i

 

 

Brasília, v. 20, n. 2, p. 117-145, 2025

https://doi.org/10.33240/rba.v20i2.56895

Como citar: SABOURIN, Eric et al. A construção de políticas públicas para a transição agroecológica dos sistemas alimentares: lições do sul. Revista Brasileira de Agroecologia, v. 20, n. 2, p. 117-145, 2025.

 

A construção de políticas públicas para a transição agroecológica dos sistemas alimentares: lições do sul

La construcción de políticas públicas para la transición agroecológica de los sistemas alimentarios: lecciones desde el sur

Building public policies for the agroecological transition of food systems: lessons from the South

Eric Sabourin¹, Carolina Milhorance2, María Mercedes Patrouilleau3, Stéphane Guéneau4, Paulo André Niederle5, Claire Dedieu6, Catia Grisa7, Andrea Sosa8, Jean François Le Coq9, Sara Mercandalli10.

1 Pesquisador do CIRAD Unidade ART Dev, Docente no Programa de Pós-Graduação em Meio Ambiente e Desenvolvimento Rural da Universidade de Brasília. Doutor em Antropologia pela Universidade Paris VII, Montpellier, França. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1171-2535. E-mail: eric.sabourin@cirad.fr

2 Pesquisadora do CIRAD, Unidade ART Dev, Montpellier, França. ORCID:  https://orcid.org/0000-0002-3290-8596. E-mail: carolina.milhorance@cirad.fr.

3Pesquisadora do INTA-CONICET, Centro de Investigación y Desarrollo Tecnológico para la Agricultura Familiar (CIPAF), Instituto Nacional de Tecnología Agropecuaria (INTA), Argentina, https://orcid.org/0000-0002-9221-4342 ,

E-mail: patrouilleau.mm@inta.gob.ar.

4Pesquisador do CIRAD, Unidade Moisa,, Vientiane, Laos, https://orcid.org/0000-0002-4148-4799.

E-mail: stephane.gueneau@cirad.fr

5 Docente no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Políticas Públicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7566-5467. E-mail: pauloniederle@gmail.com

6 Pesquisadora do CIRAD, Unidade MOISA, Montpellier, França. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9506-8996.  E-mail: claire.dedieu@cirad.fr

7 Docente no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6685-4875. E-mail: catiagrisaufrgs@gmail.com

8 Pesquisadora do CONICET, Docente no Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Nacional de San Martin, Buenos Aires, Argentina. ORCID:  https://orcid.org/0000-0002-7376-6213. E-mail: andreapatriciasosa@gmail.com

9 Pesquisador do CIRAD Unidade ART Dev, Docente no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Agrícola, CPDA da Universidade Federal de Rio de Janeiro. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1084-1973. E-mail: jflecoq@cirad.fr

10 Pesquisadora do CIRAD, Unidade ART Dev, Montpellier,França. ORCID: https://orcid.org/0009-0005-7971-6339. E-mail: sara.mercandalli@cirad.fr

 

Recebido em: 23 jan 2025 - Aceito em: 01 abr 2025

 

Resumo

Esse artigo apresenta os resultados da primeira etapa do projeto “Agroecological Transitions for Sustainable Food Systems: a case for public policies (TAFS)” coordenado pelo Centro de Cooperação Internacional em Pesquisa Agronômica para o Desenvolvimento (CIRAD) e executado por vários parceiros em dez países de África, América Latina e Ásia. O principal objetivo do projeto TAFS era fornecer aos tomadores de decisão argumentos convincentes para a formulação e a construção de políticas públicas de apoio à Transição Agro-Ecológica (TAE) dos sistemas alimentares na escala territorial. O projeto também se baseou nesses conhecimentos para estimular a reflexão coletiva sobre os instrumentos de ação pública e para co-construir, com os tomadores de decisão e os atores territoriais do sistema alimentar, uma visão estratégica da transição para sistemas alimentares sustentáveis, fundada em práticas agroecológicas. Os resultados estão baseados em evidências científicas, dados de campo e experiências práticas. Eles destacam três principais conclusões: i) a diversidade das definições e visão da Transição Agroecológica com uma série de concepções hibridando três categorias: Agroecologia, produção orgânica e agricultura sustentável; ii) a variedade de atores implicados na formulação de políticas de transição agroecológica, mas o papel-chave do ator tradutor da concepção implementada: movimentos sociais ou agências de cooperação internacional; iii) os processos de institucionalização da TAE são marcados pelos diálogos entre essas duas categorias de atores e os poderes públicos e moldados pelo regime político e/ou pelo sistema de cooperação internacional.

Palavras-chave: Agroecologia, políticas públicas, territórios, produção orgânica.

 

Abstract

This article presents the results of the first stage of the TAFS project (Agroecological transitions for sustainable food systems: a case for public policies) coordinated by the Centre for International Cooperation in Agricultural Research for Development (CIRAD) and carried out by various partners in ten countries in Africa, Latin America and Asia. The main objective of the TAFS project was to provide decision-makers with convincing arguments for the formulation and construction of public policies to support the Agro-Ecological Transition (AET) of food systems at the territorial scale. The project also drew on this knowledge to stimulate collective reflection on public action instruments and to co-construct, with decision-makers and territorial food system actors, a strategic vision of the transition to sustainable food systems based on agroecological practices. The results are based on scientific evidence, field data and practical experiences. They highlight three main conclusions: i) the diversity of definitions and visions of the Agro-Ecological Transition with a series of conceptions hybridizing three categories: Agroecology, organic production and sustainable agriculture; ii) the variety of actors involved in the formulation of agro-ecological transition policies, but the key role of the actor translating the implemented concept: social movements or international cooperation agencies; iii) the AET institutionalization processes are marked by dialogues between these two categories of actors and public authorities and shaped by the political regime and/or the international cooperation system.

Keywords: Agroecology, public policies, territories, organic production.

 

Resumen

Este artículo presenta los resultados de la primera fase del proyecto TAFS (Transiciones Agroecológicas para Sistemas Alimentarios Sostenibles: argumentos a favor de las políticas públicas) coordinado por el Centro de Cooperación Internacional en Investigación Agronómica para el Desarrollo (CIRAD) y llevado a cabo por diversos socios en diez países de África, América Latina y Asia. El principal objetivo del proyecto TAFS era proporcionar a los responsables de la toma de decisiones argumentos convincentes para la formulación y construcción de políticas públicas de apoyo a la Transición Agroecológica (TAE) de los sistemas alimentarios a escala territorial. El proyecto también se basó en estos conocimientos para estimular la reflexión colectiva sobre los instrumentos de acción pública y co-construir, con los responsables de la toma de decisiones y los actores de los sistemas alimentarios territoriales, una visión estratégica de la transición hacia sistemas alimentarios sostenibles basados en prácticas agroecológicas. Los resultados se basan en evidencias científicas, datos de campo y experiencias prácticas. Destacan tres conclusiones principales: i) la diversidad de definiciones y visiones de la transición agroecológica con una serie de concepciones que hibridan tres categorías: Agroecología, producción ecológica y agricultura sostenible; ii) la variedad de actores implicados en la formulación de políticas de transición agroecológica, pero el papel clave del actor que traduce el concepto implementado: movimientos sociales o agencias de cooperación internacional; iii) los procesos de institucionalización de la TAE están marcados por diálogos entre estas dos categorías de actores y las autoridades públicas y moldeados por el régimen político y/o el sistema de cooperación internacional.

Palabras-clave: Agroecología, políticas públicas, territorios, producción orgánica.

 

Introdução

As transformações observadas nos sistemas alimentares globais, nas últimas décadas, têm gerado impactos ecológicos, sociais e econômicos significativos. A degradação ambiental provocada pelo modelo agrícola industrial, a exclusão crescente de agricultores familiares e o aumento de problemas nutricionais têm contribuído para o reconhecimento de abordagens alternativas que promovam um desenvolvimento agrícola mais sustentável. Nesse cenário, a Agroecologia emerge como uma resposta que busca promover sistemas alimentares mais justos e resilientes (Gliessman, 2000; Altieri, 2018; Dale, 2020). Desde os anos 1990, a Agroecologia tem avançado no campo político, consolidando-se como referência tanto para agências de cooperação internacional, quanto para políticas públicas em diferentes níveis, incluindo estados federados, províncias e cidades (Sabourin et al., 2017; Guéneau et al., 2019; Pavageau et al., 2020). Embora poucos países tenham implementado políticas específicas, observa-se um crescimento significativo de ações públicas que incorporam diretrizes e instrumentos de apoio à transição agroecológica (Place et al., 2022).

Este artigo apresenta os resultados da primeira etapa do projeto Agroecological Transitions for Sustainable Food Systems: A Case for Public Policies (TAFS), coordenado pelo Centro de Cooperação Internacional em Pesquisa Agronômica para o Desenvolvimento (CIRAD) e desenvolvido em parceria com organizações de dez países da África, América Latina e Ásia1. O projeto estudou os processos e políticas de transições agroecológicas em escala nacional e territorial (Stassart et al., 2012; Gliessman, 2016; Lamine, 2020), articulando dados empíricos e experiências práticas. Seu objetivo principal era fornecer subsídios sólidos para a formulação de políticas públicas que promovam a Transição Agroecológica (TAE). Neste contexto, o projeto identificou três desafios interligados: i) garantir o fornecimento contínuo de alimentos suficientes, acessíveis, diversificados, nutritivos e saudáveis para populações urbanas e rurais; ii) fomentar a geração de empregos dignos e rendas adequadas para agricultores e suas famílias; e iii) assegurar o manejo sustentável dos recursos naturais em nível produtivo e territorial, especialmente diante das mudanças climáticas.

O objetivo da análise apresentada neste artigo é compreender as condições e os fatores que influenciam a construção de políticas de apoio à TAE em diferentes contextos.  Buscou-se analisar como diferentes modalidades de TAE emergem em escala nacional, ou regional, e quais fatores políticos contribuem para a institucionalização de representações específicas da TAE (Mzoughi; Napoleone, 2013). Nossas hipóteses de trabalho partem do pressuposto de que, em países do Sul Global, a institucionalização da TAE depende de dois elementos centrais: por um lado, a estrutura institucional e as dinâmicas de cooperação internacional, que podem criar ou restringir oportunidades para a construção de políticas agroecológicas; por outro, as iniciativas e pressões exercidas por movimentos sociais e pela sociedade civil organizada, que desempenham um papel fundamental na promoção de mudanças institucionais. Além disso, argumenta-se que o modelo predominante de políticas agrícolas convencionais constitui um obstáculo significativo, limitando a capacidade de avanços em direção a sistemas alimentares sustentáveis (Sabourin et al., 2018).

O artigo está estruturado em três seções além da introdução e da conclusão. A primeira introduz a abordagem teórico metodológica. A segunda apresenta uma análise transversal das iniciativas e políticas de TAE nos países estudados. A terceira discute os resultados com foco nos processos de institucionalização e implementação de políticas públicas de TAE, destacando os aprendizados gerados em termos de instrumentos e orientações para a transição agroecológica em escala territorial e nacional.

Metodologia, material e método

O referencial teórico e metodológico do estudo situa-se no campo da sociologia da ação pública (Hassenteufel, 2010; Lascoumes e Le Galès, 2012). A partir dessa perspectiva, buscou-se caracterizar os processos de interação entre atores-chave, os fatores institucionais e as representações que influenciam a TAE. Para isso, um quadro analítico foi estruturado em torno de cinco componentes principais: i) identificação dos atores envolvidos, suas relações e recursos; ii) análise das interações entre grupos de interesse, coalizões e redes; iii) avaliação das ideias e representações da TAE no debate público e nas legislações existentes; iv) caracterização das instituições e estruturas políticas relevantes; e v) estudo dos instrumentos de ação pública implementados (Lascoumes e Le Galès, 2012).

Os dados foram coletados entre 2021 e 2022 em dez países (Madagascar, Mali, Burkina Faso, Senegal, África do Sul, Brasil, Argentina, Colômbia, Vietnã e Laos – Figura 1) por meio de análises documentais e entrevistas semiestruturadas com representantes governamentais, do setor privado e da sociedade civil. Essa abordagem permitiu capturar a diversidade de contextos institucionais, sociais e ambientais que influenciam as transições agroecológicas, oferecendo uma base para análises transversais sobre os fatores determinantes e os obstáculos enfrentados em cada país. A adoção de uma metodologia comum possibilitou não apenas a sistematização dos resultados, mas também o compartilhamento de experiências entre os países envolvidos (Quadro 1). Nesse artigo nos limitamos a uma síntese transversal dos estudos nacionais, apresentando grandes tendências regionais.2 A diversidade de contextos nacionais e regionais investigados permitiu uma análise transversal que vai além da comparação direta, destacando especificidades locais enquanto identifica padrões mais amplos. Essa abordagem revelou como instrumentos de política pública ad hoc e adaptados podem desempenhar um papel decisivo no apoio à construção de sistemas alimentares sustentáveis, tanto no curto quanto no longo prazo.

 

 
Figura 1. Localização dos estudos de caso e instituições parceiras
Fonte: projeto Agroecological Transitions for Sustainable Food Systems (TAFS)
 

Quadro 1. Quadro analítico e de coleta de dados

  1. 1.Atores: Quais atores/ instituições apoiam ou se opõem à TAE? 

    • Identificação e tipologia dos atores: descrição de suas atividades, recursos técnicos, financeiros e políticos, além de sua proximidade com o poder político e institucional. 

    • Análise de influência: papel desempenhado por ator nos processos de formulação, implementação e resistência à TAE. 

    • Dinâmica de mobilização: capacidade de engajamento e articulação desses atores no contexto da TAE. 

  2. 2.Interações e Relações de Poder: Como os diferentes grupos interagem em torno da TAE? 

    • Grupos de interesse, coalizões e redes: identificação de alianças, tensões e conflitos entre os atores. 

    • Análise de narrativas em disputa e pontos de convergência ou divergência. 

    • Mapeamento de arenas formais e informais de negociação e construção de consensos. 

  3. 3.Ideias e Referenciais: Quais são os quadros normativos e representações mobilizados em torno da TAE? 

    • Definições e conceitos: análise das principais ideias que orientam a caracterização da TAE em discursos públicos e políticas. 

    • Mapeamento das visões predominantes e alternativas sobre a Agroecologia, com base em discursos públicos e regulamentações. 

    • Identificação de iniciativas e propostas concretas para promover a TAE. 

  4. 4.Instituições e Estruturas Normativas: Quais regras e instituições moldam os processos de TAE? 

    • Evolução das políticas e marcos institucionais relacionados à TAE e sua relação com políticas agrícolas dominantes. 

    • Identificação de momentos críticos e mudanças paradigmáticas que influenciaram a TAE. 

    • Análise de interações entre níveis de governança (local, nacional e internacional) na promoção ou obstrução da TAE. 

  5. 5.Resultados em termos de instrumentos: Quais políticas públicas e instrumentos foram implementados 

    •  Identificação dos instrumentos utilizados para promover ou restringir a TAE, como subsídios, regulamentações e incentivos fiscais. 

    • Análise dos efeitos concretos das políticas sobre os sistemas de produção agroecológica e o ambiente socioeconômico. 

    • Mapeamento de barreiras persistentes e oportunidades para fortalecer a institucionalização da TAE. 

Fonte: Autores, adaptado de Lascoumes e Le Galès (2012).

Os relatórios de cada país foram discutidos coletivamente entre os autores e coautores, a fim de destacar, em uma perspectiva comparativa e transversal, os principais elementos que influenciam a institucionalização da agricultura nos diferentes países: a concepção de Agroecologia apoiada pelos atores mais influentes, a natureza das configurações entre os atores chaves, os processos institucionais e os instrumentos de política pública, em particular, daqueles ligados ao regime político e ao regime de ajuda internacional.

As concepções e atores chave na construção de políticas de TAE

Três grandes concepções da TAE: Agroecologia, produção orgânica e agricultura sustentável.

A definição da Agroecologia constitui, em grande parte, um processo de construção conceitual – e, em alguns casos, político – conduzido pelos diversos atores envolvidos. Esse processo reflete as especificidades dos contextos locais e regionais, bem como as interações entre os diferentes atores, suas ideias dominantes e os quadros político-institucionais vigentes. As concepções de Agroecologia, assim como os caminhos para sua institucionalização, variam amplamente em função desses fatores, sendo adaptadas para atender às necessidades e realidades locais. Em espaços de diálogo internacionais, é comum que os projetos promovam concepções amplas de Agroecologia e sistemas alimentares sustentáveis (Loconto; Fouilleux, 2019; Di Roberto et al., 2023). Essa amplitude, por sua vez, confere aos atores nacionais e subnacionais uma margem de manobra considerável para interpretar e priorizar abordagens específicas em seus contextos.

Neste estudo identificamos três grandes concepções da TAE nos dez países analisados: Agroecologia, produção orgânica e agricultura sustentável. Entre essas, apenas a produção orgânica apresenta uma definição padronizada e consolidada, sustentada por processos de certificação e pela atuação da Federação Internacional de Movimentos de Agricultura Orgânica (IFOAM). Já a Agroecologia e a agricultura sustentável apresentam maior diversidade de interpretações e subtipos, moldadas pelas dinâmicas locais e regionais, bem como pelas agendas políticas e econômicas de cada país.

Na América Latina, os movimentos agroecológicos defendem, de forma geral, uma transformação radical dos sistemas agrícolas e alimentares, em oposição ao modelo convencional orientado para exportação. Essa transformação é percebida como indispensável para enfrentar os desafios ambientais, sociais e econômicos que afetam a região (Wezel et al., 2014). Embora compartilhe com a produção orgânica princípios como a proteção dos ecossistemas e a rejeição de insumos sintéticos, a Agroecologia latino-americana se distingue ao enfatizar a autonomia dos produtores, tanto no acesso a insumos quanto na comercialização de seus produtos. Além disso, valoriza a reciclagem de recursos dentro dos sistemas agrícolas, reduzindo a dependência de insumos externos. A Agroecologia vai além da técnica agrícola, propondo uma transformação mais ampla do sistema agroalimentar, incluindo as relações entre produtores e consumidores. Essa abordagem promove circuitos curtos de comercialização, que fortalecem a segurança e a soberania alimentar em escala territorial. Assim, a Agroecologia latino-americana adota uma abordagem holística, que integra, de forma explícita, as dimensões sociais, ambientais, econômicas e culturais, além de questionar as estruturas e os impactos do agronegócio convencional ao exemplo dos resultados encontrados no Brasil e na Argentina (Niederle et al., 2021; Sosa Varroti et al., 2022).

Em países africanos e asiáticos, como Laos, Madagascar, Senegal, Burkina Faso e Mali, a TAE não se caracteriza pela substituição de uma agricultura convencional intensiva por um modelo ecológico alinhado aos princípios da natureza. Em vez disso, ela envolve a “intensificação ecológica”3 (Griffon, 2013) de uma agricultura camponesa tradicional, que historicamente operou com poucos ou nenhum insumo externo, frequentemente limitados às culturas comerciais. Apesar de menos dependentes de insumos químicos, esses sistemas tradicionais não estavam isentos de impactos ambientais, como desmatamento, queimadas, erosão do solo e, em alguns casos, contaminação por pesticidas (Cesaro, 2020; Debar, 2020). Essa abordagem de intensificação ecológica busca melhorar a eficiência dos sistemas tradicionais, adaptando-os às demandas atuais sem comprometer os recursos naturais. Apesar das especificidades de cada país, as políticas públicas relacionadas à TAE tendem a priorizar abordagens predominantemente técnicas, direcionadas para unidades de produção ou cadeias produtivas específicas, enquanto os aspectos sociopolíticos, como a equidade no acesso a recursos e a participação comunitária, são frequentemente relegados a segundo plano (Milhorance et al., 2024). Nesse contexto, os governos priorizam a racionalização do uso de insumos químicos, a introdução de bioinsumos e a capacitação técnica por meio de subsídios e programas de formação. Corresponde a uma das vias da agricultura sustentável observada no Brasil e na Argentina (Niederle et al., 2022; Patrouilleau et al., 2022). Essas estratégias refletem uma visão funcionalista da TAE, que privilegia soluções práticas e imediatas para problemas ambientais e produtivos.

A África do Sul, por sua vez, apresenta uma configuração distinta, onde a Agroecologia se manifesta em duas vertentes principais. A primeira é uma abordagem de base comunitária, associada às campanhas por soberania alimentar e à luta contra a dependência de insumos externos. Essa vertente busca fortalecer a resiliência das comunidades locais por meio de práticas agroecológicas que valorizam a gestão coletiva dos recursos e a produção para consumo local. A segunda vertente está mais orientada para a produção empresarial, integrada ao modelo da agricultura orgânica, com foco na certificação e no acesso a mercados de exportação. Essa dualidade reflete a coexistência de diferentes interesses e prioridades dentro do setor agrícola sul-africano, destacando os desafios de alinhar políticas agroecológicas com as demandas de mercados globais (Greenberg; Drimie, 2021).

A produção orgânica, promovida pela IFOAM e outras organizações do setor, apresenta uma definição mais clara e consolidada do processo de transição promovido, baseando-se na exclusão de insumos sintéticos em favor de alternativas “naturais”. Essa abordagem é regulada por sistemas de certificação rigorosos, que garantem conformidade com normas específicas e permitem o acesso a mercados diferenciados. A maioria dos produtores orgânicos são agricultores familiares, mas, muitas vezes, encontram-se também empreendedores familiares ou empresas voltadas para exportação. Para esses atores, a certificação representa uma oportunidade de mercado e uma forma de agregar valor aos seus produtos (Audet; Gendron, 2011).

A agricultura sustentável, por outro lado, não constitui uma alternativa propriamente nova. Trata-se de uma abordagem suficientemente ampla para incorporar práticas e conceitos pré-existentes, muitas vezes desenvolvidos no âmbito de iniciativas anteriores de gestão sustentável de recursos naturais. Essa abordagem não desafia diretamente a intensificação convencional, mas incorpora práticas agroecológicas apoiadas por incentivos financeiros, como créditos condicionados e subsídios.

Na África Ocidental, o termo "gestão sustentável das terras" tem sido utilizado desde os anos 2000, associado principalmente a iniciativas de assistência técnica e extensão rural, sem o desenvolvimento de instrumentos políticos específicos. Essas práticas incluem conservação do solo, manejo integrado de água e práticas alternativas de controle de pragas. No Senegal, por exemplo, destacam-se iniciativas que visam proteger, restaurar ou criar condições para uma gestão sustentável dos recursos naturais, como água, solo, florestas e recursos pesqueiros, que são fundamentais para a produção alimentar. Entre essas iniciativas, encontram-se a gestão comunitária de florestas, a regeneração natural assistida (RNA), a reconstituição de recursos haliêuticos, a gestão comunitária de recursos pastorais e a gestão integrada de recursos hídricos. Apesar de não serem novas, essas abordagens ilustram como a agricultura sustentável pode ser mobilizada para enfrentar os desafios ambientais contemporâneos em diferentes escalas (Milhorance et al., 2022).

Na América Latina, práticas sustentáveis são complementadas por estratégias de promoção de serviços ambientais (para conservação das águas, florestas e da biodiversidade, ver Ezzine de Blas et al., 2017) ou da adaptação às mudanças climáticas a exemplo da proposta da Climate Smart Agriculture (CSA) aplicada na Colômbia e no Brasil (Osorio Garcia et al., 2019). O conceito de CSA reúne estratégias integradas para impulsionar a adaptação climática, a mitigação de impactos ambientais e a produtividade agrícola, com o objetivo de aumentar a renda dos produtores e garantir a segurança alimentar. No entanto, a CSA é alvo de debates significativos, especialmente em relação à definição de instrumentos concretos para sua implementação (Lipper et al., 2014). Caron e Treyer (2016) apontam que a CSA tende a despolitizar os debates climáticos, pois soluções apresentadas como win-win-win mascaram o fato de que questões cruciais frequentemente exigem arbitragem política, em contextos nos quais os atores têm acesso desigual aos recursos. No Brasil, associações privadas do agronegócio, em parceria com o Ministério da Agricultura, têm promovido estratégias integradas que combinam adaptação climática, mitigação e aumento da produtividade, fundamentadas no conceito de CSA. No entanto, na prática, a agenda de adaptação tem ganhado maior destaque, alinhando-se ao potencial de aumento da produtividade, enquanto os esforços de mitigação têm sido relegados. A mitigação, associada ao controle do desmatamento e à aplicação de normas ambientais, enfrenta resistência de diversos atores do agronegócio, que tradicionalmente se opõem a essas medidas (Milhorance et al., 2022).

Assim, o conceito de CSA, embora compatível com noções de agricultura sustentável, tem sido apropriado de forma seletiva, priorizando interesses produtivistas em detrimento de uma abordagem mais equilibrada e comprometida com a sustentabilidade ambiental. Diferentemente da Agroecologia, que adota uma abordagem holística e abrange dimensões sociais, culturais e ambientais, a agricultura sustentável tende a focar predominantemente na sustentabilidade ambiental. A agricultura sustentável é promovida por governos preocupados com a conservação dos solos, a redução de pesticidas e a mitigação de impactos ambientais, reforçando uma abordagem técnica e funcionalista da sustentabilidade.

Diversidade de atores envolvidos na TAE

A construção e a implementação da TAE refletem uma complexa interação entre múltiplos atores, cada um desempenhando papéis específicos em função de seus interesses, capacidades e contextos sociopolíticos. Esses atores incluem organizações da sociedade civil, o setor privado, governos em diferentes níveis, agências de cooperação internacional e instituições de pesquisa que, juntos, moldam as dinâmicas locais, nacionais e internacionais da promoção da Agroecologia. A forma como esses atores interagem influencia diretamente as concepções, agendas e políticas relacionadas à TAE.

As organizações da sociedade civil desempenham um papel central em todos os países estudados, sendo responsáveis não apenas por influenciar políticas públicas, mas também por implementar iniciativas locais. Associações de produtores, movimentos agroecológicos, ONGs técnicas e organizações de consumidores constituem o núcleo dessa atuação. Na América Latina e na África Ocidental, a Agroecologia camponesa, com ênfase na soberania alimentar, é promovida como uma alternativa ao modelo convencional baseado na exportação. Essas organizações defendem práticas que priorizam a reciclagem de recursos, a autonomia dos agricultores e a transformação das relações de produção e comercialização em escala territorial (Sabourin et al., 2018).

No Senegal, por exemplo, a ONG ENDA-Pronat desempenha um papel pioneiro desde os anos 1980, promovendo a substituição de pesticidas e práticas agroecológicas experimentais. Tais esforços são complementados por eventos de grande relevância, como a conferência da IFOAM em Burkina Faso, em 1989, que consolidou o papel da Agroecologia na África Ocidental (Milhorance et al., 2022). Já em países como Laos, Madagascar e Vietnã, a sociedade civil frequentemente atua como beneficiária de programas internacionais de cooperação, o que pode limitar sua capacidade de promover uma Agroecologia mais radical e adaptada aos contextos locais (Gueneau; Xiong, 2022; Raharison, 2022). No contexto da África do Sul, observam-se dinâmicas distintas. A Agroecologia está associada tanto a campanhas comunitárias de soberania alimentar quanto a iniciativas empresariais voltadas para a produção orgânica certificada. Essa dualidade reflete as tensões entre um modelo de base comunitária e uma abordagem voltada para o mercado, evidenciando os desafios de alinhar interesses diversos em um mesmo sistema produtivo (Greenberg; Drimie, 2021).

Os governos, em seus diferentes níveis, também desempenham um papel crucial na promoção da TAE. Além de financiar programas de cooperação internacional, alguns países, como Argentina, Brasil e Senegal, têm implementado legislações e instrumentos específicos em favor da Agroecologia. No Brasil, por exemplo, políticas como o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) incentivam práticas agroecológicas ao promover a compra direta de alimentos de agricultores familiares. No Senegal, a reeleição de Macky Sall, em 2019, marcou um ponto de inflexão com o lançamento do "PSE Vert" (Plano Senegal Emergente Verde), que incluiu a Agroecologia em sua agenda política. Esse movimento foi impulsionado por coalizões mais amplas, como a Dynamique pour la Transition Agroécologique au Sénégal (DyTAES), que reúne ONGs, sindicatos de agricultores e instituições de pesquisa para promover a integração da Agroecologia em documentos estratégicos nacionais (Bottazzi; Boillat, 2021).

Agências de cooperação internacional e ONGs globais também têm desempenhado um papel significativo na promoção da TAE, especialmente em países de baixa e média renda. Desde os anos 1970, iniciativas de agricultura sustentável, como agricultura de conservação, manejo integrado de microbacias hidrográficas e controle biológico de pragas, têm sido promovidas com apoio de programas bilaterais e multilaterais. Essas iniciativas frequentemente priorizam soluções técnicas, mas também abrem espaço para a adoção de abordagens mais radicais, como certificações participativas e vendas diretas promovidas por ONGs bilaterais e internacionais. Ao mesmo tempo, um grande número de ONGs internacionais, bilaterais ou de cooperação descentralizada desenvolveu o apoio a uma Agroecologia camponesa mais radical e territorializada, baseada, especialmente, em vendas diretas e certificação participativa de produtos (Lemeilleur et al., 2022).

O setor privado tem um papel variável na TAE, dependendo do país e de sua estrutura econômica. No Brasil, na Colômbia, na África do Sul e em Madagascar, empresas do "agronegócio verde" têm investido na produção orgânica, especialmente para exportação. Essas empresas adotam práticas agroecológicas, mas geralmente dentro de um modelo voltado para mercados globais e altamente dependente de certificações internacionais. Na Argentina, destaca-se a figura da "Agroecologia extensiva", praticada por agricultores de médio porte (50 a 600 hectares), que combinam policultura e pecuária para abastecer mercados locais e nacionais (Sosa Varroti et al., 2022). No entanto, em países como Burkina Faso, a presença do setor privado na TAE é menos expressiva, embora existam iniciativas emergentes no mercado de insumos biológicos e práticas associadas à agricultura sustentável (Medina, 2022).

As instituições de pesquisa, por sua vez, contribuem de maneira direta ou indireta para a TAE, dado que a Agroecologia é concebida como uma ciência aplicada baseada no paradigma dos sistemas agroecológicos (Gliessman, 2018). No Brasil, redes como a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) desempenham um papel essencial ao articular comunidades acadêmicas, agricultores e movimentos sociais, gerando conhecimento técnico e político para apoiar práticas agroecológicas. No Senegal, o DyTAES incorpora pesquisadores como atores-chave, promovendo políticas baseadas em evidências. Além disso, a TaFA (Task Force para a Promoção da Agroecologia) desempenhou um papel importante no compartilhamento de experiências técnicas e na formulação de projetos para captação de recursos, embora tenha enfrentado limitações devido à falta de legitimidade política. Na África do Sul, instituições de pesquisa têm investigado não apenas os aspectos técnicos da Agroecologia, mas também suas implicações socioeconômicas, contribuindo para uma visão mais integrada da TAE (Greenberg; Drimie, 2022).

A promoção da TAE, portanto, é resultado de uma complexa rede de interações entre diferentes tipos de atores, cada um trazendo perspectivas e prioridades distintas. Enquanto movimentos sociais e ONGs muitas vezes lideram iniciativas mais transformadoras, o setor privado e os governos tendem a adotar abordagens mais técnicas e orientadas para o mercado. Agências internacionais e instituições de pesquisa complementam esses esforços, fornecendo financiamento, conhecimento técnico e legitimidade política. Essa diversidade de atores e abordagens reflete as múltiplas configurações possíveis da TAE. As concepções e práticas da TAE, portanto, são profundamente influenciadas pelas interações dinâmicas entre esses atores, moldando agendas políticas e estratégias de implementação em diferentes escalas.

Os processos de construção das políticas de TAE

A construção das políticas de TAE é um processo influenciado por fatores como a estrutura institucional de cada país, a presença de determinados atores chave e a interação com sistemas de cooperação internacional e mercados consumidores (Achterberg; Quiroz, 2021; Le Velly et al., 2023). A TAE, como conceito e prática, é traduzida de formas diversas nos diferentes contextos nacionais, refletindo tanto as dinâmicas locais quanto as influências de agendas globais. Esses processos estão frequentemente marcados por contradições e tensões, incluindo a fragmentação institucional, a competição entre atores e a coexistência de abordagens voltadas para o mercado e iniciativas lideradas pela sociedade civil.

Definição das agendas políticas: coalizões, instituições e financiamento

A definição das agendas políticas de TAE varia substancialmente de acordo com o ator ou a instituição que promove a tradução da proposta conceitual e dos instrumentos em cada país, assim como em função do grau de dependência em relação ao financiamento internacional. Vale observar que, nos países do Sul Global, a TAE foi profundamente moldada pela cooperação internacional muito antes de surgirem políticas públicas voltadas explicitamente para esse objetivo. Esse protagonismo inicial coube a parcerias interuniversitárias, programas de extensão e educação rural, e iniciativas não governamentais, muitas vezes de cunho religioso. Algumas dessas ações, iniciadas há mais de cinquenta anos, precederam o envolvimento de grandes organizações multilaterais, como as Nações Unidas, influenciando decisivamente a difusão de práticas agroecológicas e a formação de redes de atores em âmbitos local e global (Pavageau et al., 2020). Importante notar que, em países da África Ocidental, Madagascar e algumas regiões da Ásia, a influência da cooperação internacional continua significativa.

Nesses contextos, especialmente nos países africanos, a Agroecologia foi amplamente difundida por meio de projetos financiados por organizações internacionais, que desempenharam um papel central na introdução e promoção de práticas agroecológicas. Contudo, isso não significa que a Agroecologia fosse inexistente nessas regiões. Práticas alinhadas aos princípios da TAE já existiam, mas sob outras definições ou como partes de sistemas agrícolas tradicionais. O exemplo do trabalho de Pierre Rabhi em Gorom-Gorom, região saheliana de Burkina Faso nos anos 1980, é emblemático neste sentido e na promoção da Agroecologia na região. Há ainda um debate em torno da chamada "Agroecologia natural", frequentemente idealizada como inerente a contextos onde a limitação de insumos químicos decorre de restrições econômicas ou estruturais. Pequenos agricultores, sobretudo os mais jovens, refutam a concepção romântica de uma agricultura meramente de subsistência, pautada no autoconsumo, no trabalho manual familiar e na comercialização de excedentes. Em vez disso, eles reivindicam inovação tecnológica, mecanização e intensificação produtiva, a fim de assegurar rendas dignas e elevar seus padrões de consumo e investimento (Pavageau et al., 2020).

No Burkina Faso, a elaboração da Estratégia Nacional para o Desenvolvimento da Agroecologia (SNAE), em 2020, foi um marco significativo de integração da Agroecologia na agenda política, em nível nacional, na África Ocidental. Apoiada por agências internacionais, como a Agência Francesa de Desenvolvimento, essa estratégia enfrentou desafios decorrentes de divergências entre atores da sociedade civil e do governo, sobre o uso de insumos químicos. Tais disputas são agravadas por divergências ideológicas em torno do uso de insumos químicos em contraste com práticas exclusivamente orgânicas (Medina, 2023). Além disso, a junta militar estabelecida em 2022 gerou instabilidade política no país, e mudou a orientação do debate sobre a Agroecologia, resgatando a narrativa do legado do presidente Thomas Sankara, que em 1987 já introduzia elementos agroecológicos em sua política nacional, associando a TAE a uma narrativa de resistência e soberania nacional. Em 2023, um acordo entre os atores da sociedade civil formalizou a ideia de "uso racional" de insumos químicos, representando um avanço nos debates e na construção da SNAE. Ainda assim, a implementação da SNAE permanece limitada pela instabilidade política, pelo terrorismo que dificulta a implementação de políticas em nível local e pela crescente resistência da população à dependência de cooperação internacional.

O Mali apresenta um caso semelhante ao de Burkina Faso. A integração da Agroecologia nas estratégias políticas foi liderada pela sociedade civil e pela cooperação internacional desde os anos 2010, tendo em vista a participação limitada do Estado nacional fora do setor algodoeiro. Coletividades locais, sobretudo na periferia de Bamako, demonstram dinamismo na adoção de práticas agroecológicas e na organização de sistemas de comercialização, frequentemente apoiadas por ONGs internacionais que fornecem recursos técnicos e financeiros. Apesar desses esforços, a falta de uma estratégia nacional abrangente e a carência de coordenação interinstitucional reduzem o alcance das iniciativas de TAE, dificultando sua consolidação em escala nacional (Alpha et al., 2022). As mudanças políticas ocorridas em 2020, quando um golpe de Estado derrubou o governo do então presidente Ibrahim Boubacar Keïta e, em 2021, com um segundo golpe que consolidou o poder militar, afetaram ainda mais a capacidade de promover a TAE. Como consequência, houve uma redução significativa dos projetos de cooperação internacional, reflexo da instabilidade política e das sanções impostas por diversos parceiros (Le Cam, 2022). Esse cenário tornou os fluxos de investimento externos mais incertos, prejudicando a continuidade e a efetividade das ações conduzidas tanto pela sociedade civil quanto por instâncias locais.

Em Madagascar, a TAE é conduzida pela sociedade civil com significativo apoio da cooperação internacional, que promoveu principalmente a agricultura de conservação e o plantio direto como estratégias de transição. No entanto, a Agroecologia em Madagascar permanece limitada a nichos de mercado, voltados sobretudo para exportações. A falta de coordenação entre as políticas públicas e a setorização excessiva – com a Agroecologia muitas vezes relegada a um papel periférico nas políticas de desenvolvimento agrícola –, comprometem a consolidação de uma abordagem integrada. Além disso, a ênfase governamental em grandes empreendimentos agrícolas e na proteção ambiental (orientadas para a proteção florestal, manejo da biodiversidade e áreas protegidas) reflete uma visão limitada, centrada em segurança alimentar emergencial e na conservação de florestas e áreas protegidas (Raharison, 2022)

No Laos, o planejamento estatal em torno da TAE é impulsionado pela cooperação internacional no âmbito da "agricultura verde e sustentável". Entretanto, a falta de clareza em relação aos objetivos finais e a fragmentação na implementação dos diversos planos e programas limitam a coerência das políticas. A mobilização de recursos externos é pragmática, mas a ausência de uma coordenação fina entre os projetos financiados por diferentes doadores compromete a integração entre iniciativas locais e nacionais. Essa dificuldade de articulação reflete as limitações do aparato estatal em traduzir as diretrizes internacionais em estratégias locais consistentes. Já no Vietnã, o cenário é marcado por uma abordagem mais coordenada e centralizada. Planos nacionais financiados pela cooperação internacional priorizam a redução do uso de insumos químicos, a conservação de recursos naturais (água e solos) e a adaptação às mudanças climáticas. A capilaridade e o rigor do sistema de controle estatal garantem maior eficácia na implementação das políticas, embora a centralização também possa limitar a adaptação das estratégias às especificidades regionais. Essa capacidade de coordenação demonstra o papel decisivo de estruturas institucionais fortes no avanço de políticas pragmáticas, ainda que predominantemente técnicas, voltadas para a sustentabilidade (Tung, 2021; Guéneau; Xiong, 2022).

Esses casos ilustram a centralidade da cooperação internacional na construção das políticas de TAE, mas também revelam suas limitações. A dependência de financiamento externo cria dinâmicas que frequentemente perpetuam a fragmentação institucional e a competição entre atores locais, comprometendo a eficácia e a sustentabilidade das iniciativas. Ao mesmo tempo, a falta de alinhamento estratégico entre doadores internacionais e prioridades nacionais resulta em políticas desconectadas das realidades territoriais e das demandas locais. A sociedade civil se mostra fundamental na mobilização de recursos e na formação de coalizões, enquanto o mercado, em especial o segmento de produtos orgânicos certificados, funciona como um elemento complementar. Essa dinâmica fica patente na criação de mercados territoriais de proximidade4, incluindo compras públicas, feiras agroecológicas e cadeias curtas de comercialização, bem como em redes de exportação orientadas a nichos de alto valor agregado (Sosa Varroti et al., 2024).

Na América Latina, as políticas de TAE são, em grande parte, lideradas pelo Estado, com uma influência menor do financiamento internacional em comparação com outras regiões.

A Colômbia se destaca como um exemplo de como a cooperação internacional pode interagir com políticas nacionais para moldar a TAE. Trata-se de uma combinação entre a afirmação de uma vontade programática nacional e a disponibilização de recursos públicos significativos, provenientes da cooperação ligada ao contexto de guerra civil e ao plano de paz. Essa articulação se manifesta em quatro políticas principais: i) inclusão produtiva no cenário pós-conflito; ii) programas gerais de agricultura limpa; iii) políticas de soberania alimentar e agricultura familiar; e iv) políticas ambientais e de adaptação às mudanças climáticas. Embora sejam relevantes, a integração dessas vertentes em nível territorial continua deficiente, prejudicando a eficácia das iniciativas. O Projeto de Lei de Agroecologia Nº 544 e a Comissão Intersetorial de Segurança Alimentar e Nutrição (CISAN) surgem como potenciais instrumentos para fortalecer a TAE, mas grande parte dos recursos tem sido absorvida pelo agronegócio, que se apresenta como “verde” ao reforçar uma agricultura sustentável voltada para mercados globais. Nessa perspectiva, alianças produtivas privilegiaram a diversificação de cultivos e os “negócios verdes”, apoiados financeiramente pelo Fundo Colômbia Sustentável e pelo Fundo de Pecuária Sustentável. Tais programas, embora favoráveis à sustentabilidade ambiental, frequentemente negligenciam princípios fundamentais da Agroecologia, como inclusão social e justiça agrária. Entre as limitações estruturais, a violência no meio rural, o poder político do agronegócio e as dificuldades de acesso à terra configuram entraves centrais à consolidação da TAE (Valdivia et al., 2022)

O Brasil é um caso singular no panorama analisado, tendo implementado a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (PNAPO) entre 2013 e 2018. Essa política foi resultado de uma coalizão ampla de ONGs, movimentos sociais e redes de agricultores que conseguiram institucionalizar a Agroecologia em nível federal. No entanto, o desmantelamento da PNAPO a partir de 2019 pelo governo Bolsonaro enfraqueceu significativamente a institucionalização da TAE, deixando-a dependente de redes sociais e de mecanismos de certificação, sem o suporte de políticas públicas robustas (Schmitt et al., 2017; Niederle et al., 2022).

Na Argentina, o cenário é caracterizado por uma combinação de abordagens orientadas para o mercado e para a sociedade civil. Tanto na produção intensiva quanto na extensiva, a Argentina apresenta uma combinação de abordagens institucionais voltadas para a TAE, orientadas tanto pelo mercado (como na produção orgânica) quanto pela sociedade civil, com foco na Agroecologia aplicada à agricultura familiar, onde ONGs e redes de agricultores familiares agroecológicos têm se organizado para atender principalmente mercados urbanos específicos. A Agroecologia extensiva surge como uma alternativa técnica e econômica viável ao agronegócio nas produções-chave do país (grãos, cereais, carne), representando uma oportunidade estratégica de aliança com pequenos produtores agroecológicos e suas organizações (Sosa Varroti et al., 2022). Contudo, muitos desses produtores consideram que os extensivos, quando recorrem às certificações orgânicas, nem sempre estão alinhados aos princípios fundamentais da Agroecologia. Até 2023, o apoio público foi bastante irregular em nível nacional, ocorrendo principalmente por meio de iniciativas de treinamento, extensão e pesquisa (lideradas pelo INTA) e por programas de governos provinciais e locais, como o caso da Província de Buenos Aires, que, ainda sob o governo peronista em 2025, mantém um Programa Provincial de Promoção da Agroecologia no Ministério Provincial de Desenvolvimento Agrário. No entanto, desde o início da presidência de Javier Milei em 2024, a maioria das instituições e políticas públicas de apoio à Agroecologia ao nível nacional, analisadas na etapa 2 do projeto TAFS (Sosa Varrotti et al., 2024), foram desmanteladas.

Neste contexto, os mercados e consumidores também representam fatores relevantes para os agricultores envolvidos na TAE. Vale notar que em todos os países analisados, o acesso a mercados é visto como uma prioridade estratégica. Modelos de comercialização incluem venda direta, compras públicas, supermercados especializados, exportações e nichos de mercado para produtos certificados. Produtos como café e cacau (Brasil, Colômbia, Vietnã), frutas tropicais (banana, manga) e bens identitários de valor agregado, como baunilha de Madagascar, chá do Vietnã e rooibos da África do Sul, desempenham papéis cruciais na viabilização econômica da TAE. No entanto, o acesso a esses mercados frequentemente depende de certificações, apoio técnico e financiamento externo, criando barreiras significativas para pequenos produtores.

 Definição dos instrumentos e orientação da TAE

A TAE pode ser promovida por diversos tipos de instrumentos de política pública, cujo desenho e implementação refletem diferentes objetivos, escalas de intervenção e contextos sociopolíticos. O estudo construiu uma tipologia ampla e exaustiva desses instrumentos, publicada por Place et al. (2022). Neste trabalho, adota-se uma classificação pragmática baseada nos objetivos de cada instrumento, em consonância com estudos prévios sobre políticas de TAE na América Latina (Sabourin et al., 2018) (Quadro 2).

De forma geral, os “instrumentos de inovação e gestão de conhecimento” visam promover o compartilhamento horizontal de experiências e a experimentação (como observado em Burkina Faso e Colômbia), valorizar determinadas técnicas tradicionais (Burkina Faso, Laos, Madagascar) e articular redes territoriais de conhecimento agroecológico (Brasil, Argentina). Tais mecanismos incluem ações de pesquisa participativa, intercâmbios de saberes entre agricultores e programas de extensão que estimulam a adaptação de práticas a diferentes realidades locais. Outro conjunto de instrumentos tem como foco garantir o acesso a recursos fundamentais. Experiências do Brasil e da África do Sul indicam que a reforma agrária, as ações fundiárias, o acesso à água e ao crédito, além da extensão agrícola voltada para agricultores familiares, constituem uma base sólida para a negociação de programas específicos de promoção da Agroecologia. Esses mecanismos costumam ser acompanhados de incentivos financeiros ou assessoria técnica para fortalecimento de cooperativas e organizações de produtores, o que potencializa a adoção de práticas agroecológicas em escala mais ampla. No que concerne à garantia de acesso ao mercado e à segurança alimentar, há uma ampla gama de iniciativas. Os dez países envolvidos no estudo dispõem de padrões de certificação orgânica, em grande parte motivados pelas exigências de países importadores. Em Senegal, Argentina e Brasil, por exemplo, observam-se sistemas de certificação participativa e, no caso brasileiro, mecanismos de controle social administrados por grupos de agricultores. No Brasil, instrumentos como compras públicas diferenciadas com preços garantidos para produtos agroecológicos e orgânicos foram replicados em Estados Federados e municípios, demonstrando a relevância da articulação entre diferentes níveis de governança.

Quadro 2. Alguns exemplos de instrumentos contribuindo a TAE por país

Países

Inovação e Conhecimentos

Mercados e segurança alimentar

Regulação ambiental

Gestão Pesticidas

África do Sul

Regenerative farming Plan

National Food &  Nutrition Security Plan

Conservation Agriculture policy

SmartAgri

Argentina

Red  de Agroeclogia INTA

Cambio Rural

Pro-Huerta, Mercado central de Buenos Aires

Conservación y Uso Biodiversidad en Agroecosistemas

Proibição do glifosato em 2023 Provincia Misiones

Brasil

ECOFORTE (Fortalecimento Redes Territ. de AE)

Prog Aquisição de alimentos Programa Nac. Alim. Escolar,

Biodiversidade e Sementes Crioulas

Política Nacional de AE e Prod. Organ. PNAPO e programa Bioinsumos

Burkina Faso

Stratégie Nationale pour l’Agroécologie

TAPSA (projeto)

Politique Nationale Sécurité Aliment. & Nutritionnelle

Stratégie Nationale  Conservation Restauration  Sols

PADITA (projeto de altenativas tecnicas)

Colômbia

ley Nº 544/2021 - Agroecología

Mercados de

Compras Públicas

Negocios Verdes, Colombia Sostenible

 

Laos

PRONAE National

Agro Ecology

Programme

Strategic Plan for National

Organic Agriculture

Initiative on

Conservation

Agriculture

Good Agriculture Practices

Madagascar

GSDM Groupe Professionnels de l'Agroécologie

Plan National pour Sécurité Aliment.

Task Force Nation Agriculture de Conservation

Integrated Pests Management (IPM)

Mali

Plateforme nation.

agroécologie paysanne

Pol. Nat Sécurité Alimentaire Et nutritionnelle

Office Protection des Végétaux

Projeto FAIR Sahel

Senegal

DyTAES Dynamique de Transition Agroécologique

Progr. Agriculture et Souveraineté alim. durable

Plan de Lutte Désertification

Projeto SEV Senegal Emergent Vert

Vietnã

Vietnamese Good Agricultural Practices

Food safety & sustainable development Plan

Law on Environmental Protection 2014

Integrated Pests Management (IPM)

Fonte: projeto Agroecological Transitions for Sustainable Food Systems (TAFS)

 

Ademais, existem instrumentos de apoio a cadeias curtas de suprimento, lastreados na criação de mercados locais: feiras, lojas de produtos agroecológicos e cooperativas de consumidores, além das Comunidades que Sustentam a Agricultura nas cidades. Na América Latina, estratégias como compras públicas preferenciais para agricultores familiares com preços diferenciados para produtos agroecológicos ou orgânicos, exemplificadas pelos programas de aquisição de alimentos e de alimentação escolar no Brasil, evidenciam a possibilidade de fortalecer circuitos curtos e promover uma transição agroecológica inclusiva (Lamine, 2020). Também se verificam programas de agricultura urbana e periurbana, a exemplo do programa GAP no Vietnã, do ProHuerta na Argentina (desativado em 2024 depois de trinta anos de funcionamento) e de iniciativas relacionadas à segurança alimentar e nutrição no Brasil e no Senegal. Em Madagascar, os Sistemas de Plantio em Cobertura Vegetal (SCV) conectam-se a práticas de conservação do solo e podem dialogar com princípios agroecológicos (Raharison, 2022).

A regulamentação ambiental e os subsídios associados a práticas mais ecológicas não se limitam à promoção direta da TAE, mas podem abarcar desde a proteção da biodiversidade agrícola e a regulação do uso da terra até a limitação de variedades geneticamente modificadas. Alguns países adotam programas de redução de pesticidas, embora, na América Latina, essas políticas sejam escassas e menos aplicadas. Em Laos e Vietnã, por outro lado, há esforços mais consolidados nesse sentido, impulsionados por cooperação internacional, que fortalecem o manejo integrado de pragas e o controle biológico. Além disso, subsídios a práticas agrícolas ambientalmente responsáveis podem ser observados em programas como o Green Agriculture Plan (Laos e Vietnã), que estimulam a substituição de insumos químicos por soluções baseadas em bioinsumos e técnicas de conservação do solo (Tung, 2021; Guéneau e Xiong, 2022).

No âmbito regulamentar, o instrumento de “redução do uso de agrotóxicos” merece atenção especial pois ilustra como, mesmo sem uma referência explícita à Agroecologia, certas políticas podem beneficiar a segurança e a soberania alimentar, a saúde pública e a manutenção de sementes locais. Em paralelo, pode fomentar a substituição de pesticidas por bioinsumos e a adoção de práticas menos dependentes de agroquímicos.

Em Burkina Faso, por exemplo, o debate contrapõe setores que defendem o “uso racional” de insumos, diante de alternativas desconhecidas ou indisponíveis, à norma de “zero insumos” sustentada pela produção orgânica certificada para exportação, ainda que neste país os níveis de utilização de insumos químicos sejam extremamente baixos em comparação com a América Latina. No Mali, a forte assistência pública ao setor algodoeiro, principal provedor de insumos químicos e pesticidas, estimula seu uso também em outras culturas. Contudo, a produção orgânica certificada para exportação (manga, karité, feijões verdes, entre outros) permanece vedada ao uso de agrotóxicos, sendo apoiada principalmente por ONGs internacionais. No Laos, no Vietnã, planos e programas de redução de agrotóxicos contam com suporte de cooperação internacional, resultando em avanços em Manejo Integrado de Pragas e controle biológico. Ainda assim, persistem contradições em sistemas que incentivam a agricultura de conservação e o plantio direto, mas recorrem ao glifosato para culturas em maior escala. A horticultura orgânica, por sua vez, aposta em plantas defensivas, caldas pesticidas e bioinsumos caseiros, embora tais estratégias nem sempre encontrem respaldo em políticas públicas consolidadas.

Na Argentina, legislações municipais restringindo o uso de agroquímicos remontam aos anos 1990, e a província de Misiones decretou, recentemente, a proibição do herbicida glifosato em 2023. No Brasil, embora exista uma lei e uma política de redução do uso de agrotóxicos, jamais se regulamentou sua aplicação prática. Após esforços pontuais na vigência da PNAPO (2013–2016), houve um retrocesso a partir de 2017 (governo Temer) e, especialmente, em 2019 (governo Bolsonaro), quando mais de quinhentos pesticidas antes proibidos foram liberados.

De fato, a questão dos insumos e pesticidas não é a mesma na África e na América Latina. Na África, fala-se em redução, mas o uso continua bastante baixo (Whei Zhou et al., 2025). O tamanho do problema é a escala de uso de pesticidas, os problemas de contaminação são bem mais graves na América Latina, num contexto completamente diferente (Meunier et al., 2024).

 

Conclusão

O estudo transversal e comparativo realizado em dez países de três continentes do Sul Global, apesar de suas diferenças contextuais e condições específicas de emergência, permite a identificação de algumas conclusões comuns e estruturantes para a compreensão da TAE.

Em primeiro lugar, independentemente da abordagem técnica ou conceitual adotada, a construção de políticas públicas efetivas para a TAE requer a conjugação de diversos atores e fatores. Na América Latina e na África, onde o estudo concentrou mais casos, a emergência de iniciativas e políticas de TAE depende, sobretudo, da mobilização de movimentos sociais de agricultores e de sua capacidade de formar coalizões com setores da sociedade civil, do Estado e de financiadores, sejam nacionais ou internacionais. Nesses contextos, as mudanças envolvem uma dimensão social e política, que transcende o aspecto meramente técnico. Já no Laos e no Vietnã, a centralização e o planejamento estatal, característicos de seus regimes políticos, colocam o Estado no centro das decisões. Ainda assim, agências financiadoras bilaterais, internacionais e não governamentais desempenham um papel crucial na tradução e promoção de inovações, predominantemente em nível tecnológico.

Em segundo lugar, as políticas públicas de TAE, quando existentes, geralmente apresentam recursos limitados e alcance restrito, refletindo uma institucionalização frágil. Por esse motivo, tais políticas são vulneráveis a desmantelamentos decorrentes de mudanças políticas e eleitorais, como observado no Brasil durante o governo Bolsonaro e na Argentina sob as administrações dos presidentes Macri e Milei (Niederle et al., 2022; Sosa Varroti et al., 2024). Paradoxalmente, mesmo nesses cenários adversos, a TAE demonstrou resiliência ao nível da sociedade civil e das coletividades locais, destacando os limites das políticas públicas e a força dos atores territoriais.

Em terceiro lugar, a ajuda internacional, embora seja frequentemente essencial para viabilizar a TAE em países com recursos nacionais limitados, pode, em alguns casos, perpetuar modelos baseados na Revolução Verde. Essa abordagem pode restringir inovações e mudanças paradigmáticas ou socio-organizativas, como foi constatado no Laos, Vietnã e Madagascar.

Por fim, a TAE frequentemente enfrenta tensões, competições e até conflitos entre organizações da sociedade civil. Esses conflitos podem derivar de divergências ideológicas ou de convicções sobre o modelo técnico mais adequado – por exemplo, produção orgânica, Agroecologia ou agricultura sustentável, como no caso do Burkina Faso. Também podem surgir em torno dos processos de certificação, com disputas entre certificação de terceira parte (predominante na África do Sul e em Madagascar), certificação participativa (Argentina, Brasil e Colômbia) e iniciativas sem certificação, promovidas por movimentos agroecológicos. No Brasil, destaca-se a inovação do controle social por organizações de produtores, que permite tanto a venda direta quanto o abastecimento de compras públicas pelo Estado. Ademais, tensões relacionadas à gestão da água e dos resíduos são observadas em diversos contextos, como na Argentina, Vietnã, Colômbia e Madagascar.

O estudo revela uma notável diversidade de concepções, trajetórias e instrumentos, que apontam para múltiplas estratégias de TAE. A aplicação de um quadro analítico comum permitiu compreender como os processos de implementação de políticas e de institucionalização da TAE se contrapõem ao modelo dominante da agricultura convencional, baseado nos paradigmas da Revolução Verde. As alternativas à Agroecologia, nesse sentido, não podem ser limitadas à adoção sistemática de práticas minimalistas nem à mera transposição de abordagens radicais, como a transformação sustentável dos sistemas alimentares promovida pela Agroecologia latino-americana, para contextos diversos, como os da África e da Ásia.

Nesse cenário, torna-se evidente que não existem soluções universais para a TAE que possam ser aplicadas de forma homogênea em diferentes contextos. É imprescindível adotar uma abordagem flexível, capaz de adaptar políticas e instrumentos às condições e estruturas de oportunidade locais, bem como às fragilidades institucionais. Essa adaptação requer o uso de instrumentos abertos, inclusivos e participativos, que dialoguem com as realidades territoriais e reforcem a autonomia e o protagonismo das comunidades locais na transição agroecológica.

Agradecimentos

Os autores gostariam de agradecer aos parceiros do projeto TAFS nos 10 países estudados, os colegas que participaram da coleta de informação e das entrevistas, em particular: Mamy Sumare, Arlène Alpha, Bruno Losch, Julian May, Dao The Anh, Stephen Greenberg, Scott Drimie; Goites, E., Toso, F. H., Claire Lamine, Paulo Petersen, Sergio Schneider, Tahina Raharison, Maiyer Xiong et Hoang Thanh Tung. Gostaríamos também de agradecer o apoio financeiro dos 5 Dispositivos de Pesquisa em Parceria apoiados pelo CIRAD (Govinn/G&PP África Austral, ISA Sahel, Malica Asia, PP-AL e SPAD Madagascar), do Ministério de Assuntos Estrangeiros e Europeus da França por meio do CGIAR (projetos TPP Agroecology & Viability) e da Comissão Europeia por meio do acordo de subvenção H2020 RISE ATTER Marie Skłodowska-Curie nº 101007755.

Copyright (©) 2025 – Eric Sabourin, Carolina Milhorance, María Mercedes Patrouilleau, Stéphane Guéneau, Paulo André Niederle, Claire Dedieu, Catia Grisa, Andrea Sosa, Jean François Le Coq, Sara Mercandalli.

 

Referências

 

Achterberg, Eline; QUiroz, Diana. Funding African agroecological food systems? The Netherlands’ public funding of agriculture abroad. Amsterdam: Profundo. 2021.

ALPHA Arlène et al. La faiblesse des politiques publiques de soutien à l’agroécologie au Mali, Montpellier : CIRAD, TAFS, 2022. Disponível em : https://compar.cirad.fr/content/download/4316/33019/version/1/file/TAFS+Policy+Brief+Step+1+Mali.pdf. Acesso em: 20 jan 2025.

AUDET, René; GENDRON, Corrine. IFOAM and the institutionalization of organic agriculture. In: UTTING, Peter; REED, Darryl;REED, Ananya (Eds). Business Regulation and Non-State Actors. London: Routledge, 2011.

Altieri, Miguel A. Agroecology: A new research and development paradigm for world agriculture. Agriculture, Ecosystems & Environment, v. 27, n. 1-4, p. 37-46. 1989.

_______, Agroecology: the science of sustainable agriculture. Boca Raton: CRC Press. 2018.

ALTIERI, Miguel A; Nicholls, Clara. I. Agroecology scaling up for food sovereignty and resiliency. Sustainable Agriculture Reviews. v. 11, p. 1-29. 2012.

Bellon, Stéphane; Ollivier, Guillaume. Institutionalizing Agroecology in France: Social. Circulation Changes the Meaning of an Idea. Sustainability, v. 10, n. 5, 1380, 2018.

Bottazzi, Patrick; Boillat Sébastien. Political agroecology in Senegal: Historicity and repertoires of collective actions of an emerging social movement Sustainability, v. 13, n. 11, 6352. 2021.

Caron, Patrick; Treyer, Sébastien. Climate-Smart Agriculture and International Climate Change Negotiation Forums. In: Torquebiau, Emmanuel (Ed). Climate Change and Agriculture Worldwide. Dordrecht: Springer Netherlands, 2016. p. 325‑336. Disponível em: https://doi.org/10.1007/978-94-017-7462-8_25 . Acesso em: 20 jan 2025.

CESARO, Jean Daniel. Transformation des agricultures en Asie du Sud-Est: la paysannerie face aux défis de la mondialisation. Géoconfluences, septembre 2020. [s.n.t] 2020, 26 p. Disponível em: http://geoconfluences.ens-lyon.fr/informations-scientifiques/dossiers-regionaux/asie-du-sud-est/articles-scientifiques/agricultures-mondialisation. Acesso em: 3 dez 2024.

Dale, Bryan. Alliances for agroecology: From climate change to food system change. Agroecology and Sustainable Food Systems, v. 44, n. 5, p. 629-652. 2020.

DEBAR, Jean Christophe. L’agriculture, cause majeure de la déforestation en Afrique. Fondation FARM, 23/06/2020. Disponível em: https://fondation-farm.org/lagriculture-cause-majeure-de-la-deforestation-en-afrique . Acesso em: 4 dez 2024.

DI ROBERTO, Hadrien et al. L’agroforesterie en contexte post-forestier : perspectives et controverses d’une mise à l’agenda politique en Côte d’Ivoire. Bois & Forets des Tropiques, v. 356, p. 81-91. 2023. https://doi.org/10.19182/bft2023.356.a37121 .

EZZINE DE BLAS, Driss; LE COQ, Jean-François; GUEVARA SANGINES, Alejandro.  Los pagos por servicios ambientales en América Latina: Gobernanza, impactos y perspectivas. Ciudad de México: Universidad Iberoamericana. 2017. 360 p.

FAO - Food and Agriculture Organization. The 10 elements of agroecology - Guiding the transition to sustainable food and agricultural systems, Roma: FAO. 2018. Disponível em: https://openknowledge.fao.org/server/api/core/bitstreams/3d7778b3-8fba-4a32-8d13-f21dd5ef31cf/content . Acesso em: 18 dez 2024.

Giraldo, Omar Felipe; Rosset, Peter. M. Agroecology as a territory in dispute: Between institutionality and social movements. The Journal of Peasant Studies, v. 45, n. 3, p. 545-564. 2018.

Gliessman, Steve. Agroecologia: processos ecológicos em agricultura sustentável. Porto Alegre: Editora da UFRGS. 2000.

________. Transforming food systems with agroecology. In: Agroecology and Sustainable Food Systems, v. 40, n. 3, p. 187-189. 2016.

Greenberg, Stephen; Drimie, Scott. The state of the debate on agroecology in South Africa. A scan of actors, discourses and policies. TAFS phase 1 report. [s.l.]: CIRAD. 2021. Disponível em: https://compar.cirad.fr/en/content/download/4332/33083/version/1/file/TAFS_Policy+Brief+%231-Policy+landscape_OCT2022.pdf   Acesso em:  20 jan 2025.

GUENEAU, Stéphane; XIONG, Maiyer. The Institutionalisation of Agroecology in Lao PDR, Policy Brief TAFS (December, 2022). Montpellier: CIRAD  2022. Disponível em: https://compar.cirad.fr/content/download/4314/33011/version/1/file/Policy+Brief+Agroecology+Laos.pdf .  Acesso em :  20 jan 2025.

Griffon, Michel. Qu’est-ce que l’agriculture écologiquement intensive?  Paris : Édition Quae.  Collection : Matière à débattre et décider. 2013. 224 p.

Hassenteufel, Philippe. Sociologie politique: l’Action publique. Paris: Armand Colin, Collection U. 2008, 294 p.

_______. L’action publique comme construction collective d’acteurs en interaction. In: HASSENTEUFEL, Philippe. Sociologie politique: l'action publique. Paris: Armand Colin. 2011. p. 115-156.

HLPE. Approches agroécologiques et autres approches innovantes de l'agriculture et des systèmes alimentaires durables qui améliorent la sécurité alimentaire et la nutrition. Groupe d'experts de haut niveau sur la sécurité alimentaire et la nutrition. Roma: HLPE. Report 14, 2019. Disponível em: http://www.fao.org/fileadmin/templates/cfs/HLPE/reports/HLPE_Report_14_FR.pdf . Acesso em: 2 dez 2024.

Lamine, Claire. Sustainable Agri-food Systems: Case Studies in Transitions Towards Sustainability from France and Brazil. London: Bloomsbury Publishing. 2020. 208 p.

Lascoumes, Pierre; Le Gales, Philippe. Sociologia da Ação Pública. Maceio: Edufal, 2012.

Le Cam, Michel. Mali: la France suspend son aide au développement dans un contexte d’isolement croissant de Bamako. Le Monde, 17 novembre 2022. Disponível em : https://www.lemonde.fr/afrique/article/2022/11/17/mali-la-france-suspend-son-aide-au-developpement-dans-un-contexte-d-isolement-croissant-de-bamako_6150304_3212.html . Acesso em:  20 jan 2025

Le Velly, Renan et al. When markets make agroecologies: Empirical evidence from downstream and upstream markets in Argentina, Brazil and France. Journal of Innovation Economics and Management v. 42, n. 3, p. 21-42. 2023. https://doi.org/10.3917/jie.pr1.0146 .

Lemeilleur, Sylvaine et al.. Analyzing institutional changes in community-based management: a case study of a participatory guarantee system for organic labeling in Brazil. Journal of Institutional Economics, v. 18. n. 6, p. 919-935. 2022.

Lipper, Leslie et al. (eds). Climate Smart Agriculture: Building Resilience to Climate Change. Série Natural Resource Management and Policy. Vol. 52.  Cham: Springer. 2018. https://doi.org/10.1007/978-3-319-61194-5 .

Loconto, Alison; Fouilleux, Eve. Defining Agroecology: Exploring the Circulation of Knowledge in FAO’s Global Dialogue. The International Journal of Sociology of Agriculture and Food. v. 25, n. 2, p. 116‑137. 2019. https://doi.org/10.48416/ijsaf.v25i2.27.

Medina, Carla. Analyse de la dynamique institutionnelle autour de l’agroécologie au Burkina Faso. Etat des lieux des politiques publiques, acteurs et discours. Rapport d’étude du projet FAIR-Sahel. Montpellier: CIRAD. 2022.

Meunier, Elliott et al. Understanding changes in reducing pesticide use by farmers: Contribution of the behavioural sciences, Agricultural Systems, v. 214, 103818. 2024. https://doi.org/10.1016/j.agsy.2023.103818.

Milhorance, Carolina et al. Tackling the implementation gap of climate adaptation strategies: understanding policy translation in Brazil and Colombia. Climate Policy,  v. 22, n. 9–10, p. 1113–1129. 2022. https://doi.org/10.1080/14693062.2022.2085650.

Milhorance Carolina et al. L’intégration de l’agroécologie dans les politiques publiques du Sénégal. Dakar: ISRA-Bame; CIRAD. 2022.

MZOUGHI, Naoufel; NAPOLEONE, Claude. Introduction. L’écologisation, une voie pour reconditionner les modèles agricoles et dépasser leur simple évolution incrémentale. Natures Sciences Sociétés, v. 21, n. 2, p. 161-165. 2013. https://doi.org/10.1051/nss/2013092.

Niederle, Paulo et al. Ruptures in the Agroecological Transitions: Institutional Change and Policy Dismantling in Brazil, Journal of Peasant Studies, v. 50, n. 3, p. 931–953. 2022. https://doi.org/10.1080/03066150.2022.2055468 .

Osorio-García Ana et al. Can an innovation platform support a local process of climate-smart agriculture implementation? A case study in Cauca, Colombia, Agroecology and Sustainable Food Systems, v. 44, n. 3, p. 378–411. 2019.  https://doi.org/10.1080/21683565.2019.1629373 .

Patrouilleau Mercedes et al. Analysis of Agroecological Transition at the national level in Argentina. Report 1. Buenos Aires: INTA, TAFS. 2022.

Pavageau, Charlotte; Pondini, Stefanie; Geck, Mattias. Flux d'argent: qu'est-ce qui freine l'investissement dans la recherche agroécologique pour l'Afrique? Geneva: Biovision Fondation. 2020.

Place Frank et al. Agroecologically-conducive policies: A review of recent advances and remaining challenges. Working Paper 1. Bogor, Indonesia: The Transformative Partnership Platform on Agroecology.  2022. https://doi.org/10.17528/cifor-icraf/008593 .

RAHARISON, Tahina S. Analysis of the agroecological transition of food systems at the national level. The case of Madagascar. TAFS Project Report. Tananarive: SPAD, Cirad. 2021.

SABOURIN, Eric et al. Políticas públicas a favor da agroecologia na América Latina e no Caribe Porto Alegre. Porto Alegre: FAO Red PP-AL. 2017.

Sabourin, Eric et al. ¿Qué políticas públicas para apoyar la agroecología en América Latina y el Caribe?  Perspective, n. 45, p. 1-4, 2018. https://doi.org/10.19182/agritrop/00020.

Sosa Varrotti Andrea Patrícia et al. Análisis de las agriculturas alternativas en Argentina: políticas públicas y actores clave. In: Constantino, Andrea. (Coord.), Las nuevas dinámicas del acaparamiento de tierras en Argentina: caracterización, alternativas y desafíos. Bahía Blanca: Editorial de la Universidad Nacional del Sur.  2025. p. 83-100.

Stassart Pierre, Baret Philippe, Grégoire Jean Claude, Hance Thierry, Mormont Marc, Reheul Dirk, Visser Marjolein. L'agroécologie : trajectoire et potentiel pour une transition vers des systèmes alimentaires durables. Dijon: Educagri, 2012.

Thanh Tung, Hoang. Analysis of Agroecological Transition at the National Level: The Emergence and Institutionalization of Agroecology in Viet Nam. TAFS Project Report 1. Hanoi: Malica. 2021.

Valdivia, Merelyn; Le Coq, Jean François; Daza Paola. Roadmap for the scaling up of Agroecology in Colombia. CCAFS Info note. January 2022. p. 1-9. 2022. https://hdl.handle.net/10568/119284 .

Wezel Alexander et al. Pratiques agroécologiques pour une agriculture durable. A review. Agronomy for sustainable development. v. 34, n. 1, p. 1-20, 2014. http://dx.doi.org/10.1007/s13593-013-0180-7

Wei, Zhou; Li, Michèle; Achal, Vareniam. A comprehensive review on environmental and human health impacts of chemical pesticide usage, Emerging Contaminants, v. 11, n. 1, 100410. 2025.  https://doi.org/10.1016/j.emcon.2024.100410 .

 

 

 

 

 

 

 

 

1 O projeto TAFS foi cofinanciado na sua primeira etapa pelo CIRAD e pelo Ministério Francês de Assuntos Estrangeiros por meio do CGIAR e da iniciativa Viability mediante a TPP Agroecology (https://www.cifor-icraf.org/agroecology-tpp/). Os parceiros para cada um dos países estudados durante a primeira etapa do projeto TAFS são: Cape University-COE na África do Sul, Université de Ouagadougou e INERA em Burkina Faso, IER em Mali, GSDM em Madagascar, ENDA Pronat e ISRA-BAM no Senegal, INTA e Conicet na Argentina, UFRGS-PGDR e UFRRJ-CPDA no Brasil, CIAT na Colômbia, National University, Faculty of Agronomy no Laos e VAAS Vietnam Academy of Agriculture Sciences no Vietnã.

2 Os resultados detalhados por pais podem ser consultados no site do projeto (https://compar.cirad.fr/en/ressources/notes-de-positionnement).

3 A ideia por trás da noção de intensificação ecológica é desenvolver sistemas de produção agrícola que façam uso intensivo dos processos biológicos e ecológicos dos ecossistemas e de suas funções naturais, em vez de fazer uso intensivo de insumos (combustíveis fósseis, fertilizantes químicos, pesticidas), como foi o caso durante as revoluções verdes e outras modernizações agrícolas (Griffon, 2013).

4 Os mercados territoriais referem-se a circuitos de comercialização e consumo que estão enraizados em uma lógica territorial, ou seja, ligados às especificidades culturais, econômicas e sociais de um território.

i 

Revista Brasileira de Agroecologia
ISSN 1980-9735

Publicação da Associação Brasileira de Agroecologia - ABA-Agroecologia em cooperação com o Programa de Pós-Graduação em Meio Ambiente e Desenvolvimento Rural - PPG-Mader, da Universidade de Brasília – UnB

Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional (CC BY 4.0)