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Brasília, v. 19, n. 3, p. 251-258, 2024

https://doi.org/10.33240/rba.v19i3.55303

 

Como citar: MARTINS, Sérgio R. Editorial: Os 20 anos da Associação Brasileira de Agroecologia. Revista Brasileira de Agroecologia, v. 19, n. 3, p. 251-258, 2024.

 

Editorial

 

Os 20 anos da Associação Brasileira de Agroecologia

 

Celebremos os 20 anos da Associação Brasileira de Agroecologia – ABA-Agroecologia, como uma semente plantada em solo fértil e resultando em árvore frondosa, cuja copa, imensamente ramificada, emerge de um tronco robusto assentado e alimentado por raízes sadias. Árvore de folhas abundantes. Árvore que produz flores lindas e frutos maravilhosos. Árvore que permite vida para as mais diversas espécies que nela estão abrigadas, as quais são vitais para a relação humanos/natureza, da qual depende a sobrevivência humana no planeta. Sentido da mais pura vida. Não seria exagero fazer essa analogia com relação à ABA e, como tal, o entendimento de sua representação como vida pulsante.

Aí está o expressivo número de cursos de Agroecologia nos mais diferentes níveis espalhados por todo o Brasil: disciplinas, núcleos temáticos, eventos nas mais diversas áreas e atividades, comercialização de produtos, políticas públicas, mandatos de exercício político, demandas de consumo, etc. Fruto de movimentos sobre a necessidade de produzir com foco principal na saúde e, portanto, na vida. Enfim, faz parte da realidade até mesmo o uso indiscriminado e inadequado da expressão “Agroecologia”, por vezes descontextualizada de seus princípios historicamente construídos.

Mas, sabemos todos que a qualidade do solo (expressão mais afeta ao contexto agroecológico, pois contempla o solo na perspectiva sistêmica: física, química, biologia, morfologia, etc.), onde foi jogada a semente da ABA-Agroecologia, é fruto de uma trajetória densa e longínqua que se inicia antes mesmo da ciência existir tal como hoje a conhecemos, talvez antes mesmo do surgimento do pensamento científico com os pré-socráticos na Grécia Antiga também chamados de Filósofos da Natureza.  Para não irmos tão longe no tempo, o próprio título do livro de Alonso Herrera (primeira edição com data de 1513) nos mostra questões que fazem parte da trajetória da ABA (passado, presente e futuro): “Agricultura General que trata de la labranza del campo, y sus particularidades; crianza de animales, propriedades de las plantas que em ella fe contienenn, y virtudes prouechofas à la falud humana”.

Obra escrita em “espanhol antigo” quando a letra “s” se escrevia com a letra “f”, chama atenção para a expressão “virtudes proveitosas para a saúde humana”. Hoje entendemos saúde humana como vinculada a saúde do planeta, uma vez que contempla a relação saúde do solo, saúde da planta, saúde humana. É com esse princípio básico que a ABA-Agroecologia vem seu pautando, com sua história construída em princípios herdados e datados bem antes de sua de fundação, em 2004.

O livro evidencia como a prática agrícola foi precursora da formação acadêmica em Agronomia. No caso espanhol, Alonso Herrera foi um atento observador das práticas agrícolas. Nasceu e se criou no seio da agricultura, andou por grande parte do território espanhol, mas também percorreu outros países da Europa. Além de agricultor, posteriormente seguiu a formação eclesiástica. Somente em 1855 (mais de três séculos após seu livro sobre agricultura) foi criada a primeira Escuela Central de Agricultura la Flamenca, hoje conhecida como Escuela Técnica Superior de Ingeniería Agronómica, Alimentaria y de Biosistemas, pertencente à Universidad Politécnica de Madrid. Também no Brasil, os primeiros cursos superiores de agricultura nasceram tardiamente. Datam, respectivamente, de 1877 (Imperial Escola Agrícola da Bahia), e de 1883 (Imperial Escola de Medicina Veterinária e de Agricultura Prática), hoje com o nome de Faculdade de Agronomia Eliseu Maciel pertencente à Universidade Federal de Pelotas. Sem ignorar o fundamental papel das ciências agrárias, é indispensável compreender as práticas que balizaram a formação acadêmica e os respectivos contextos históricos que originaram tais escolas definidores dos seus respectivos ethos. Certamente um fruto da dinâmica social, das circunstâncias e dos contextos dos movimentos da sociedade em suas diversas dimensões (econômicas, sociais, ambientais, culturais, políticas, ideológicas, relações de poder, etc.).

Anos mais tarde, outros olhares para além da Agronomia, mostraram, de modo brilhante e exemplar, a agricultura como sentido de vida, tornando-se referência para os movimentos que, desde então, foram construindo os princípios que hoje fazem parte do eixo central da ABA-Agroecologia. Entre todos, merecem destaque pelo menos dois grandes personagens. Em 1930, o botânico inglês Albert Howard escreveu a obra seminal “Um Testamento Agrícola”. Posteriormente, nos anos 1960, a bióloga marinha e escritora norte-americana Raquel Carson, deixou sua extraordinária contribuição através de seu livro Primavera Silenciosa. Aqui no Brasil são inúmeras as contribuições neste processo histórico, cujos nomes mereceriam um texto à parte, mas que podem ser exemplarmente representados por José Lutzemberger e Ana Maria Primavesi.

Portanto, não há como falar dos 20 anos da ABA-Agroecologia sem ressaltar percepções sobre pessoas e contextos que emocionam e inquietam todos aqueles com ela comprometido.

De um lado está a lembrança de colegas que se doaram para erguer os pilares da Associação Brasileira de Agroecologia e contribuíram para seu eixo epistêmico, e cuja vida foi interrompida tão precocemente, a exemplo de Francisco Roberto Caporal e José Antonio Costabeber, em nome de tantos outros que já partiram. Naquele, então, início do século XXI, destacavam que a Agroecologia possui uma base epistemológica que reconhece a relação estrutural de interdependência entre o sistema social e o sistema ecológico. Ao mesmo tempo, estes nos trazem à lembrança uma multidão de pessoas que abraçaram a Agroecologia como ciência, movimento e prática. Pessoas que já estavam desde os primórdios da Associação e continuam com ela compromissados, e mais um outro tanto de pessoas que foram se engajando a ela como verdadeiros protagonistas. Pessoas de todos os rincões de nosso país que vestiram a camiseta da Agroecologia, evidenciando pertencimento e intencionalidade.

De outro lado, está à percepção sobre a contextualização definidora da dinâmica da ABA-Agroecologia que impõe constantes desafios de toda ordem a seus princípios. Há que se destacar o fértil período político que enseja sua fundação e posterior criação da Revista Brasileira de Agroecologia, em 2006, na esteira de importantes eventos tais como o II Congresso Brasileiro de Agroecologia, o V Seminário Internacional sobre Agroecologia e o VI Seminário Estadual sobre Agroecologia. Esta série de eventos evidenciam contextos em que os princípios da Agroecologia foram emergindo e constituindo-se num processo epistêmico para o qual as políticas públicas foram sendo convocadas a abrir caminhos, tanto no âmbito da academia (onde o ensino, pesquisa e extensão deveriam ser parte de um mesmo todo), como dos movimentos sociais, dos agricultores familiares, dos consumidores, etc. Um contexto construído num movimento que parte “de baixo para cima”, um contexto de mobilização social. Todo um esforço de esperança e de utopia em que pese correntes contrárias a este movimento em vários setores da sociedade, paradoxalmente também no âmbito acadêmico. Nesse processo, entretanto, não faltaram aqueles (por sorte, poucos e sem repercussão expressiva) que tentaram liderar correntes difamatórias, agressivas e  negacionistas, que sem o mínimo pudor e respeito desdenham da importância e do sentido da Agroecologia, assim como também sustentaram, e ainda sustentam, o negacionismo escandaloso sobre as mudanças climáticas como um processo de origem antrópica.

Ao longo desse período, tanto nas últimas décadas como na atualidade, foi necessário pensar sobre a dinâmica da episteme agroecológica. Um processo contínuo influenciado pelo contexto em que aspectos cognitivos refletem tanto a essência da natureza humana como a condição humana. Hannah Arendt mostrou, com sabedoria, que esses dois elementos são determinantes do comportamento humano. Processo esse que pode resultar tanto na expansão da consciência como em seu embotamento, definido a forma como se percebe a realidade circundante. Assim, quando falamos de episteme agroecológica estamos nos referindo ao “pensamento agroecológico” como basilar para a construção uma agricultura de base ecológica.

Do ponto de vista acadêmico, ao pensar sobre Agroecologia, no que se refere à formação agronômica (contexto de formação profissional a partir do qual o presente texto é elaborado), é necessário entender as tendências epistemológicas definidoras do raciocínio dos agrônomos que, por sua vez, estão atrelados, em grande parte, ao ethos de seus espaços de formação e posterior atuação na intervenção da realidade. Assim, cada Escola de Agronomia, cada universidade, e cada centro de pesquisa e de extensão, possuem singularidades que obedecem à sua história (dimensões econômicas, sociais, ambientais, culturais, etc.). Assim, não é por acaso que em algumas escolas, as questões não relacionadas direta ou indiretamente aos ditames da chamada “revolução verde” (iniciada nos anos 60 e 70 do século XX) são vistas de forma enviesada, com certo desdém, sendo tomadas como desnecessárias e distantes dos interesses determinantes daquela forma de produzir e de ver o mundo. Tanto a Agroecologia como iniciativas anteriores sob outras denominações tais como agricultura alternativa, agricultura orgânica, sofreram deste desprezo. Tal embotamento não impediu que em outras instituições, ao contrário, a ciência agroecológica tenha sido vista como o eixo central da atividade profissional numa perspectiva multidimensional, interdisciplinar e sistêmica, em que a formação acadêmica parte do diálogo e interações entre ciências e destas com os saberes não acadêmicos. Dessa forma, é capaz de ler e entender a realidade, bem como de construir soluções para os grandes desafios que se apresentam: um emaranhado de problemas que mostram uma complexidade cada vez maior da realidade.

Neste contexto, celebrar os 20 anos da ABA-Agroecologia, implica olhar e pensar com todo rigor necessário sobre o presente e sobre um futuro, extremamente complexos e determinantes dos caminhos da nossa Associação.

Por tudo isso, há que se insistir na questão do pensamento agroecológico. Há de se entender a dificuldade da inserção da Agroecologia na produção do conhecimento científico no interior da academia, especialmente nas Escolas de Agronomia, mesmo antes de receber essa denominação. Naquele contexto emergiam movimentos que analisavam os efeitos deletérios, do ponto de vista socioambiental, da chamada “revolução verde” (pautada nos três conhecidos pilares: mecanização, genética e química) em nome de acabar com a fome no planeta. Uma expressão no mínimo curiosa e contraditória uma vez que a palavra “verde” já estava presente no grande debate global sobre o significado do desenvolvimento.  Debate esse que atingiu o ápice no início da década dos anos 90 por ocasião da “Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento” realizada no Rio de Janeiro (Eco-92) e onde se plantou a ideia do “desenvolvimento sustentável”, que abrigou diversas “tonalidades de verde”, incluindo correntes que, mais adiante, se colocariam como detratoras da Agroecologia.

No seio desta disputa epistemológica ergue-se corajosamente a bandeira de alternativas para o modo de fazer agricultura (o quê, quem, como, com o quê e para quem?) como parte do debate acadêmico a partir de iniciativa de uma pequena parcela de docentes, uma parte politicamente muito representativa dos estudantes, e de agricultores. Contudo, nesse momento o olhar estava bastante centrado para o “interior da porteira”: como produzir melhor sem a cartilha industrial da “química, genética e mecanização”. A partir deste viés, muitos textos e reflexões chegaram de fora do País e/ou aqui foram produzidos, tornando-se referência de como entender a Agroecologia e como praticá-la. Entretanto, outras importantes referências também estavam no debate ainda que de modo menos palatável por uma formação agronômica embotada nos princípios da chamada Revolução Verde. De modo que alertavam para princípios agroecológicos que não poderiam prescindir de uma olhar para “além-porteira”, o que equivale dizer: que considerasse o humano, sua cultura, a natureza, os ecossistemas, a biodiversidade, o território, as idiossincrasias, as relações sociais e os saberes não acadêmicos, sem deixar de considerar os aspectos econômicos. Um olhar aberto, uma expansão da consciência para uma melhor percepção da realidade com o objetivo de transformá-la e promover a dignidade para o agricultor em suas relações com o espaço urbano e natural. Um desafio que obrigava a ciência agronômica a somar-se e a interagir com as demais ciências num novo processo, ainda bastante desconhecido, de como produzir conhecimento centrado na abordagem sistêmica, interdisciplinar e transdisciplinar, na medida que exige interação entre os saberes acadêmicos e não acadêmicos, considerando que sua essência está centrada na vida.

Nesse denso processo epistêmico não seria possível vencer os desafios de como pensar e colocar em prática a ciência sem o agricultor, o principal protagonista, mas também considerando os demais atores da sociedade: os consumidores, os sistemas e os movimentos sociais organizados. Essa profícua ideia, aos poucos, vai dando lugar ao que posteriormente ficou traduzido no significado da Agroecologia como o resultado da interação entre “ciência, movimento e prática”, expressão assumida pela ABA-Agroecologia).

Olhar para os 20 anos da ABA-Agroecologia, nos remete a olhar para o futuro, com suas imensas incertezas e desafios, complexidade, contextos políticos que determinam as relações local/global, novas tecnologias e seu vertiginoso processo de avanço (sem que se consiga prever seu controle e impactos na realidade), novas formas de relação social cujas redes se estabelecem de maneira infinita, etc. Esse conjunto de fatores determina novas demandas da sociedade, e provoca novos movimentos nos quais questões que antes estariam, num primeiro momento, fora da formação acadêmica e da própria Agroecologia, hoje fazem parte de seu campo de ação. Novas formas de pensar e de construir o conhecimento exigem a contemplação de novas dimensões da realidade. Assim, a episteme agroecológica se vê desafiada por temas tão variados e fundamentais, muitos dos quais têm sido foco dos Núcleos e Grupos de Trabalho da ABA-Agroecologia, tais como:

 

Enfim, a esse resumo de novas demandas, poderia ser acrescentada uma infinidade de outras questões. Contudo, o mais importante desafio futuro da ABA-Agroecologia, como forma de tratar a complexidade da realidade, é abrir espaço para o fundamental debate sobre a episteme agroecológica, promovendo a ideia de que não se tem um modelo pronto e acabado da Agroecologia. Como processo, necessita ser colocada no debate acadêmico de forma a que se internalize essa miríade de desafios. Em especial, a ideia de que, na construção da ciência agroecológica, as pessoas do mundo rural protagonizam a capacidade de trazer para a academia questões da realidade, entendendo que ciência, movimento político e prática social suscitam, constantemente, novas perspectivas para o debate.

 

Sergio Roberto Martins

 

Eng. Agrônomo. Dr. Prof. Aposentado UFPel. Atuou como Prof. Visitante na UFSC (Programa de Pós-Graduação em Engenharia Ambiental); na UFFS (Mestrado em Agroecologia e Desenvolvimento Rural Sustentável); na UFPA (Especialização e Mestrado em Agriculturas Familiares e Desenvolvimento Sustentável). Participou da Diretoria da ABA-Agroecologia; é membro do Conselho Editorial da Revista Brasileira de Agroecologia. Atualmente participa do Projeto de Pesquisa A agricultura de amanhã: o design de sistemas agrícolas no Antropoceno (NUMAVAM/UFSC/CNPq).

 

 

Copyright (©) 2024 – Sérgio Roberto Martins

 

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Revista Brasileira de Agroecologia
ISSN 1980-9735

Publicação da Associação Brasileira de Agroecologia - ABA-Agroecologia em cooperação com o Programa de Pós-Graduação em Meio Ambiente e Desenvolvimento Rural - PPG-Mader, da Universidade de Brasília – UnB

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