
concretos do país, principalmente conhecer suas peculiaridades e para saber de suas possibilidades de integrar-se
ao concerto das nações modernas” (Villas Bôas, 1997, p. 74).
10
Além de serem da primeira equipe de professores contratados pela ELSP, integravam os quadros da Subdivisão
de Documentação Social e Estatísticas Municipais do Departamento de Cultura desde a sua implantação, em 1935.
Além deles, alunos da ELSP ali atuavam como pesquisadores permanentes, integrantes do grupo de investigação
sobre o padrão de vida dos trabalhadores na Limpeza Pública.
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Ciências Sociais no Rio de Janeiro e em São Paulo e seu impacto na Sociologia escolar (1930-1942)
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estudados. Nesse contexto, a formação dos profissionais da área das Ciências Sociais ocorria
no ambiente formado por um complexo de instituições às quais os pesquisadores vinculavam-
se de modo cumulativo
11
.
Esta primeira dupla de sociólogos americanos na ELSP terá pesos e atuações diferentes.
Enquanto Davies teve curta estadia no país, retornando aos Estados Unidos logo após a conclu-
são do inquérito sobre as condições de vida dos operários paulistanos, Lowrie permaneceu até
1939, recrutando docentes e pesquisadores treinados nas investigações da escola, e é ele quem
convida Donald Pierson para que este atue como professor na ELSP e o substituísse não só nas
atividades docentes, mas também para que se constituísse na nova liderança intelectual da Es-
cola, processo que investigaremos adiante.
5. Donald Pierson: ELSP, consolidação da Sociologia aplicada e científica e a
criação da pós-graduação.
O convite a Pierson, para integrar a ELSP, veio em 1939, ele já estivera no Brasil ante-
riormente, entre 1935 e 1937, quando realizou levantamentos para sua tese de doutorado junto
à população negra da Bahia, sob a orientação de Robert Park na escola de Chicago. Naquele
momento também atuava como docente na Universidade de Fisk, Tennessee.
Pierson terá papel determinante na ELSP, como destaca Limongi:
novos rumos ao “projeto”, dotando-o de uma base acadêmica de que não dispunha. Isto
é, a formação e o conhecimento produzidos pela Escola passam a se inscrever no interior
do mundo acadêmico e deixam de se referir ao Estado. A preocupação em formar elites
técnicas cede lugar à insistência em treinar e formar sociólogos profissionais. A necessi-
dade e essencialidade da pesquisa empírica são mantidas. O intervencionismo e aplicação
postergados. E é por estruturar seu apelo neste campo que o “projeto” de Pierson foi capaz
de obter sucesso nos meios acadêmicos em formação (Limongi, 2001, p.263).
Diante do relatado acima, podemos dizer que Pierson se diferenciou dos sociólogos que
haviam chegado ao Brasil anos antes: enquanto os profissionais que vieram anteriormente fo-
caram sua atuação na docência e em métodos de pesquisa consolidados externamente, Pier-
son representou a transformação da análise histórico-sociológica em investigação positiva e a
introdução da pesquisa de campo controlada como recurso sistemático de trabalho, inaugurando
11
Neste primeiro momento, a ELSP concentrava-se na pesquisa predominantemente empírica e voltada para a
proposição de ações que superassem problemas claramente delimitados no sentido de proporcionar maior desen-
volvimento social. A atuação dos mestres estrangeiros e a formação dos novos cientistas ocorriam em projetos e
pesquisas que informavam intervenções, mormente públicas, e que articulavam estreitamente a ELSP e a Subdi-
visão de Documentação Social e Estatísticas Municipais, de forma a torná-las em algum nível conectadas. O ensino
e a prática da Sociologia aplicada estavam relacionados tanto ao campo das atividades didáticas e ao efetivo exer-
cício da profissão (Limongi, 2001).
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Ciências Sociais no Rio de Janeiro e em São Paulo e seu impacto na Sociologia escolar (1930-1942)
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uma nova tradição, marcado por um renovado padrão de cientificidade. Tradição esta que estava
em confronto com o que fora sociologicamente produzido antes dela, e passou a considerar
atrasado o pensamento social até então produzido.
Pierson realizará este movimento na ELSP, procurando marcar a especificidade da So-
ciologia por meio da reafirmação de sua identidade em contraste com as fronteiras disciplinares,
tentando definir de forma mais aguçada do que verificado até então, o objeto científico da So-
ciologia. Neste empreendimento, a influência da Escola de Chicago será marcante, principal-
mente no que ficou conhecido como campo da “Ecologia Humana”. Pierson partirá para a ten-
tativa de compreensão sociológica mais ampla possível da realidade brasileira em sua densi-
dade, realizando levantamentos sobre as características físicas da população brasileira, os pro-
cessos de povoamento, de amalgamação e de formação étnica; a competição biótica; o imperi-
alismo ecológico; a imigração europeia e asiática; a escravização; a utilização de terras e a
origem e os tipos de cidades
12
(Pierson, 1945).
Ele também critica a prevalência no Brasil dos autores frente à disciplina sociológica, e
isto representaria uma perspectiva atrasada, pré-científica, do tempo em que os “grandes no-
mes” dominavam as disciplinas sociais. Na sua visão, deveriam ser privilegiados os problemas,
os conceitos e a metodologia que concentram o principal interesse. Neste sentido, considera a
realidade como um dado a ser apreendido, novamente trazendo à baila a característica fundante
da ELSP de deslocamento dos problemas do grande campo da edificação nacional, para o da
pesquisa cotidiana, investigação das questões sociais básicas: o treinamento profissional dos
novos sociólogos deveria passar amplamente por isso. O desenvolvimento da Sociologia e a
valorização do trabalho de campo com o momento privilegiado da formação profissional co-
meçam a encontrar aceitação nos meios acadêmicos em constituição (Limongi, 2001).
Expressão própria desta crítica de Pierson se dá na sua tese de doutorado e pelo caráter
questionador desta acerca da famigerada “democracia racial” e das formas de desclassificação
e desqualificação do negro brasileiro, em que recorreu a diversificadas fontes primárias e dife-
rentes técnicas de pesquisa, que entraram em choque até mesmo com os resultados práticos da
sua própria pesquisa, como nos apontam Maio e Lopes (2017):
a fim de avaliar o grau de integração do negro à sociedade baiana, cuja matriz cultural
dominante é identificada à do colonizador português, Pierson se pergunta se a cor
12
Outros campos a serem explorados foram os da organização social e o papel das instituições sociais, como
família, religião, a influência da escravidão, das relações de raça, miscigenação, conflito e controle social, movi-
mentos sociais, acomodação, assimilação, aculturação, isolamento, comunicação, solidariedade, divisão do traba-
lho, relações entre classes, status, papel da mulher e da criança, entre outros (Pierson, 1945).
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Ciências Sociais no Rio de Janeiro e em São Paulo e seu impacto na Sociologia escolar (1930-1942)
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constituía critério de estratificação social em Salvador e em que medida as raças forma-
vam grupos ocupacionais endogâmicos, ou ainda, o grau de porosidade racial dos estra-
tos sociais, lançando mão do par conceitual “casta” e “classe”, que vinha sendo utilizado
por cientistas sociais em estudos do Sul rural americano sob a orientação de W. Lloyd
Warner. Na conceituação de Pierson, enquanto o conceito de classe social indica a exis-
tência de camadas abertas, permeáveis à mobilidade vertical, a casta é pensada, por
oposição, como camada fechada cujos membros são determinados por nascimento e
sobre os quais necessariamente se impõem fortes sanções ao casamento fora do grupo
[...]. No intuito de verificar estas hipóteses, Pierson lançou mão de diferentes recursos
de pesquisa: levantamento de dados censitários e de fontes arquivísticas em instituições
públicas; elaboração de amostras próprias da composição racial de diferentes ocupa-
ções, associações e bairros da cidade, e aplicação de questionários em instituições de
ensino visando à sondagem das atitudes raciais de jovens estudantes. Seu trabalho de
cunho mais etnográfico envolveu a realização de entrevistas e a observação participante,
por meio das quais buscou avaliar o grau e a forma de participação das raças em diversas
atividades sociais de Salvador. Pierson ainda reuniu “histórias de vida” de personalida-
des negras ocupando distintas posições na sociedade baiana por meio de textos autobi-
ográficos e correspondências [...]. A conclusão a que Pierson chega é a de que a cor do
indivíduo tinha pouco peso na determinação de sua posição social quando comparada a
outros atributos como riqueza, educação e observação de certos padrões de etiqueta, de
modo que critérios raciais não eram decisivos na organização da vida social local. Em-
bora comumente assinalada pelos críticos e estudiosos, tal interpretação sociológica, em
chave “classista”, nem sempre condiz com os elementos que emergem da pesquisa de
Pierson, especialmente de seu trabalho etnográfico, que, por vezes, acabam desestabili-
zando as afirmações de ordem mais geral do sociólogo, ao indicarem as fortes conota-
ções negativas associadas à cor e as tensões daí advindas. Antes, porém, de nos atermos
às interpretações que se cristalizaram em torno da obra de Pierson, que tendem a con-
cebê-la como uma ratificação da tese da democracia racial e a desconsiderar o encontro
transnacional de ideias que está em sua origem, buscaremos ressaltar, a partir de uma
análise atenta de Brancos e pretos na Bahia, o modo como o sociólogo constrói sua
narrativa e as incongruências que surgem entre esta e o material empírico apresentado
(Maio; Lopes, 2017, p. 123-124).
Notadamente, esta busca por integrar material empírico e técnicas de pesquisa nos pa-
rece que influenciou a formação profissional dos egressos da ELSP, que também é um elemento
que a diferencia no campo das Ciências Sociais em evidente oposição ao que fora produzido na
Sociologia brasileira. Devido a sua ligação íntima com os departamentos municipais paulistas
e sua formação voltada para pesquisa, a ELSP contribuiu para a formação e para o aperfeiçoa-
mento dos servidores públicos, preparando especialistas em atuação em áreas específicas, se
distanciando do modelo uspiano na década de 1930, cujo objetivo era formar professores para
as escolas secundárias especializadas nas ciências básicas com alta cultura geral.
No entanto, este comprometimento acadêmico com o campo da pesquisa e do ensino
acabaria por aproximar ELSP e USP, a partir da criação da seção de pós-graduação da ELSP,
em 1941. A inovação institucional representada pela pós-graduação encontrou apoio da unidade
científica em formação que buscava no aprimoramento próprio de sua especialização os recur-
sos para sua autoafirmação (Limongi, 2001). Essa aproximação contribuiu diretamente para
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consolidar o afastamento da disciplina de uma lógica voltada para o secundário, e à medida que
chegamos aos anos 1940, a criação da pós-graduação na ELSP consolidará o novo recorte pro-
fissional das Ciências Sociais no Brasil.
5.1 Estudos de pós-graduação ELSP
Desde sua chegada à ELSP, Pierson se tornou um defensor da Sociologia aplicada e
científica, tentando repensar a aplicação das Ciências Sociais no Brasil e se destacam nesse
empreendimento os estudos de comunidade e a valorização da empiria como método de análise.
Na ELSP, organizou e dirigiu o Departamento de Sociologia e Antropologia Social, instituindo
um seminário extracurricular de Métodos e Técnicas de Pesquisa, além de promover levanta-
mentos referentes à alimentação e à habitação na cidade de São Paulo com o objetivo de treinar
alunos no uso de instrumental de pesquisa.
A década de 1940 foi especialmente frutífera, que atuou como docente, orientador,
editor da “Revista Sociologia”, tradutor, pesquisador, além de representante de instituições de
fomento e financiamento à pesquisa, estrangeiros
13
. Para os objetivos deste artigo, considera-
mos, no entanto, que um dos papeis mais notáveis que exerceu nessa década, além de atuar
como docente orientador, foi o de responsável pela criação do primeiro curso de pós-graduação
em Ciências Sociais no Brasil, em 1941, junto a Herbert Baldus e Emílio Willems, configu-
rando, assim, a primeira Seção de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais do país.
O curso de pós-graduação representava a consolidação do projeto de Pierson para a ins-
tituição, que em vários níveis questionava o projeto original da instituição, fundada pelas elites
políticas e econômicas de São Paulo. O enfoque da escola tornou-se o treinamento profissional
e a produção de conhecimento referidos ao mundo acadêmico (Limongi, 2001), conferindo peso
à coleta de dados primários e à imersão do pesquisador no campo.
Pierson observa que a falta de profissionais treinados em pesquisa, capazes de trabalhar
de forma conjunta e coordenada em torno de uma mesma linguagem conceitual, era, em grande
parte, responsável pelo estágio pré-científico da produção intelectual local. A pesquisa socio-
lógica no Brasil estava dominada, em geral, por médicos, engenheiros e advogados de formação
que se limitavam a compor textos a partir da combinação de pontos de vista e teorias
13
Em 1945, tornou-se o responsável no Brasil pelo Programa do Instituto de Antropologia Social do Smithsonian
Institution, conseguindo atrair recursos para projetos de pesquisa. Realizou levantamentos prévios em cidades no
interior de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro e, entre 1947 e 1948, sempre assistido por alunos, conduziu
um estudo de comunidade em Araçariguama, cujos resultados deram origem, em 1951, à publicação de Cruz das
Almas: A Brazilian Village (Pierson, 1951). No início dos anos 1950, coordenando diferentes equipes de pesqui-
sadores, Pierson promoveu amplo projeto de investigação em localidades distribuídas pelo Vale do São Francisco.
O Ensino de Sociologia se “descola” da escola: o surgimento das graduações e da pós-graduação em
Ciências Sociais no Rio de Janeiro e em São Paulo e seu impacto na Sociologia escolar (1930-1942)
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heterogêneas e da livre manipulação de ideias sem o respaldo da empiria. O esforço da escola
também passar por criar uma cultura institucional e profissional de pós-graduação.
Neste contexto, nasce o curso, para melhorar e intensificar o processo de formação des-
ses cientistas sociais:
nos princípios de 1941, o diretor Cyro Berlink, da então “livre” Escola de Sociologia e
Política de São Paulo, gentilmente acedendo ao meu pedido, deu-me permissão para or-
ganizar aulas pós-graduadas, no “Departamento de Sociologia e Antropologiaque, ao
convite dele, eu estava organizando naquele ano. O interesse nisso veio da minha obser-
vação que estava faltando tempo para nossos alunos, enquanto frequentaram o curso sub-
graduado, receberem instrução quanto a uma grande parte do acervo de ciência social já
desenvolvido, naquele tempo. [...] Nestes primeiros meses de uma inciativa “pioneira” no
nosso querido Brasil, esforçamos para explicar aos alunos, à administração da Escola, e à
alguns professores para as quais era o novo empreendimento, as características e o valor
deste tipo de ensino. [...] Assim, nestes primeiros anos, as aulas pós-graduadas tinham
aumentadas em número ao ponto onde nos foi concedido permissão para organizar,
uma “Divisão de Estudos Pós-graduados” que, depois, dirigi durante vários anos até eu
ter de deixar o Brasil, por razões de saúde (Pierson, 1946, p. 1-2).
O corpo docente do curso
14
, que combinou professores especialistas em diversas áreas
das ciências humanas, possibilitou uma formação interdisciplinar que auxiliou posteriormente
na disseminação dos trabalhos dos alunos então formados, e estavam nesta equipe Sérgio Mil-
liet, Noemy da Silveira Rudolfer, Cecília Castro da Silva, Pedro Egydio de Carvalho, Mário
Wagner Vieira da Cunha, Emílio Willems e Herbert Baldus.
Sendo este o primeiro curso de pós-graduação na área de Ciências Sociais, nota-se um
incremento nas disciplinas já nos dois primeiros anos, além da quantidade de aulas com temas
diversos, entre estas destacam-se: “Os Tapirapé do Brasil” (Baldus); “O Estudo da Sociedade”
(Pierson); “Assimilação e Aculturação entre os Imigrantes Alemães no Brasil Meridional”
(Willems); e “O Negro no Brasil” (Pierson).
Além disso, juntou-se ao curso o conhecido antropólogo inglês Radcliffe-Brown
15
, da
Universidade de Oxford e professor visitante da ELSP, que, a princípio, deu aulas pós-gradua-
das sobre três matérias, “Princípios de Antropologia Social”, “Organização Social” e “Desen-
volvimento do Direito”, e permaneceu até 1944; bem como, durante um semestre, o sociólogo
norte-americano, professor T. Lynn Smith, da Louisiana State University e especialista em es-
tudos rurais em viagem de estudos no Brasil, que embora com mesa na embaixada norte-
14
Princípios curriculares e organizativos do Primeiro Curso de Pós-Graduação da ELSP. Fonte: Arquivo Edgard
Leurenroth, Unicamp, 2016, Donald Pierson Pasta 21.
15
Carta de Donald Pierson a Radcliffe-Brown. Fonte: Arquivo Edgard Leurenroth, Unicamp, 2016, Donald Pier-
son Pasta 21.
O Ensino de Sociologia se “descola” da escola: o surgimento das graduações e da pós-graduação em
Ciências Sociais no Rio de Janeiro e em São Paulo e seu impacto na Sociologia escolar (1930-1942)
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americana no Rio, veio periodicamente a São Paulo a fim de orientar a coleta de dados de seu
interesse por alunos cursando o seminário sobre “Pesquisas nas Comunidades Rurais do Brasil”.
O curso se subdividia em 5 seções: 1) Sociologia e Antropologia e 2) Economia, que
constituíam o cerne do curso, e três seções “oportunamente adicionadas”, 3) Política, 4) Psico-
logia e 5) Estatística. Cada seção ministraria oito disciplinas, com duração de um semestre cada
uma, sendo livre a possibilidade de adição, no futuro, de outras.
Na seção 1, as disciplinas foram a) Origens e desenvolvimento da Sociologia na Europa
e América; b) origens e desenvolvimento da Antropologia na Europa e América; c) estudos da
sociedade; d) Raça e Cultura; e) personalidade; f) seminário sobre Antropologia e Sociologia;
g) pesquisas no Brasil; e h) índios na América do Sul. Cada seção teria um decano e um subde-
cano para formulação e aplicação de atividades formativas aos discentes.
Sendo assim, na década de 1940, a divisão de pós-graduação foi tomando corpo e novos
professores e disciplinas se congregaram a ela possibilitando a formação de uma nova geração
de mestres em Ciências Sociais em uma instituição brasileira. Formam-se, entre outros, Oracy
Nogueira, Virgínia Leone Bicudo, Gioconda Mussolini, Florestan Fernandes, Fernando Alten-
felder Silva, Levy Cruz, David Maybury Lewis e Sérgio Buarque de Holanda.
Interessante notar que a Escola estabeleceu como objetivo o aprofundamento dos estu-
dos na área no sentido de difundir pesquisa, investigar processos sociais teóricos e práticos e
não mais a formação para o ensino, o que se consolidou em maior ou menor grau na carreira de
seus egressos
16
:
a) Dar ao aluno conhecimentos mais amplos e profundos sobre a natureza do homem e a atu-
ão dos processos sociais, preparando-o especialmente para realizar e difundir pesquisas.
b) Levar efeito a investigações sobre problemas fundamentais, tanto teóricos como práti-
cos, da vida coletiva (ELSP, 1941).
A partir da criação na ELSP, vemos um movimento já explorado frente a um novo mo-
delo de fazer Sociologia, que havia sido descrito como um modelo “profissionalizante” de So-
ciologia. Esse movimento ganhou novos contornos com a pós-graduação, isto porque apesar da
formação da ELSP na graduação primar por um padrão teórico e temático “moderno e cientí-
fico” voltado para prática, na pós-graduação e na formação que esta oferece passa a ser, sobre-
tudo, acadêmico inaugurando, assim, um novo sentido para disciplina, marcando sua história.
16
Finalidades/Admissão de Alunos/Organização da Pós da ELSP. Fonte: Arquivo Edgard Leurenroth, Unicamp,
2016, Donald Pierson Pasta 21.
O Ensino de Sociologia se “descola” da escola: o surgimento das graduações e da pós-graduação em
Ciências Sociais no Rio de Janeiro e em São Paulo e seu impacto na Sociologia escolar (1930-1942)
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Como nos mostra, por exemplo, o documento “RESPONSABILITIES OF THE DEAN
OF GRADUATE WORK”
17
, produzido em 1943 por Pierson, em que o coordenador do curso
de pós define as responsabilidades dos alunos no curso: seu principal objetivo seria achar com
seu orientador um tema de tese, a definição de seu problema, a bibliografia e seus métodos.
Entre as obrigações da escola, estaria estimular o interesse dos alunos a continuar seus estudos
para a produção das suas pesquisas (Pierson, 1943).
Percebemos, que enquanto a UDF no Rio de Janeiro pouco avançou, seja no ensino ou
pesquisa, a USP, nos seus primeiros passos, avançou na formação para o magistério (pelo menos
em intenção), enquanto a ELSP avançou na formação acadêmica científica especializada. Para
obtenção do título de mestre ou doutor, o aluno teria que mostrar sua “capacidade de fazer pes-
quisas
18
. Com isso, notemos que os horizontes teóricos e as expectativas em relação à Sociolo-
gia, que confluíam na direção da construção de uma disciplina científica, de corpo trabalho defi-
nido e que pudesse se afastar de análises e condutas normativas, foram traçados e consolidados.
Essa especialização do campo, a partir da valorização da cientificidade que estava
sendo gestada na UDF e na USP foi consolidada com a criação da 1ª pós-graduação na ELSP
e conjugada com a saída da disciplina da escola, que acabou por ser uma das principais razões
para o descolamento da disciplina da escola, processo que detalharemos adiante.
6. Escola x Universidade: quais impactos dos seus encontros e desencontros no
período 1930-1942
Como vimos anteriormente, a Sociologia permaneceu na escola até 1942, quando foi
retirada pela Reforma Capanema, o que coincide com o aparecimento e a consolidação das
graduações e pós-graduações nas universidades sudestinas. O que pretendemos investigar e
complexificar neste segmento é se isto, de fato, é uma coincidência. Acreditamos que olhar para
a História das Disciplinas Escolares possa nos ajudar a desenrolar os fios que compõem esses
processos de aproximação e afastamento.
Este campo de estudos busca produzir conhecimento sobre a historicidade dos saberes
que, em determinado momento, constituem-se em disciplinas escolares e os modos como estas
contribuem para a realização do processo de escolarização nos diferentes tempos históricos e
lugares nos quais são aprendidas e ensinadas.
17
Finalidades/Admissão de Alunos/Organização da Pós da ELSP. Fonte: Arquivo Edgard Leurenroth, Unicamp,
2016, Donald Pierson Pasta 21.
18
Princípios curriculares e organizativos do Primeiro Curso de Pós-Graduação da ELSP. Fonte: Arquivo Edgard
Leurenroth, 2016, Unicamp, Donald Pierson Pasta 21.
O Ensino de Sociologia se “descola” da escola: o surgimento das graduações e da pós-graduação em
Ciências Sociais no Rio de Janeiro e em São Paulo e seu impacto na Sociologia escolar (1930-1942)
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Como podemos entender o processo de disciplinarização escolar? Esse conceito diz res-
peito presença, à legitimidade e à consolidação das disciplinas. Apesar de termos consolidada
uma história do ensino escolar, o detalhamento das disciplinas do ensino secundário e sua rela-
ção com dinâmicas externas a este ainda carece de investigação nas diferentes políticas e am-
bientes escolares. As disciplinas escolares têm sido vistas historicamente como somente aquilo
que é ensinado nos currículos escolares e se faz necessário questionar esse paradigma para ve-
rificação precisa do processo de formulação dos conteúdos presentes no interior dessas disci-
plinas (Chervel, 1990).
O conteúdo central de qualquer disciplina, portanto, é a história dos conteúdos a serem
ensinados, ao passo que o objetivo desse estudo deve ser o de realizar a relação entre as finali-
dades que originam cada disciplina e os resultados concretos a que elas chegam internamente.
Considerando-se que em cada época a escola se coloca a serviço de diferentes finalidades e que
no seu conjunto fornecem a esta instituição o seu caráter educativo, é por meio das disciplinas
escolares que ela sempre vai colocar um conteúdo de instrução a serviço de uma finalidade
educativa. Conforme mudam as finalidades educativas, também vão modificando-se os conte-
údos de instrução a serem ensinados. As disciplinas portadoras destes conteúdos serão as que
alcançarão maior visibilidade e com “útil” finalidade em cada período e as que deixam de sa-
tisfazer a essas finalidades são as que tendem a ser abandonadas.
Nesse sentido, considerando o impacto e a aderência que tiveram o modelo de produção
científico adotado pelas universidades e pelos cursos de graduação/pós-graduação sudestinos
no campo sociológico brasileiro e seu afastamento gradual da formação de professores do e
para o ensino secundário, identificamos um descolamento das sociologias escolar e acadêmico.
Descolamento na sua finalidade, que no ensino escolar estava conectado a um projeto
de país que pensava a educação como reordenamento da pátria, reconstrução do país em torno
da educação a partir de um tipo de educação conectada a moral e cívica , que aparece e se
consolida mediante currículos e materiais didáticos enciclopédicos produzidos no período de
estudo que estavam intimamente ligados à reprodução exclusiva das tradições disciplinares
americanas e europeias.
Contudo, em outra ponta, o ensino superior nascente se conecta com a produção de ci-
ência e de um recorte que não privilegia tão somente a reprodução de métodos das tradições
supracitadas, mas também a análise de dados empíricos e pesquisa em diálogo com a realidade
brasileira privilegiando/visando a construção de um cânone próprio.
O Ensino de Sociologia se “descola” da escola: o surgimento das graduações e da pós-graduação em
Ciências Sociais no Rio de Janeiro e em São Paulo e seu impacto na Sociologia escolar (1930-1942)
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Não tratamos de dar peso/importância desmedido ao cânone gestado nas universidades
sudestinas ou conferi-lo um peso fundador exacerbado dentro da tradição sociológica brasileira,
porque este modelo no seu próprio período/processo de institucionalização sofreu duras críticas,
mas nos parece que seu recorte científico, tal como fora assumido, permitiu com que houvesse
uma ruptura com a Sociologia escolar e rearranjo do papel da disciplina entre nós.
Com efeito, notemos, por exemplo, que o conhecimento sociológico escolar sai do cur-
rículo quando o Estado Novo está no seu auge, mas o discurso sobre o atraso nacional começa
a perder força
19
. Não tivemos lugar para acomodar a Sociologia no currículo escolar, que,
naquele momento, a disciplina construía sua legitimidade científica e não era reconhecida nem
como clássica, nem como científica. Sendo assim, como justificar ou adequar sua permanência
no currículo escolar? Como adequar no currículo uma disciplina que não propõe mais valores
normatizadores no auge de uma ditadura?
Em suma, avançando para além das perguntas retóricas, ainda que sua reintrodução após
o Estado Novo tenha sido objeto de tímida discussão, a principal questão levantada foi a tarefa
de repensar ou reordenar seu conteúdo escolar autoritário e normativo, por um lado, e a reto-
mada da formação de professores de Sociologia para a atuação no secundário que foram inter-
rompidos, por outro.
A primeira questão nos parece que foi discutida no campo acadêmico, ainda na mesma
década, Costa Pinto (2024) nos mostra que, contraditoriamente, que o objetivo do ensino de
Sociologia na escola para seu retorno deveria passar ao largo de formar adolescentes sociólogos
no secundário, mas tornar as informações e os conhecimentos científicos sobre a vida social
“como pontos de partida e como materiais para gerar e elaborar no educando atitudes, estados
de espírito e formas de comportamento capazes de dar um caráter ativo e consciente à sua par-
ticipação e integração na sociedade e na cultura” (Costa Pinto, 2024 p.145).
Bem como, o erro básico de pretender ensinar ao estudante o que pensar, quando o es-
sencial á ensinar-lhe como pensar, treinando a capacidade de observar e analisar, com método
rigorosamente científico, as situações sociais complexas e as cambiantes que existem em torno
dele e das quais participa, é desejável “ensinar ao jovem estudante secundarista o que pensar, o
essencial e ensiná-lo como pensar” (Costa Pinto, 2024 p. 161), apontando para uma Sociologia
investigativa e construtiva que não esteve na escola na primeira metade do século XX.
19
Como aponta Moraes (2011), estávamos numa conjuntura onde o esgotamento do cenário relacionado à crise do
pacto republicano e à aspiração por uma organização nacional antiliberal mostrava-se evidente.
O Ensino de Sociologia se “descola” da escola: o surgimento das graduações e da pós-graduação em
Ciências Sociais no Rio de Janeiro e em São Paulo e seu impacto na Sociologia escolar (1930-1942)
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Florestan Fernandes tamm aponta para a necessidade do retorno da Sociologia
para o debate sobre a “formação de atitudes vicas e para a constituão de uma consciência
política” (Fernandes, 1976), mirando em um Ensino de Sociologia voltado para a discussão
sobre cidadania.
a questão da formação de professores se mostra como um dos principais vértices do
descolamento das sociologias escolar e acadêmica, pois, ainda que tenha saído do currículo das
escolas de ensino médio em 1942, o mesmo conteúdo reapareceu sob outras rubricas, entre as
quais Estudos Sociais, Moral e Cívica, Estudos dos Problemas Brasileiros, o que represou na-
quele momento a possibilidade de construção apontada por Costa Pinto e por Florestan Fer-
nandes acima de novos sentidos para disciplina no campo escolar, mas continuou, por outro
lado, possibilitando a formação de professores para atuar nessas novas disciplinas de caráter
notadamente conservador e não exclusivamente nas Ciências Sociais/Sociologia.
Considerações Finais
A geração de sociólogos formada pelas universidades sudestinas tornou-se responsável
pela gestação de novas práticas no campo sociológico, uma vez que desenvolveram linhas de
pesquisa que consolidaram projetos e instituições surgidos posteriormente. Este novo modelo
foi absorvido supondo que suas teorias eram reconhecidas como científicas, o que significaria
estarem libertas do tempo e do espaço em que foram elaboradas, momento que coincide, acre-
ditamos que não por acaso, com a saída da Sociologia da escola.
Lembremos que, na década de 1930, a disciplina permaneceu no currículo escolar com
o advento da Reforma Campos, dentro de cursos complementares acessados somente por estu-
dantes de elite, dentro da excludente educação nacional. Quando conseguiu se descolar desse
cenário, valorizando sua construção como área científica de conhecimento, saiu da escola por
meio da edição da Reforma Capanema em 1942.
Na universidade, atingiu os padrões esperados academicamente e, progressivamente, se
distanciou da escola. Mas, enquanto esteve no espaço escolar, a disciplina foi considerada ponta
de lança na tentativa de rápida superação do atraso brasileiro. À medida que investigou, de fato,
as mazelas brasileiras e as tornaram visíveis, perdeu espaço. Identificamos, assim, o descola-
mento (Lima, 2020) das duas sociologias, que à medida em que as universidades ganharam
força, as pós-graduações e a pesquisa assumiram espaço fundamental na dinâmica disciplinar.
Em outras palavras, este distanciamento foi causado por diversas razões, tais como a
inadequação do currículo, a construção de uma cientificidade acadêmica e o redirecionamento
O Ensino de Sociologia se “descola” da escola: o surgimento das graduações e da pós-graduação em
Ciências Sociais no Rio de Janeiro e em São Paulo e seu impacto na Sociologia escolar (1930-1942)
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da formação de professores para formação de pesquisadores que não se conectava naquele mo-
mento com a escola, causando o esgotamento naquela conjuntura das possibilidades de cons-
trução de um novo caminho para formação na disciplina para atuação neste espaço.
Esse afastamento da escola foi timidamente percebido e refutado no final dos anos 1940
e nos anos 1950, e são significativas, neste sentido, as edições da Sociologia: Revista Didática
e Científica” (Neuhold, 2023) no período, na primeira tese sobre ensino de sociologia publicada
em 1947 por Luiz Aguiar Costa Pinto (Costa Pinto, 2024) e no Congresso Brasileiro de
Sociologia, em 1954.
Embora estes movimentos tenham gerado alguma repercussão e/ou movimentações, não
foram suficientemente fortes para exigir a volta da disciplina aos bancos escolares
20
num cená-
rio onde a percepção acerca da edificação de um novo ideário acerca da “função” da disciplina
conectada a produção de um saber acadêmico se consolidava.
Por fim, podemos dizer que a Sociologia se desenvolveu na universidade e na escola
nos anos 1930-1940 a partir de caminhos diversos, mas, de maneira geral, a disciplina percorreu
um caminho que a tornou científica e acadêmica o que ajudou a romper com seus ideais
nacionalistas e positivistas, mas a afastou da docência no secundário e de uma aproximação do
debate público que anteriormente travava, espaço que só viria a ser retomado com o início das
lutas pela redemocratização brasileira nos anos 1980.
Recebido em 08/09/2023
Aprovado em 07/05/2024
Publicado em 16/08/2024
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20
Esses debates sobre o retorno, no entanto, tiveram impacto significativo sobre as gerações posteriores, especial-
mente o debate sobre a “formação de atitudes cívicas e para a constituição de uma consciência política” (FER-
NANDES, 1976) que ressoaram na luta pela volta da disciplina ao currículo.
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