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Brasília, v. 18, n. 6, p. 804-824, 2023

DOI: https://doi.org/10.33240/rba.v18i6.51592

Como citar: BECKER, Cláudio; XIMENES, Raphaela P. Políticas públicas de fortalecimento à Agroecologia como dispositivo de conexões entre campo e cidade: uma análise a partir do estado do Rio de Janeiro. Revista Brasileira de Agroecologia, v. 18, n. 6, p. 804-824, 2023.

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Políticas públicas de fortalecimento à Agroecologia como dispositivo de conexões entre campo e cidade: uma análise a partir do estado do Rio de Janeiro


Public policies to strengthen the Agroecology as a link between the rural areas and the city: an analysis from the state of Rio de Janeiro

 

Cláudio Becker¹, Raphaela Pimentel Ximenes2

1 Professor Adjunto de Agroecologia na Universidade Estadual do Rio Grande do Sul de Santana do Livramento. Doutor em Sistemas de Produção Agrícola Familiar pela Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, Brasil. Orcid: https://orcid.org/0000-0002- 4410-4587. E-mail: claudio-becker@uergs.edu.br.

2Assistente social na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-6353-9861. E- mail: raphaela-ximenes@uergs.edu.br.

Recebido em 20 mar. 2023. Aceito em 13 nov. 2023.

Resumo

O tema de pesquisa que deu origem a este estudo são políticas públicas de fortalecimento à Agroecologia e a relação entre campo e cidade. A partir de um estudo sobre a temática, tendo como pano de fundo o estado do Rio de Janeiro, buscamos atingir nosso objetivo geral: compreender como a construção de políticas públicas de fortalecimento à Agroecologia pode incentivar o estreitamento da relação campo-cidade, tornando possível o acesso à alimentação saudável nas cidades na perspectiva da Segurança Alimentar e Nutricional (SAN). As estratégias metodológicas utilizadas foram levantamento bibliográfico e entrevista com representante da Articulação de Agroecologia do Rio de Janeiro (AARJ). Os resultados encontrados nos levam à compreensão da Agroecologia como alternativa ao modo de vida imposto pelo capitalismo e pela colonialidade, mas também à compreensão de que novas relações só são possíveis a partir da construção de políticas públicas que fortaleçam a Agroecologia.

Palavras-chave: Agroecologia, Relação campo-cidade, Papel do Estado, Políticas públicas.

 

Abstract

This research is about public policies that strengthen the Agroecology and the relation between rural areas and cities. With a study about how those policies works in Rio de Janeiro, we aim to meet our main goal: understand how the building of public policies that strengthen the Agroecology can encourage this link between rural areas and cities, making possible the acess to healthy eating in the cities according to food and nutrition security. The applied methodological strategies were bibliographic research and interviews with representatives from the “Articulação de Agroecologia do Rio de Janeiro”. The results found made we understand the Agroecology not only as an alternative to the way of life imposed by the capitalism and the colonialism and as a fundamental element to think health promotion, but also the understanding that public policies that strengthen the Agroecology are mandatory to build new relations.

Keywords: Agroecology, Country-city relationship, State role, Public policy.

 

 

INTRODUÇÃO       

A falta de investimento estatal na construção e no fomento de políticas públicas voltadas para a Agroecologia dificulta o encontro de uma solução para os problemas da fome e da imposição, provocada pelo capitalismo e pela colonialidade, de hábitos alimentares que não condizem com nossa cultura, pois a organização de feiras e de outras formas de comercialização de produtos agroecológicos fica a cargo de movimentos sociais e grupos que, apesar de realizarem importantes ações de promoção da Agroecologia, não possuem condições de alcançar todas as pessoas e regiões, o que torna o acesso a alimentos agroecológicos1 restritos a determinados públicos, os quais, normalmente, não incluem as classes mais pobres da sociedade. Conserva-se, assim, o distanciamento entre campo e cidade e intensifica-se, em todo o país, uma situação de insegurança alimentar, além do não cumprimento do Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA), como estudos recentes vêm nos mostrando2.

Dessa forma, permanece predominante um modelo agrícola convencional que prejudica tanto aqueles que produzem, quanto aqueles que consomem. Somado a isso, o sul global sofre ainda mais na atualidade com as consequências do processo colonizatório e, dentre diversas outras questões, nossos hábitos alimentares refletem isso. Josué de Castro, em sua obra Geografia da Fome, critica veemente a ação do colonialismo, o qual pode ser compreendido como preocupado, exclusivamente, com os interesses dos colonizadores, e afirma que “por trás desta estrutura com aparência de progresso — progresso de fachada — permaneceram o latifúndio improdutivo, o sistema da grande plantação escravocrata, o atraso, a ignorância, o pauperismo, a fome” (CASTRO, 1984, p. 283).

Com este trabalho buscamos pensar formas de desenvolver relações de maior proximidade entre os sujeitos que vivem no campo e na cidade, através da Agroecologia, ressaltando a importância, não apenas da garantia da segurança alimentar em nosso país, mas tendo como horizonte o alcance da soberania alimentar para toda a população. Para isso, questionamos qual o papel das políticas públicas e do Estado no incentivo à produção e ao consumo de alimentos agroecológicos e investigamos de que forma ou se as políticas públicas brasileiras voltadas para a agricultura, contemplam a Agroecologia. Para ter uma visão concreta desse processo, temos como objeto empírico a Agroecologia no estado do Rio de Janeiro e buscamos entender quais elementos dificultam a expansão da produção e do consumo de alimentos agroecológicos na região, a partir da realização de entrevista com representante da Articulação de Agroecologia do Rio de Janeiro (AARJ) e da investigação de dados secundários sobre a temática.

Diante disso, o objetivo geral que buscamos alcançar com essa pesquisa foi compreender de que forma a construção de políticas públicas de fortalecimento à Agroecologia pode incentivar o estreitamento da relação campo-cidade no estado do Rio de Janeiro, a partir da AARJ, e os objetivos específicos foram: problematizar como o sistema capitalista e o processo colonizatório transformam o nosso modo de nos alimentar e de nos relacionar com a natureza; avaliar, a partir do estado do Rio de Janeiro, estratégias que permitam desenvolver relações de maior proximidade entre os sujeitos que vivem no campo e na cidade através da Agroecologia; analisar o papel e os limites das políticas públicas e do Estado, nos seus 3 níveis de governo, no incentivo à produção e ao consumo de alimentos agroecológicos, tendo como base a experiência do Rio de Janeiro; observar os elementos facilitadores e dificultadores e os avanços e desafios no processo de expansão da produção e do consumo de alimentos agroecológicos no estado do Rio de Janeiro.

Nesse sentido, o presente artigo busca trazer um olhar sobre a Agroecologia a partir do papel das políticas públicas e do Estado, articulando a questão da produção e do consumo de alimentos agroecológicos com problemáticas que marcam o atual contexto, que alguns autores vêm caracterizando como “ultraneoliberal”3. Dentre essas problemáticas, destacamos o aumento exponencial da fome nos últimos anos, especialmente no período pandêmico. Diante disso, a análise aqui desenvolvida é feita a partir de um viés crítico, buscando enunciar as incidências causadas pelo sistema capitalista e pelo fenômeno da colonialidade em nossa relação com a natureza e em nossos hábitos alimentares, a partir da observação sobre a relação – ou sobre o distanciamento – entre campo e cidade.

METODOLOGIA

O projeto de pesquisa que consubstanciou a escrita deste artigo foi avaliado e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS), sob o seguinte número de CAAE: 61177822.7.0000.8091. Trata-se da fase exploratória de um estudo voltado para a compreensão das potencialidades que a Agroecologia apresenta na reaproximação entre campo e cidade. Para o desenvolvimento desta pesquisa, utilizamos como procedimento metodológico a pesquisa qualitativa, a qual:

[...] se preocupa, nas ciências sociais, com um nível de realidade que não pode ser quantificado. Ou seja, ela trabalha com o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis (MINAYO, 2002, p. 21-22).

As estratégias metodológicas utilizadas foram levantamento bibliográfico e entrevista com representante da Articulação de Agroecologia do Rio de Janeiro. Devido a restrições decorrentes da pandemia de Covid-19, que, apesar de abrandada ao longo do período de realização deste estudo, ainda apresentava seus riscos, optou-se pela seleção de um informante-chave para a coleta das informações que se pretendia alcançar. Foi escolhida, portanto, a AARJ, por ser esta uma organização que congrega iniciativas de organização social, produção, consumo e com características de movimento social. Desse modo, compreendemos que um representante da organização apresentaria plenas condições de fornecer as informações necessárias para responder aos objetivos do estudo.

No entanto, também consideramos de extrema relevância a coleta de dados com sujeitos agricultores e consumidores de alimentos agroecológicos do estado do Rio de Janeiro, além de representantes de distintos movimentos sociais voltados para a questão da Agroecologia e da alimentação, o que se pretende realizar em um momento posterior da pesquisa – que está tendo sua continuidade em um programa de mestrado acadêmico –, respeitando as condições sanitárias e as recomendações dos órgãos de saúde. Compreendendo a necessidade de preservar a saúde dos envolvidos neste momento da pesquisa, a entrevista com o representante da AARJ foi realizada de forma remota. Não se optou pela utilização desse mecanismo com os outros sujeitos nesse primeiro momento devido às limitações que essa ferramenta impõe para a compreensão da realidade de vida dos sujeitos em sua cotidianidade. Com o representante da AARJ, as informações foram obtidas por meio de uma entrevista em profundidade, com base na aplicação de um roteiro semi-estruturado.

A escolha do estado do Rio de Janeiro como lócus do estudo é relevante por ser ele um dos estados mais urbanizados do país, segundo dados do IBGE (2019)4, o que contribui para a nossa reflexão sobre como a Agroecologia pode estar em todos os lugares. Nesse sentido, uma das variáveis que buscamos compreender é quem são os principais consumidores de alimentos agroecológicos no estado do RJ, pois isso possibilita a reflexão sobre quem tem acesso a esses alimentos na região. Outra variável investigada são os elementos que dificultam a transição agroecológica para agricultores familiares no estado. Nessa mesma linha, buscamos refletir sobre o que dificulta o consumo de alimentos agroecológicos em diferentes regiões do estado.

As fontes de aquisição para o levantamento desses dados foram: direta, através da entrevista semiestruturada com a AARJ, e secundárias, através de levantamento bibliográfico sobre as políticas públicas para a agricultura familiar e de materiais que tratam da temática e de temas transversais. Sobre a entrevista, vale apontar que essa foi gravada, com autorização do entrevistado, com o qual firmamos o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. O tratamento das informações se deu através de análise de conteúdo (Gomes, 2009), a partir da qual extraímos os elementos utilizados na discussão dos resultados.

CAPITALISMO, COLONIALIDADE, RELAÇÃO CAMPO-CIDADE E SAÚDE

Para a discussão sobre a relação campo-cidade existente hoje e, ainda, sobre as implicações desta relação na saúde da população brasileira, se faz necessário problematizar as interferências que o sistema capitalista e o processo colonizatório causaram sobre nossa forma de nos alimentar e nos relacionar com a natureza. Nesse sentido, optamos pelo uso do conceito de “colonialidade”, elaborado pelo autor Aníbal Quijano, no lugar de “colonialismo”, por compreender que a elaboração do referido autor expressa de forma mais adequada nossa percepção sobre essa temática, conforme aponta o seguinte trecho:

Com a emancipação latino-americana no início do século 19, iniciou-se um processo de descolonização parcial, já que as repúblicas conseguiram livrar-se do peso da dominação política das metrópoles, mas a colonialidade e seus principais efeitos continuaram a ordenar essas sociedades, produzindo-se, com o passar do tempo, diversas estruturações sociais de matriz colonial. É claro que o colonialismo como fenômeno histórico precede e origina a colonialidade enquanto matriz de poder, mas a colonialidade sobrevive ao colonialismo (Quintero et al., 2019, p. 6, grifos nossos).

 

Dessa forma, apesar de o colonialismo ser um processo considerado encerrado, a colonialidade continua em curso nas sociedades que foram colonizadas, posto que os modos de vida e diversas características culturais de povos e comunidades que habitavam os territórios colonizados foram substituídos ou drasticamente afetados pelas imposições de países colonizadores. Outrossim, a própria fome aparece como consequência das pretensões do “imperialismo econômico”, compreendidas como contrárias aos interesses da saúde pública (Castro, 1984).

Nesse sentido, vale destacar que na perspectiva do Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro, responsável pela promoção e garantia da saúde pública no país, a saúde não é reconhecida meramente como ausência de doenças, mas compreende uma série de fatores condicionantes e determinantes, regulamentados pela Lei Orgânica da Saúde (Lei 8.080/1990). Segundo este instrumento legal, “a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, a atividade física, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais” (Brasil, 1990) são alguns dos determinantes e condicionantes que influenciam na saúde dos indivíduos. Não cabe aqui aprofundar o debate sobre o acesso que a população brasileira está tendo a cada um dos fatores mencionado, mas vale se atentar para o fato de que a alimentação, primeiro determinante mencionado pela legislação, não tem sido garantida de forma adequada a todas e todos.

Para além da questão da dificuldade de acesso a alimentos, que, conforme estudos recentes têm nos mostrado, vem crescendo demasiadamente em nosso país, é necessário pensar também sobre a qualidade dos alimentos que a população tem conseguido acessar, visto que esse é um elemento fundamental para pensarmos a saúde dessa população. A Lei nº 11.346, de 15 de setembro de 2006, aborda a questão da Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) e do DHAA e destaca o direito de todos à alimentação, não apenas em quantidade suficiente, mas aponta também para a qualidade dessa alimentação. Além disso, esta ainda reforça a importância da diversidade cultural e da sustentabilidade ambiental, econômica e social na alimentação (Brasil, 2006).

O Guia Alimentar para a População Brasileira (2014) reforça essa ideia ao definir o que é uma alimentação saudável e sustentável e apresenta as diretrizes para o alcance de hábitos alimentares mais adequados. Esse material, que é considerado referência internacional sobre o tema da alimentação e da SAN, destaca o papel da Agroecologia na promoção de ambientes alimentares saudáveis:

Quanto mais pessoas buscarem por alimentos orgânicos e de base agroecológica, maior será o apoio que os produtores da agroecologia familiar receberão e mais próximos estaremos de um sistema alimentar socialmente e ambientalmente sustentável (Brasil, 2014, p. 32).

As notícias recentes, recorrentemente encontradas nos jornais ao longo do período pandêmico, que abordam o preço dos alimentos e as dificuldades encontradas pela população para se alimentar nos últimos meses, não escondem que, em parte considerável do país, o direito à SAN, tal como o DHAA, não está sendo garantido, especialmente nas áreas periféricas. Vale destacar o conceito de “apartheid alimentar”:

O termo reflete a disparidade de padrões alimentares, levando em conta questões de raça, geografia, fé, economia e gênero. Neste sentido, ambientes socioeconomicamente vulneráveis tendem a promover mais intensamente o consumo de alimentos não saudáveis e, na contramão, dificultam o acesso às opções saudáveis (Cátedra Josué de Castro, 2021, p. 10).

 

Consideramos relevante apresentar essa análise pois identificamos que na bibliografia que aborda a questão do consumo de alimentos agroecológicos, muitas vezes é transferida ao consumidor demasiada responsabilidade pelo apoio à produção agroecológica. Compreendemos que esse tipo de responsabilização, além de retirar o foco da centralidade que o Estado deve assumir na disponibilização de alimentos saudáveis à população, exclui as populações mais pobres do acesso à essa alimentação, pois a ausência de recursos financeiros implica na inviabilidade do exercício do poder de escolha, já que o capital se torna quem determina que tipo de alimentação estará disponível para cada grupo social5.

Em outras palavras, compreendemos que o foco não devem ser as escolhas individuais dos consumidores como seres isolados, pois o contexto em que estes consumidores estão inseridos é que determina o seu acesso à alimentação. A parcela mais pobre da classe trabalhadora, em condições precárias de trabalho e remuneração – quando não desempregada – se move pela necessidade da sobrevivência, consumindo aquilo que é mais barato – muitas vezes, ultraprocessados.

Dessa forma, apesar de ser importante a opção pela produção agroecológica daqueles que possuem condições de escolher, o foco deve ser direcionado a tornar esses alimentos mais acessíveis para todos e todas através da ampliação de mercados institucionais, do fortalecimento da Agroecologia, do incentivo à produção local e sazonal, da promoção de espaços de troca e comercialização em áreas periféricas, entre outros elementos. Esse processo, que visa tornar universal o acesso a alimentos agroecológicos, e é fundamental na promoção da saúde, deve ser feito a partir do Estado, pois “a universalidade no acesso nos programas e projetos sociais abertos a todos os cidadãos, só é possível no âmbito do Estado” (Iamamoto, 2012, p. 59). Vale destacar, ainda, que a promoção da saúde é um dos objetivos do SUS, previsto na já mencionada Lei Orgânica da Saúde, e que não é possível promover saúde sem a garantia de alimentação saudável, conforme este mesmo instrumento legal indica ao destacar a alimentação como um determinante de saúde.

Ademais, se faz necessário reconhecer a dívida histórica que o Estado brasileiro tem para com as populações negras e periféricas em relação ao acesso à terra e, consequentemente, a um modo de vida e a uma alimentação mais saudáveis. Sobre isso, vale destacar o seguinte trecho referente à Lei nº 601, de 18 de setembro de 1850, mais conhecida como a “Lei da Terra”:

Se analisarmos mais detidamente não apenas esta passagem do poder decisório sobre a aquisição da terra, mas o seu significado sociológico mais importante ao propiciar possibilidade de contratos àquelas camadas que poderiam adquiri-la através da compra – populações livres – poderemos concluir que, à medida que se afastou o poder público do dever social de doar aos ex-escravos (quando saíssem do cativeiro) parcelas de terras às quais tinham direito “por serviços prestados” e nas quais pudessem integrar-se, como proprietários, na conclusão do processo abolicionista, criou as premissas da sua marginalização social (MOURA, 1994, p. 71).

Dessa forma, fica evidente a conotação racista da chamada Lei da Terra e a sua contribuição para o cenário das favelas hoje, onde residem, majoritariamente, pessoas pretas e pardas. Com isso, queremos provocar a reflexão sobre o fato de que os que estão hoje amontados nas periferias sem acesso à vida digna e à alimentação saudável são os descendentes daqueles que tiveram o acesso à terra negado ao longo da formação histórica brasileira (Seyferth, 2002). Ademais, são essas mesmas pessoas negras que dependem do SUS e muitas vezes encontram dificuldades para acessar os serviços de saúde adequadamente6.

Diante disso, compreendemos a necessidade de uma intervenção estatal que busque frear as empresas capitalistas e o agronegócio e reaproximar o campo e a cidade, através da promoção da Agroecologia e da segurança e da soberania alimentar, elementos fundamentais para a promoção da saúde. Consideramos necessário ressaltar o papel do capitalismo na acentuação da separação entre campo e cidade, pois esse entendimento facilita a compreensão de que essa é uma realidade que foi provocada por um determinado sistema, ou seja, não é um fenômeno natural que não pode ser alterado. Pelo contrário, “(...) apesar da diferenciação, devemos reconhecer que eles [rural e urbano] estão articulados em uma relação de complementaridade e que, juntos, constituem uma totalidade” (Araújo e Soares, 2009, p. 205).

Nesse sentido, se faz necessário romper com o distanciamento físico e simbólico entre agricultores e consumidores provocado pelo sistema agroalimentar hegemônico. A Agroecologia deve ser protagonista nesse processo de reconexão entre produtores e consumidores, a partir dos Sistemas Agroalimentares Sustentáveis (Becker e Silva, 2021). Para que essa ideia se efetive, sem excluir determinados grupos sociais, compreendemos como fundamentais os processos de articulação coletiva que tenham como objetivo interferir na construção de políticas públicas voltadas para as necessidades reais, tanto de agricultores familiares em processo de transição agroecológica, quanto de consumidores como um todo, não apenas daqueles que possuem condições financeiras para escolher seus alimentos. Para aprofundar esse assunto, no entanto, precisamos primeiro traçar um breve panorama sobre como estão organizadas as políticas públicas no meio rural brasileiro.

POLÍTICAS PÚBLICAS NO MEIO RURAL: ENTRE O ASSISTENCIALISMO E O DESENVOLVIMENTISMO

Segundo um estudo realizado pela OXFAM (2016), 45% das áreas rurais brasileiras pertencem a apenas 1% das propriedades, o que expressa o cenário de extrema concentração fundiária que prevalece no país. O mesmo estudo demonstra que 70% dos alimentos consumidos pelos brasileiros vêm da agricultura familiar, apesar da posição desfavorável em que essa se encontra em relação à distribuição de recursos. Esse privilegiamento dos grupos que adotam, como modelo de produção, a agricultura convencional é algo histórico na realidade brasileira e, segundo diversos estudos vêm apontando, apesar de nas últimas décadas terem sido criadas políticas públicas voltadas para a agricultura familiar, as mudanças estruturais e urgentes pelas quais o meio rural brasileiro precisa passar estão longe de serem consolidadas.  

Cazella et al. (2016) trazem uma excelente contribuição para se pensar sobre as principais políticas públicas desenvolvidas para o meio rural brasileiro nas últimas décadas, levantando a reflexão sobre uma separação entre as políticas de inclusão produtiva e as políticas assistencialistas:

Na atualidade, percebe-se, de maneira geral, uma clara dicotomia entre as políticas de caráter produtivo e as destinadas à assistência social. As primeiras têm beneficiado, de forma prioritária, unidades familiares que utilizam tecnologias e práticas agronômicas convencionais destinadas a maximizar a produtividade, sem estabelecer contrapartidas concernentes aos impactos socioambientais. Ao inverso, as políticas que focalizam a assistência social dos estabelecimentos mais frágeis não têm interfaces com as iniciativas cujo foco é a inclusão produtiva. Em consequência disso, embora não se possa negar que tais políticas tenham influenciado na minimização da pobreza, mantêm-se no meio rural um número significativo de famílias pobres, muitas delas constituídas por pessoas idosas e sem perspectiva de melhorar a sua situação econômica [...] (CAZELLA et al., 2016, p. 51).  

Cabe destacar a menção dos autores à ausência de contrapartidas relativas aos impactos ambientais, pois, mesmo as políticas que têm como foco a agricultura familiar não enfatizam, da forma como deveriam, a questão ambiental e não têm como prioridade a expansão da produção agroecológica.

Posto isso, para entendermos a realidade do rural brasileiro hoje e as políticas públicas voltadas para essa esfera da sociedade, precisamos retomar aspectos essenciais da formação histórica do país, a qual é marcada por uma relação de dependência em relação ao exterior e, consequentemente, de uma grave expropriação da classe trabalhadora – tanto rural quanto urbana – do país. Segundo Iamamoto, o Brasil transitou da “democracia dos oligarcas” à “democracia do grande capital” e a estrutura agrária brasileira ficou marcada por uma “herança colonial”, de forma que a produção agrícola está subordinada aos interesses da exportação e a população do campo se vê privada de uma série de direitos (Iamamoto, 2015).

Essa ilustração apontada pela autora acerca da composição histórica da realidade agrária nacional e do tratamento dado aos trabalhadores do campo visando atender prioritariamente aos interesses do capital, principalmente do capital internacional, nos ajuda a compreender o desenho das políticas públicas voltadas para a agricultura hoje.

Compreendemos que só será possível alcançar melhorias no campo a partir do momento em que as políticas públicas sejam capazes de contemplar as necessidades reais de agricultores familiares e de seus territórios, visando garantir tanto a geração de renda, quanto a preservação de agroecossistemas, mas sem aderir a uma perspectiva centrada na elevação da produtividade e no desenvolvimentismo. Para isso, defendemos que as políticas voltadas para a agricultura familiar tenham como base os princípios da Agroecologia e expressem uma preocupação em romper com o caráter assistencialista que permanece sendo uma marca dessas políticas, a partir da consolidação de estratégias de geração de renda para agricultores familiares que envolvam a garantia de alimentação saudável para as populações de baixa renda que residem nas cidades.

CO-CONSTRUÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS: INSTRUMENTOS DE INTERVENÇÃO A PARTIR DAS DEMANDAS DA SOCIEDADE

Postas essas reflexões, consideramos relevante abordar o caminho que entendemos ser necessário trilhar para que seja possível a construção de políticas públicas que conduzam a uma transformação radical na realidade social do campo brasileiro, através do incentivo à produção agroecológica. Em uma sociedade de classes, as políticas sociais apresentam um caráter contraditório pois, ao mesmo tempo em que o Estado, aliado da burguesia, busca favorecer esse setor, também se vê obrigado a atender algumas das demandas da classe trabalhadora, a fim de manter a engrenagem do sistema funcionando.

Dessa forma, apesar de os interesses do agronegócio serem privilegiados na destinação de recursos públicos para a agricultura, a arena de construção de políticas públicas é um espaço de conflitos de interesses, onde representantes de diferentes esferas da sociedade disputam a fim de garantir a defesa de seus projetos. Nesse sentido, e diante de um contexto de intensificação do neoliberalismo, de exploração exacerbada de recursos naturais e humanos e de desmobilização de mecanismos de organização popular, compreendemos ser fundamental retomar e reforçar espaços de construção coletiva, onde as populações dos territórios possam debater suas demandas e pensar em estratégias de intervenção sobre o que está posto. Ou seja, propor, coletivamente, mudanças necessárias, visando garantir condições dignas para si e para o entorno.

Joelson Ferreira, assentado da reforma agrária e ex-dirigente nacional do MST, e Erahsto Felício, professor e historiador, trazem no livro “Por Terra e Território: Caminhos para a Revolução dos Povos no Brasil” uma importante reflexão sobre a organização das comunidades em luta, que ilumina nossa reflexão sobre a necessária articulação entre campo e cidade:

[...] Há um projeto que captura indivíduos para um grupamento organizado a partir de uma concepção ideológica. Há outra perspectiva que busca se organizar desde as comunidades, povos e territórios. Ou seja, em vez de ser uma soma de indivíduos conscientes, estamos falando de uma soma de comunidades em luta (Ferreira e Felício, 2021, p. 136).

Consideramos fundamental um processo de co-construção de políticas públicas, em que a sociedade beneficiária das políticas – tanto agricultores quanto consumidores – esteja completamente envolvida nos momentos de planejamento, implementação e avaliação das políticas, de forma que a agricultura familiar não seja mais alvo do desenvolvimentismo nem do assistencialismo, mas sim protagonista de um processo de transição agroecológica em nível macro em nossas terras, que urge ocorrer.

Nesse sentido, os sistemas agroalimentares sustentáveis, aos quais já nos referimos, aparecem como alternativa de enfrentamento ao modelo hegemônico na atualidade. Para isso, se faz necessário pensar em “alianças sociais” e na “politização do consumo alimentar”, conforme nos indica o seguinte trecho:

Os sistemas agroalimentares sustentáveis representam, portanto, um paradigma emergente, no qual a sustentabilidade e a segurança alimentar são os parâmetros centrais. Desta forma, extrapolam características essencialmente ambientais para incorporarem igualmente questões fundamentais em torno da reprodução da vida humana, da qualidade de vida da população e demais questões culturais, sociais e econômicas. Nesta linha e pensando na efetivação destas iniciativas, Gonzales de Molina; López García; Guzmán Casado (2017) sugerem que se construam alianças sociais que sejam capazes de promover a mudança, algo que seria alcançado com a politização do consumo alimentar e o estabelecimento de sistemas agroalimentares locais de base agroecológica (Becker e Silva, 2021, p. 282).  

Compreendemos que existem diversos fatores que fazem com que o sistema agroalimentar convencional siga avançando. Além das políticas públicas direcionadas ao meio rural favorecerem esse setor em detrimento dos sistemas alternativos e da alta concentração de terras que caracteriza o Brasil e diversos outros países latino-americanos, há também a questão de como está organizada a cadeia de distribuição de alimentos em nosso país, que, segundo Preiss (2022), tem sido altamente concentrada, com a maioria esmagadora do varejo alimentar nas mãos dos supermercados. Apesar disso, experiências agroecológicas de produção e consumo vêm demonstrando que a relação de vínculo e confiança que se estabelece quando consumidores compram seus alimentos diretamente com agricultores vem contribuindo para uma nova configuração no abastecimento alimentar, positivo para ambos os envolvidos – produtores e consumidores.

A compreensão dos mercados como construções sociais, apontada por Schneider, Almeida e Salvate (2022), possibilita a compreensão de que a ideia de mercado imposta pelo sistema capitalista não é algo imutável e contribui para processos reflexivos que culminem com a consolidação de novas formas de troca de mercadorias, a partir de relações sociais mais solidárias do que as que têm sido vivenciadas no atual contexto. Nesse sentido, a partir da observação das experiências agroecológicas em curso, que buscam uma mudança na lógica vigente, compreendemos que os principais potenciais são as resistências promovidas por grupos de agricultores, consumidores e apoiadores que, através de uma organização política e social, persistem contra a imposição de um modo de vida que não mais se sustenta.

A (R)EXISTÊNCIA AGROECOLÓGICA NO RIO DE JANEIRO E A CONEXÃO ENTRE CAMPO E CIDADE  

Compreendemos, diante do exposto, que é necessário que ocorra um processo de consolidação da integração entre agricultores e consumidores como forma de fortalecimento à Agroecologia, ou seja, um movimento contrário ao da agricultura convencional, que, com os atravessadores, afasta os consumidores dos produtores de seus alimentos. No entanto, se faz necessário enfatizar que, hoje, o acesso a alimentos agroecológicos e orgânicos tem se tornado um privilégio para poucos. É a partir desse entendimento que fazemos a defesa das políticas públicas e de uma atuação estatal que se guie em prol da defesa da saúde e da qualidade de vida dos consumidores das classes menos abastadas e dos agricultores familiares, responsáveis pela produção de nossa comida e agentes fundamentais na defesa do meio ambiente, mas que devem ser recompensados adequadamente por estas tarefas.

Foi a partir dessa compreensão que realizamos uma entrevista com um membro representante da AARJ, a fim de investigar como tem se dado a produção e o consumo de alimentos agroecológicos no estado e de entender de que forma o Estado, em seus 3 níveis de governo, pode contribuir para a expansão da produção agroecológica. Vale destacar que o objetivo central da pesquisa foi o de buscar compreender como tem se desenvolvido a Agroecologia no estado do Rio de Janeiro, apesar de em alguns momentos o entrevistado se referir ao município. O nome do representante da AARJ não será mencionado neste artigo a fim de salvaguardar o sigilo de suas informações.

Quando perguntado sobre os elementos dificultadores para a expansão da Agroecologia no estado do Rio de Janeiro, o entrevistado mencionou o fato do Rio ser o estado mais urbanizado do país7 e atentou para o fato de que, como a cidade do Rio foi capital do país, o estado sofreu muito com o processo de urbanização acelerada, o que é prejudicial para a agricultura. Esse destacou também o avanço do agronegócio e da revolução verde na região como elementos prejudiciais. No entanto, destacou a história de tradicionalidade da agricultura no estado que, segundo ele, se manteve nas comunidades caiçaras, quilombolas e indígenas. Reforçou que, apesar do alto grau de urbanização, a agricultura existe no estado e que há “tradicionalidades que mantém resistências” (Entrevista com representante da AARJ, 2022). Ainda nas palavras do entrevistado:

Você... é... promover a agroecologia do estado significa você ir ao encontro dessas resistências. Encontrar quem são os camponeses, quem são as camponesas, como eles estão fazendo... (...). Então, ir ao encontro disso e estimular, né, estimular práticas agroecológicas, estimular, né... economias mais, é... solidárias, sustentáveis, ecológicas, né... quer dizer, fazer isso é o caminho pra você ir incentivando essa agricultura (Entrevista com representante da AARJ, 2022).

Ainda em relação aos desafios, destacou que não há políticas públicas fortes a nível estadual de incentivo à agricultura familiar e que há burocracias que dificultam o acesso de agricultores familiares às políticas existentes, ao mesmo tempo em que há estímulos para a produção de estruturas convencionais. Afirmou que as políticas públicas não são muito adequadas. Já quando perguntamos sobre os elementos facilitadores para a expansão da Agroecologia no estado, o entrevistado trouxe a seguinte fala, que inspirou o título deste tópico:

[...] Porque assim, os elementos facilitadores são justamente a existência, a resistência, né? Que ainda tem. [...] É... então eu diria que o maior potencial, né? Tá nas pessoas, tá na resistência das pessoas, pessoas no território... lutando pra sobreviver, né? Esse é o maior potencial, tá? (Entrevista com representante da AARJ, 2022).

Ressaltou também que há potenciais institucionais instalados no estado que dão suporte à Agroecologia, como a própria AARJ e universidades que apoiam a produção agroecológica no estado, além das hortas urbanas. Potenciais estes que, segundo ele, devem ser aproveitados.

Perguntamos ao entrevistado quem são os principais consumidores de alimentos agroecológicos no Rio de Janeiro e ele informou que há um circuito carioca de feiras orgânicas com mais de 20 feiras e que este circuito está mais localizado na Zona Sul da cidade do Rio, área mais elitizada da região. Este fator nos ajuda a identificar quem compõe o principal público consumidor de orgânicos e agroecológicos, ou seja, pessoas que possuem uma condição de classe que as permite escolher o que irão consumir, o que vai ao encontro da afirmativa que realizamos no início deste tópico sobre produtos agroecológicos estarem, infelizmente, se tornado um privilégio para poucos. No entanto, o entrevistado destacou também que há uma mobilização institucional, que ocorre principalmente nas universidades, que busca construir feiras com o objetivo de que os produtos orgânicos e agroecológicos alcancem as periferias. Reforçamos a relevância de que ações como essa sejam realizadas por universidades públicas e chamamos atenção para a necessidade de que o poder público dê visibilidade e assuma um compromisso para com esse tipo de mobilização.

Sobre a diferença da relação de consumo estabelecida nos supermercados e nas feiras, vale destacar a seguinte colocação do entrevistado:

É... Você tem supermercados, por exemplo, tentando fazer a leitura de campo do consumidor, fazendo a leitura de... da disponibilidade, né? Você tem... você tem supermercados vendendo produtos orgânicos, embalados, né... que muitas vezes vem de fora do estado do Rio de Janeiro, tá? Então normalmente são supermercados que vendem preços altos né? Supermercados da Zona Sul, supermercados mais de elite... que vendem produtos orgânicos certificados, sem uma relação estabelecida direta entre o produtor e o consumidor. Na feira você tem a relação direta, mas no supermercado não. Você tá mediado pela instituição de supermercado e pela embalagem do produto, né? (Entrevista com representante da AARJ, 2022).

Outro ponto relevante da fala do entrevistado, sobre esse tópico, e que merece destaque, é o fato de que há produtores agroecológicos que vendem sua produção em feiras convencionais sem divulgar que seus alimentos são orgânicos. Ressalta-se ainda que ele destacou a importância do avanço do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) para que alimentos da agricultura familiar, alguns deles orgânicos e agroecológicos, cheguem às merendas escolares.

Questionamos ao entrevistado como ele vê a atuação do Estado em relação à Agroecologia e se ele considera que, em seus 3 níveis de governo, o Estado é um facilitador ou dificultador da Agroecologia. Em relação ao nível municipal, o entrevistado abordou que há particularidades em cada município e que alguns realizam iniciativas interessantes de distribuição de mudas e insumos orgânicos. Já em relação ao nível estadual, apontou que o governo do Rio de Janeiro tem empresas públicas que têm iniciativas interessantes, porém enfraquecidas. Destacou também que o Rio de Janeiro possui uma política estadual de Agroecologia e de produção orgânica, criada na esteira da construção de uma política nacional em governos anteriores, porém esta política estadual não possui orçamento:

Então, você tem uma política, mas não tem dinheiro. Você não faz nada, né? Então, é... eu tô te mostrando, assim, que tem coisas interessantes, tem potenciais, e ao mesmo tempo tem uma certa inércia (Entrevista com representante da AARJ, 2022).

Já em relação ao nível federal, relatou que desde o impeachment da presidenta Dilma Roussef em 2016, há um grande desmonte de políticas sociais como um todo, não apenas no campo da agricultura, trazendo prejuízos para o campo da soberania e segurança alimentar. Indagamos, então, ao entrevistado, o que ele considerava que poderia ser feito pelas 3 esferas de governo para incentivar a produção e o consumo de alimentos agroecológicos. Ele destacou que o Brasil, quando construiu políticas de abastecimento e segurança alimentar vinculadas à produção da agricultura familiar e estimulando a Agroecologia, se tornou modelo para outros países, então não seria necessário partir do zero pois há referências no próprio país e elementos a serem resgatados, colocados em prática. Outro ponto fundamental destacado pelo entrevistado foi a questão referente à política, que essa dever ser construída de forma participativa e da necessidade de estabelecimento de diálogo entre o Estado e a sociedade civil:

[...] eu acho que é uma virtude muito grande, é... quando você consegue ter um Estado que dialoga com a sociedade civil, né? Na construção, na implementação, no monitoramento das políticas... e cria programas [...] construir uma política participativa, pra além do Estado, pra isso, pra importância de você construir políticas, mas não só boas políticas de gabinete, mas boas políticas que sejam dialogadas, né? E construídas junto com o público [...] (Entrevista com representante da AARJ, 2022).

Quando inquirimos o entrevistado sobre como ele avalia as experiências agroecológicas existentes no estado do Rio de Janeiro, ele destacou a realização de feiras em diversos municípios, para além da capital, como um ponto positivo. Deu destaque também às experiências de agricultura urbana no estado e a presença de Agroecologia nas favelas. Reforçou que há muitas experiências interessantes no estado no campo da produção agrícola, mas também no campo da relação de produção e consumo.

Sobre a relação campo-cidade no estado e a influência da Agroecologia nessa relação, o entrevistado destacou que há um grupo de consumidores conscientes que se preocupam com os produtores e se aproximam deles. Ele diz que esses consumidores, além de quererem consumir um produto sem contaminação, querem também incentivar a produção e beneficiar os agricultores. Relatou experiências solidárias entre consumidores e agricultores que nos fizeram refletir sobre como essa aproximação é fundamental para o fortalecimento da Agroecologia. Abordou ainda que o estado do Rio tem um potencial muito pouco explorado, referindo-se ao turismo rural, e criticou a forma como ocorre a cisão entre áreas urbanas e rurais nos planos diretores dos municípios, pois isso faz com que muitas áreas com traços rurais sejam consideradas urbanas, intensificando o processo de urbanização e não promovendo interação entre rural e urbano.

 

CONCLUSÕES

As informações primárias obtidas com o representante da AARJ, juntamente ao levantamento bibliográfico realizado, reforçam a nossa compreensão sobre o espaço de centralidade que a Agroecologia deve assumir no processo de construção de novas relações sociais, e na aproximação entre os atores que produzem e os que consomem os gêneros alimentícios. Nos traz também o entendimento de que o fortalecimento a esse modo de vida e produção é o que pode proporcionar mais saúde para todos os envolvidos.

No entanto, a pesquisa também nos mostra que iniciativas de grupos isolados para levar alimentos agroecológicos para as cidades, sem apoio estatal, apesar de serem relevantes, não são capazes de alcançar todas as pessoas e regiões. Nesse sentido, enfatizamos o papel do Estado, enquanto responsável por prover e garantir direitos sociais – dentre os quais destacamos a soberania e segurança alimentar e o direito humano à alimentação adequada – e de fortalecer a Agroecologia. Para isso, vislumbramos medidas que vão desde a promoção de feiras agroecológicas nos mais diversos locais das cidades e da expansão de mercados institucionais, até uma mudança radical na estrutura das políticas públicas voltadas para a agricultura, visando romper com o favorecimento ao agronegócio e à agricultura convencional e incentivar, de diversas maneiras, a produção e o consumo de alimentos agroecológicos.

Apesar de conferirmos ao Estado o papel de centralidade na universalização da Agroecologia, compreendemos também que essa, enquanto modo de vida e produção contra hegemônico, jamais se concretizará na sociedade do capital. Nesse sentido, destacamos a importância da mobilização popular, que deve se organizar politicamente para reclamar que as medidas mencionadas sejam efetivadas, a fim de garantir, não apenas a saúde humana, mas também a da natureza que nos cerca. No entanto, vamos além e vislumbramos no horizonte que esse processo de organização da sociedade civil e de lutas sociais culmine na construção de uma nova ordem societária, capaz de superar as diversas formas de monocultura impostas pelo capital e pela colonialidade.

AGRADECIMENTO

Agradecemos à Articulação de Agroecologia do Rio de Janeiro pela disponibilidade e pelas fundamentais contribuições no desenvolvimento desta pesquisa e aos docentes do curso de Especialização Binacional em Agroecologia, promovido pela Universidade Estadual do Rio Grande do Sul em parceria com a Universidad de la Republica Uruguay por terem proporcionado um espaço de trocas e aprendizados tão ricos.

 

Copyright (©) 2023 Cláudio Becker, Raphaela Pimentel Ximenes.

 

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1Cabe destacar que alimentos agroecológicos não são sinônimos de alimentos orgânicos, apesar de algumas similaridades entre ambos. Enquanto os alimentos orgânicos são aqueles produzidos sem o uso de agrotóxicos e transgênicos, os alimentos agroecológicos, para além disso, são produzidos com base nos princípios da Agroecologia. Nesse sentido, a produção de alimentos agroecológicos expressa uma preocupação não apenas com a saúde do consumidor final, mas também com questões sociais e ambientais que perpassam a cadeia alimentar. Envolve, portanto, uma preocupação com todo os sujeitos ativos do processo de produção e consumo – agricultores, consumidores, meio ambiente, etc. É nessa perspectiva que a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) desenvolveu bandeiras de luta como “Se tem racismo não tem Agroecologia” e “Sem feminismo não há Agroecologia” (Disponível em: https://agroecologia.org.br/2019/05/29/artes-bandeirolas-de-luta-iv-ena/), pois os princípios que norteiam a produção agroecológica compreendem que, para além da não utilização de agrotóxicos e transgênicos, há outros fatores que devem ser contemplados na construção de uma alimentação saudável e sustentável.

2Exemplos de estudos recentes que sistematizam de forma bastante completa a situação da insegurança alimentar no Brasil no período recente são as duas edições do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil (VIGISAN e II VIGISAN), elaboradas pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN). Disponíveis em: https://olheparaafome.com.br/.

3 Consultar Behring, Cislaghi e Souza (2020).

4Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-detalhe-de-midia.html?view=mediaibge&catid=2104&id=2087

5De acordo com o II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, “Em seu conjunto, e como reflexo de um abismo social que se amplia, enquanto 41,3% da população brasileira dispõem de mecanismos de defesa da renda e preservação do poder de compra, quase 60,0% das famílias se veem desprotegidas e incapacitadas” (Rede PENSSAN, 2022, p. 85).

6De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), quase 80% da população brasileira que depende do SUS se autodeclara negra, apesar de a população negra constituir 56% do total da população brasileira. Fonte: https://www.geledes.org.br/quase-80-da-populacao-brasileira-que-depende-do-sus-se-autodeclara-negra/.

7Verificamos que o Rio de Janeiro foi o estado mais urbanizado do país à época da coleta do Censo do IBGE de 2010, com um grau de 96,7% de urbanização. No entanto, na atualidade o estado mais urbanizado é São Paulo, seguido pelo estado do Rio de Janeiro, conforme pode ser verificado no estudo do IBGE intitulado Áreas Urbanizadas do Brasil (2009), disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-detalhe-de-midia.html?view=mediaibge&catid=2104&id=2087.

i 

Revista Brasileira de Agroecologia
ISSN 1980-9735

Publicação da Associação Brasileira de Agroecologia - ABA-Agroecologia em cooperação com o Programa de Pós-Graduação em Meio Ambiente e Desenvolvimento Rural - PPG-Mader, da Universidade de Brasília – UnB

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