Brasília, v. 20, n. 1, p. 1-4, 2025
https://doi.org/10.33240/rba.v20i1.57280
Como citar: BARROS, Flávio. EDITORIAL: Qual o lugar da agroecologia e dos povos e comunidades tradicionais no debate da bioeconomia? Revista Brasileira de Agroecologia, v. 20, n. 1, p. 1-4, 2025.
EDITORIAL
Qual o lugar da agroecologia e dos povos e comunidades tradicionais no debate da bioeconomia?
Nós, povos indígenas e populações tradicionais, já promovemos a sociobiodiversidade há milênios, através de nossa relação com a floresta e com nossos territórios. É fundamental que a nossa atuação e importância seja reconhecida e fortalecida a partir de nossos conhecimentos. Estamos promovendo esse evento para criar um espaço de discussão e marcar nossa posição nesse debate sobre bioeconomia (Toya Manchineri, assessor político da Coiab).
Durante o Fórum Mundial de Bioeconomia, que ocorreu de 18 a 20 de outubro de 2021, em Belém do Pará, no ápice da calamidade sanitária causada pela covid-19, povos indígenas, quilombolas, extrativistas, ribeirinhos, camponeses, quebradeiras de coco babaçu, pescadores artesanais e marisqueiras, representados por seus movimentos e organizações sociais, adentraram a Estação das Docas, local do evento, empunhando suas bandeiras de luta e proferindo gritos de protesto contra os formatos até então desenhados sobre o acesso à sociobiodiversidade por parte das empresas, grandes corporações e a ausência de diálogo. O acesso das lideranças ao recinto, que funcionava sob a vigilância de homens armados, só foi possível depois de muita negociação e enfrentamentos acalorados. O episódio em comento é um fragmento que demonstra o nível de descaso com a participação social daqueles que são os guardiões e conhecedores da sociobiodiversidade. Em face da falta de inclusão, as organizações, de forma paralela ao fórum, protagonizaram seu próprio evento, intitulado “Encontro Amazônico da Sociobiodiversidade”, debatendo temas e questões a partir da visão dos movimentos sociais e dos atores comprometidos com uma perspectiva mais social e integrada da bioeconomia. Neste editorial pretendo desenvolver um pensamento que nos possa conduzir à uma reflexão sobre o tema da bioeconomia e, neste caso, meu ponto de partida começa pela relação entre conhecimento, sociobiodiversidade, povos e comunidades tradicionais e agroecologia.
Um elemento contundente sobre o assunto em referência é o conhecimento, e falo aqui sobre o conhecimento tradicional das comunidades tradicionais, dos povos indígenas e dos camponeses, os quais milenarmente lidam com os bens da natureza para sua reprodução material e simbólica. Foram a observação dos movimentos da natureza, os experimentos, os processos de domesticação e a invenção de tecnologias que possibilitaram a transformação de espécies selvagens e até tóxicas, em produtos diversos e alimentos fundamentais, circunscrevendo a riqueza da socio e agrobiodiversidade que conhecemos hoje. Basta para isso lembrarmos da mandioca, essa planta cultural indispensável na culinária brasileira, cujas etnovariedades catalogadas passam de 3 mil. Como disse Lévi-Strauss em “O pensamento selvagem”, somente uma ciência do concreto daria conta de transformar uma planta silvestre em um bem incomensurável. Inúmeras vezes, ao visitar roças quilombolas e indígenas, via aquela vastidão de plantas, que aos meus olhos eram todas iguais. Mero devaneio.
Foram as comunidades que me ensinaram que cada variedade tem suas características próprias, como sabor, textura e cor da massa; formato da maniva, altura, época de produção, formato da folha, etc. As mesmas relações podemos estabelecer com o milho e com a batata, dada sua importância social, cultural e econômica para os povos mexicanos, no caso do primeiro, e as populações andinas, no caso das batatas. Portanto, é necessário estabelecer de forma muito clara que a biodiversidade útil aos seres humanos é fruto de uma longa trajetória que envolve, sobretudo, a prática da conservação in situ, processos de manejo e domesticação. Nada disso seria possível existir sem a construção do conhecimento ao longo do tempo. E essa forma de conhecimento, “tradicional”, é distinta do conhecimento designado como científico, pois o primeiro envolve modos muito próprios de criar, fazer, pensar, estabelecendo conexões cosmológicas, empíricas e históricas com a natureza e os diversos mundos possíveis, quase sempre incompreendidos pelas sociedades ocidentais. Com efeito, antes de tudo, é imperativo reconhecer e valorizar o conhecimento tradicional como elemento fundamental no debate econômico, político, social e ambiental sobre a sociobiodiversidade, a partir da perspectiva dos seus detentores, como preconiza a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
A categoria sociobiodiversidade, conforme reivindicam as comunidades e compreendida como campo interdisciplinar que estuda as interações complexas entre fatores sociais, biológicos e econômicos, dialoga mais com o conceito de sociobioeconomia do que com o de bioeconomia, pois nasce da mobilização e luta social dos povos tradicionais do Brasil. Resultados desse movimento são os programas e políticas públicas estabelecidos como mecanismos de fortalecimento da produção agroecológica e sustentável dos produtos, como o PGPMBio e o Plano Nacional de Promoção das Cadeias de Produtos da Sociobiodiversidade, pois, como bem pontuaram Abramovay et al. (2022):
Esses sistemas produtivos representam fonte de emprego e renda, e promoção da inclusão social, pilares essenciais para o desenvolvimento socioeconômico, desde que preservem os conhecimentos tradicionais e práticas sustentáveis (manejo e produção), respeitando os ciclos naturais de espécies nativas. Além de valorizar e fortalecer a identidade cultural, o modo de vida dessas comunidades e contribuir para a conservação da floresta e sua biodiversidade.
Com efeito, é imprescindível que a sociobiodiversidade seja reconhecida a partir de suas múltiplas dimensões agroecológicas, econômicas e socioculturais, na medida em que os sistemas produtivos imbricados geram segurança alimentar e nutricional, renda, bem viver entre as comunidades, além de preservar ecossistemas florestais e aquáticos por meio dos manejos agroextrativistas. Enquanto as grandes empresas olham para os produtos com suas potenciais capacidades de gerar outros subprodutos por meio de beneficiamentos a fim de aumentar lucros, muito distantes dos dividendos deixados aos produtores locais; já no caso das comunidades, a finalidade da produção é o bem viver. Assim, as comunidades devem ser estimuladas a desenvolverem sua própria autonomia de mercado, colocando à disposição da sociedade seus produtos, trazendo como valores a ausência de trabalho análogo à escravidão, a equidade de gênero, a justiça social, o não uso de agrotóxicos, a conservação da natureza e a defesa dos territórios sagrados, além do reconhecimento das identidades culturais.
Por fim, é essencial considerar a forte relação entre a sociobiodiversidade e a questão fundiária brasileira, uma vez que a imensa parte dos territórios tradicionalmente ocupados por comunidades tradicionais, como por exemplo, os territórios quilombolas, não possui titulação definitiva de suas terras, promovendo insegurança jurídica e toda a sorte de violência, resultando em homicídios, ameaças, invasões dos territórios e chegada de empreendimentos indesejados, colocando em perigo modos de vida e sistemas tradicionais e agroecológicos de produção. Somente no estado do Pará, a título de exemplo, são mais de 800 comunidades autodeclaradas, e menos de 10% desses territórios são titulados, traduzindo o descaso do Incra e, nos casos das terras estaduais, dos institutos de terras das unidades da federação. A sociobioeconomia deve, portanto, ser desenvolvida sob o manto da proteção jurídica e fundiária dos territórios ancestrais, da melhoria de vida das comunidades e do seu empoderamento baseado na autonomia política, social e produtiva e não como simples repassadoras de produtos para multinacionais e suas congêneres.
Flávio Bezerra Barros
Professor Associado do Instituto Amazônico de Agriculturas Familiares da Universidade Federal do Pará (Ineaf/UFPA). Docente permanente no Programa de Pós-Graduação em Agriculturas Amazônicas (Ineaf/UFPA) e no Programa de Pós-Graduação em Antropologia (IFCH/UFPA). Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq na área de Antropologia. Presidente da Sociedade Brasileira de Etnobiologia e Etnoecologia (SBEE) no período de 2018 a 2022. Sou membro do Conselho Editorial da Revista Brasileira de Agroecologia e líder do grupo de pesquisa do CNPq “Biodiversidade, Sociedade e Educação na Amazônia” (BioSE/CNPq/UFPA).
REFERÊNCIA
ABRAMOVAY, Ricardo; COSTA, Francisco A.; EULER, Ana Margarida C. Economia da sociobiodiversidade, caminhos para a Amazônia. In: NOBRE, Carlos et al. (org). Diálogos entre saberes por uma Amazônia que queremos. (s.l.):Nexo Políticas Públicas. 2022. p. 43-47.
Revista Brasileira de Agroecologia
ISSN 1980-9735
Publicação da Associação Brasileira de Agroecologia - ABA-Agroecologia em cooperação com o Programa de Pós-Graduação em Meio Ambiente e Desenvolvimento Rural - PPG-Mader, da Universidade de Brasília – UnB
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