Como citar: ALMEIDA, Fernanda S. E o ano de 2023 se finda... Revista Brasileira de Agroecologia, v. 18, n. 6, p. 717-723, 2023.  DOI: https://doi.org/10.33240/rba.v18i5.51821

EDITORIAL

E o ano de 2023 se finda...

“O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora. Quem passa fome aprende a pensar no próximo, e nas crianças.” Carolina Maria de Jesus - O Quarto do Despejo.

Um ano difícil, como todos os prognósticos brasileiros já apontavam. Mesmo que pese a vitória democrática nas urnas presidenciais, a terra arrasada, deixada pela necropolítica e incidida no período entre o golpe e a posse de Lula, resultou no acirramento das desigualdades sociais, da fome e da desnutrição do povo brasileiro.

O pesado investimento no modelo econômico ávido da exploração dos bens comuns e da força de trabalho humana, só enfatizou a destruição ambiental e potencializou os sinais da emergência climática, os quais geram mais exclusão social. Esse pacote vem sendo fomentado por uma estrutura social colonial, conservadora, racista, machista e inculta, que imaginávamos estar em superação, mas que ao menor sinal de incentivo, voltou com toda sua força (bruta).

A resposta para todo esse caldo foi uma sociedade mais violenta. Tivemos um aumento significativo de assassinatos de lideranças populares e de pessoas que atuam na defesa da terra, do território, dos Direitos Humanos e da natureza no Brasil, como indica o relatório da Comissão Pastoral da Terra, apresentado pela Campanha Nacional contra a Violência do Campo e em defesa dos Povos do Campo Floresta e Águas (2023). Além da violência declarada, precisamos também enfatizar a violência velada.

O Brasil segue sendo o país que mais consome agrotóxicos no mundo e, já há um tempo, este é utilizado como arma química sobre diversos corpos e territórios em todo o Brasil, seja contaminando os ambientes, seja aplicado diretamente sobre a cabeça das pessoas. E, com a iminência da sanção da PL 1459/2022 – a PL do Veneno –, a conta chegará alta e as primeiras pessoas a pagá-la serão justamente as pessoas que resistem firmemente aos seus impactos, mas todas e todos nós, brasileiras e brasileiros, já sentimos os primeiros sinais.

Em 2022, o feminicídio e o homicídio da população LGBTQIA+ chegaram a índices indignantes. O Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2022), mostra que a autoria de oito em cada dez casos de feminicídios é do parceiro ou ex-parceiro íntimo da vítima. Ou seja, são casos de violência doméstica que poderiam ter sido evitados desde que se cumprisse a legislação vigente. O mesmo vale para a população LGBTQIA+, o Brasil é o país mais perigoso para nossa comunidade viver, a qual não pode contar com as estruturas de segurança que deveriam defender nossas vidas, como cidadãs e cidadãos de direito que somos.

E como não mencionar a população negra, quando a situação do sistema de justiça também expressa o racismo estrutural desde a infância? Em uma pesquisa conduzida pelo Grupo de Trabalho e Estudos sobre Políticas de Restrição e Privação de Liberdade da Universidade Federal Fluminense (2020), esta revela que os/as jovens que cometeram atos infracionais são os/as mais vulneráveis socialmente no Brasil: jovens, negros/as, pobres, pouco escolarizados/as e que começaram a trabalhar muito cedo. Desses/as, 71,6% moram em regiões de conflito armado (entre policiais, traficantes e facções) e são majoritariamente do sexo masculino. Também se percebe a replicação desses dados para o sistema prisional adulto, sem diferenças significativas.

Tamanho é o ódio da extrema direita para com as mínimas condições de dignidade ao conjunto da população brasileira, que uma das medidas tomadas no primeiro dia do governo genocida foi extinguir o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA). E, em consonância com uma série de ataques às políticas sociais pós golpe, em 2019 voltamos ao Mapa da Fome. Essa condição reflete objetivamente a fragilidade das políticas sociais implementadas anteriormente que garantiam o acesso à comida e renda à população, mas que, facilmente, foram suprimidas, sucateadas e extintas, na primeira possibilidade.

Segundo os dados do 1° Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 (Rede PENSSAN, 2021), o Brasil passou de 9,5 milhões de famélicos, para 19 milhões. Já o 2° Inquérito (Rede PENSSAN, 2022), concluiu que 33 milhões de pessoas estão nessa condição e que 58% da população brasileira está em algum nível de insegurança alimentar. E, assim como a caracterização da população privada de liberdade no Brasil, a fome também tem raça e gênero e está geograficamente localizada, reproduzindo a Geografia da Fome (1984), mesmo 60 anos depois de sua primeira publicação.

O racismo alimentar se expressa quando, em média, 65% dos lares comandados por pessoas pretas ou pardas convivem com restrição de alimentos em qualquer nível (Rede PENSSAN, 2022). O genocídio da população negra e indígena via nutricídio (MOTTA, 2023; SOUZA et al., 2023) é algo que tem que estar na centralidade do debate do enfretamento à fome e à desnutrição.

É importante ressaltar que o impacto da pandemia de Covid-19 só não foi mais grave porque redes de solidariedade mobilizadas pelos movimentos sociais e organizações da sociedade civil assumiram o papel do Estado que, durante o período de 2019 a 2022, esteve envolto no negacionismo e em fake news. Tais redes, muitas articuladas com o movimento agroecológico, garantiram proteção sanitária, comunicação segura e acesso à água e comida de verdade. Também não posso me furtar de destacar a dedicação das trabalhadoras e trabalhadores do Sistema Único de Saúde (SUS) nessa salvaguarda brasileira. Assim como fizemos na abertura do 12° Congresso Brasileiro de Agroecologia (CBA), quero saudar as lutadoras e lutadores da Saúde Pública brasileira, bem como as articulações solidárias comprometidas com o direito humano à alimentação adequada e saudável. Anunciamos a Agroecologia como ferramenta potencializadora da democracia e da superação das estruturas sociais que nos mantém colonizadas e colonizados.

O congresso do Rio de Janeiro só se viabilizou por conta da força coletiva de construção descentralizada em redes – sem essa força militante não estaríamos aqui. E sem ela não conseguiremos seguir adiante em nossas lutas.

O Congresso mostrou alertas os quais nos atentaram que ainda há muito para sistematizar e visibilizar em Agroecologia.

Defendemos a ciência em todos os espaços promovidos pelo CBA, mas propomos a superação da perspectiva hegemônica de produção do conhecimento científico que está fundamentada em processos colonizantes, fortalecendo e perpetuando o modelo capitalista neoliberal global. Defendemos uma ciência comprometida com a natureza e a sociedade, que construa, participativamente, caminhos assertivos para a superação da fome, das emergências climáticas e promova a justiça ambiental.

Considerar a justiça ambiental é lutar contra o racismo e o machismo, tendo como aliados os povos do campo, da floresta, das águas e das cidades. É manter os saberes e as memórias do povo e o acesso aos bens comuns – temas fundamentais no debate agroecológico. Garantir que a população acesse a terra, o território, a água e a agrobiodiversidade, é garantir a conservação e a soberania do país. A Agência Pública denunciou, recentemente, que 50 grupos empresariais se apropriam de água suficiente para abastecer as regiões do Sudeste e do Centro-Oeste inteiras. Em tempos de seca na Amazônia e enchentes no Sul, é imprescindível apontar a responsabilidade do Agro-hidro-mineronegócio nesses fenômenos e se atentar para a Agroecologia como contribuição para a sua superação. Aspectos também discutidos no congresso.

Somos nós, as mulheres, que estamos defendendo os nossos territórios, liderando pesquisas relevantes, das mais diversas áreas afins da Agroecologia e que estamos à frente das nossas organizações e movimentos, à exemplo da ABA, que tem representada em sua diretoria estatutária 76% de mulheres. Somos mais de 63% no número total de pessoas associadas. Fomos mais de 70 mil Margaridas em Brasília marchando por um país mais equânime e agroecológico esse ano. E essa força reverberou no Rio de Janeiro. A primeira atividade oficial do 12° CBA foi a Plenária das Mulheres, com centenas de nós debatendo sobre nós na Agroecologia!

Um legado do CBA, em consonância com a Agroecologia – e que está na boca do povo, o lema do congresso –, foi a Campanha Contra a Fome que distribuiu 2.500 refeições, além de outras formas de distribuição de alimentos, envolvendo quatro cozinhas comunitárias e solidárias, em uma ação de incidência política que articula movimentos sociais como: o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) e o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST); órgãos e instituições como: a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) e a Fundação Banco do Brasil (FBB) e políticas públicas como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA).

Tivemos quase três mil resumos apresentados nos Tapiris dos Saberes, distribuídos em 16 eixos temáticos. Mais uma vez o envio dos trabalhos permitiu diferentes tipos de comunicação científica, inclusive em formato audiovisual e apresentações realizadas por crianças. Essas construções refletem a coerência política e metodológica com os processos e princípios agroecológicos que pleiteamos.  

A participação da Revista Brasileira de Agroecologia nesse CBA também cumpriu esse compromisso que estabelecemos, o de uma comunicação científica aberta e que busca maior qualidade, reunindo pessoas que contribuem com o processo editorial. A participação da Revista também viabilizou uma ação importante, que passará a ser constante em sua atividade, que foi a reunião de programas de pós-graduação em Agroecologia e interfaces, com a participação de 17 programas, além da diretoria de gestão do conhecimento do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, do Ministério da Ciência e Tecnologia e da Embrapa.

Outros formatos de comunicação em Agroecologia têm sido construídos à exemplo da segunda edição do Festival Internacional de Cinema Agroecológico (FICAECO), que recebeu mais de 250 filmes entre curtas, médias e longas-metragens que dialogam com a Agroecologia, denunciam o agronegócio e defendem a vida. Foram mais de 30 horas de sessões de cinema gratuitas no Cine Odeon – símbolo da resistência da sétima arte brasileira. E a primeira edição do Festival de Arte e Cultura da Agroecologia (FICA), com 95 inscrições das mais variadas expressões artísticas, sendo 15 delas selecionadas entre música, dança, exposições de artes plásticas, fotografia e outras. Essas apresentações foram realizadas em diferentes espaços entre os diversos que compreenderam o Território da Agroecologia.

De fato, foram ações importantes nesse congresso. Ainda não terminamos de sistematizá-las e haverá muitos materiais sobre todos os espaços promovidos – a Tenda da Cura Mayô Pataxó, a Cozinha das Tradições, a Ciranda Infantil, o Terreiro de Inovações Camponesas, a Feira de Saberes e Sabores, enfim uma diversidade de ações e espaços coerentes com a construção do conhecimento agroecológico.

O CBA teve momentos de muito simbolismo, como a interação com o “Memorial dos Encantados”. Espaço emocionante dedicado à memória daqueles/as que mais recentemente nos deixaram, lutadoras e lutadores do povo e da Agroecologia. Não citarei todas as pessoas homenageadas, mas reverencio a vida de todas e estendo essa reverência a partir da menção de algumas e de alguns que tive a honra de conhecer pessoalmente ou que se foram e permanecerão sendo referência na minha trajetória, e na de tantas outras pessoas, como Damiana Guarani Kaiowá, ñandecy e liderança da retomada kaiowá da região sul do Mato Grosso do Sul, que passou a vida enfrentando o Agronegócio que roubou as terras do seu povo; o professor Luiz Carlos Pinheiro Machado, que me deu aulas e orientou, por um período, a realização do meu mestrado; Ana Primavesi, Francisco Caporal e o professor Carlos Brandão, três eminências da Agroecologia e da educação popular brasileira e mundial; Eduardo Sevilla Guzmán, ilustríssimo professor espanhol que formou muita gente importante da Agroecologia no mundo e aproximou, ainda mais, as ciências humanas dos nossos debates e o professor Adilson Paschoal, referência na luta contra os Agrotóxicos, termo cunhado por ele e que faleceu dias antes de iniciarmos o CBA. Muito embora sua passagem tenha sido após o CBA, não posso deixar de incluir Antônio Bispo dos Santos – o Nego Bispo –, quilombola piauiense, intelectual (talvez ele me criticasse por esse rótulo) muito potente, que nos deixou recentemente como matéria, mas seu legado contra-colonial será eterno.

Encerro citando o texto do Memorial dos Encantados que está na página do 12° CBA1:

Aos nossos encantados, nenhum minuto de silêncio, mas toda uma vida de lutas. Afinal, estamos aqui em consequência direta da luta de gerações antepassadas, com a constante missão de manter a história e a memória de vida e luta sempre presentes!

E que venha 2024, no esperançar de um ano mais agroecológico.

 

Fernanda Savicki de Almeida

 

 

Presidenta da Associação Brasileira de Agroecologia, na gestão 2022 e 2023. Mulher, cis, bissexual, branca, sulista e mãe de um garoto de sete anos. Pesquisadora em Saúde Pública da área de Meio Ambiente e Saúde da Fiocruz Mato Grosso do Sul. Doutora em Recursos Genéticos Vegetais pela Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Brasil. Compõe os GTs contra os Agrotóxicos e Transgênicos e Saúde da ABA. É uma das representantes da ABA na coordenação nacional da Campanha Permanente contra os agrotóxicos e pela vida. Orcid: 0000-0003-4784-6540, fernanda.savicki@fiocruz.br

 

Copyright (©) 2023 Fernanda Savicki de Almeida

 

Referências bibliográficas

CASTRO, Josué. Geografia da fome: o dilema brasileiro - pão ou aço. Rio de Janeiro: Edições Antares, 1984.

COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Conflitos no campo Brasil 2022 / Centro de Documentação Dom Tomás Balduíno. Goiânia: CPT Nacional, 2023. 

FERREIRA, Ana Carolina. Pesquisa da UFF investiga vulnerabilidade social vivida por jovens infratores. UFF notícias, 20 de abril de 2023. Disponível em: Pesquisa da UFF investiga vulnerabilidade social vivida por jovens infratores | Universidade Federal Fluminense. Acesso em:      1 dez.       2023.

FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2023. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2023/07/anuario-2023.pdf. Acesso em: 30      nov.      2023.

MOTTA, Renata C. Movimentos sociais como agentes de mudança: combatendo as desigualdades alimentares interseccionais, fazendo dos alimentos teias de vida. Estudos Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, n. 2, v. 31, e2331203, 2023. DOI: https://doi.org/10.36920/esa31-2_01tr.   

REDE PENSSAN. Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil. Brasil: Vigisan, 2021.

______. II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil. Brasil: Vigisan, 2022.

SOUZA, André A. et al.. P. Insegurança alimentar e nutricional agravada pelo nutricídio no Brasil: algumas considerações. Facit Business and Technology Journal, n. 43. v. 01, p. 67-88, 2023.

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1 www.cba.aba-agroecologia.org.br

 

 

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Revista Brasileira de Agroecologia
ISSN 1980-9735

Publicação da Associação Brasileira de Agroecologia - ABA-Agroecologia em cooperação com o Programa de Pós-Graduação em Meio Ambiente e Desenvolvimento Rural - PPG-Mader, da Universidade de Brasília – UnB

Obra licenciada, a partir de abril de 2023, com Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional (CC BY 4.0)