i

 

Brasília, v. 19, n. 1, p. 1-12, 2024

https://doi.org/10.33240/rba.v19i1.53239

Como citar: SCHMITT, Claudia J.; NUNES, José; ALMEIDA, Natália. Editorial - Inovação tecnológica e transformação dos sistemas agroalimentares: os riscos de uma travessia e alguns apontamentos desde uma perspectiva agroecológica. Revista Brasileira de Agroecologia, v. 19, n. 1, p. 1-12, 2024.  

EDITORIAL

 

 

Inovação tecnológica e transformação dos sistemas agroalimentares: os riscos de uma travessia e alguns apontamentos desde uma perspectiva agroecológica

 

 

 

No dia 20 de março deste ano, o Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva sancionou, sem vetos, a Lei 14.828/20241, ampliando o alcance da Política Nacional da Agricultura Familiar e Empreendimentos Familiares Rurais. As alterações introduzidas no texto original da chamada “Lei da Agricultura Familiar”2 (Lei 11.326/2006) estão relacionadas, fundamentalmente, à incorporação, entre as áreas a serem consideradas no planejamento e execução desta política, de duas novas linhas de intervenção, a saber: “modernização e desenvolvimento sustentáveis” e “inovação e desenvolvimento tecnológicos”. Uma rápida sistematização das justificativas que respaldaram a mudança do texto da lei, derivado do Projeto de Lei 5826/2019, de autoria do Deputado Carlos Henrique Gaguim, do Partido Democratas (DEM) do Tocantins (TO), e relatado no Senado pelo Senador Alan Rick do Partido União do Acre (AC), nos permite identificar três grandes linhas de argumentação.
Destaca-se, em primeiro lugar, a importância econômica e social da agricultura familiar, notadamente sua contribuição na produção da riqueza gerada pelo setor agropecuário nacional. Soma-se a isso uma avaliação de que o desenvolvimento tecnológico não estaria suficientemente contemplado como um campo de atuação da política governamental, no texto original da “Lei da Agricultura Familiar”, aprovado em 2006. Lembrando, aqui, que a Lei 11.326/2006 já incluía, em seu art. 5o, os seguintes itens: crédito e fundo de aval; infraestrutura e serviços; assistência técnica e extensão rural; pesquisa; comercialização; seguro; habitação; legislação sanitária, previdenciária, comercial e tributária; cooperativismo e associativismo; educação, capacitação e comercialização; negócios e serviços rurais não agrícolas; agroindustrialização. Importante acrescentar que o voto do relator do projeto na Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural da Câmara dos Deputados destaca que “o apoio à agricultura familiar deve superar o financiamento e a comercialização” e que “a inovação tecnológica tem ajudado, sobremaneira, o agronegócio brasileiro, e o mesmo caminho deve ser trilhado pela agricultura familiar, tornando essa atividade mais competitiva e rentável”3.  
O projeto foi também avaliado pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados. O parecer da deputada que atuou como relatora do projeto, além de ressaltar a importância da agricultura e do empreendedorismo de base familiar na produção agropecuária brasileira, destaca que o referido setor “necessita de políticas públicas que assegurem a modernização e a implantação de novas tecnologias visando otimizar lucros, diminuir a poluição e melhorar a qualidade de vida dos agricultores”4. As conexões existentes entre desenvolvimento tecnológico e melhoria da qualidade de vida na agricultura familiar não são, no entanto, aprofundadas ou problematizadas no texto.
Identificamos, por fim, como uma terceira linha de argumentação em defesa desta proposta, a ideia de que o projeto de lei apresentado em 2019, “busca cristalizar em lei preocupação e anseio constante dos agricultores e empreendedores familiares rurais”5. O material disponibilizado no site da Câmara Federal não nos permitiu, no entanto, identificar, de uma forma mais objetiva, as organizações sociais que teriam participado dos diálogos estabelecidos em torno do projeto, representando os distintos segmentos da agricultura familiar mencionados no texto da lei, a saber: agricultores familiares, empreendedores familiares rurais, silvicultores, aquicultores, extrativistas, pescadores, povos indígenas, integrantes de comunidades remanescentes de quilombos rurais e demais povos e comunidades tradicionais6.

É importante destacar que, no caso analisado, as justificativas utilizadas para a incorporação à “Lei da Agricultura Familiar” de noções como “modernização”, “desenvolvimento tecnológico” e “inovação”, não estão vinculadas à especificidade da agricultura familiar e de suas possíveis rotas de transformação social e tecnológica em um contexto de crise climática e de aprofundamento das desigualdades sociais mas, ao contrário, à necessidade de incorporar a produção familiar (ou, pelo menos, parte dela) à nova onda de inovações tecnológicas que vem reconfigurando a agricultura e o sistema agroalimentar nas últimas décadas, com base na convergência entre tecnologias digitais e biotecnologias, movimento que se acelera com a crise desencadeada pela pandemia de Covid-19. Esse processo, liderado pelo setor privado e, mais especificamente, pelas grandes corporações, envolve uma série de aplicações das tecnologias digitais à produção, distribuição, comercialização e consumo de commodities agrícolas e alimentos, abarcando, também, inovações radicais nos campos da genética, da nanotecnologia e da produção de novos materiais (Wilkinson, 2019; Goodman, 2023).

Referências mais detalhadas aos tipos de inovações que a nova lei pretende potencializar não aparecem de forma explícita nos diversos documentos associados à tramitação do Projeto de Lei, mas estão bastante presentes na cobertura feita pela mídia. A título de ilustração vale destacar, por exemplo, uma matéria publicada no dia 27 de fevereiro deste mesmo ano, no site da Agência Frente Parlamentar Agropecuária (FPA), relativa à aprovação do projeto no plenário do Senado Federal. Os benefícios a serem potencialmente gerados pela nova lei são comentados nos seguintes termos:

Inovações como a agricultura de precisão, utilização de GPS, drones e sensores para otimização dos recursos, além de aplicativos móveis para monitoramento climático, gestão de plantio e colheita, conforme o projeto, passarão a ampliar o escopo do planejamento e da execução das ações da política de agricultura familiar. O projeto ressalta ainda a implementação de práticas sustentáveis, como agricultura vertical, estufas inteligentes e tecnologias de conservação de água e energia renovável, destacando a importância da agroecologia na redução da dependência de produtos químicos sintéticos7.
Outra matéria, publicada em 22 de março deste ano pela Rádio Senado, repercutindo a aprovação deste novo marco legal, chama atenção para o fato de que, com a aprovação da nova lei, “os agricultores familiares também poderão adquirir aplicativos móveis para monitorar o clima, gerenciar o plantio e a colheita; sistemas de monitoramento de gado e rebanhos; estufas inteligentes, tecnologias de conservação de água (...) fontes de energia renovável”, entre outros dispositivos, aumentando a produção “com menor uso de áreas a serem desmatadas”8.

Este episódio recente de incorporação de novos conceitos e campos de intervenção à Lei da Agricultura Familiar reforça a necessidade de uma reflexão mais profunda por parte dos diferentes atores do campo agroecológico no que diz respeito às feições assumidas pelos processos de inovação tecnológica na agricultura e no sistema agroalimentar na contemporaneidade e seus possíveis significados para a construção da agroecologia como ciência, movimento e prática. Em um contexto marcado pela crise climática, pela volatilidade dos preços de insumos e produtos agrícolas e pelos efeitos deletérios (e de longo prazo) gerados pelo desmantelamento das políticas públicas voltadas ao fortalecimento da agricultura familiar e à promoção do desenvolvimento rural no Brasil, ocorrido sobretudo nos governos Temer (2016-2018) e Bolsonaro (2019-2022), multiplicam-se as fontes de instabilidade. Nesse cenário, a emergência de uma nova onda de inovações tecnológicas apresenta-se, à primeira vista, como potencial solução para as múltiplas contradições vivenciadas no meio rural brasileiro, em meio a alegações de que os médios e pequenos produtores e empresas que não conseguirem se apropriar, a tempo, das novas tecnologias digitais, tenderão a ficar marginalizados na sua relação com esses novos mercados de produtos e serviços, enfrentando dificuldades para comercializar a sua produção (Buainain, Cavalcante e Consoline, 2021).

Entende-se, aqui, que o atual esforço de retomada das políticas públicas voltadas ao fortalecimento da agricultura familiar, sobretudo na esfera federal, demanda um olhar mais atento no que diz respeito às concepções de desenvolvimento tecnológico e de inovação que deverão informar a intervenção governamental direcionada a este setor, que desempenha um papel fundamental na produção de alimentos para o mercado doméstico9. Cabe indagar, em que medida, o Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica 2024-2027, atualmente em elaboração, poderia aportar contribuições substantivas no sentido de fomentar dinâmicas de inovação social e ecologicamente contextualizadas, ancoradas em processos de aprendizagem social e capazes de ampliar a capacidade de agência das populações rurais na construção e revitalização de territórios saudáveis e sustentáveis.

Esta pergunta está sendo formulada em um momento em que, “a despeito do seu potencial transformador e de sua maturidade conceitual” (IPES-FOOD, 2022, p. 23), a agroecologia disputa espaço, em diferentes arenas globais e nacionais, com toda uma série de definições, que buscam se instituir como referência na transformação dos sistemas agroalimentares. Em um cenário marcado pela crise climática e pelo entrelaçamento entre múltiplas crises, multiplicam-se as conceituações: Agricultura de Baixo Carbono, Agricultura Regenerativa, Soluções Baseadas na Natureza, Intensificação Sustentável da Agricultura, Intensificação Ecológica da Agricultura, Agricultura Climaticamente Inteligente, entre tantas outras. Cada um desses termos reflete uma forma distinta de interpretar as conexões existentes entre sustentabilidade ambiental e justiça social, conhecimentos científicos e conhecimentos tácitos, interesses públicos e privados, futuro-presente-passado-futuro.  

Como tem sido destacado por diferentes autoras e autores, as práticas e conhecimentos construídos historicamente por camponeses, indígenas, agricultores urbanos e povos e comunidades tradicionais, nas diferentes regiões do mundo, ocupam um lugar central na construção do conhecimento agroecológico10. A atividade inovativa associada a um amplo conjunto de práticas social e ecologicamente contextualizadas, relacionadas ao manejo dos agroecossistemas e ao preparo, conservação e consumo de alimentos, tem sido amplamente reconhecida por diferentes esforços de pesquisa e de sistematização de conhecimentos inspirados por uma perspectiva agroecológica. Os saberes vernaculares associados às práticas agrícolas social e ecologicamente situadas, na verdade, nunca perderam sua relevância, constituindo-se, inclusive, como ferramentas no enfrentamento a toda uma série de problemas potencializados pelas normas, procedimentos e artefatos vinculados ao regime sociotécnico dominante (Ploeg et al, 2004, p. 9). É importante, ainda, observar que a produção de novidades (Ploeg e Wiskerke, 2004) nunca esteve restrita aos sistemas de cultivo e criação diretamente conectados aos circuitos longos de comercialização. Os quintais, as cozinhas, os roçados, as áreas de capoeira, entre outros espaços de vida, sempre foram lugares de invenção, sendo importante destacar, aqui, o protagonismo das mulheres nesse movimento contínuo de produção e atualização de saberes, práticas e materialidades, dando origem a novas composições.

O reconhecimento da diversidade social e ecológica das agriculturas hoje existentes nas diferentes regiões do mundo, seus repertórios de experiências e suas trajetórias de desenvolvimento, constitui-se como um pressuposto fundamental para a construção de arranjos organizativos e instrumentos de ação pública capazes de dar sustentação a processos de transformação socioecológica orientados pelos princípios da agroecologia.

A internacionalização, em meados do século XX, do paradigma técnico-científico e de organização econômica, associado à chamada Revolução Verde implicou, também, a consolidação de uma concepção muito específica de inovação. Esta é pautada, acima de tudo, na obtenção de ganhos de produtividade e em um conjunto de princípios e normatividades estabelecidos pelo mercado. Os processos de inovação relacionados à  agricultura e à alimentação passam a ser concebidos, em boa medida, como trajetórias tecnicamente determinadas, independentes das forças sociais, valores societários e do interesse público. Parte-se do pressuposto de que “as mudanças ocorrem de maneira unidirecional e predeterminada”, começando com a pesquisa básica e terminando com a adoção e disseminação tecnologias pelo mercado, com maior ou menor apoio do Estado (Moors, Rip e Wiskerke, 2004, p. 35). As limitações deste tipo de abordagem têm sido apontadas por diferentes autores(as) que chamam atenção para as relações de poder e dominação subjacentes a essas trajetórias tecnológicas, marcadas tanto por elementos de continuidade, como por momentos de crise e recomposição (Patel, 2012; Clapp, 2023).

O imaginário sociotécnico associado à Revolução Verde esteve ancorado, também, em um conjunto mais ou menos coeso de narrativas épicas, associadas a uma agricultura liderada pela ciência, cuja eficiência seria evidenciada em função dos elevados níveis de produtividade alcançados pelas variedades de plantas e raças de animais desenvolvidas pela pesquisa e manejadas com a utilização de insumos modernos. Os benefícios gerados por esse novo modelo de agricultura seriam resultantes da intervenção eficiente do Estado e do trabalho diligente de dedicados(as) cientistas - em boa parte homens brancos, originários dos países do Norte, ou que tiveram sua formação em instituições científicas localizadas nesses países. Estas ideias foram disseminadas em âmbito global, ainda que com variações entre os diferentes contextos.

Como observam Cabral, Pandey e Xu (2021, p. 250), as narrativas que impulsionaram a Revolução Verde estão ligadas a uma epistemologia celebratória da ciência e “a uma visão de mundo de inspiração malthusiana que vê a fome e a insegurança alimentar como resultado da escassez de alimentos e não de desigualdades estruturais ou falhas na garantia de direitos”. Como nos sugerem as autoras, os ecos dessas narrativas também se fazem presentes em imaginários gestados em um período mais recente, associados ao advento de uma nova Revolução Verde, capaz de superar eventuais erros do passado materializando-se, nesse novo ciclo, em um amplo projeto de modernização ecológica.

A perspectiva construída, historicamente, pela agroecologia parte, justamente, da crítica a uma visão universalista e determinista dos processos de mudança tecnológica. A diversidade biológica, social e cultural das diferentes agriculturas, resultado de um processo dinâmico de seleção e incorporação de novos elementos constituiu-se, tanto nos sistemas agrícolas tradicionais, como nas diferentes agriculturas de base familiar impactadas pela Revolução Verde, como um fator de resiliência e de sustentabilidade. Os sistemas produtivos manejados por camponeses(as), agricultores(as) familiares e povos e comunidades tradicionais são sistemas complexos e de uso múltiplo, o que contribui para uma maior internalização dos fluxos de energia e de nutrientes, ao contrário do que ocorre nas grandes monoculturas, altamente dependentes de insumos externos (Gliessman, 1997).

Em um texto clássico, publicado na segunda metade dos anos 1980, Susanna Hecht chama atenção para os diferentes processos que contribuíram para que o conhecimento agronômico das populações locais e das sociedades não ocidentais fosse desestabilizado, incluindo: a destruição dos sistemas de codificação, regulação e transmissão de conhecimentos relacionados à agricultura; os impactos do colonialismo e dos processos de mercantilização capitalista; a hegemonia de uma ciência positivista (Hetch, 1995, p. 2). A expansão dos monocultivos e as pressões exercidas por diferentes agentes sobre os territórios camponeses, assentamentos de reforma agrária e terras tradicionalmente ocupadas, relacionadas à grilagem de terras, à implantação de grandes obras de infraestrutura, ao avanço da fronteira turística, à expansão urbana e à mineração, continuam sendo determinantes na desestabilização desses sistemas territorializados de produção de conhecimentos. Verifica-se, em contrapartida, um processo ativo de resistência das populações rurais na defesa de seus espaços de vida, materializado, também, em uma multiplicidade de iniciativas que buscam criar círculos virtuosos na produção de alimentos, fibras, têxteis, água e energia, intervindo de forma positiva na teia da vida (Jones, Pimbert e Jiggins, 2011).

Nos últimos cinquenta anos, as vulnerabilidades do sistema agroalimentar de base industrial e altamente dependente de combustíveis fósseis foram evidenciadas em diferentes momentos de crise. Refletindo sobre as dinâmicas de concentração do sistema agroalimentar ao longo das décadas, Clapp (2023) identifica três momentos-chave de instabilidade, marcados pelo aumento dos preços dos alimentos, em nível global, e pelo agravamento da insegurança alimentar nas diferentes regiões do mundo, a saber: (i) a crise alimentar ocorrida no início dos anos 1970 (1973-1974), associada a diferentes fatores, entre eles, a alta dos preços do petróleo em nível mundial e a entrada da URSS no mercado internacional como compradora de grãos; (ii) a instabilidade que sacudiu os mercados de alimentos na primeira década dos anos 2000 (tendo seu ápice em 2008), em estreita articulação com uma crise financeira de abrangência global; e, (iii) as rupturas ocorridas nas cadeias globais de commodities em função da pandemia de Covid-19, impactadas, na sequência, pelos efeitos da crise política Rússia-Ucrânia (Clapp, 2023, p. 1). A autora chama atenção para o fato de que cada uma dessas crises contribuiu para aprofundar os elevados níveis de concentração do sistema agroalimentar, possibilitando que um conjunto cada vez mais reduzido de agentes fosse capaz de controlar seus principais fluxos e atividades. As respostas às diferentes crises contribuíram para que o sistema agroalimentar se tornasse mais “rígido e inflexível em face a diferentes tipos de choques, tornando-se cada vez mais propenso à volatilidade, especialmente quanto atingido por múltiplas perturbações ao mesmo tempo” (Clapp, 2023, p. 2).

As soluções tecnológicas que estão sendo oferecidas pelas grandes empresas de tecnologia como um caminho para a descarbonização da agricultura e do sistema agroalimentar têm permitido às grandes corporações manter o controle sobre as atividades de pesquisa e desenvolvimento, explorar novas entradas de mercado e espaços de criação de valor, reorganizando seu discurso e estruturando novos pacotes e produtos e serviços (Goodman, 2023). Mas, como argumenta Goodman (2023, p. 4), “são escassos os sinais concretos de que o moderno sistema agroalimentar esteja na vanguarda de uma transição para um futuro de baixo carbono”.

Estima-se que cerca de um terço das emissões antropogênicas de Gases de Efeito Estufa (GEEs) seja proveniente do sistema alimentar (Marques, 2023, p. 113). Um relatório recente, publicado pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (em inglês United Nations Environmental Programme) em 2023, sob o título “Recorde quebrado: as temperaturas alcançam patamares elevados, mas o mundo falha em cortar emissões (novamente) (em inglês, Broken Record. Temperatures hit new highs, yet world fails do cut emissions (again)) (UNEP, 2023) chama atenção para o fato de que boa parte dos setores econômicos analisados (incluindo, aí, a agricultura e o setor de alimentos) retomaram os níveis de emissões registrados no período anterior à pandemia de Covid-19, sendo que o Brasil continua participando do grupo dos sete principais países responsáveis pelos níveis mais altos de emissão de Gases de Efeito Estufa (GEEs). No que diz respeito às emissões líquidas de CO2 associadas ao “Uso da Terra, Mudança de Uso da Terra e Florestas”, uma das principais fontes de aquecimento global, estas continuam concentradas nas regiões tropicais, sendo que o Brasil, a Indonésia e a República Democrática do Congo respondiam, em 2021, por 58% das emissões totais (UNEP, 2023, p. 6).

Segundo dados da FAO, 3,1 bilhões de pessoas, em todo o mundo, não tinham condições de usufruir uma dieta saudável em 2020, 112 milhões de pessoas a mais do que em 2019. Neste mesmo ano, a América Latina e o Caribe figuravam, entre as diferentes regiões do planeta, como o lugar onde os custos de uma dieta saudável eram os mais elevados11. Esses dados evidenciam os inúmeros bloqueios existentes a uma efetiva transformação dos atuais modos de organização do sistema agroalimentar, com base em princípios de justiça social e sustentabilidade.

Neste contexto, os debates envolvendo os processos de inovação tecnológica relacionados à produção, distribuição e consumo de alimentos não podem ser simplificados. Estamos diante de problemas complexos, de abrangência sistêmica e multissituados, demandando a mobilização de velhos e novos conhecimentos e capacidades coletivas. E há riscos nessa travessia. Uma perspectiva unilinear, gerencialista e tecnocêntrica dos processos de transição para a sustentabilidade produzirá, necessariamente, uma visão demasiadamente estreita das múltiplas dimensões envolvidas nesses processos de mudança, e da diversidade de atores e mundos que precisam ser considerados na construção de caminhos alternativos, considerando não apenas diferenciações de natureza socioeconômica, mas diversidades ecológicas, de gênero, raça/etnia, geração, entre outras.

O cenário atual nos desafia a repensar os princípios, conceitos e métricas que orientam os debates atuais sobre mudança tecnológica e inovação, mobilizando quadros conceituais  e ferramentas metodológicas que vêm sendo exercitados pelo campo agroecológico ao longo das últimas décadas, no esforço por conectar conjunto heterogêneo de situações, saberes e linguagens, estabelecendo pontes e identificando transversalidades. As experiências vivenciadas no XII Congresso Brasileiro de Agroecologia (XII CBA), no Rio de Janeiro-RJ, no III Seminário Nacional de Educação em Agroecologia em Castanhal-PA, e em uma série de outros momentos anteriores de construção coletiva de conhecimentos, representam um rico acervo a partir do qual é possível vislumbrar caminhos alternativos.

Claudia Job Schmitt1; José Nunes2; Natália Almeida3

 

  1. 1.Professora permanente do Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA) da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ); integrante da diretoria da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA). Doutora em Sociologia/UFRGS. Rio de Janeiro-RJ. ORCID – 0000-0003-1248-2994. E-mail – claudia.js21@gmail.com 

 

  1. 2.Professor Associado do Departamento de Educação, Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE); Presidente da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA). Doutor em Sociologia/UFPE. Recife-PE. ORCID – 0000-0002-8544-5935. E-mail - zenunes13@yahoo.com.br 

 

  1. 3.Integrante da equipe da Agenda de Saúde e Agroecologia vinculada à Vice-Presidência de Ambiente e Promoção À Saúde da Fiocruz; integrante da diretoria da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA). Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UNICAMP. Rio de Janeiro-RJ. ORCID – 0000-0002-8656-8857. E-mail - natalia.almsouza@gmail.com 

Copyright (©) 2024 Claudia Job Schmitt, José Nunes, Natália Almeida.

 

Referências bibliográficas

BUAINAIN, Antônio M.; CAVALCANTE, Pedro; CONSOLINE, Letícia. Estado atual da agricultura digital no Brasil: inclusão dos agricultores familiares e pequenos produtores rurais. Documentos de Projetos (LC/TS.2021/61). Santiago: Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), 2021. 94 p.

CABRAL, Lídia; PANDEY, Poonam; XU, Xiuli. Epic narratives of the green revolution in Brazil, China, and India. Agriculture and Human Values, v. 39, n. 1, p. 249-267, 2022. DOI: 10.1007/s10460-021-10241-x

CLAPP, Jennifer. Concentration and crises: exploring the deep roots of vulnerability in the global industrial food system. The Journal of Peasant Studies, v. 50, n. 1, p. 1-25, 2023. DOI: 10.1080/03066150.2022.2129013.

GLIESSMAN, Stephen R. Agroecology: ecological processes in sustainable agriculture. Chelsea: Ann Arbor Press, 1997. 357 p. ISBN: 1-57504-043-3

GOODMAN, David. Transforming agriculture and food ways. The Digital-molecular convergence. Bristol: Bristol University Press, 2023. 140 p. ISBN: 978-1-5292-3146-5

GUTIÉRREZ, Mario M. Agriculturas para la vida: movimientos alternativos frente la agricultura química: un enfoque desde sistemas populares colombianos. Cali: LED/CEPROID, 1995. 252 p.

HECHT, Susanna B. The evolution of agroecological thought. In: ALTIERI, Miguel A. Agroecology: the science of sustainable agriculture. Boulder: Westwiew Press, 1995. p. 1-19. ISBN 0-8133-1717-7.

IPES-Food. Smoke and Mirrors: examining competing framings of food system sustainability: agroecology, regenerative agriculture, and nature-based solutions. Brussels: IPES-FOOD, 2022. 28 p. Disponível em: https://ipes-food.org/_img/upload/files/SmokeAndMirrors.pdf. Acesso em: 24 mar. 2024.

JONES, Andy; PIMBERT, Michel; JIGGINS, Janice. Virtuous circles: values, systems and sustainability. London: IIED and IUCN-CEESP, 2011. 169 p.

MARQUES, Luiz. O decênio decisivo: propostas para uma política de sobrevivência. São Paulo: Elefante, 2023. 624 p. ISBN: 978-85-93115-84-4.

MOORS, Ellen H. M.; RIP, Arie; WISKERKE, Johannes S. C. The dynamics of innovation: a multilevel co-evolutionary perspective. In: WISKERKE, Johannes S. C.; PLOEG, Jan Douwe van der. Seeds of transition: essays on novelty production, niches and regimes in agricultures. Assen: Royal Van Gorcum, 2004. P. 31-56. ISBN: 0 232 3988 1.

PATEL, Raj. The long Green Revolution. The Journal of Peasant Studies, v. 40, n. 1, p. 1-63, 2013. p. 1-63. DOI:10.1080/03066150.2012.719224

PERFECTO, Ivette; VANDERMEER, John; WRIGHT, Angus. Nature’s matrix: linking agriculture, conservation and food sovereignty. London: Earthscan, 2009. ISBN: 978-1-84407-782-3.

PIMBERT, Michel; MOELLER, Nina. I.; SINGH, Jasber; ANDERSON, Colin R. Agroecology. In: Oxford Research Encyclopedia of Anthropology. Oxford: Oxford University Press, 2021. Disponível em:https://oxfordre.com/anthropology/display/10.1093/acrefore/9780190854584.001.0001/acrefore9780190854584-e-298. Acesso em: 24 mar. 2024.

PLOEG, Jan Douwe van der; BOUMA, Johan; RIP, Arie; RIJKENBERG, Frits, H. J.; VENTURA, Flaminia; WISKERKE, Johannes S. C. On regimes, novelty, niches and co-production. In: WISKERKE, Johannes S. C.; PLOEG, Jan Douwe van der. Seeds of transition: essays on novelty production, niches and regimes in agricultures. Assen: Royal Van Gorcum, 2004. p. 1-30. ISBN: 0 232 3988 1.

TEIXEIRA, Gerson. O Censo Agropecuário 2017. Revista NECAT-Revista do Núcleo de Estudos de Economia Catarinense, v. 8, n. 16, p. 8-39, 2019.

TOLEDO, Víctor M.; BARRERA-BASSOLS, Narciso. A memória biocultural: a importância ecológica das sabedorias tradicionais. São Paulo: Expressão Popular, 2015. 272 p. ISBN: 978-85-7743-247-9.

UNEP. Emissions Gap Report 2023: Broken Record – Temperatures hit new highs, yet world fails to cut emissions (again). Nairobi: UNEP and CONCITO, 2023. DOI: 10.59117/20.500.11822/43922.

WILKINSON, John. O setor privado lidera inovação radical no sistema agroalimentar desde a produção até o consumo. In: GOULET, Frédéric; LE COQ, Jean-François; SOTOMAYOR, Octavio (orgs.). Sistemas y políticas de innovación para el sector agropecuario en América Latina. Rio de Janeiro: E-papers, 2019. p. 385-412. ISBN 978-85-7650-598-3. Disponível em: https://www. researchgate.net/ publication/336856416_Sistemas_y_politicas_de_innovacion_para_el_sector_agropecuario_en_America_Latina. Acesso em: 24 mar. 2024.

 

1 Lei 14.828/2024. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2024/lei /l14828 .htm. Acesso em: 21/03/2024.

2 Lei 11.326/2006. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11326 .htm. Acesso em: 21/03/2024.

3Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural da Câmara dos Deputados. Projeto de Lei 5826/2019. Voto do Relator. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposições Web/prop_mostrarintegra?codteor=2290040&filename=Avulso%20PL%205826/2019. Acesso em: 21/03/ 2024.

4Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados. Projeto de Lei 5826/2019. Voto do Relator. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra ?codteor=2290040&filename=Avulso%20PL%205826/2019. Acesso em: 21/03/2024.

5Projeto de Lei 5.826B de 2019. Justificativa. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb /prop_mostrarintegra?codteor=2290040&filename=Avulso%20PL%205826/2019. Acesso em: 21/03/2024.

6 Ver: Lei 11.326/2006. op. cit.

7Agência FPA. Senado aprova projeto de lei que moderniza a Política Nacional da Agricultura Familiar. Disponível em: https://agencia.fpagropecuaria.org.br/2024/02/27/senado-aprova-projeto-de-lei-que-moderniza-a-politica-nacional-da-agricultura-familiar/. Acesso em: 22/03/2024.

8PINCER, Pedro. Rádio Senado. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/radio/1/noticia/2024/03/22 /sancionada-lei-que-preve-credito-para-modernizacao-da-agricultura-familiar. Acesso em: 23/03/2024.

9Cabe aqui observar, no entanto, que os dados relativos ao Censo Agropecuário de 2017, coordenado pelo IBGE, apontam para uma queda para a participação da agricultura familiar na produção nos principais alimentos que compõem a dieta básica dos brasileiros. (Teixeira, 2019).

10Ver, por exemplo: Hetch (1995); Gutiérrez (1995); Gliessman (1997); Perfecto, Vandermeer e Wright (2009); Toledo e Barrera-Bassols, 2015; Pimbert et al (2021).

11FAO. Disponível em: https://www.fao.org/newsroom/detail/global-indicators-on-the-costs-of-healthy -diets -and-how-many-people-can-t-afford-them/en. Acesso em: 22/03/2024.

i 

Revista Brasileira de Agroecologia
ISSN 1980-9735

Publicação da Associação Brasileira de Agroecologia - ABA-Agroecologia em cooperação com o Programa de Pós-Graduação em Meio Ambiente e Desenvolvimento Rural - PPG-Mader, da Universidade de Brasília – UnB

Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional (CC BY 4.0)