Brasília, v. 19, n. 4, p. 459-478, 2024
https://doi.org/10.33240/rba.v19i4.51704
Como citar: SILVA, Vânia G.; Brito, Heitor C.; Amorim, Mac W.M. Agricultura familiar: perspectivas de uma produção agroecológica em Governador Valadares. Revista Brasileira de Agroecologia, v. 19, n. 4, p. 458-478, 2024.
Agricultura familiar: perspectivas de uma produção agroecológica em Governador Valadares
Family agriculture: perspectives of an agroecological production in Governador Valadares
Agricultura familiar: perspectivas de una producción agroecológica en Governador Valadares
Vânia Guimarães da Silva¹, Heitor Cardoso de Brito2, Mac Wallace Milord Amorim3
1 Docente no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Minas Gerais Mestre em Meio Ambiente e Sustentabilidade pelo Centro Universitário de Caratinga, Caratinga, Brasil. Orcid 0000-0003-0213-3096 vania.guimaraes@ifmg.edu.br
Docente no Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia de Minas Gerais Mestre em Ambiente. Tecnologia e Sociedade(área de Matemática Aplicada) pela Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri, Teófilo Otoni, Brasil. Orcid 0000-0002-3028-2112 heitor.cardoso@ifmg.edu.br
3Aluno do Curso Técnico Integrado em Meio Ambiente do Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia de Minas Gerais, Governador Valadares, Brasil. Orcid 0000-0002-8535-5817 macwallacegv@outlook.com.br
Recebido em: 25 nov 2023; Aceito em: 9 nov 2024
RESUMO
A agricultura familiar é muito presente em Governador Valadares-MG. Entretanto, considerando o contexto histórico nacional, percebe-se que se trata de uma atividade que desafia o agronegócio à medida em que se relaciona com a Agroecologia e com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Assim, o presente trabalho busca analisar a possibilidade de uma produção agroecológica a partir da experiência de agricultores familiares que integram o MST. Para tal, realizou-se revisões bibliográficas e entrevistas guiadas por um questionário de caráter qualitativo com famílias oriundas do Assentamento Oziel Alves Pereira, localizado naquele município. Dessa forma, pôde-se identificar a presença de práticas agroecológicas na produção de vários alimentos, o uso de policultivos, adubação orgânica e o uso de sementes crioulas. O trabalho proporcionou compreender mais sobre a Agroecologia e sua relação com os movimentos sociais e com a agricultura familiar, assim como a sua relevância socioambiental.
Palavras-chave: Agricultura familiar, Agroecologia, MST.
ABSTRACT
Family farming is a business very present in Governador Valadares, Minas Gerais county. Considering the national historical context, although, it’s clear that is an activity that challenged farm production market as it relates to farm ecology production and the Landless Rural Workers Movement (MST). Thus, the work seeks to analyse the possibility of an farm ecological production based in the experience of family farmers who are part of the MST. To this end, bibliographical reviews and interviews guided by a qualitative questionnaire were carried out with families from the Oziel Alves Pereira community, located in that city. At this point, it’s possible to identify the presence of farm ecological practices in the production of various foods, in particular: polycultures, organic fertilization and the use of native seeds. The work provided a better understanding of farm ecology and its relationship with social movements and family farmers, as well as its social environmental relevance.
Keywords: Family farmers, Farm ecology, MST.
RESUMEN
La agricultura familiar está muy presente en Governador Valadares-MG. Sin embargo, considerando el contexto histórico nacional, se observa que se trata de una actividad que desafía al agronegocio, ya que se relaciona con la Agroecología y con el Movimiento de los Trabajadores Rurales Sin Tierra (MST). Así, este trabajo busca analizar la posibilidad de una producción agroecológica a partir de la experiencia de agricultores familiares que forman parte del MST. Para hacerlo, se realizaron revisiones bibliográficas y entrevistas guiadas por un cuestionario de carácter cualitativo con familias provenientes del Asentamiento Oziel Alves Pereira, ubicado en ese municipio. De esta manera, se pudo identificar la presencia de prácticas agroecológicas en la producción de varios alimentos, el uso de policultivos, fertilización orgánica y el uso de semillas criollas. El trabajo permitió comprender más sobre la Agroecología y su relación con los movimientos sociales y la agricultura familiar, así como su relevancia socioambiental.
Palabras-clave: Agricultura familiar, Agroecología, MST
INTRODUÇÃO
A agricultura familiar é definida pela Lei nº 11.326, de 24 de julho de 2006, como aquela atividade cuja mão de obra empregada é predominantemente oriunda de membros da própria família, cuja produção ocupa um terreno de até 4 módulos fiscais (Brasil,2006). Além disso, a gestão da propriedade e/ou empreendimento é realizada pelos próprios familiares.
Entender a conjuntura da agricultura familiar no Brasil pressupõe a compreensão de questões históricas que afetam diretamente essa atividade. Em uma primeira análise, destaca-se que o país consolidou, ao longo de sua história, um modelo produtivo hegemônico baseado na monocultura e na concentração fundiária, que atende, primordialmente, o mercado externo (Mattei, 2014; Mesgravis, 2015; Nakatani; Faleiros; Vargas, 2012). Denominado de agronegócio, esse modelo traz consigo a modernização das zonas rurais, junto ao uso massivo de agrotóxicos (Londres, 2011). Por conseguinte, temos um modelo que traz impactos socioambientais negativos, uma vez que degrada o meio ambiente e perpetua a estrutura fundiária brasileira marcada pela desigual distribuição de terras.
Entretanto, no processo de redemocratização do país, iniciado na década de 1980 no final da Ditadura Militar, observou-se que esse modelo passou a ser contestado com mais força, ao mesmo tempo em que o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) emergiu como um protagonista da fragmentação da Ditadura Militar. De acordo com Pereira Filho (2023) e MST (2024), a criação deste movimento se deu em 1984, no município paranaense de Cascavel, com objetivos nas lutas pela terra, na reforma agrária e por mudanças sociais no país. Em sua grande maioria, tratavam-se de posseiros que foram atingidos por barragens, migrantes, meeiros, pequenos agricultores – dentre outros, que almejavam ser produtores de alimentos, de cultura e conhecimentos.
O Movimento está intimamente relacionado com a agricultura familiar, uma vez que “[…] o acesso à terra é condição essencial para o campesinato, pois é nesta que os camponeses asseguram seu meio de existência, constroem sua identidade e reproduzem seu trabalho familiar” (Carter, 2010. p. 174). Logo, a luta pela reforma agrária é inerente à expansão de tal atividade, afinal, a terra é um requisito primordial para sua realização.
Ressalta-se que o MST defende a Agroecologia, e não o agronegócio. A Agroecologia se distingue do agronegócio por ter como princípio a produção de alimentos, ao mesmo tempo em que mitiga os impactos socioambientais negativos. Não obstante, ela está estritamente ligada à agricultura familiar (Carter, 2010; Souza et al., 2019).
Tybusch, Tybusch e Medeiros (2020) também corroboram com a afirmação de que a Agroecologia está estritamente ligada à agricultura familiar. De acordo com os autores, a primeira tem a capacidade de comprovar as questões econômicas, sociais e culturais (não se limitando apenas a estas áreas), referentes ao fortalecimento da agricultura familiar, ao mesmo tempo em que reforça a oportunidade de fornecer alimentos saudáveis e a preços acessíveis às populações rural e urbana.
Sampaio (2012) afirma que a Agroecologia está associada a um estilo de vida que busca estabelecer um equilíbrio na relação entre homem e meio ambiente, de uma forma justa, sem causar degradação ambiental e valorizando as contribuições e saberes das comunidades tradicionais. A autora ainda cita que é possível associar a Agroecologia a um conjunto de técnicas e/ou procedimentos agrícolas que dependem especialmente do manejo humano e do uso de elementos naturais disponíveis no próprio ambiente. Contudo, a autora não deixa claro que tipo de técnicas e/ou procedimentos poderiam ser utilizados, de forma que se supõe que sejam técnicas agrícolas.
Caporal, Paulus e Costabeber (2009), por sua vez, contrapõem à afirmação anterior. Para eles, essas interpretações são imprecisas. A Agroecologia não oferece uma teoria sobre desenvolvimento rural nem metodologias participativas e, tampouco, sobre métodos para a construção e validação de conhecimentos técnicos. Ela pode reproduzir modelos já utilizados ou trazer práticas agrícolas que respeitam o meio ambiente, a sociedade e a economia com base na participação ativa de outros agricultores e/ou comunidades, de modo a promover as transformações sociais necessárias para gerar padrões de produção e consumo mais sustentáveis.
Todavia, compreender a Agroecologia é uma tarefa desafiadora, devido à complexidade dos sistemas que a compõem, entretanto, a literatura disponível nos permite traçar características que são comuns aos diversos usos dessa ciência. Entre elas, cabe destacar a valorização da diversidade de espécies animais e vegetais e o aproveitamento dos recursos fornecidos por eles. Assim como a exploração dos recursos oferecidos pelo ambiente (solo, água, altitude, temperatura), se adequando às necessidades do mesmo. Além disso, destaca-se a produção para atender às demandas locais, o baixo uso de insumos sintéticos e o emprego de policultivos (Altieri, 2004).
Ademais, levando em consideração a insustentabilidade do modelo produtivo empregado hegemonicamente no Brasil, faz-se necessário debater e compreender com maior riqueza de detalhes outras alternativas de produção. Conforme exposto por Bombardi (2017) e Londres (2011), o agronegócio brasileiro aplica imensas quantidades de agrotóxicos nas monoculturas voltadas à exportação. Tal aplicação pode gerar prejuízos ambientais como, por exemplo, a “perda da diversidade genética e a poluição ambiental” (Veiga Silva, 2008, p.16).
Em contrapartida, a agricultura familiar se encontra primordialmente voltada ao abastecimento interno e possui uma relação de respeito ao meio ambiente, ao mesmo tempo em que emprega práticas conservacionistas (Silva, 2015). Sua implementação pode, por exemplo, fortalecer laços comunitários, contribuir para o desenvolvimento local, valorizar a diversidade de culturas e preservar conhecimentos tradicionais com o objetivo de garantir a sustentabilidade a longo prazo, contribuir para a dinamização da economia local e consequente geração de novos empregos etc. Diferentemente do agronegócio, que objetiva a produção em larga escala e a maximização dos lucros, muitas vezes em detrimento da sustentabilidade.
No município de Governador Valadares, localizado na região Vale do Rio Doce, representado na Figura 1, existem cerca de 1.117 estabelecimentos da agricultura familiar. De acordo com o Censo Agropecuário de 2017, promovido pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, esta quantia representa cerca de 65% do total de estabelecimentos agropecuários da região (IBGE, 2019).