i

 

Brasília, v. 18, n. 6, p. 741-759, 2023

https://doi.org/10.33240/rba.v18i6.51219

Como citar: FERNANDES, Gabriel et al. Controvérsias no pão nosso de cada dia. Revista Brasileira de Agroecologia, v. 18, n. 6, p. 741-759, 2023.  DOI: https://doi.org/10.33240/rba.v18i6.51219

Controvérsias no pão nosso de cada dia

 

Controversies in our daily bread

 

Gabriel Bianconi Fernandes¹, Rubens Onofre Nodari2, Leonardo Melgarejo3, Fernando Frank4

 

1Assessor técnico. Centro de Tecnologias Alternativas da Zona da Mata. Doutor em História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Viçosa, Brasil. Orcid 0000-0002-1135-7414 e e-mail gabriel@ctazm.org.br

2Docente no Programa de Pós-Graduação em Recursos Genéticos Vegetais da Universidade Federal de Santa Catarina. Doutor em Genética pela Universidade da Califórnia, Davis. Florianópolis, Brasil. Orcid 0000-0002-8884-2426 e e-mail rubens.nodari@ufsc.br

3Pesquisador independente. Doutor em Engenharia de Produção pelo Programa de Pós-Graduação em Engenharia de Produção da Universidade Federal de Santa Catarina. Porto Alegre, Brasil. Orcid 0000-0002-3680-7792 e e-mail melgarejo.leonardo@gmail.com

4Assessor técnico, Subsecretaría de Agricultura Familiar, Campesina e Indígena. Buenos Aires, Argentina. Orcid 0000-0003-2999-6393 e e-mail fernando.frank80@gmail.com

 

Submetido em 05 jan. 2023. Aceito em 17 out. 2023

 

Resumo

O artigo resume e referencia argumentos sustentados por organizações da sociedade civil, pesquisadores e representantes da indústria de moagem de trigo quanto às fragilidades da fundamentação cientifica, técnica, ética e moral do processo que liberou a importação e o consumo de trigo geneticamente modificado. Para tanto, examina o pedido de liberação comercial do produto proveniente da Argentina. Considera singularidades como o condicionamento da decisão para o cultivo e para o consumo naquele país à deliberação positiva por parte do órgão regulador brasileiro, bem como alterações genéticas não explicadas, dados sobre produtividade, omissões relativas a impactos sobre a saúde e o ambiente, além da condução inadequada de audiência pública. Conclui-se que o trigo HB4 não teria sido aprovado para produção e consumo se seu processo de avaliação prévia de riscos tivesse sido orientado pelo princípio da precaução, transparência e participação popular.

Palavras-chave: Trigo transgênico, HB4, Biossegurança, CTNBio, Princípio da precaução.

 

Abstract

The article summarizes and references civil society organizations, researchers and representatives of the wheat milling industry claims regarding the fragilities of the scientific, technical, ethical and moral basis of the process that liberated the importation and consumption of genetically modified wheat. To this end, it examines the application for commercial release of the product from Argentina. We consider singularities such as the conditioning of the decision for cultivation and consumption in that country to the positive deliberation by the Brazilian regulatory agency, as well as unexplained genetic alterations, yield data, omissions regarding health and environmental impacts, besides the inadequate conduction of a public hearing. We conclude that HB4 wheat would not have been approved if its prior risk assessment process had been guided by the precautionary principle, transparency, and popular participation.

Keywords: GM Wheat, HB4, Biosafety, CTNBio, Precautionary principle.

 

INTRODUÇÃO       

O trigo é responsável pelo fornecimento diário de mais calorias na dieta do brasileiro do que o arroz, o milho ou a mandioca. Segundo dados da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), de 2018, esses valores são de 397 (kcal/capita/dia) para o trigo, 322 para o arroz, 244 para o milho e 72 para a mandioca (FAO, 2022). O Brasil produz cerca de metade do trigo que consome (CONAB, 2022). A outra metade é importada, sendo que 88,7% desse volume vem da Argentina (ABITRIGO, 2021). Esses dados ajudam a dimensionar a importância que uma mudança na natureza desse grão pode representar para o conjunto da população brasileira. Tal questão vem à tona diante da decisão de o Brasil passar a importar trigo transgênico da Argentina, e também de produzi-lo em solo nacional. Trata-se de uma variedade não cultivada em nenhum outro país (ISAAA, 2022). Além disso, este é o primeiro caso de que se tem notícia no mundo de liberação, para produção comercial, de um produto geneticamente modificado num país, no caso a Argentina (Argentina, 2020), condicionada à aprovação do órgão regulador de um país importador, no caso a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança – CTNBio, no Brasil (Bertello, 2020).

A nova semente foi desenvolvida por pesquisadores argentinos do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (Conicet) e será comercializada pela empresa argentina Bioceres. A promessa é gerar plantas transgênicas tolerantes à seca (Bioceres, 2022a). O pedido protocolado na CTNBio pela Tropical Melhoramento e Genética (TMG), empresa brasileira que firmou parceria com a Bioceres, visa à “liberação comercial do evento de trigo geneticamente modificado INDØØ412-7 e seus derivados, para uso exclusivo em alimentos, rações ou produtos derivados” (Processo CTNBio nº. 01250.014650/2019-71). A CTNBio descreve a nova variedade como modificada para promover o “aumento de produtividade em situações e ambientes de baixa disponibilidade hídrica e resistente ao glufosinato” (CTNBio, 2021). Trata-se, portanto, de uma planta que recebeu duas características por meio de técnicas de DNA recombinante, – também referida como engenharia genética –, sendo estas: a tolerância à seca e a resistência a herbicidas à base de glufosinato de amônio (Argentina, 2020). Na Argentina, quase todas as culturas alimentares presentes na diversidade dos territórios (campo-cidade, norte-sul) incluem os derivados do trigo no consumo diário dos habitantes. Diante de uma crise que reflete nos preços dos alimentos, como a vivida atualmente, há um processo de substituição alimentar, principalmente nas classes mais baixas. Este processo se traduz em uma migração em direção aos carboidratos (principalmente os derivados do trigo) como base da dieta, substituindo frutas, vegetais, legumes, produtos lácteos e carne.

As seções seguintes deste texto discutem brevemente: i) as informações falsas apresentadas em audiência pública; ii) os riscos associados ao glufosinato de amônio; iii) as incertezas relacionadas ao processo de transformação genética, ao cultivo e ao uso do trigo HB4; e iv) a resistência por parte de diferentes setores da sociedade, incluindo consumidores, moinhos, indústria de panificados e pesquisadores. A última seção apresenta as considerações finais.

PARTICIPAÇÃO E TRANSPARÊNCIA EM PROCESSOS PÚBLICOS DE DECISÃO

A CTNBio realizou, em 22 de outubro de 2020, uma audiência pública virtual com os objetivos de

obter subsídios e informações adicionais sobre a solicitação de liberação comercial de trigo geneticamente modificado para o consumo humano e animal e sobre o eventual cultivo de trigo geneticamente modificado no país (grifo adicionado); propiciar aos interessados e à sociedade civil a possibilidade de encaminhamento de opiniões; identificar, da forma mais ampla possível, todos os aspectos relevantes da matéria objeto da audiência pública; e dar publicidade, transparência e legitimidade as ações da CTNBio (CTNBio, 2020b).

Dias após a audiência, o órgão divulgou uma nota destacando que

as informações colhidas na audiência pública serão consideradas durante o processo de avaliação da segurança da farinha derivada do trigo HB4 para seres humanos, animais e ao meio ambiente (grifo adicionado) (CTNBio, 2020c).

As informações divulgadas pelo órgão regulador brasileiro deixam margem quanto à extensão do pedido em questão, se este está restrito à importação de farinha, ou se já inclui uma eventual liberação para plantio no Brasil. Um ex-integrante da Comissão, que participou da audiência e tinha apenas 3 minutos para exposição, mas estendeu sua fala durante 7 minutos (CTNBio, 2020d), declarou que o dossiê apresentado pela empresa “é o mais pobre em quantidade e qualidade de estudos relacionados a avaliação de risco que ele já viu nos seus seis anos de casa” (Gama, 2021).

A informação mais controversa da audiência veio, no entanto, do representante da empresa interessada. Quando questionado sobre o uso do herbicida glufosinato no trigo HB4, o representante da TMG assegurou que “o glufosinato de amônio não é autorizado para uso no trigo na Argentina” – fato desmentido com uma simples busca na internet (Argentina, 2023) – e que que o herbicida “não ocorrerá no trigo HB4” dado que “a presença do gene do glufosinato não significa que a planta apresenta tolerância” (CTNBio, 2020a, l. 82 190). Cabe ainda destacar que a liberação do consumo do trigo foi avaliada sem que a CTNBio tivesse indicado os especialistas na área de defesa do consumidor previstos por lei em sua composição (Brasil, 2005, arts. 11, III) (ver a Figura 1). O vídeo da audiência pública foi retirado do ar (Audiência Pública, 2020).

Figura 1. Vacância das representações de especialistas em Defesa do Consumidor na composição da CTNBio. Fonte: CTNBio (2022).

 

RISCOS ASSOCIADOS AO HERBICIDA GLUFOSINATO DE AMÔNIO

O glufosinato é um herbicida de amplo espectro, reconhecido como neurotóxico (Peltzer et al., 2013), genotóxico (Lajmanovich et al., 2014) e conhecido por ter impactos relevantes sobre o sistema reprodutivo (Lewis et al., 2016), o que significa que este afeta os processos de divisão celular, com a possibilidade de impactar no desenvolvimento de todos os sistemas orgânicos, incluindo os aspectos reprodutivos e a transmissão de características hereditárias. Por esse motivo seu uso foi banido na Europa em 2009 (Oliveira, 2020a, 2020b). A Bioceres recomenda uma aplicação de 2,0 l/ha de glufosinato (Bioceres, 2022b), desmentindo a informação apresentada por seu representante em audiência pública.

A experiência com o milho e a soja geneticamente modificados e resistentes a herbicidas à base de glifosato ensina que a Anvisa ampliou o limite máximo de resíduos do produto em 10 vezes no caso do milho (Brasil, 2004) e 50 vezes no caso da soja (Brasil, 2010) e que a adoção dessas sementes levou a um maior uso de herbicidas à base de glifosato (Almeida et al., 2017; Binimelis et al., 2009; Bøhn; Millstone, 2019; Krimsky, 2021; Price et al., 2011). Desse modo não há porque esperar resultados diferentes para o trigo, o qual segue o mesmo padrão tecnológico.

TRIGO HB4 E PRODUTIVIDADE

A empresa Bioceres informou em peças publicitárias e nos documentos apresentados aos órgãos reguladores argentinos que a sua variedade de trigo HB4 apresenta rendimentos superiores às demais variedades de trigo, tendo como referência diferentes regiões produtivas do país. O parecer da CONABIA toma como referência dados fornecidos pela empresa, que declara aumentos de rendimento de 16 e 17% em locais com déficit hídrico (González et al., 2019, 2020).  Na Tabela 1 apresentamos os dados do relatório oficial do INASE referentes ao monitoramento dos 53.000 ha semeados com o trigo GM, comparados com os dados médios de produção de trigo do banco de dados do Ministério da Agricultura, Pecuária e Pesca.

Tabela 1. Dados por província em ordem de superfície cultivada, Argentina, 2021.

Província

Área HB4 (ha)

Colheita (t.)

Rendimento HB4 (t./ha)

Rendimento médio 2011-12/2021-22 (t./ha)

Diferença de rendimento (%)

Rendimento total (TC+HB4) (2021)

Diferença de rendimento (%) versus HB4

Buenos Aires

25.124

65.640

2,61

3,57

- 27%

3.81

-  31,5%

Córdoba

7.705

22.398

2,91

2,77

+ 5%

3.47

- 16,1%

Santiago del Estero

7.119

10.687

1,5

1,8

- 17%

1.5

igual

La Pampa

4.366

9.966

2,28

2,27

+ 0,4%

2.58

- 11,6 %

Santa Fe

4.023

8.320

2,07

2,24

- 7,6%

3.91

- 47%

Chaco

2.340

2.584

1,1

1,3

- 15,4%

1.08

+ 1,8%

Entre Ríos

1.377

3.517

2,55

3,03

- 15,9%

3.36

- 24,1%

San Luís

352

475

1,35

2,52

- 46,4%

2.89

- 53,3%

Salta

304

158

0,52

1,39

- 63%

1.1

- 52,7%

Catamarca

100

56

0.56

1,24

- 44%

1.2

- 64%

Tucumán

100

94

0.94

1,04

- 9%

0.76

+ 18%

Río Negro

49

293

5,98

S/D

S/D

S/D

S/D

Total (País)

52.959

124.188

2,35

2,82

- 17

3,38

- 30,4

Fonte: Elaboração dos autores com dados de Ministerio de Agricultura, Ganadería y Pesca (2022a, 2022b).

Os dados da Tabela 1 revelam que o trigo HB4 não apresentou um rendimento mais elevado comparado à média nacional. Pelo contrário, este rendeu 17% menos quando comparado ao total nacional. Das 12 províncias argentinas avaliadas, somente em duas (Córdoba e La Pampa) o trigo HB4 produziu acima das médias, mesmo assim com um diferencial de rendimento menor do que o anunciado pela empresa Bioceres, sendo estes de 5% e 0,4%, respectivamente. Em 9 províncias o rendimento foi menor, fato não informado pela empresa às autoridades reguladoras, nem nos trabalhos científicos. As diferenças no rendimento em relação à média variaram entre 7,6% e 63%. As áreas cultivadas sob o sistema de contrato, pesquisado pelo INASE, provavelmente recebem maior controle de pragas, de plantas espontâneas e de doenças do que média do trigo no país. Em alguns casos, provavelmente, também foram aplicados mais fertilizantes. De qualquer forma, os rendimentos foram significativamente inferiores à média do trigo no país. A conclusão a que se chega é que o aumento do rendimento da variedade HB4, – a principal vantagem anunciada pela Bioceres –, não foi comprovado a campo. Analisaremos a seguir os dados relacionados a seca para observar de que forma o trigo HB4 se comportou sob condições de estresse hídrico.

A “Mesa Nacional de Monitoreo de Sequías” é parte da “Red de Organismos Científico Técnicos para la Gestión del Riesgo de Desastres” (Red GIRCyT) e publica relatórios mensais, de cobertura nacional, sobre a situação da seca. Os dados referentes ao ano de 2021 fazem menção a períodos de seca durante o ciclo de crescimento do trigo (Ministério de Economía, 2022). É importante destacar que as referências sobre a seca são de escala sub-provincial, dado que as principais províncias produtoras têm climas diversos. Dessa forma, não se pode comparar província por província ou região por região, uma vez que os dados disponíveis sobre o rendimento do trigo HB4 estão no nível provincial. Há registro de “escassez de água para atender à demanda” do trigo na região central de Santa Fé para o mês de setembro. Como indicado na Tabela 1, o rendimento do trigo HB4 em Santa Fé foi 7,6% menor do que o rendimento médio da província. Em outubro, “a produção de trigo foi afetada no Chaco, Santiago del Estero, Tucumán e norte de Santa Fé”, assim como houve “redução da produção de trigo” na Região NOA (noroeste da Argentina). Para o Chaco, como visto acima, o rendimento do trigo HB4 foi 15,4% menor do que a média de referência. Em Santiago del Estero, o trigo HB4 rendeu 17% menos e, em Tucumán, 9% menos. O relatório de novembro menciona os efeitos da seca sobre o “rendimento do trigo no Chaco, leste de Santiago del Estero, norte de Santa Fé e sul de Buenos Aires”. Como visto, o rendimento do trigo HB4 no Chaco, Santiago del Estero e Santa Fe, foi inferior à média de referência. Em Buenos Aires, onde foram plantados 25.000 ha de trigo HB4 em 2021, os rendimentos foram 27% inferiores aos valores médios tomados como referência. Em dezembro de 2021 é novamente mencionada a ocorrência de seca que afetou a produção de trigo na região noroeste do país. O trigo na Argentina enfrentou períodos de seca durante a safra de 2021 nas regiões mencionadas. Nessas condições, o trigo HB4 não expressou aumento na produtividade, sendo que seu rendimento foi significativamente menor do que as médias de referência retiradas dos dados oficiais. A tolerância à seca, anunciada pela Bioceres e endossada por funcionários das agências reguladoras, não foi expressa no campo.

INCERTEZAS DO PROCESSO DE TRANSFORMAÇÃO GENÉTICA DO TRIGO HB4

O conteúdo do dossiê disponibilizado na data da audiência pública de 22/10/2020 (Tropical Melhoramento e Genética S/A, 2019) não contém a avaliação de risco necessária para a tomada de decisão, conforme previsto na Lei no 11.105/2005 e no Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança, do qual o Brasil é signatário. Dentre as fragilidades científicas críticas que causam incertezas, cabe destacar:

(a) Além dos dois genes de interesse comercial, o HaHB4 (2.778 pb) e o bar (2.843 pb), inseridos para promover a resistência à seca e a herbicidas à base de glufosinato de amônio, foram inseridos mais de 62.000 pares de base (pb). Os rearranjos genômicos são grandes, pois estes são dois insertos que contêm, além das duas sequências de interesse comercial, dezenas de outras, às vezes intactas, às vezes fragmentadas, às vezes em uma orientação, outras vezes na orientação invertida, que poderão ser transcritas e produzir peptídeos, cujas funções e efeitos são desconhecidos. Uma bagunça molecular que, na ausência de estudos de proteômica e metabolômica, – os quais seriam imprescindíveis para diminuir ou eliminar incertezas –, não há como prever o que pode acontecer nas células do trigo HB4. Outras sequências, de antemão, deveriam ser evitadas, como o CDS bla, da bactéria Escherichia coli, que codifica para 8-lactamase, um antibiótico; o T35S CaMV, terminador da transcrição do vírus do mosaico da couve-flor; e o prGbl1-1, um promotor de globulina 7S de trigo, entre outras;

(b) O gene HaHB4 também afeta a expressão de fitormônios (p. ex.: jasmonatos e etileno) durante as respostas de estresse biótico e danos mecânicos, que em Arabidopsis pode facilitar os danos causados por insetos herbívoros (Rehrig et al., 2014). Este fato, evidenciado em Arabidopsis, poderia ocorrer no trigo HB4? Se sim, traria prejuízo aos produtores tanto pelo uso de agrotóxicos como pela diminuição da produtividade?;

(c) A alergenicidade não foi devidamente estudada. A comparação in silico (de aminoácidos previstos pela sequência dos insertos) com proteínas alergênicas não é suficiente para garantir que não haverá um aumento da alergenicidade desencadeada pelo consumo do trigo HB4, comparativamente ao trigo não transgênico, o que requer estudos experimentais, ausentes no dossiê do trigo HB4;

(d) A ausência de estudos de toxicidade crônica na alimentação de animais é também imprescindível para a tomada de decisão. No referido dossiê constam dois estudos para avaliar efeitos agudos: um de 14 dias com ratos, mas sem a análise microscópica dos órgãos internos, e outro de 42 dias com aves. Nenhum deles informa sobre o risco continuado em animais alimentados por períodos médios ou longos. Além disso, em ambos os estudos, os grãos de trigo utilizados não foram expostos a herbicidas à base de glufosinato de amônio, o que deverá ocorrer no campo. Desta forma, estes dois estudos não indicam o que poderá ocorrer nos animais, nem em humanos, com o uso da farinha do trigo HB4 quando na produção comercial desta houver uso de herbicidas;

(e) A ausência de estudos sobre o fluxo gênico, via polinização cruzada e via mistura de grãos na cadeia produtiva. É importante lembrar que, tanto a soja quanto o trigo são plantas de autofecundação em que ocorre autopolinização na maior parte das flores. No entanto, além de uma baixa taxa de fecundação cruzada, pode ocorrer a mistura sementes, o que é a segunda maneira de ocorrência do fluxo gênico. Não se pode descartar a priori que o que ocorreu com a soja Roundup Ready há pouco mais de 20 anos não poderá ocorrer agora com o trigo HB4 pois, em poucos anos, variedades brasileiras de soja estavam contaminadas por variedades de soja transgênicas argentinas que chegaram ao país sem autorização;

(f) O dossiê é completamente omisso sobre os efeitos dos herbicidas à base de glufosinato de amônio. Este fato é de extrema gravidade, pois tais herbicidas são cientificamente comprovados de causarem neurotoxicidade e genotoxicidade, entre outros danos (Lajmanovich et al., 2014; Mao et al., 2011; Peltzer et al., 2013); e

(g) A ausência de um plano de monitoramento no Brasil impede qualquer iniciativa de biovigilância pelas autoridades sanitárias nos casos de agravo à saúde ou mesmo de contaminações genéticas.

O fato de a Resolução Normativa no 5 da CTNBio, de 2008, ter sido alterada e revogada durante a tramitação do processo do trigo INDØØ412-7, dando lugar à Resolução Normativa no 24, em janeiro de 2020, além de intrigante, contribui para o aumento das incertezas sobre os possíveis riscos do referido trigo, já que a mudança de norma eliminou vários estudos que, até então, eram requeridos. Como exemplos disso, pode-se citar que, na Resolução Normativa CTNBio no 5, o proponente da tecnologia deveria informar sobre:

as alterações relativas ao desempenho do animal, quando alimentado com organismos geneticamente modificados ou qualquer de suas partes, in natura ou após processamento, fornecendo, inclusive, os resultados da avaliação da nutrição em animais experimentais por duas gerações, indicando as espécies utilizadas nos testes, duração dos experimentos, variações fisiológicas e morfológicas observadas em relação aos grupos-controle e alteração da qualidade nutricional, se houver (Resolução Normativa CTNBio no 5, Anexo III-A4);

e, “os possíveis efeitos deletérios do OGM [Organismo Geneticamente Modificado] em animais prenhes e seu potencial teratogênico” (Resolução Normativa CTNBio no 5, Anexo III-A6).

A falta de compromisso com o rigor científico, especialmente com a saúde dos consumidores e com os impactos ambientais, além de ser cristalina no dossiê apresentado, também foi transparecida por Federico Trucco, diretor da Bioceres, empresa que comercializa o trigo IND-ØØ412-7, em uma entrevista na qual afirmou que “as questões de segurança ambiental e saúde humana não estão em discussão [...] Nesse caso, é uma tecnologia de segunda geração que tem a ver com o uso eficiente da água”, disse (AFP, 2020).

 

RISCOS ASSOCIADOS AO PACOTE TECNOLÓGICO: PLANTIO DIRETO, TRANSGÊNICOS E HERBICIDAS

O pacote tecnológico do plantio direto à base das monoculturas transgênicas e agrotóxicos (principalmente herbicidas) no Cone Sul, foi apresentado pela indústria como uma estratégia para reduzir o uso de pesticidas (Catacora-Vargas et al., 2012; Manzur; Cárcamo, 2014; Vicente et al., 2020). Pelo contrário, na Argentina, o pacote tecnológico é diretamente responsável pelo crescimento contínuo da liberação de agrotóxicos nas áreas rurais (Binimelis et al., 2009; Pengue, 2005).

Na Argentina, onde há registros oficiais referentes às quantidades de agrotóxicos aplicados, uma análise das declarações de faturamento das empresas do setor revela que em 2018 foram aplicados mais de 525 milhões de litros/kg (Cabaleiro, 2019). No Brasil, o uso de agrotóxicos aumentou 1,6 vezes entre 2000 e 2012, sendo três vezes no cultivo de soja, devido à adoção de transgênicos (Almeida et al., 2017). Esse quadro foi agravado nos anos seguintes em decorrência da flexibilização das regulações sobre esses insumos e do desmanche da legislação ambiental (Souza et al., 2020; Petry et al., 2020; Hess et al., 2021).

O aumento do uso de herbicidas se deve, principalmente, ao desenvolvimento de resistência ao glifosato, e a outros ingredientes ativos de herbicidas, em plantas espontâneas (Heap, 2020). O aumento do número de casos de plantas resistentes pode levar ao declínio do plantio direto, caso não sejam desenvolvidas outras estratégias de controle da vegetação espontânea (Price et al., 2011). A popularização do sistema RR deve levar ao surgimento de outros biotipos ou espécies resistentes, podendo colocar em risco o próprio sistema de cultivo. A menção do trigo HB4 no discurso oficial, corporativo e na imprensa hegemônica deixa, sistematicamente, de mencionar que se trata de um transgênico resistente a um herbicida, o glufosinato de amônio. Nestes discursos, repete-se que a resistência ao glufosinato de amônio é um resíduo do processo de desenvolvimento do transgênico, pois é um marcador de seleção.

Lê-se na decisão técnica da CONABIA que “a estabilidade fenotípica de tolerância ao herbicida glufosinato de amônio foi evidenciada em ensaios de dose resposta nas gerações T7, T8 y T9” (tradução livre). A afirmação deixa explícito o objetivo da empresa de usar em campo a tecnologia de tolerância ao herbicida (CONABIA, [s. d.]).

A empresa Bioceres divulgou em junho, juntamente com os contratos do pacote “Generación HB4”, a venda do herbicida e promoveu ensaios de campo com diferentes doses deste. Em um congresso da Asociación Argentina de Productores en Siembra Directa (Aapresid), em 2019 (¿Hay algo nuevo, 2022), um representante da empresa informou que “estamos realizando todos os ensaios para levar a marca tanto para a soja como para o trigo” (tradução livre) em associação com a Asociación de Cooperativas de Argentina (ACA), que comercializa o glufosinato de amônio com a marca comercial “Prominens”. Para o trigo foram realizados 8 ensaios em dois ciclos agrícolas (2018 e 2019). Como vantagem sobre outros herbicidas, o representante da empresa manifestou que o glufosinato produz uma “queima rápida”, apresenta um “baixo número de plantas resistentes”, além de ter “baixa volatilidade” e “não deixar resíduos”. O mesmo técnico também apresentou os resultados de testes da soja HB4 nos Estados Unidos: afirmando que esta “tolera sem problemas 16 litros/ha de glufosinato de amônio, sem efeitos fitotóxicos”. Também para a soja, em Córdoba (Argentina), acrescentou que “com 4 litros/ha houve controle das plantas espontâneas” (tradução livre). O representante da empresa conclui afirmando que “hoje, tanto no trigo como na soja [o glufosinato de amônio] é uma excelente ferramenta de controle e economicamente viável para o produtor” (tradução livre). Cabe destacar que a conferência foi realizada em 2019, isto é, previamente às manifestações da Bioceres em 2020 sobre o caráter de gene marcador da molécula pat na Argentina e também na audiência pública no Brasil. Após manifestações de organizações sociais argentinas, a Bioceres retirou do ar sua propaganda do herbicida e a Aapresid retirou do YouTube o vídeo com a conferência dos técnicos da Bioceres. As informações disponíveis permitem argumentar que a liberação comercial do trigo transgênico tolerante ao glufosinato de amônio levará a aumentos sucessivos do uso desse produto, causando impactos negativos na saúde humana e ambiental. Essa preocupação levou à mobilização de organizações produtivas e de consumidores no Brasil e na Argentina.

 

RESISTÊNCIA DE PRODUTORES E CONSUMIDORES

A resistência ao trigo transgênico ocorre tanto no Argentina como no Brasil. Mais de 15.000 pessoas endossaram o manifesto Trigo Limpio na Argentina (¡Con nuestro pan no!, 2022), enquanto 1.400 pesquisadores pediram a não liberação do produto no país (Carta abierta, 2020). Representantes da cadeia produtiva do cereal na Argentina classificam essa liberação como um “risco econômico extraordinário” (Infocampo, 2020) que pode afetar as relações com outros países compradores que não o Brasil (Silveyra, 2020).

Um representante da Câmara Setorial da Cadeia Produtiva de Culturas de Inverno manifestou uma “grande preocupação” enquanto o representante da Associação Brasileira da Indústria do Trigo - Abitrigo informou não ter conhecimento da “demanda por transgenia como solução de consumo pelo mercado” e que “não há benefícios evidentes para as pessoas” (CTNBio, 2020a, l. 104 a 141). A Associação Brasileira das Indústrias de Biscoitos, Massas Alimentícias e Pães & Bolos Industrializados (ABIMAPI) divulgou que pedirá ao governo que não libere a comercialização do produto no país (Maliszewski, 2020). Cerca de 400 organizações brasileiras assinaram petição contra a liberação do trigo transgênico (Trigo transgênico no nosso pão não!, 2021).

No caso da Argentina, a aprovação foi concedida apesar da oposição generalizada de organizações sociais e ambientais, cientistas, consumidores e até mesmo do próprio setor produtivo. A principal irregularidade do processo foi a falta de informação à comunidade, evidenciada pela ausência de audiências públicas, em claro desrespeito ao acordo de Escazú, do qual o país é signatário desde 2019. Também não houve respeito pelas decisões judiciais que foram emitidas com motivos de precaução, exortando a participação dos cidadãos no processo.

No Brasil não foi diferente. Apesar das críticas apresentadas por diferentes setores da sociedade, a CTNBio emitiu um parecer técnico em 02/03/2023 autorizando o plantio comercial do trigo HB4 no qual conclui que “o trigo IND-ØØ412-7 (HB4) é tão seguro ao meio ambiente, à saúde humana e à saúde animal quanto seu equivalente convencional” (CTNBio, 2023). Após a aprovação, entidades como a Abitrigo informaram que a decisão da CTNBio traz “tranquilidade aos diferentes atores do mercado” (ABITRIGO, 2023) e que “a palavra final ficará com os consumidores”. Entidades ligadas à Articulação Nacional de Agroecologia, incluindo movimentos de consumidores, solicitaram o cancelamento da decisão ao Conselho Nacional de Biossegurança (ANA, 2023b) e rebateram os argumentos apresentados pela CTNBio (ANA, 2023a). O Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional posicionou-se favoravelmente ao pedido das organizações (IDEC, 2023).

CONCLUSÕES

Desde sua criação, a CTNBio esteve no centro de decisões conflitivas (Marinho; Minayo-Gomez, 2004; CONSEA, 2013; Fernandes; Marinho, 2017). O caso do trigo não é exceção. A audiência pública limitou a participação da sociedade, mas ainda assim permitiu que fossem brevemente anunciadas as preocupações da cadeia de produção e da indústria do trigo, que fosse revelada a ausência de estudos e que viesse à tona uma informação falsa dada pelo representante da requerente. Negar publicamente que a nova semente foi desenvolvida para receber o herbicida glufosinato é uma forma de manipulação do discurso para favorecer a aceitação do produto.

Não foi por falta de evidências científicas (Ferment et al., 2017) que a CTNBio deixou de tomar decisões baseadas na precaução ao longo de sua história. Suas decisões se baseiam no entendimento de que não existe evidência científica convincente de que existam riscos, enquanto o princípio da precaução busca evidências científicas robustas de que não há riscos (Lacey, 2019).

Do ponto de vista de decisão proferida por uma comissão técnica, cabe discutir como seu corpo técnico junta a maioria, ou mesmo atinge a unanimidade, para endossar determinados processos. Conforme proposto pelo filósofo da ciência Hugh Lacey, o endosso de uma determinada inovação tecnológica, sem sua fundamentação em dados empíricos, representa adesão a uma determinada perspectiva no valor, no caso, identificada com o progresso tecnológico e econômico do modelo agrícola agroexportador (Lacey, 2011). Ainda segundo o autor, “esses endossamentos não têm nenhuma autoridade para as pessoas que não compartilham essa perspectiva de valor”. Ou seja, a avaliação de risco realizada pela CTNBio é parcial por desconsiderar a plausibilidade dos riscos identificados – e empiricamente verificáveis – desde a perspectiva da Agroecologia e da Soberania Alimentar e, como consequência, suas decisões carecem não só de fundamentação técnica como, principalmente, de legitimidade social.

A controvérsia sobre os transgênicos se arrasta ao longo das décadas (Hilbeck et al., 2015), em boa medida por ter a comunidade científica e suas lideranças se perfilando por trás de um grupo e de uma comissão (Leite, 2007; Mariconda, 2014; Krimsky; Schwab, 2017), endossando decisões parciais, como no caso do trigo. O agravante agora é que, coincidentemente, com a liberação comercial do trigo HB4 (25/03/2019), dispositivos relevantes do ponto de vista da avaliação de riscos foram revogados da Resolução Normativa nº 5, de 2008, em particular aqueles relacionados à avaliação de risco à saúde humana e animal.

Para além de uma participação ativa das entidades científicas, que deveriam exigir de seus representantes na CTNBio algo como uma revisão de pares dos seus mandatos, defendemos que o enfrentamento dessa controvérsia passa pela adoção do princípio da precaução e pela promoção de práticas científicas que atendam às perspectivas plurais de valores. Nada justifica a manutenção de uma visão parcial da ciência.

Copyright (©) 2023 Gabriel Bianconi Fernandes, Rubens Onofre Nodari, Leonardo Melgarejo, Fernando Frank.

 

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Revista Brasileira de Agroecologia
ISSN 1980-9735

Publicação da Associação Brasileira de Agroecologia - ABA-Agroecologia em cooperação com o Programa de Pós-Graduação em Meio Ambiente e Desenvolvimento Rural - PPG-Mader, da Universidade de Brasília – UnB

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