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Fri, 03 Dec 2021 in Linhas Críticas
Retórica como recurso teledramatúrgico: conceitos de Platão e Aristóteles na narrativa audiovisual
Resumo
Ao se optar pela análise da Retórica, aplicando os conceitos clássicos de Platão e de Aristóteles, este presente trabalho propõe uma relação com os estudos culturais contemporâneos sobre ficções audiovisuais. A partir da análise da telenovela brasileira O outro lado do paraíso (Mendonça Filho, 2017-2018), busca-se compreender como a construção narrativa televisiva se dá por meio da argumentação e da persuasão e, consequentemente, por que o fascínio das produções audiovisuais da atualidade pela encenação de tribunal na constituição dramática. Como resultado, aponta-se a utilização da Retórica no roteiro audiovisual como determinante para o embasamento da mensagem final.
Main Text
Introdução
O propósito deste artigo é reunir algumas reflexões em torno da narrativa de produções audiovisuais da contemporaneidade, tendo como foco os conceitos de práticas de poder do orador, articulados com a estética das narrativas populares e do melodrama. Partindo do pressuposto de que esses produtos audiovisuais nascem de um campo de produção simbólica (Bourdieu, 1996), o objetivo é analisar a estrutura de mensagem, além das escolhas estéticas e de narrativas.
Sendo assim, temos como exemplo central a telenovela O outro lado do paraíso (Mendonça Filho, 2017-2018). Optou-se por ela, pela popularidade alcançada em diferentes públicos e meios (a média apresentada foi de 35 pontos de audiência, segundo dados do Ibope), além da farta produção de cenas com utilização de recursos retóricos para diferentes aplicações ou finalidades.
A palavra “Retórica”, procedente da palavra grega rhêtorikê, significa “arte da palavra”. Este artigo propõe analisar a telenovela que, sendo narrativa contemporânea, se utiliza da retórica para firmar seu conteúdo, caracterizar os personagens centrais e explicitar a mensagem principal de seu enredo.
Entre as várias definições atribuídas à retórica, fiquemos com duas das mais representativas das convenções retóricas clássicas:
1. A definição imputada a Górgias por Platão (1976): retórica como meio de persuasão e;
2. A definição de Aristóteles (1990): a retórica como forma de descobrir os meios de persuasão referentes a um determinado assunto.
A retórica constitui a própria linguagem e, nesse sentido, as próprias práticas de comunicação. Utilizar-se dela implica, entre outras coisas, estar em evidência, ser colocado a falar e fazer ouvir, liderar. Com a democracia, a persuasão passou a estar no centro da ação política e social. Seu domínio é fundamental, por exemplo, em assembleias, tribunais para convencer juízes, e nos atos públicos, para persuadir o povo ou seu grupo. Na política romana, seja nos tribunais, nas praças ou no senado, os discursos tinham enorme importância e, por isso, a retórica ocupou lugar de destaque na educação e na vida pública (Platão, 1959). Como em Atenas, só que mais aprimorada devido à multiplicação de tratados, os membros das classes superiores recebiam desde pequenos uma educação a respeito da retórica, que visava a prepará-los para o exercício de cargos públicos, que desempenhariam quando adultos.
Górgias diz que a retórica versa sobre “[…] as maiores e as melhores das coisas humanas” (Platão, 1976, p. 451d7-8). E aquilo que “[…] constitui o maior de todos os bens, proporcionando a quem a possui ao mesmo tempo a liberdade para si próprio e domínio sobre todos os outros na cidade” (Platão, 1976, p. 452d5-8). Assim, a retórica “[…] é a capacidade de persuadir pela palavra os juízes no tribunal, os senadores no Conselho, o povo na Assembleia, enfim, os participantes em qualquer espécie de reunião política” (Platão, 1976, pp. 452 e1-4). O filósofo aproveita para reformular a resposta nos seus próprios termos. A retórica, diz Górgias, é “obreira da persuasão” (Platão, 1976, p. 453 a2).
Em O outro lado do paraíso (Mendonça Filho, 2017-2018), a retórica aparece nitidamente como elemento de discurso para se revelar os meios de persuasão referentes a um determinado assunto. Nesta telenovela, pela quantidade exacerbada de cenas que se passam em um tribunal de Justiça, há uma reprodução de discursos forenses para dar conta dos desdobramentos ficcionais.
O caráter de intertextualidade da telenovela brasileira, principalmente o da emissora líder, com capacidade de “gerar recursos e alimentar sua produção como nenhum outro produto da indústria cultural brasileira” (Motter, 2011), vem dos pilares firmados já em sua origem. Hoje a telenovela fala predominantemente do presente no qual incorpora o cotidiano nos seus variados aspectos – modos de viver, pensar, sofrer e conviver com a realidade em transformação. É notório o lugar na cultura e na sociedade brasileiras ocupado pela telenovela, utilizando-se a perspectiva de Hall e Woodward (2003, p. 26), na qual eles dizem que:
A telenovela constrói um cotidiano na tela em estreita relação com a realidade social em que se situa, “trazendo para a construção das personagens as preocupações, os valores e temas que perpassam o cotidiano dos telespectadores” (França & Simões, 2007, p. 52). É, possivelmente, a forma de lazer mais barata disposta, além de atuar na consolidação dos gostos e de práticas sociais, como o consumo material e simbólico.
Drama no tribunal
A atividade de ensino da retórica produziu oradores e retóricos ilustres, tais como Lísias (445-380 a.C.), Isócrates (436-338 a.C.) e Demóstenes (384-322 a.C.), que perpetuaram técnicas retóricas de seus mestres e antecessores. Entretanto foi com Aristóteles (384-322 a.C.) que a retórica grega atingiu o auge, chegando ao universo helenístico e romano. Não só depois dele as inovações teóricas não foram em grande número, como também seu trabalho representa o ponto culminante da retórica antiga (Parmênides, 2009). É à sua utilização em discursos forenses que nos ateremos aqui, à luz de produções de telenovela.
Rosse Calza (1996) define telenovela como um produto que pode agregar diferentes matrizes culturais, mas jamais se confunde com alguma delas. Assim, telenovela é:
Ao transferir para um tribunal parte importante e definidora do desenrolar de suas ações, O outro lado do paraíso (Mendonça Filho, 2017-2018) arca com as consequências de um discurso eloquente e, diversas vezes, ostentoso de adjetivos com a finalidade de ludibriar. Quando o drama folhetinesco é encenado no ambiente forense, há ainda uma maior tonalidade moral no discurso, já tão característico desse produto. Os antagonistas ficam mais em evidência e o embate entre vilão e herói se fortalece graças ao clímax de uma decisão de autoridade da lei. Ou seja, o drama da telenovela se resolve na busca definitiva por uma justiça merecedora.
Nas várias cenas de tribunal da telenovela O outro lado do paraíso (Mendonça Filho, 2017-2018), os discursos forenses, obviamente adaptados a uma agilidade de folhetim e cujos termos obedecem à compreensão popular, seguem a perspicácia do embate entre defesa e acusação. Reforça-se que a utilização do recurso de tribunais em teledramaturgia não é novidade, entretanto sua constante cada vez maior caracteriza o momento atual. A telenovela brasileira busca representações que compõem “uma matriz imaginária capaz de sintetizar a sociedade brasileira em seu movimento modernizador” (Lopes, 2009, p. 3), logo com forte apelo aglutinador.
É possível fazer um paralelo, também, com as séries de TV que trazem os bastidores de tribunais e jurisprudência de diferentes crimes aos telespectadores. Como afirma Stuever (2021, s.p.), trata-se de uma convergência nas características de produções seriadas, especificamente nas que têm a justiça como temática central, isso porque se mantém “a inegável necessidade do espectador de acompanhar um incidente hediondo desde o seu início até a sua resolução, a fim de obter aquela sensação de que a justiça (ou alguma forma dela) pode prevalecer”.
Além disso, acrescenta-se que a retórica na telenovela também é utilizada, para uma mensagem que viabiliza um processo educador, moralizante, edificante e construtivo (Eleodoro, 2009).
Górgias pergunta: “Aquele que ensina alguma coisa persuade ou não os outros daquilo que ensina” (Platão, 1976, p. 453d9-10)? A insinuação evidente é a de que a retórica ensina (Santos, 2011). A pergunta esconde uma falácia, mas o orador não a vê, nem as dificuldades que com ela se avizinham. Daí a facilidade com que Górgias, após comparação com a aritmética (Platão, 1976, p. 453e-454a), precisa tratar-se da persuasão: “[…] que se realiza nos tribunais e em outras assembleias […]” e é acerca “do justo e o injusto” (Platão, 1976, pp. 454b5-7).
É contra essa concepção da instrução e da formação a ela associada – condensada na ideia da persuasão – que Platão invoca a necessidade de recorrer à Justiça, instituindo-a como princípio regulador de toda a ação e intervenção política (Santos, 2011).
Uma das cenas de O outro lado do paraíso (Mendonça Filho, 2017-2018), a do julgamento do delegado Vinícius (Flavio Tolezani) foi o assunto mais comentado do Twitter na noite em que foi ao ar, em 21 de fevereiro de 2018, além de alcançar recorde de audiência para o horário, conforme noticiado por Kogut (2018). A cena era o julgamento de Vinícius pelo crime de pedofilia, cometido contra a enteada Laura (Bela Pierro). Antes da gravação, no cenário do tribunal montado no estúdio da emissora, o diretor Mauro Mendonça Filho reforçou a importância da sequência para a trama e para a sociedade. Assim ele explicara aos atores, segundo relatos reproduzidos na imprensa:
A cena, que dura mais de um capítulo, reproduz a dinâmica de um tribunal, onde há monólogos em separado. Primeiro, o juiz narra o que se vai julgar; em seguida o promotor narra as atrocidades sofridas pela vítima e, depois, o advogado de defesa mostra os contrapontos do acusado. Tudo permeado pelas manifestações da plateia a favor da vítima, já conotando qual será o posicionamento da linguagem narrativa para o telespectador. O personagem Vinicius diz:
Na continuidade da mesma cena da telenovela (Mendonça Filho, 2017-2018), o delegado então confessa uma visão obscura da sua personalidade doentia, deixando júri, testemunhas e até os advogados escandalizados:
Ele sai do tribunal algemado diretamente para a prisão, onde é colocado em uma cela individual e alertado de que corre risco de morte. Na cena seguinte, o delegado é esfaqueado e morto no pátio da penitenciária no seu primeiro banho de sol. O discurso aqui não é o de convencimento do contrário, mas a reafirmação de um crime pelo próprio acusado. É um recurso prático, cuja invariabilidade de sua aplicação expõe uma narrativa conclusiva e fechada a questionamentos.
Ainda nesta novela, outro julgamento que também se estendeu por dois capítulos, semanas antes, foi o de Duda (Gloria Pires). A falsa morte da personagem foi desmascarada, quando ela ficou diante do ex-marido, Henrique (Emílio de Mello), também em um tribunal. A novela voltou aos tribunais, capítulos depois, quando Clara (Bianca Bin) precisou defender seus bens de um bloqueio injusto e, de novo, para pedir a guarda definitiva de seu filho.
Em todos os casos, quem mais discursou em cena eram os personagens centrais dos embates – a vítima e o acusado, ficando o juiz e os advogados como meros observadores, ou ainda coadjuvantes. Com exceção do primeiro exemplo citado (o do delegado Vinícius, acusado pelo crime de pedofilia), todos os demais têm como réu a vítima ou a heroína da ação. A telenovela se utiliza, portanto, da busca pela justiça por duas vertentes: ora para punir o agressor pelas vias legais; ora para promover a licitude da ação e um “final feliz” aos protagonistas que tanto sofrem por injustiças ao longo de dezenas de capítulos.
O embate de discursos é, dessa forma, construído para pôr em choque grupos de pensamentos distintos, já salientando quem tem razão. Além de persuasivo, o discurso argumentativo precisa ser forte na sua justificativa, caso contrário o alvo desse discurso (auditório/ telespectador) não estará satisfeito. Sem este alvo, o discurso perde, portanto, toda sua finalidade. Entende-se que, para os sofistas, convencer é o mesmo que vencer, dominar o outro pelo poder da palavra. O conhecimento que os sofistas tiveram das técnicas de persuasão é indiscutível. Foram eles, inclusive, os responsáveis pela introdução da retórica em Atenas. Entretanto, a forma como a usavam os estigmatizou como mercenários da palavra, visto que eles cobravam pela utilização de seus conhecimentos argumentativos sem se importarem com o teor do que defendiam. O propósito da retórica era, pois, promover um discurso eficaz, sem se importar em transmitir a verdade ou não, apesar de criar uma aparente ilusão ou ainda um convencimento através da palavra.
Quando o advogado defende o pedófilo em O outro lado do paraíso (Mendonça Filho, 2017-2018), ele o faz apenas para enaltecer o que virá a seguir, a fala da vítima. Dentro de um contexto mais amplo, já se sabe que o réu será julgado e devidamente punido. Mas o que se espera é menos sua punição, e mais sua confissão perante todos. O autor justifica como paixão pela vítima a motivação dos crimes. O acusado, o delegado Vinícius, discursa durante mais de cinco minutos de cena, defendendo seu amor como forma de atenuar a injustificável violência cometida.
As funções desejadas são: refletir a violência do delito sobre o corpo da vítima; e em seguida pôr em ato a vingança da vítima sobre o culpado. Foucault (1987) diz que a lei era considerada uma extensão do corpo do soberano, portanto era totalmente lógico que a vingança encarnasse na violação da integridade física (corpo) do condenado. A plateia vai reagindo para isso no decorrer do capítulo, até chegar ao clímax – que não é a condenação pela lei, mas a morte pós-condenação, já na cadeia.
O que fica evidente na novela, portanto, é o discurso meramente moralizante. O acusado acaba confessando seu crime, choca a plateia, incluindo aí uma reação absorta do juiz, e se aproxima da condenação. Há uma agitação no tribunal, onde todos pedem que o prendam. O réu então deixa de se vitimar para fazer coro aos que querem que ele sofra as consequências pelos seus atos. Isso tudo acontece antes que a vítima volte a falar, dessa vez com olhar firme, voz alta, sem medo de encarar seu algoz e também os parentes e amigos na plateia. Tem poder de persuasão aquele que se demonstra empoderado, no centro do jogo cênico, independentemente se estiver no papel de protagonista ou antagonista. É dada à vítima do delegado, enfim, o poder de fala para que arremate a cena, ao insultar também a própria mãe que se absteve ao que a filha sofria dentro de casa.
Ressalta-se que um discurso folhetinesco precisa da repetição, visto que uma obra dura cerca de nove meses no ar. O desenrolar de uma ação em torno dos protagonistas necessita de meandros que os separam e os façam sofrer para, só no desfecho, encerrar em um final feliz e com a consequente punição dos antagonistas. Desse modo, a justiça, no meio do percurso, precisa ser falha; a injustiça, convincente. Por isso, há outros momentos da trama que o mesmo juiz vai cometer erros de julgamento para prolongar o conflito entre protagonista e antagonista.
Platão (1976) fixou aí, numa presunção de verdade: “A retórica”, diz Sócrates, “não precisa conhecer a realidade das coisas; basta-lhe um certo procedimento de persuasão por si inventado para que pareça diante dos ignorantes mais sábia que os sábios” (Platão, 1976, p. 459 b). Não por acaso, os sofistas foram alvo de muitas críticas de Platão. Tanto em Fedro quanto em Górgias, Platão (1976), pela voz de Sócrates, apresenta seu desprezo à retórica de Górgias e dos sofistas. Assim, Platão sugere como saída uma retórica fundamentada na organização do saber, na busca pela verdade e do próprio auditório.
O que Aristóteles (1990), seu discípulo e também crítico, vai propor é exatamente uma extensão que inclua a dialética próxima à retórica. A argumentação é compreendida como grupo de artifícios que estruturam um discurso persuasivo. Será a arte do diálogo ordenado, que caminha para o provável, e não mais o das certezas e evidências.
No roteiro ficcional, está à frente de uma hierarquia quem consegue a atenção através da palavra e, assim, persuade a todos – seja apelando para argumentos emotivos, seja para argumentos descritivos. Ou seja, o ponto de vista de um enunciador é a evocação, a convocação, a propósito de um estado de coisas, de um princípio argumentativo (um topos). O topos é um princípio comum, partilhado pelo conjunto dos membros de uma comunidade, permitindo que o locutor o utilize como argumento que justifique sua conclusão.
A telenovela organiza os discursos em torno do núcleo central do protagonista. Em torno dele há sempre um personagem que faz o papel de mentor filosófico e o responsável por levantar a autoestima dos demais, através de um discurso retórico, que reforça, por diversas vezes, o caráter apaziguador, humanitário e diferenciado de quem o ouve, trazendo à tona lembranças que exemplifiquem o que diz. O protagonista ganha a força da palavra quando está prestes a ter seu “happy end”, e não antes, quando ainda sofre as angústias do desenrolar da trama. Em Fedro, Platão (1976) fala, por exemplo, da retórica filosófica que “faz tão feliz àquele que a possui”.
Judicialização da vida
Diversas características que hoje encontramos em narrativas das telenovelas têm raiz no chamado romance popular, que nasceu e se firmou na França, no começo do XIX. Apesar das transformações pelas quais passa o romance popular no decorrer do tempo, é possível enumerar suas principais características, presentes na telenovela que se firma, por excelência, midiática e ficcional.
Dentre elas, há: a) visão maniqueísta entre o “bem” e o “mal”; b) dilemas individuais se sobrepõem a questões coletivas, como reflexo de um romantismo não superado. Todos são vítimas, mas dentro dessa premissa há, de um lado os que sofrem, e de outro os dominadores, que se utilizam de métodos antissociais com o uso da força (Eco, 1991). É importante reconhecer as táticas argumentativas, estilísticas e organizativas deste tipo de discurso.
O bem e o mal, o certo e o errado, o acusador e o acusado, a vítima e o malfeitor. Todos esses elementos estão fortemente impregnados no discurso forense. Em Elogio de Helena (Isócrates, 2014), cujo original data de 390 a.C., Isócrates escreveu-o para mostrar que Górgias, autor do discurso com título homônimo, fez não um elogio, mas a defesa de Helena. É dele a separação entre diferentes discursos retóricos, que mais tarde Aristóteles (1990) dividiria em três gêneros:
O discurso deliberativo (persuasão); o discurso judiciário (acusação e defesa); e o discurso epidítico (louvação). Com a ressalva de Aristóteles (1990) para que a retórica não seja tratada como ciência – e sim como uma técnica, fiquemos aqui com o discurso judiciário. Se a comunicação de massa se define pela comunicação que alcance uma maioria, um público abrangente, devemos também pensar o discurso dos oradores como algo próximo a este objetivo. Os discursos repletos de adjetivos invocam aos sentimentos do espectador e confirmam a estratégia argumentativa para obter apoio do público. As apelações principais no ethos destinam-se, principalmente, a obter atenção.
Durante os últimos anos, percebe-se crescente “judicialização” da vida pública, algumas questões de larga repercussão política e social estão sendo decididas por órgãos do Poder Judiciário. Este processo, cuja característica se dá pelo momento de se espetacularizar o meio jurídico, é pontuado pelos desdobramentos de fatos políticos largamente transmitidos pela mídia, que acabam também refletidos nas produções de ficção audiovisual de grande alcance e audiência, nas telenovelas. Termos como Mensalão, Operação Lava-Jato, habeas corpus, petição, jurisprudência, homologação, entre outros, passaram a ambientar também a ficção que, constantemente, adota o meio judicial como cenário comum. Isso só é possível com a ampla divulgação e transmissão do campo jurídico à comunicação de massa, que acata este tema como sendo de seu conhecimento. Como aponta Benício (2017), mais do que entretenimento, a novela se tornou “espelho da sociedade e plataforma para se refletir a respeito de questões tão valiosas, e tantas vezes desprezadas, no Brasil de hoje. Entre elas, a empatia, a honradez e a justiça”.
Os termos técnicos de Direito e os jargões jurídicos utilizados nos tribunais e diversas vezes reproduzidos pela imprensa sem maiores esclarecimentos, crescidos diante da encenação de embates entre promotoria e defesa, ganham espaço nas narrativas como demonstração de um espelho do momento social. O teatro de tribunal, no qual a neutralidade do juiz desempenha o poder central e absoluto, tem nos advogados o texto de oratória e retórica para narrarem a cena, ficando a plateia com a função de representar as manifestações como um corpo único. Esta reprodução se dá em diversas escalas. As vestimentas dos “atores” do tribunal, o texto praticamente sem pausas, a apreensão do réu, a ansiedade da plateia, tudo é construído para o clímax da cena: a condenação ou absolvição do julgado.
A telenovela se utiliza desse recurso com segurança de que o telespectador, cada vez mais alimentado por tribunais reais – sendo inserido no contexto jurídico pelos acontecimentos públicos e julgamentos de figuras políticas exibidas à exaustão na TV aberta – está à vontade com um universo tão prolixo e, não raro, cansativo. Um tribunal nos revela a sede de justiça, a vontade esmagadora de vingança perante um crime, o linchamento público. Portanto, cenário perfeito para instigantes reviravoltas dramáticas de um melodrama.
A justiça, tema bastante debatido em Górgias, aparece como objeto da arte retórica, quando Sócrates demonstra a necessidade do ensino daquilo que é justo (Platão, 1976, pp. 454b-459d-461a). Sua intenção, entretanto, tem a ver com o reconhecimento, por Sócrates, do poder da retórica na vida pública. Percebemos não apenas a justiça como algo a ser discutido no diálogo, como também Sócrates atribuiu ora status de ciência à retórica (Platão, 1976, pp. 449d; 453d), ora apenas produtora de crença (Platão, 1976, pp. 454e-455a). Após Sócrates dizer que a alma dos ouvintes é objeto dos retóricos (Platão, 1976, p. 453a), Górgias diz que a retórica tem como capacidade persuadir nos tribunais e em assembleias, tendo por objeto o justo e o injusto, o que a distingue das outras artes que também persuadem (Platão, 1976, p. 454b).
O que se observa, no caso da telenovela, é a aproximação da retórica do ponto de vista de Aristóteles, ou seja, como forma de descobrir meios de persuasão. Em Arte Retórica, escrita aproximadamente entre 329 e 323 a.C., a retórica é descrita por Aristóteles como instrumento de ação social, cujo objetivo é o da deliberação ou providência; e a dialética, como parte argumentativa da retórica. Para Aristóteles, “existem três coisas a considerar em um discurso: o orador, do que se fala e o auditório” (Aristóteles, 1990, p. 40).
Uma das cenas finais da telenovela aqui em questão mostra as reviravoltas de um processo judicial, quando a protagonista Clara (Bianca Bin) surpreende o desfecho do julgamento da vilã Sophia (Marieta Severo). Clara avisa ao promotor Abel (Charles Fricks) que duas novas testemunhas precisam ser ouvidas no tribunal. O tom de mistério é mantido até Mariano (Juliano Cazarré) e a conselheira do quilombo Mãe (Zezé Motta) entrarem na audiência. Mostra a cena: “A essa altura, não vejo motivo para incluir novas testemunhas, meritíssima. A acusação está desesperada. Quer lançar mão de qualquer expediente” (Mendonça Filho, 2017-2018), reclama o advogado de defesa Maurício (Paulo Betti). “Veja o nome das testemunhas, excelência” (Mendonça Filho, 2017-2018), diz Abel, mostrando os nomes em um papel à juíza. “Aceitas. Peço a entrada das duas novas testemunhas: Dona Otacília Formiga e Mariano de Assis” (Mendonça Filho, 2017-2018), autoriza a juíza. Murmúrios na plateia e personagens boquiabertos. “Mariano! Vivo” (Mendonça Filho, 2017-2018), grita sua mulher Lívia (Grazi Massafera), ao ver o marido dado como morto. “Ele está́ vivo! É impossível” (Mendonça Filho, 2017-2018), diz a ré Sophia. “Sabe o que ele dirá́?” (Mendonça Filho, 2017-2018), murmura o advogado à ré. “Vai me acusar, sem dúvida” (Mendonça Filho, 2017-2018), prevê a vilã. O depoimento triunfante de Mariano, pensado como morto após crime cometido por Sophia, é a salvação de Clara e a desgraça de Sophia, cujo destino será viver trancada em um manicômio judiciário. O depoimento de Mariano é, dessa forma, determinante para que a vilã seja finalmente punida. Quem tem o poder de agregar, aqui, é quem fala, quem pode discursar para o grupo e, dessa forma, mantém a unidade. Por conseguinte, é o personagem que lidera a ação.
Antes dessa cena que vai culminar com o desfecho da trama, a vilã confessa seus crimes ao filho Gael (Sergio Guizé), numa cena ininterrupta com duração de cerca de dez minutos, na qual praticamente apenas ela fala:
Mais uma vez é utilizado, como já visto, o recurso da confissão para a consequente punição final. A confissão se dá, sempre, pelo discurso descritivo, adjetivado, organizado pelo relato de uma sucessão de fatos anteriores, que mostram como a vilania é construída por efeito de causa e consequência.
Se na telenovela o tribunal é um recurso dramático utilizado para reforçar a dramaticidade de determinada ação, em outras narrativas audiovisuais, como as séries de TV, este recurso é, além de redundante, amplificado em suas nuances e desdobramentos. Com a popularização do streaming, tem-se percebido maior oferta de produções de séries estrangeiras, onde também se nota a opção pelos bastidores da Justiça na ficção.
Entre alguns exemplos de séries populares, apenas para citar alguns: Boston Legal (Kelley, 2004-2008) – mostra a vida pessoal e profissional de advogados brilhantes de um escritório de advocacia de Boston, mas quase sempre desequilibrados emocionalmente; Chicago justice (Wolf, 2017) – um esquadrão é chamado para ajudar em um incêndio que mobiliza a cidade; Shades of blue (Hasak, 2016-2018) - Harlee Santos, uma policial de Nova York e mãe solteira, entra para o grupo de policiais corruptos aceitando suborno por conta da filha, mas que ao ser desmascarada pelo FBI será forçada a entregar os antigos companheiros; Suits (Korsh, 2011-2019) – gira em torno de casos jurídicos sempre bem resolvidos e com um toque de humor sarcástico, dentro do escritório de advocacia Pearson & Hardman; How to get away with murder (Nowalk, 2014-2020) – um grupo de ambiciosos estudantes e a professora de Direito Criminal da prestigiada academia East Coast Law School, que se vê envolvida em uma trama de assassinato; Damages (Kessler & Zelman, 2007-2012) . Patty Hewes é uma advogada poderosa que não mede esforços nada ortodoxos para conseguir o que quer, é baseada em casos reais; The Good Wife (King & King, 2009-2016) . Alicia Florrick, esposa e mãe, assume a responsabilidade sobre a família e volta ao mercado de trabalho após escândalo de sexo e corrupção em que seu marido, promotor de Justiça de Chicago, foi pego; etc.
Esta espetacularização contemporânea do julgamento na ficção, reforçado pelo fascínio de uma justiça exemplar, merece um desdobramento detalhado em futuros trabalhos acadêmicos, visto o crescente interesse de produções audiovisuais pela temática forense, amparado por uma audiência sempre forte.
Considerações finais
Sabendo que a retórica é um importante recurso discursivo para telenovelas, este artigo propôs analisar como predomina em produções de ficção televisivas contemporâneas a concepção aristotélica da busca por uma verdade absoluta, sacramentada pelo argumento da lei.
Se no campo da Comunicação em geral, a retórica ainda é remanejada à categoria de uma prática discursiva enganosa e vazia, muito em parte pela associação a discursos políticos, sua utilização no roteiro ficcional não pode qualificá-la como um mero adorno de linguagem. A retórica determina o embasamento da mensagem e pressupõe os embates que alimentam uma história.
Mais de vinte séculos desde sua origem, a retórica permanece no centro da discussão. Associada à crise da razão e, juntamente com ela, a crise dos valores e do sujeito, esse protagonismo da retórica não é dissociável do seu emprego para firmar uma persuasão. Se o melodrama tem garantido dois séculos de hegemonia no universo dos espetáculos e do entretenimento, com a capacidade de articular sentimentalismo com recursos visuais, a retórica é parte característica desse gênero que, desde sua origem, sofre transformações, agregando novas referências e adaptando-se às mudanças sociais.
Resumo
Main Text
Introdução
Drama no tribunal
Judicialização da vida
Considerações finais