Brasília, v. 19, n. 4, p. 387-394, 2024
https://doi.org/10.33240/rba.v19i4.56135
Como citar: CARDOSO, Irene M. Editorial: Viva a ABA! Revista Brasileira de Agroecologia, v. 19, n. 4, p. 387-394, 2024.
Editorial
Viva a ABA!
Parabéns à ABA (Associação Brasileira de Agroecologia) pelos seus 20 anos! A ABA foi fundada em 23 de novembro de 2004, durante o II Congresso Brasileiro de Agroecologia (CBA), realizado em Porto Alegre (RS), onde também se realizou o 4º e último Encontro Brasileiro de Agricultura Alternativa (EBAA), em 1989. Os EBAAs eram organizados pela Federação dos Engenheiros Agrônomos do Brasil (FAEAB) e pela Federação dos Estudantes de Agronomia do Brasil (FEAB). A Agroecologia no Brasil tem raízes nos movimentos de agricultura alternativa e socioambientalistas que emergiram no país entre o final da década de 1970 e início da década de 1980, com a redemocratização do país.
Como parte deste movimento da agricultura alternativa, fundou-se várias Organizações Não Governamentais (ONGs) que compuseram a Rede PTA (Projeto de Tecnologias Alternativas), que foram, e ainda são, fundamentais para a formação da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA). A ABA, desde seu início, compõe a ANA. A composição com a ANA é extremamente fundamental para a realização do nosso entendimento da Agroecologia enquanto movimento, prática e ciência. A ABA nasceu com a missão de cuidar mais da dimensão científica da Agroecologia, mas de forma articulada com o movimento e a prática.
Segundo o estatuto (2015), a ABA define a Agroecologia como ciência, movimento político e prática social, portadora de um enfoque científico, teórico, prático e metodológico que articula diferentes áreas do conhecimento de forma transdisciplinar e sistêmica, orientada a desenvolver sistemas agroalimentares sustentáveis em todas as suas dimensões. O estatuto ainda aponta que a ABA tem por finalidade incentivar e contribuir para a produção de conhecimentos técnico-científicos no campo da Agroecologia, de forma integrada ao saber popular; aprofundar as discussões e estudos sobre os sistemas agroalimentares; e contribuir na elaboração e implantação de políticas públicas, para a melhoria da qualidade de vida e a inclusão social.
Ainda segundo seu estatuto (2015), a participação na ABA não se restringe aos acadêmicos e pesquisadores. Pessoas físicas ou jurídicas que se interessam no desenvolvimento da Agroecologia podem se associar a ABA. Assim, a ABA procura articular em seu quadro social, todos aqueles que, profissionalmente ou não, se dediquem à Agroecologia e ciências afins. Para isto, a ABA, atualmente, se organiza em 12 Grupos de Trabalhos (GTs) responsáveis pelo aprofundamento de temas diversos e fundamentais para o avanço da Agroecologia e para o enraizamento da ABA nos territórios. A partir dos GTs, os associados participam diretamente da ABA.
Com o objetivo de publicação de trabalhos inéditos em Agroecologia ou áreas afins, a ABA publica a RBA (Revista Brasileira de Agroecologia), que objetiva colaborar com o avanço e divulgação da Agroecologia e promover, segundo seu site, “uma ciência aberta e cidadã”; e assume “uma política editorial que atende à diversidade, à equidade e à inclusão, sendo um canal de comunicação que pretende ampliar a visibilidade dos conhecimentos construídos em Agroecologia no Brasil e na América Latina”. A decisão de editar a RBA foi tomada em assembleia da ABA, no III Congresso Brasileiro de Agroecologia (CBA), em 2005. Em novembro de 2006, lançou-se o primeiro número da revista que, naquela época, era hospedada no servidor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Atualmente a revista é hospedada no Portal de Periódicos da Universidade de Brasília (UnB). Até o momento a RBA já lançou 19 volumes, 65 números (cinco especiais) e pelo menos 600 artigos científicos. Os artigos são publicados online e não se paga para publicar ou ler os artigos da RBA.
Para manter sua periodicidade enquanto recebia e processava os artigos inéditos, os primeiros volumes da RBA publicaram resumos do CBA. Entretanto, desde 2011, a ABA também passou a organizar a revista “Cadernos de Agroecologia” para publicar os resumos dos CBAs e de outros eventos científicos realizados por outras organizações parceiras, desde que adequados aos propósitos da revista e sob responsabilidade de comitês editoriais específicos. Segundo o site, a Cadernos de Agroecologia tem como objetivo “divulgar os conhecimentos agroecológicos frutos de diálogos de saberes técnico-científicos e populares, apresentados e ou debatidos em eventos de Agroecologia”. Até então, a ABA já publicou 18 volumes, 35 números e aproximadamente 12 mil resumos na revista Cadernos de Agroecologia. Destes, nove números referem-se aos anais de CBAs e três números se referem a três SNEAs (Seminários Nacional de Educação em Agroecologia), importante evento promovido pelo GT de educação da ABA, em parceria com outros GTs.
Além das revistas, a ABA publica, em parceria com a EMBRAPA (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), a “Coleção Transição Agroecológica”. Nesta coleção, 10 livros, com mais de 100 capítulos, já foram ou estão em vias de serem publicados, versando sobre vários temas que dão sustentação à Agroecologia. Tais publicações, dentre outras, demonstram a robusta produção científica da ABA, em seus 20 anos de existência.
Os CBAs propiciam, de forma privilegiada, o diálogo entre o conhecimento científico e o saber, ou ciência popular. O I e II congressos foram realizados em Porto Alegre. Ainda sem a existência da ABA, os eventos foram realizados pela EMATER/RS (Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural) e pela EMBRAPA, com apoio de várias instituições de ensino, pesquisa, extensão rural e diversas organizações governamentais e não governamentais. O slogan do I CBA foi “Conquistando a Soberania Alimentar” e do II CBA foi “Agrobiodiversidade: Base para Sociedades Sustentáveis”. A partir do II, os CBAs passaram a ser organizados pela ABA em parceria com diversas organizações governamentais e não governamentais de ensino, pesquisa e extensão e da sociedade civil.
O III CBA foi realizado em 2005, em Florianópolis (SC), com o tema “A Sociedade Construindo Conhecimentos para a Vida”; em 2006, o IV CBA ocorreu em Belo Horizonte (MG) e teve como tema “Construindo Horizontes Sustentáveis”; em 2007, o V CBA foi realizado em Guarapari (ES), com o tema “Agroecologia e Território Sustentáveis”. A partir deste ano, o CBA passou a ser bianual. Em 2009, o VI CBA foi organizado em Curitiba (PR), em conjunto com o II Congresso Latino-Americano de Agroecologia, uma promoção da ABA e SOCLA (Sociedade Latino Americana de Agroecologia), com o tema "Agricultura Familiar e Camponesa: Experiências Passadas e Presentes Construindo um Futuro Sustentável"; em 2011, o VII CBA foi organizado em Fortaleza, pela primeira vez fora do eixo Sul-Sudeste, com o tema “Ética na Ciência: Agroecologia como Paradigma para o Desenvolvimento Rural”; e, em 2013, O CBA voltou a ser organizado em Porto Alegre (RS), com o tema “Cuidando da Saúde do Planeta”.
No VIII CBA (2013) foi lançado o slogan “Sem Feminismo Não Há Agroecologia”, reforçado no ano seguinte em Juazeiro (BA), durante o III Encontro Nacional de Agroecologia (ENA). Nesse congresso, na preparação das mesas de debate, procurou-se a paridade entre mulheres e homens, o que se seguiu nos CBAs seguintes, procurando sempre compor as mesas com a participação de agricultores/as familiares, povos e comunidades tradicionais e jovens. O VIII CBA foi o primeiro congresso realizado após o lançamento da Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (PNAPO). Com isto, as discussões sobre políticas públicas, que já eram presentes nos CBAs, passam a se intensificar.
A PNAPO foi elaborada após a reivindicação da Marcha das Margaridas (em 2011), e com ampla discussão com a sociedade civil, mobilizada pela ANA, com a participação da ABA. A ABA compôs a Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (CNAPO) e colaborou com a elaboração e avaliação do I PLANAPO (Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica) e com a elaboração do II PLANAPO. A partir da CNAPO, a ABA contribuiu para ampliar os editais dos Núcleos de Estudos em Agroecologia (NEAs).
A criação de NEAs nas universidades e institutos federais foi incentivada a partir de editais apoiados por vários ministérios, via CNPq. Os NEAs representam uma grande inovação ao possibilitar a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão (um princípio constitucional) nas instituições de ensino superior. Eles possuem suas raízes nos grupos de agricultura alternativa que se organizaram nas universidades na década de 1980. O VIII CBA ocorreu próximo ao lançamento do resultado do edital que também apoiou a organização de Rede de NEAs, uma em cada região brasileira. Em editais seguintes, apoiou-se a criação de NEAs na EMBRAPA e organizações estaduais de pesquisa. Ao final do VIII CBA, a ABA articulou com o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) a elaboração de um projeto de sistematização dos NEAs. A sistematização foi realizada de forma participativa em todas as regiões brasileiras, com intenso protagonismo dos/as jovens bolsistas. As principais lições apontadas pela sistematização podem ser encontradas no site da ABA no volume 13, número 1, número especial da RBA, dentre outras publicações.
Em 2015, pela primeira vez o CBA foi organizado na região Norte, em Belém (PA). O IX CBA teve como tema “Diversidade e Soberania na Construção do Bem Viver” e procurou aprofundar o debate sobre as comunidades e povos tradicionais na construção da Agroecologia. Ao final do congresso, em uma carta, representantes de povos indígenas manifestaram os seus entendimentos, percepções e posicionamentos sobre a Agroecologia enquanto ciência, prática e movimento social. Nesse congresso, a ABA também reiterou a importância do protagonismo dos jovens na promoção e construção do conhecimento agroecológico (Carta Política do IX CBA). Ainda, pela primeira vez, utilizou-se a metodologia dos Tapiris de Saberes na busca de formas de dinamizar a apresentação dos trabalhos no Congresso.
Em 2017, O CBA foi realizado pela primeira vez na região Centro-Oeste, em Brasília, com o tema “Agroecologia na Transformação dos Sistemas Agroalimentares na América Latina: Memórias, Saberes e Caminhos para o Bem Viver”. O X CBA foi organizado em um contexto de golpe que depôs a presidenta democraticamente eleita Dilma Roussef. Entretanto, a força e luta dos(as) organizadores(as) do Congresso, muitos(as) deles(as) funcionários(as) do Governo Federal, permitiu que ainda houvesse apoio governamental ao CBA. Este congresso voltou a ser organizado em parceria com a SOCLA, quando se realizou o VI Congresso Latino Americano de Agroecologia, com a participação de 25 países. O esforço de organizar os dois congressos em conjunto foi no sentido de alternar o congresso Latino Americano (ano par) com o CBA (ano ímpar). Para isto, a SOCLA organizou o VII Congresso Latino Americano em 2018 e, a partir, daí voltou a organizá-lo a cada dois anos.
O X CBA utilizou uma metodologia complexa que permitiu a participação efetiva das pessoas no evento, em um espaço de diálogo aberto com a sociedade na forma de “Caminhos do Saber”. Como pré CBA, a ABA organizou o I Encontro dos NEAs (que seguiu sendo organizado nos CBAs seguintes), para encerrar o processo de Sistematização dos NEAS. O X CBA apresentou ainda uma grande novidade, a possibilidade de apresentação, por escrito, de experiências populares. A compreensão da necessidade de aprofundar o diálogo entre a ciência acadêmica e os saberes, ou ciência popular, já havia sido apontada durante a realização dos EBAAs, entretanto, o exercício de elaborar metodologias que efetivam verdadeiramente este diálogo é constante. A apresentação das experiências populares ajuda na efetivação deste diálogo. Neste CBA, pela primeira vez, foi organizada a ciranda infantil. Como Carlos Brandão afirmou ao final do IX CBA, o CBA é para todas as áreas de conhecimentos, acadêmicos e populares, e para todas as idades. A feira agroecológica e da sociobiodiversidade foi ampliada; houve a exibição de 10 horas de filmes na mostra cinematográfica, a apresentação de grupos culturais foi ampliada, organizou-se no CBA a casa dos NEAs, um lugar onde os NEAs se encontram e dialogam, mais de quatro mil refeições agroecológicas foram servidas, mais de duas mil hospedagens solidárias foram organizadas e, pela primeira vez, o número de inscritos e participantes no CBA ultrapassaram cinco mil. Desde o X CBA, tem sido feito um esforço para adquirir alimentos agroecológicos dos agricultores familiares para os participantes do CBA.
Nesse CBA, assim como em outros, houve protestos dos jovens organizados na REGA (Rede de Grupos de Agroecologia), que organiza os ENGAs (Encontro dos Grupos de Agroecologia), por vezes paralelo ao CBA, como ocorreu em Brasília. Entre seus manifestos, eles e elas reivindicavam a realização de CBAs em locais de mais fácil acesso a todos e todas. O próximo CBA (XI) foi então organizado no chão da Universidade Federal de Sergipe.
Embora realizado em Sergipe, o XI CBA foi regional, construído por várias mãos dos estados nordestinos, com o tema “Ecologia de Saberes: Ciência, Cultura e Arte na Democratização dos Sistemas Agroalimentares”. Neste CBA, a partir da Pedagogia Griô, procurou-se ampliar o uso de metodologias participativas, e as fiandeiras “fiaram”, de forma belíssima, o congresso. Ampliou-se a apresentação das experiências populares que puderam então ser submetidas em texto ou em vídeos e apresentadas conjuntamente com as experiências acadêmicas ou resumos científicos. Além dos dispositivos pedagógicos utilizados em CBAs anteriores, como feiras, manifestações da cultura popular, ciranda infantil, casa dos NEAs e etc., no XI CBA organizou-se, pela primeira vez, o Espaço dos Cuidados Ancestrais (terapias integrativas), a Cozinha das Tradições e o Terreiro das Inovações Camponesas. Para o XI CBA, a ABA intensificou os processos preparatórios, incentivando a realização de encontro nas regiões.
O XI CBA ocorreu em um contexto político difícil no Brasil, com a eleição do abominável em 2018. Entretanto, a notícia avidamente esperada ocorreu ao final do CBA: o Lula ficou livre! No início de 2019, a CNAPO e outras organizações da sociedade civil foram extintas. Os anos que se seguiram foram difíceis. Além do pandemônio veio a pandemia. Foi triste! Sofremos com a perda de muitas pessoas, inclusive companheiros nossos da ABA. Devido a pandemia, o CBA não foi realizado em 2021. Sobrevivemos, vencemos e em 2022 voltamos a celebrar a democracia.
Em 2023, a ABA voltou a realizar o CBA na região Sudeste. Com o tema “Agroecologia na Boca do Povo”, o XII CBA foi uma explosão de diversidade na Lapa, centro do Rio de Janeiro. Para este CBA os processos preparatórios foram ainda mais intensos, em especial a realização de oficinas de escrita online e/ou presencial em vários territórios, incluindo a cidade do Rio de Janeiro. As oficinas de escritas se basearam em experiências advindas dos territórios agroecológicos. Os resultados do XII CBA ainda estão sendo sistematizados e em breve serão divulgados, mas houve uma participação recorde de pessoas (aproximadamente 5 mil inscritos e a participação de muitos outros e outras não inscritos/as) e de números de experiências populares, acadêmicas e resumos científicos apresentados. No XII CBA aprofundou-se o debate sobre ciências, Agroecologia e a necessidade da articulação campo/cidade para superar os enormes desafios enfrentados, dentre eles o direito a comida de verdade, no campo e na cidade.
Em 2024, a CNAPO foi reconstituída, com a participação da ABA, e o III PLANAPO foi lançado após intensa articulação política para que a questão da redução do uso dos agrotóxicos não fosse retirada do III PLANAPO, o que era uma exigência do Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA). Este ministério está sujeito a um intenso lobby do agronegócio, o que inclui empresas produtoras de agrotóxicos. Para resolver a questão, o Presidente Lula precisou arbitrar e o III PLANAPO foi lançado, sem excluir a questão da redução dos agrotóxicos.
Seguimos em luta, com a certeza de que os sistemas agroalimentares não serão sustentáveis e a comida de verdade não virá, enquanto as questões políticas que permitem a exploração sem fim de nossas vidas e nossos bens naturais pelo agronegócio, mineração e grandes empreendimentos não forem superadas!
Nos encontraremos no CBA 13, em Juazeiro (BA), em 2025! Até lá!
Irene Maria Cardoso
Foi presidente da Associação Brasileira de Agroecologia, gestão 2014-2017. Possui graduação em Agronomia (1984) pela Universidade Federal de Viçosa (UFV), especialização em Ensino em Geociências pela Universidade de Campinas (UNICAMP) (1994), mestrado em Solos e Nutrição de Plantas (1992) pela UFV e doutorado em Ciências Ambientais pela Universidade de Wageningen (2002), na Holanda. Aposentou-se como professora titular da Universidade Federal de Viçosa, Departamento de Solos e atualmente é professora voluntária do mesmo departamento.
Copyright (©) 2024 - Irene Maria Cardoso
Revista Brasileira de Agroecologia
ISSN 1980-9735
Publicação da Associação Brasileira de Agroecologia - ABA-Agroecologia em cooperação com o Programa de Pós-Graduação em Meio Ambiente e Desenvolvimento Rural - PPG-Mader, da Universidade de Brasília – UnB
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