Brasília, v. 19, n. 2, p. 120-130, 2024
https://doi.org/10.33240/rba.v19i2.54414
Como citar: MELGAREJO, Leonardo. Editorial - Rio Grande do Sul: capitalismo do desastre ou Agroecologia? Revista Brasileira de Agroecologia, v. 19, n. 2, p. 120-130, 2024.
Editorial
Rio Grande do Sul: capitalismo do desastre ou Agroecologia?
O Colegiado Editorial da Revista Brasileira de Agroecologia sugeriu que, em função da crise socioambiental que se abate sobre o Rio Grande Sul, este número trouxesse, como editorial, elementos para discussão das causas, responsabilidades, desdobramentos e conexões, à luz dos princípios que reúnem a todos que participamos da Associação Brasileira de Agroecologia.
Optamos por desenvolver este conteúdo em três partes (A Dimensão; As Causas; e As Possibilidades) e uma conclusão sumarizada, como exposto a seguir.
A dimensão
Ao mesmo tempo, desenha-se confluência de crises socioeconômicas familiares. As dificuldades para a retomada de atividades produtivas, bem como a esperada transferência de valores patrimoniais ampliarão assimetrias em decorrência da diferenciação de impactos relacionados ao avanço em despesas com moradia, alimentação, saúde e educação. A elevação nos preços de mercado e a redução na produção de alimentos destinados ao autoconsumo ainda sugerem tendência de ampliação no quadro de desnutrição e insegurança alimentar.
As causas
Os autores com maior influência na discussão deste tema apontam confluência de pelo menos três fatores correlacionados: (1) a posição e a geografia do estado do Rio Grande do Sul; (2) o desequilíbrio ecossistêmico global associado à hegemonia planetária do sistema capitalista, com suas implicações sobre o aquecimento global e (3) a ocupação deste território pelo agronegócio e os impactos de seu modelo predatório, aqui dominante.
Portanto, vale repetir: o mau uso de condições naturais extremamente favoráveis, como a abundância de águas, rios originalmente navegáveis e vales férteis irrigados por apenas três grandes bacias de captação das chuvas (Bacias do Litoral, do Rio Uruguai e do Rio Guaíba) em território em desnível com potencial de geração de energias renováveis, sob a orientação de políticos locais negacionistas, articulados em escala nacional e capturados por interesses econômicos de curto prazo, foram determinantes para a presente catástrofe.
Como corolário, diante de alterações no ecossistema global, que tendem a ampliar a dinâmica e a violência de situações como aquela relatada na primeira parte deste texto, cabe examinar o que pode ser feito para minimização de seus riscos e ampliação de perspectivas favoráveis ao desenvolvimento do Rio Grande do Sul.
As possibilidades
Com esta perspectiva em mente, sugere-se que a recuperação do Rio Grande do Sul mobilize a sociedade com vistas a caminhos distintos, incluindo, entre outros exemplos, iniciativas que permitam:
1 – Estabelecimento de mecanismos de avaliação, priorização, implantação e monitoramento das atividades de recuperação do Rio Grande do Sul que incorporem conselhos representativos da comunidade científica, das organizações sociais e das populações afetadas, agregando elementos de transparência. Em termos programáticos sugere-se que estas atividades se façam de maneira regionalizada, envolvendo Comitês de Bacias Hidrográficas em perspectiva de recuperação da biodiversidade e observância à legislação ambiental (APPs e Reservas Legais), adotando os princípios da participação e da Agroecologia. Objetivamente sugere-se a retomada do Programa de Microbacias Hidrográficas e a reativação dos Conselhos Regionais de Desenvolvimento, bem como a constituição de comitês de bairro, nas cidades atingidas. Em outras áreas, outras comunidades precisarão ser mobilizadas. Como exemplo, considere-se os profissionais da área da educação, da saúde, da engenharia, da psicologia social, etc, em seus escopos de expertise.
2 – Implantação da Política e do Programa Estadual de Agroecologia e Produção Orgânica (PEAPO), incorporando conselhos consultivos de caráter estadual, com contrapartidas regionais e municipais, nos moldes dos serviços de saúde. No caso do PEAPO, sugere-se fortalecimento de mecanismos de apoio à produção e à comercialização de alimentos limpos, mobilizando os sindicatos e as organizações de base que atuam com povos tradicionais, quilombolas, assentados, agricultores e agroindústrias familiares.
4 – Fortalecimento de articulações ativas entre fontes de saberes/experiências populares e conhecimentos científicos, com avaliação e estímulo financeiro à multiplicação de resultados positivos ali constatados, com participação/envolvimento de organizações sociais, grupos ambientalistas, Núcleos de Agroecologia e comunidade científica. Sugere-se a incorporação dos serviços públicos de pesquisa e extensão a esforços para implantação de agroflorestas e produção em larga escala de alimentos limpos, com o uso de tecnologias amigáveis em relação ao ambiente. Como exemplos, sugere-se acompanhamento/multiplicação das feiras de base agroecológica e do itinerário técnico produzido pelo MST, para o arroz orgânico, com vistas à sua adaptação em outras culturas.
5 – Implantação/qualificação e obrigatoriedade de programa estadual de educação ambiental formal e informal, para crianças, jovens e adultos, envolvendo escolas públicas e privadas, apoiado por mecanismo de comunicação social a ser conduzido em redes privadas e públicas, com conteúdo preparados por organizações ambientalistas.
6 – Revisão e qualificação de zoneamento climático ecológico e econômico para explorações agropecuárias, energéticas e minerais, estabelecendo critérios orientadores de estímulos e restrições a operações de crédito e seguro agrícola;
7 – Reavaliação e, onde necessário, correção das alterações estabelecidas pelo governo Leite, na lei gaúcha dos agrotóxicos, na legislação ambiental e na concessão de benefícios a empresas atuantes no setor.
Conclusão
A crise ambiental pela qual passamos, ao mesmo tempo em que acarreta oportunidades para ampliação dos mecanismos de clientelismo, corrupção e enfraquecimento da democracia representativa, também aponta alternativas para a recuperação do estado do Rio Grande Sul.
Para que esta última finalidade alcance sucesso compatível com princípios de emancipação humana, se faz necessário não apenas esclarecer a sociedade quanto às causas e responsabilidades subjacentes à atual tragédia, como também, e principalmente, assegurar o fortalecimento de mecanismos de governança participativa, alimentando ações de cunho solidário e atividades econômicas amistosas em relação à natureza.
Para avanços neste caminho é preciso que os investimentos aplicados à reconstrução de infraestruturas destruídas, que se estenderão por décadas, assegurem a recuperação de valores em desuso, notadamente no campo da ética e da moral pública. Trata-se de valorização da cidadania, a ser estimulada pela contratação da população para a realização/fiscalização e monitoramento de obras públicas. Inclui-se, neste bojo, a abertura de oportunidades para conhecimentos e práticas de base agroecológica, em políticas relacionadas à produção agropecuária, à agricultura urbana e à soberania e segurança alimentar e nutricional.
Neste sentido, experiências abandonadas nas últimas gestões, como o orçamento participativo, os conselhos regionais de desenvolvimento, os programas estaduais de microbacias hidrográficas, a reforma agrária e a educação ambiental formal e informal, precisam ser recuperadas e adotadas como instrumentos mobilizadores da sociedade. Organizações sociais reconhecidamente eficientes no trato de questões relacionadas à produção de conhecimentos, produtos e processos de base agroecológica, tecnologias solidárias e comércio justo, devem ser mobilizadas e integradas a formas populares de enfrentamento da carestia.
Estes são alguns dos conceitos trazidos a este texto como elementos provocadores de discussões necessárias para embasamento de acordos coletivos com vistas à recuperação da democracia participativa e da capacidade sócio-política-produtiva do Rio Grande do Sul.
Trata-se de caminhos necessários, embora insuficientes para o enfrentamento das tendências degenerativas que submeteram esta região às consequências da inabilidade, inoperância e incúria de agentes públicos capturados por interesses que favoreceram a mercantilização de tudo em detrimento da condição humana.
Também carecemos de ampla revisão das formas de aprendizado, controle e valorização dos espaços de gestão e representação social, para reconstrução de laços favoráveis à reaproximação da sociedade com a natureza. Neste ponto, se trata de recuperar a importância das relações de respeito e interdependência como elementos para preparação da sociedade gaúcha aos desdobramentos deste desastre e suas conexões com os próximos eventos de tal porte. Entende-se que a zona de sacrifício, constituída no Rio Grande do Sul, possa servir de base para a recuperação de laços de solidariedade republicana, bem como para a experimentação de caminhos menos dramáticos diante de emergências climáticas que seguramente ocorrerão em outras regiões dominadas pelo mesmo processo de degradação das relações ecossistêmicas.
Finalmente, espera-se que estes comentários, e as informações a ele apensadas, contribuam, de alguma maneira, para o fortalecimento de convicções e esforços conduzidos pelos participantes da Associação Brasileira de Agroecologia, com vistas à construção de valores cognitivos e sociais não discriminatórios e ajustados ao desenvolvimento do espírito e da solidariedade humana.
Leonardo Melgarejo
Engenheiro Agrônomo (UFRGS). Mestre em Economia Rural (UFRGS) e doutorado em engenharia de Produção (UFSC). Aposentado como Extensionista Rural, pela EMATER RS. Faz parte do Grupo de Especialistas em Agrosociobiodiversidade – GEA, que dá assessoria ao Ministério de Desenvolvimento Agrário, e da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança - CTNBIO, indicado pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário. Atua na coordenação do Fórum Gaúcho de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos, e é membro cofundador do Movimento Ciência Cidadã, da Associação Brasileira de Agroecologia - ABA-Agroecologia, da Rede Irere de Proteção à Ciência e da Unión de Científicos Comprometidos con la Sociedad y la Naturaleza de America Latina- UCCSNAL. É colunista do Jornal Brasil de Fato RS e membro do conselho editorial da revista Biodiversidad Sustento y Culturas. Colaborador do GT Agrotóxicos e transgênicos da ABA-Agroecologia e do GTBio da Articulação Nacional de Agroecologia -ANA.
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1 https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/quase-75-da-populacao-do-rio-grande-do-sul-foi-afetada-por-enchentes-diz-atlas-cnn/
2 https://www.brasildefators.com.br/2024/05/09/dos-497-cidades-gauchas-425-ja-foram-atingidas-pela-tragedia-climatica-no-rs
3 https://static.portaldaindustria.com.br/portaldaindustria/noticias/media/filer_public/8e/88/8e88c7b2-fab6-4f16-99d9-59c0f08ca60b/estudo_fiergs.pdf
5 https://gauchazh.clicrbs.com.br/geral/noticia/2024/05/imagens-de-satelite-mostram-mancha-de-sedimentos-no-guaiba-e-na-lagoa-dos-patos-clwficeh800ds014x9yqu3o7c.html
6 FERNANDES, Gracieli et al. Epilithic biofilms as a discriminating matrix for long-term and growing season pesticide contamination in the aquatic environment: Emphasis on glyphosate and metabolite AMPA, Science of The Total Environment, v. 900, 2023, 166315, ISSN 0048-9697, https://doi.org/10.1016/j.scitotenv.2023.166315
7 https://metsul.com/catastrofe-e-maior-sinistro-da-historia-do-mercado-de-seguros-no-brasil/
8 A prefeitura de Porto Alegre, que em março havia decretado situação de emergência em função de 20 mil casos suspeitos, 2.227 casos confirmados e duas mortes por dengue (https://prefeitura.poa.br/sms/noticias/porto-alegre-decreta-situacao-de-emergencia-para-enfrentamento-da-dengue), em fins de maio informava ocorrrência de mortes por leptospirose associada a contato com as águas contaminadas (https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2024/05/23/rs-registra-mais-duas-mortes-por-leptospirose-em-razao-das-cheias-e-total-de-obitos-chega-a-quatro.ghtml)
9 https://sul21.com.br/noticias/educacao/2024/06/educacao-publica-o-abismo-que-se-aprofundou-na-pandemia-as-enchentes-vao-ampliar/
10 https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/desastre-planetario-negacionismo-revolta-politica/
11 https://portal.inmet.gov.br/noticias/el-ni%C3%B1o-saiba-como-foi-a-atua%C3%A7%C3%A3o-do-fen%C3%B4meno-no-brasil
12 https://metsul.com/chuva-que-levou-as-enchentes-no-rio-grande-do-sul-superou-1000-mm/
13https://noticias.uol.com.br/meio-ambiente/ultimas-noticias/redacao/2024/05/18/aumento-de-area-para-agrupecuaria-rio-grande-do-sul-desde-1985.htm?utm_source=whatsapp-network&utm_medium=compartilhar_conteudo&utm_campaign=organica&utm_content=geral
14 https://www.grupooceano.com.br/noticias/rio-grande/entenda-a-importancia-do-vento-para-o-nivel-da-lagoa-dos-patos-34601/
15 https://www.intercept.com.br/2024/05/06/enchentes-no-rs-leia-o-relatorio-de-2015-que-projetou-o-desastre-e-os-governos-escolheram-engavetar/
16 https://www.brasildefato.com.br/2023/11/01/agronegocio-favorece-desequilibrio-ambiental-e-climatico-diz-pesquisador
17 https://www.diariodocentrodomundo.com.br/em-40-anos-agro-tomou-metade-do-solo-do-rs-e-cultivo-de-soja-cresceu-em-500/
18 https://www.brasildefato.com.br/2020/12/08/agronegocio-pagou-apenas-r-16-3-mil-em-imposto-de-exportacao-durante-todo-2019
19 https://www.brasildefato.com.br/2024/03/04/financeirizacao-do-agronegocio-cresce-aprofunda-problemas-antigos-e-cria-novos#:~:text=De%20acordo%20com%20o%20Minist%C3%A9rio,j%C3%A1%20eram%20R%24%20953%20bilh%C3%B5es.
20 https://www.redebrasilatual.com.br/ambiente/eduardo-leite-desmonte-ambiental/
21 https://www.brasildefato.com.br/2019/01/04/a-perigosa-relacao-entre-o-agronegocio-e-a-industria-cultural
22 https://expressaopopular.com.br/autor/ana-cha/
23 https://www.brasildefato.com.br/2022/06/05/agro-e-pop-devastacao-ambiental-fome-e-inflacao-entenda-porque-o-modelo-e-insustentavel
24 https://operamundi.uol.com.br/opiniao/sem-terra-a-nova-casta-sem-direitos/
25 A bancada ruralista (https://oeco.org.br/salada-verde/bancada-ruralista-elege-prioridades-distantes-do-meio-ambiente-para-2024/), com 61% dos senadores e 63% dos deputados federais (https://revistaforum.com.br/opiniao/2024/5/13/o-agronegocio-funciona-como-um-parasita-no-estado-brasileiro-158702.html ).
26 https://www.brasildefators.com.br/2024/06/08/o-congresso-e-a-expressao-politica-do-negacionismo-acusa-alceu-castilho
27 Ver por exemplo https://aba-agroecologia.org.br/ ; https://agroecologia.org.br/ ; https://contraosagrotoxicos.org/ ; https://mst.org.br/2018/10/24/agroecologia-e-o-mst/
28 https://iclnoticias.com.br/pesquisa-31-brasileiros-receberam-fake-news-rs/
29 https://iclnoticias.com.br/extrema-direita-rs-fake-news-causa-e-efeito/
30 Inicialmente o governo do Rio Grande do Sul estimou gastos de R$ 19 bilhões com estradas e moradias; O Governo Federal suspendeu o pagamento de dividas orçadas em R$ 3,5 bilhões e anunciou injeção de mais R$ 50,9 bilhões. A isso se somam transferências de recursos de organizações internacionais, governos estrangeiros e populares, em montantes não definidos https://www.bbc.com/portuguese/articles/cqlnpj27kgzo; Apenas de parte dos Brics (https://www.redebrasilatual.com.br/wp-content/uploads/2024/05/banco-brics-rs.webp), Dilma Roussef anunciou auxilio da ordem de US$1,1 Bilhão (R$5,7 bilhões); alguns analistas referem, sem mencionar prazos, que as necessidades serão da ordem de R$ 85 a 90 bilhões.
31 https://www.brasildefato.com.br/2024/05/31/alvarez-marsal-mckinsey-e-ey-capitalismo-de-desastre-toma-a-frente-na-reconstrucao-do-rs ; https://www.brasildefators.com.br/2024/05/28/enfrentamento-a-tragedia-climatica-no-rs-em-tempos-de-capitalismo-de-catastrofe
32 https://www.viomundo.com.br/denuncias/luis-nassif-o-desastre-da-alvarez-marsal-a-consultoria-contratada-pela-prefeitura-de-porto-alegre.html
33 https://www.brasildefato.com.br/2024/05/28/desmonte-sem-precedentes-dos-servicos-publicos-levaram-porto-alegre-ao-colapso#:~:text=Um%20desmonte%20sem%20precedentes.,serem%20entregues%20%C3%A0%20empresa%20Viam%C3%A3o
34 Art. 225 – Todos tem direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e a coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
Revista Brasileira de Agroecologia
ISSN 1980-9735
Publicação da Associação Brasileira de Agroecologia - ABA-Agroecologia em cooperação com o Programa de Pós-Graduação em Meio Ambiente e Desenvolvimento Rural - PPG-Mader, da Universidade de Brasília – UnB
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