Brasília, v. 19, n. 1, p. 113-119, 2024
https://doi.org/10.33240/rba.v19i1.51702
Como citar: CARVALHO NETO, Gil R. Resenha: Futuro Ancestral. Revista Brasileira de Agroecologia, v. 19, n. 1, p. 113-119, 2024.
Resenha de livro
Futuro ancestral: uma questão de Agroecologia
Ancestral future: a question of Agroecology
Gil Ramos de Carvalho Neto¹
1 Doutorando em Direito pela Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho” (UNESP), Franca-SP, Brasil. Orcid https://orcid.org/0000-0002-4993-7596. E-mail: gilrcneto@yahoo.com.br
Submetido em: 31 mar 2023. Aceito em 11 dez 2023
KRENAK, Ailton. Futuro ancestral. 1ª ed, São Paulo: Companhia das Letras, 2022.
Ailton Alves Lacerda Krenak (Ailton Krenak), autor da obra ora resenhada, nasceu em 1953 na região do vale do Rio Doce, nordeste de Minas Gerais. Jornalista, passou a se dedicar à causa indígena a partir dos anos 1980. Teve atuação fundamental na Constituinte de 1988, em função da qual conseguiu incluir o capítulo “Dos Índios” na Carta Magna brasileira. Ativista socioambiental, contribuiu com a fundação da União das Nações Indígenas (UNI) e da Aliança dos Povos da Floresta – sendo que ambos os projetos têm preocupação com os povos indígenas e com as florestas. Participou, no ano de 2005, da redação da proposta da Unesco que resultou na criação da Reserva da Biosfera da Serra do Espinhaço, vindo a se tornar membro de seu Comitê Gestor. Recebeu a Ordem do Mérito Cultural da Presidência da República por seu papel na cultura brasileira, bem como o título de doutor honoris causa pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Sua trajetória é tema do documentário, de 2017, dirigido por Marco Altberg, intitulado “Ailton Krenak e o sonho de pedra”. Dentre suas obras, podem ser mencionadas: “Ideias para adiar o fim do mundo” (2019); “O amanhã não está à venda” (2020); “A vida não é útil” (2020); “Lugares de origem” (2021, escrita junto com Yussef Campos); e “Futuro ancestral” (2022). Ancorado em sua significativa produção literária, Krenak se candidatou a uma vaga na Academia Brasileira de Letras (ABL) e foi eleito em outubro de 2023, tornando-se o primeiro indígena a obter sucesso no pleito, com posse em 2024.
A obra Futuro Ancestral, organizada por Rita Carelli e que passa a ser aqui resenhada, tem cento e vinte e duas páginas e é dividida em cinco capítulos: “Saudações aos rios”; “Cartografias para depois do fim”; “Cidades, pandemias e outras geringonças”; “Alianças afetivas” e “O coração no ritmo da terra”.
No primeiro capítulo, “Saudações aos rios”, Krenak traz ao leitor a aproximação mental com os cursos d’água e a ideia de um futuro que, se vier a existir, será ancestral. A humanidade pouco respeita os rios, embora sempre lhe seja ensinado que a espécie humana floresceu em proximidade com eles. A urbanização retira, de uma grande parcela dos seres humanos, possibilidades que os povos indígenas costumavam ter – a de se banhar com frequência nos rios desde crianças, por exemplo. A retrospectiva geográfica, apesar de sucinta, mostra a fartura de rios brasileiros. Aproxima o leitor da perspectiva de viver junto às águas e de “montar” os rios como quem monta um cavalo. Apesar disso, expõe os problemas ambientais pelos quais os rios podem passar, mencionando a situação do rio Doce e as contaminações oriundas da atividade de mineração que causam a doença da “urina preta”, no caso do rio Tapajós, além da situação do rio Tietê. Recorda-se de que os rios são vivos, enfrentam muitas intempéries, servem como guia dos povos, mas que o modelo de desenvolvimento atual os maltrata e até mesmo chega a deixar as pessoas sem água, o que pode inviabilizar os cursos hídricos e prejudicar enormemente a vida.
A saudação proposta aos rios revela a busca por uma revisão do estilo de vida da sociedade urbana capitalista atual. O fato de ser majoritária e guiada pela bússola econômica a faz negligenciar as sociedades minoritárias – como as indígenas – e as implicações ao ambiente e à economia que desabrocham com esse ritmo de avanço sobre os recursos naturais, ocorrido ao mesmo tempo em que se afastam os corações e as mentes da juventude urbana, da vivência em harmonia com a natureza, como é o caso dos rios, mencionados por Ailton. A própria sobrevivência da humanidade, incluindo a parcela desta que se preocupa com formas de produção mais sustentáveis – caso da Agroecologia – passa a estar ameaçada se não for dada a devida atenção à situação dos rios.
Por sua vez, no segundo capítulo, “Cartografias para depois do fim”, abordam-se alguns diferentes povos e questões afetas à política. O autor expõe uma metástase do “mundo do capitalismo” – por ele chamado, assim como por outras pessoas, de capitaloceno. Propõe-se a imaginação de cartografias, de camadas de mundos, com narrativas plurais, como as narrativas tradicionais dos povos ameríndios – desde a Terra do Fogo até o Alasca. Apregoa-se a fusão entre paisagem e fonte incessante de vida (povo Guarani), enquanto se luta contra a especulação imobiliária, a ocupação do território indígena (no exemplo, as regiões originalmente de Mata Atlântica) e a violência, turvando a cartografia afetiva que os ancestrais veem ali. Os Maxacali ou Tikmu’um, parentes de lá excluídos, se reconstruíram no vale do rio Doce, precisando recriar ali um lugar para habitação. O rio Doce (ou Watu, para o povo Krenak), embora agredido pelo desenvolvimento humano, mergulhou na terra para refazer sua trajetória – o que não impede o alerta de que o capitaloceno não deixará nenhum lugar na Terra que não seja, como o leito do Watu, assolado pela lama. Os poluentes do atual estado tecnológico devem ser extirpados e a comunhão com a natureza, com as diferentes formas de vida, incentivada. Tradições como a das crianças Kuna, do Panamá – em ligação umbilical de um nascimento humano com a identificação do recém-nascido com uma árvore – precisam ser reforçadas. O fim do mundo deve ser adiado, mas só valerá a pena se o for pelas confluências – termo conforme a lavra do pensador quilombola Nêgo Bispo, falecido no final de 2023 – entre mundos diversos que podem se afetar. Alerta: delas deve fugir a convergência política que se embase na lógica preponderante atual.
A situação atual do planeta, com o desmedido avanço científico-tecnológico e econômico sobre as diversas formas de vida, tem que considerar, de forma efetiva e zelosa, a existência de uma infinidade de povos tradicionais. Suas culturas, costumes e hábitos têm que ser levados em consideração em um mundo cada vez mais plural e cada vez mais necessitado de iniciativas de defesa do meio ambiente. A atuação política sobre as diretrizes econômicas pode auxiliar a melhorar o cenário socioambiental, desde que os mapas traçados considerem as necessidades dos diferentes povos, das diversas formas de vida, em um viés democrático e eticamente justo.
Já o terceiro capítulo, “Cidades, pandemias e outras geringonças”, aborda a relação da pandemia de Covid-19 com a ideia de que ela foi causada pela “perigosa” aproximação entre o urbano e o natural/florestal. O texto gira em torno da demonstração de que o capitalismo busca nos condicionar para sermos cada vez mais urbanos e consumidores, além de relacionar o saneamento com a urbe. A promoção do “ocidental way of life” se faz totalmente equivocada, pois a necessidade de furar a lógica capitalista é a necessidade de infiltrar a floresta na cidade, de acabar com a falsa oposição entre o que é sujo (meio natural) e o que é limpo (meio urbano). Isso é fundamental, porque mais de 1 bilhão de pessoas no planeta dependem de uma economia ligada à floresta e, mantidas as balizas atuais, corre-se o risco de vermos os excertos naturais em redomas de vidro ou as cidades separadas de florestas muradas. Isso, evidentemente, teria implicações para a sobrevivência da humanidade (incluindo as formas de alimentação) e o autor menciona até mesmo que a espécie humana é a única que tem medo de morrer, mas que o planeta permaneceria existindo sem o homem.
A humanidade, nos primeiros momentos da pandemia de Covid-19, se perguntava o quanto a disseminação da moléstia lhe serviria de aprendizado, para que esta saísse desse momento ímpar melhor do que havia entrado. Passada a fase mais crítica, com significativo percentual de vacinados no planeta, pôde-se perceber que muito pouco se aprendeu. Paira uma sensação de que muitos querem “recuperar o tempo ‘perdido’” enquanto a circulação das pessoas era fortemente bloqueada por causa do vírus. Ora, para que se saia melhor e com uma sensação de recuperação desse tempo, vale se atentar ao terceiro capítulo: a lógica capitalista, de segregação entre o natural e o urbano, precisa ruir. A começar por um maior conhecimento das pessoas quanto àquilo que elas comem e buscar obter isso sem prejudicar o planeta (e, assim, não aumentar a chance de uma nova pandemia): aqui a Agroecologia se faz presente novamente. O homem veio da natureza e em sintonia com ela deve continuar, já que dela depende para seguir existindo.
No quarto capítulo, “Alianças afetivas”, o autor revela que a Aliança dos Povos da Floresta – grupo por ele idealizado para articular contra a colonização no sul da Amazônia e a fragmentação da floresta – buscava a florestania, neologismo para um novo campo de reivindicação dos direitos de algo que ainda não era considerado como tal. A busca por evidenciar aos seringueiros que o modo de vida dos povos da floresta era mais afável com a natureza acabou tendo algum sucesso. Mas a ideia de florestania não pode ficar refém de si própria. Nesse ponto, o autor abraçou o conceito de alianças afetivas, que pressupõe afetos entre mundos não iguais. Essa troca de experiências permitiu a abertura a outras cosmovisões e pluriversos, se mundizando – ou seja, experimentando outros mundos nessas condições de abertura. A colonização sufocou tal possibilidade em sua época. A democracia a permite, mas deve ser constantemente construída, já que estará sempre sujeita a ataques. Assim, a contribuição dos povos originais aos debates de nacionalismos, constitucionalismo e democracia é imprescindível para que a política seja mais uma dimensão da existência e não uma atividade predatória.
Os povos tradicionais têm uma visão diferente da natureza e, assim, sua atuação em prol desta tende a ser mais acentuada. Isso inclui a construção de conceitos novos a partir de ideias e conhecimentos ancestrais para reivindicar direitos que afetem os seus bens mais caros – as formas de vida em diversidade – mas sem se limitar em demasia. Por isso o estabelecimento de alianças afetivas entre as diferentes propostas de desenvolvimento, no âmago das mais diversas sociedades, deve acontecer. Porém, se deve considerar as necessidades de cada forma de vida e com avaliações frequentes. Essa parceria, pelo bem de todos os povos, deve ser uma constante em prol da existência comum e pela garantia dos direitos sociais da humanidade.
Finalmente, no quinto capítulo, denominado “O coração no ritmo da terra”, o autor traz as suas preocupações com a educação das crianças. Ele a considera muito voltada às correntes da sociedade atual – seja pela estrutura física montada para o ensino, seja pela proposta de se moldar a juventude. Ele expõe que povos tradicionais como os Guarani já recebem as crianças como seres prontos, que não precisam ser encaixados em uma forma. Há, assim, um liame com a ancestralidade. Mas ele não deixa de pensar o futuro também. O autor entende que o futuro é uma ilusão e que a humanidade se engana com expectativas de futuro muito improváveis, construindo assim um mundo com uma única narrativa, tal como diz Chimamanda Ngozi, escritora nigeriana. A vivência da infância acaba ficando cada vez mais achatada – enquanto nas culturas tradicionais não se deveria receber um molde por grandes períodos de tempo. Como uma cartografia do mundo, a infância acaba por mapear o meio circundante da criança para a vivência adulta. Portanto, a sociabilidade com as diversas formas de vida e o contato pleno com a natureza são imprescindíveis. A vida é o que se tem de mais importante, então a educação para o coletivo deve prevalecer, pois cabem todos no mundo. Experiências como a de Greta Thumberg, ativista ambiental, e a do Dalai Lama criança são emblemáticas para uma nova narrativa de mundo. A formatação da infância deve ser substituída, ao menos em parte, por mais invenções e experiências lúdicas com a natureza. O autor menciona a experiência com o Plano Nacional de Educação Escolar Indígena, consolidado nos últimos vinte anos, pelo qual cada comunidade pode moldar o equipamento escolar da forma que decidir. O ensino, inclusive, não demanda um prédio. E a eventual liderança de uma criança não deve ser forjada na concorrência, mas como resultado da experiência diária de colaboração com os outros. No âmbito da cultura Krenak, as crianças anseiam por serem antigas, para terem a experiência e os fundamentos para uma boa vida (o sumak kawsay ou bem viver dos quéchuas). Elas são orientadas e têm o exemplo de que o indivíduo conta menos do que o coletivo para a vida, colocando assim seu coração no “ritmo da terra”.
Conhecer a situação da juventude é saber como as futuras gerações viverão e atuarão no seio deste planeta. As bases educacionais precisam ser repensadas para que as mudanças culturais e de posicionamento prosperem. Os povos indígenas entendem que suas crianças já entram na vida com uma forte ligação com a ancestralidade – e possivelmente mais aptas a uma vida harmônica com o meio natural. Os povos urbanos têm que se mirar nessa convivência para irem mudando sua forma de vida e de educação, visando a integração (o retorno) da humanidade com (para) a natureza. Uma construção coletiva dessas bases será o ideal, incluindo as experiências educacionais. O ser humano precisou estreitar seus laços para sobreviver como espécie. Da mesma forma, esses laços com o ambiente – que estão ficando cada vez mais frouxos – precisam ser novamente estreitados, pelo bem da ecologia e da própria humanidade.
O livro de Krenak aqui resenhado reforça a necessidade de incentivo e de luta pela Agroecologia. A humanidade precisa do alimento para a própria sobrevivência e se este não for produzido de forma saudável e sustentável, o efeito será justamente o contrário do pretendido. A Agroecologia embasa o desenvolvimento de ecossistemas que interajam beneficamente com a biodiversidade, valendo-se de adubos naturais e do consórcio entre espécies, sem agrotóxicos. As plantas e os animais interagem melhor entre si, proporcionando maior eficiência às funções e aos processos do agroecossistema – resultando na tão almejada produção agrária ecológica.
Os conhecimentos ancestrais são muito importantes para a forma de produção agroecológica e a presença dessas pessoas também pode contribuir com a juventude, com a ecologia, com a conservação dos rios, com o afastamento da chance de pandemias, melhorando os recursos locais. São, ainda, um apoio à emancipação alimentar que liberta da pressão de consumo imposta pelo sistema econômico atual e que leva aos problemas relatados por Krenak neste livro tão imprescindível. A Agroecologia, arrisca-se aqui dizer, é o grande alicerce para a construção desse pretendido futuro ancestral.
Copyright (©) 2024 - Gil Ramos de Carvalho Neto
Revista Brasileira de Agroecologia
ISSN 1980-9735
Publicação da Associação Brasileira de Agroecologia - ABA-Agroecologia em cooperação com o Programa de Pós-Graduação em Meio Ambiente e Desenvolvimento Rural - PPG-Mader, da Universidade de Brasília – UnB
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