Mon, 12 Apr 2021 in Linhas Críticas
Ocupações secundaristas em Goiânia: formação e experiências políticas das/os jovens
Resumo
O artigo debate as ocupações das escolas públicas em Goiânia ocorridas em 2015 e 2016, à luz das experiências formativas e subjetivações dos jovens, como protesto contra a transferência da gestão escolar para “Organizações Sociais”. A análise debruçou-se sobre três indicadores: panorama das ocupações no Estado; formação e socialização política das e dos jovens nas ocupações e os impactos formativos das vivências e experiências de participação. Constatamos que estes jovens tornaram visíveis os caminhos para a defesa da gestão democrática e a proposição de outro modelo de formação humana e de escola, em maior conexão com as lutas coletivas que combatem as exclusões da sociedade.
Main Text
Introdução
A ocupação das escolas públicas em Goiás pelos estudantes, ocorridas em 2015 e 2016, foi uma resposta ao despacho nº 596/2015 (Goiás, 2015), à política do Estado que buscava adotar modelo de gestão das escolas públicas estaduais a partir de parceria por meio de contrato de gestão com entidades privadas, qualificadas como Organizações Sociais de Educação (OSs).
Nossas reflexões são resultado de síntese e informações coletadas em 13 escolas ocupadas em Goiânia, 05 em Aparecida de Goiânia, 10 em Anápolis, 01 na cidade de Goiás e 01 em São Luís dos Montes Belos. A partir deste mapeamento, a equipe de pesquisadores, envolvendo alunos em iniciação científica e voluntários[1], realizou 07 entrevistas, elaboradas a partir do roteiro produzido para a pesquisa nacional[2], com as e os ocupas da cidade de Goiânia, 04 mulheres e 03 homens, conforme quadro abaixo.
Para análise dos dados utilizamos como referência cinco estudos sobre as ocupações em Goiás: Baldino e Freitas (2016), Pinheiro e Guimarães (2018), Fernandes e Ferreira (2018), Cunha (2019) e Dias (2020). Estes trabalhos, embora não estejam vinculados à pesquisa nacional, trazem análises que colaboram para o entendimento do sentido das ocupações locais.
A partir destas diferentes perspectivas de análise das ocupações no Estado, tomamos como referência a noção de “alheamento” desenvolvido por Oliveira (2015). O alheamento, ou o engajamento desconfiado conforme entende Sposito (2014), não significa alienação, sendo que a não participação é compreendida como uma atitude de crítica às próprias instituições que deixaram de ser ancoradouro seguro para as novas gerações. Tal noção nos remete ao conceito de subjetivação política que diz respeito ao “sentimento de pertencimento à sociedade e de responsabilização pela vida em comum” (Oliveira, 2015, p. 58). O fato de as ocupações terem dado visibilidade à atividade política possibilitou a experimentação, com engajamento na prática, do fazer política para o bem comum. Ou seja, as ocupações se tornaram laboratórios de novas formas de ação política das novas gerações.
Em complemento à referência da ideia de melancolia política, utilizamos como base para nossas análises a pesquisa de Morais (2016). A autora identifica certa crítica constante na atuação dos jovens do movimento no que diz respeito à burocratização das instituições, mostrando que a ação direta se tornou a alternativa diante do distanciamento dos partidos políticos aos anseios das juventudes. No entanto, Morais (2016) demonstra que esta tática não foi capaz de acumular experiências para a luta mais histórica e sistemática contra o sistema societário capitalista. Além disso, estes jovens acabam por formar novos modelos de instituições mais provisórios, precários e informais, estando, muitas vezes, em oposição aos modelos clássicos de militância.
Outra importante questão analítica levantada neste trabalho incorre no exame das orientações políticas dos jovens participantes das ocupações, a partir do reconhecimento de um itinerário formativo da cultura política, que está intimamente relacionado com os processos de socialização (Almond & Verba, 1964). As expectativas políticas dos cidadãos colaboram na formatação da própria visão sobre política e dos seus comportamentos como membros de uma coletividade (Baquero, 2011). O que é legítimo dentro de um sistema político depende do contexto de interação e construção de preferências. E os jovens também estão no epicentro deste processo, pois, como afirmam Amorim e Silveira (2005), a cultura política, fruto tanto das relações entre os indivíduos quanto deles com o sistema político, não é uma condição exclusiva da vida adulta, mas lapida-se ainda na infância, ganhando contornos mais nítidos na juventude.
O artigo está organizado em três tópicos. Inicialmente apresentaremos o panorama das ocupações iniciadas em dezembro de 2015 no Estado de Goiás. Destacamos as motivações coletivas que desencadearam o processo de ocupação, a narrativa descritiva das atividades desenvolvidas dentro das escolas e compreensão, sob o ponto de vista dos próprios agentes políticos juvenis, dos significados e saberes produzidos como sequência e consequência daquela mobilização.
A demanda de compreensão do papel de agentes de socialização política nos processos de transmissão e formação de opiniões, preferências e condutas de comportamentos às/aos jovens ocupas, conforma o eixo temático abordado no tópico seguinte. Valorizamos a importância da frente analítica sobre socializações, ante o desafio de compreensão dos jovens e sua aproximação com os elementos constituintes da esfera política por meio da sua aproximação/afinidade com valores da democracia, da solidariedade e da interculturalidade.
Por fim, analisamos os impactos formativos das vivências e experiências de participação política e social na vida destas/destes jovens. A isto, incorporam-se dois eixos analíticos como referências neste debate: a concepção de melancolia política e o parecer crítico sobre o papel das instituições. As questões substanciais aos impactos do movimento de ocupação na formação dos jovens têm relação com os fundamentos e valores incorporados, perspectiva de sociedade nutrida por meio desta experiência política e os significados da ocupação em suas vidas.
Panorama das ocupações em Goiânia
Os movimentos de ocupações das escolas pelos jovens secundaristas no Estado de Goiás devem ser considerados como um movimento social, pois estão no centro das relações sociais em que interesses diferentes se fazem presentes no sentido de mudar ou conservar a sociedade contemporânea, em suas diversas dimensões. São ações que evidenciam múltiplos antagonismos, incluindo as disputas entre o capital e trabalho, assim como opressões que envolvem gênero, raça, orientação sexual, idade, entre outras. Neste caso específico, estavam em disputa, de um lado, a transferência da gestão das escolas públicas para inciativa privada por meio das Organizações Sociais (OSs), além da proposta de militarização de diversas escolas públicas no Estado. Por outro lado, encontrava-se a mobilização dos alunos secundaristas no sentido de denunciar e resistirem a essas propostas.
Em geral, os movimentos sociais evidenciam as opressões e as injustiças, e com suas ações revelam à sociedade civil, política e, em especial aos órgãos públicos, os verdadeiros interesses em jogo na cena pública. Assim, as ocupações das escolas pelos estudantes em Goiás são conceituadas como um movimento social, inclusive por que as suas ações apresentaram as seguintes características:
As ações de ocupações das escolas em Goiás iniciaram-se no dia 9 de dezembro de 2015, no Colégio José Carlos de Almeida (JCA), e se estenderam até início de 2016, sendo o JCA a última escola desocupada em 25/03/2016. Por esse motivo, o colégio se tornou um polo de atração, formação e mobilização das ocupações de outras escolas na região metropolitana de Goiânia. Os saberes produzidos pelos jovens podem ser evidenciados por dois processos. O primeiro, de forma interna pela organização para ocupar os prédios públicos das escolas. O segundo, de caráter político-social na interação e articulação estabelecidas com professores, pais de alunos e de certa forma, parte da sociedade, na medida em que as ocupações foram ganhando visibilidade.
São saberes que contribuíram para o conhecimento das/dos alunas/os a respeito de temas políticos e sociais que incidem sobre a educação e a gestão da escola, bem como, neoliberalismo, privatização, terceirização e militarização. Entretanto, as atuações dos secundaristas para organizar o movimento democrático foram duramente rebatidos por forças conservadoras, liberais e neoliberais. Como por exemplo, podemos citar as ações do Movimento Brasil Livre, que tem como foco formar um exército de estudantes com os valores liberais e conservadores (Amâncio, 2018).
Conforme os dados, identificamos que 30 escolas foram ocupadas em Goiás. Pelos vídeos postados pelas/os ocupas, é possível perceber a mobilização de várias pessoas, entretanto, não perguntamos para os nossas/os entrevistadas/os sobre o número de participantes das ocupações. O registro foi ordenado por data de ocupação das escolas, conforme quadro abaixo.
A possibilidade de parceria que regularizava a transferência da gestão pública das escolas da rede estadual para as OSs permeou os debates internos, entre as e os ocupas nas escolas, e externos, na mobilização da sociedade civil, sobretudo da militância da área da educação, estudantes e entidades de ensino superior e defensores da educação pública, gratuita, laica e de qualidade.
O novo modelo de gestão (Straiotto, 2015) iniciaria por 23 unidades da Subsecretaria Regional de Anápolis (Macrorregião IV), incluía os municípios de Abadiânia, Alexânia, Campo Limpo de Goiás, Cocalzinho de Goiás, Corumbá de Goiás, Goianápolis, Nerópolis, Ouro Verde, Petrolina de Goiás, Pirenópolis e Teresópolis. O plano era se estender à toda a Subsecretaria que possui 73 escolas e atendia na época 38.875 alunos do Ensino Fundamental e Médio. A justificativa do Governo é que as escolas continuariam públicas, mas com essas medidas diminuiriam os gastos do Estado na educação e se garantiria maior qualidade e eficiência no ensino.
No entanto, no entendimento dos estudantes, o decreto caracteriza uma medida de privatização da gestão da educação pública, transferindo a responsabilidade do governo para iniciativa privada, ao qual teriam de resistir. Além da problemática envolvendo as OSs, as ocupações em Goiás somaram-se ao movimento de ocupações em várias cidades brasileiras.
Em sua maioria, os estudantes que ocuparam as escolas em Goiás são oriundos das classes populares e média baixa. Possuem uma trajetória marcada pelos estudos nas escolas públicas. Demonstram uma força e uma coragem típica da juventude para enfrentar os confrontos em busca de justiça e contribuir para as mudanças sociais.
São sujeitos que durante sua formação adquiriram uma consciência política, alguns por meio de apoio familiar, alguns nas igrejas e outros somente nas escolas, mas que se mostram conscientes de seu papel na sociedade, interiorizando a experiência formativa de cuidado com o bem comum, em uma experiência que pode ser considerada como subjetivação política. Estão presentes nos movimentos coletivos reagindo às políticas educacionais na medida em que a proposta de gestão apresentada para o sistema educacional acenava para subordinação aos interesses da iniciativa privada e não do público, como na fala abaixo:
Durante as ocupações houve várias perseguições dos policiais, mas, apesar dessa repressão, os estudantes respondem com ideias e práticas coletivas alternativas. Demonstram, sobretudo, uma forma de pensar o outro em sua inserção na coletividade, considerando as formas de organização que desenvolveram no interior das escolas. Vários relatos evidenciam essa postura, como o que segue abaixo:
Durante a ocupação os/as estudantes posicionaram-se como sujeitos, organizaram a mobilização por meio de mensagens de celular e iniciaram uma ação coletiva de intervenção direta, construindo novos saberes e indagações ao enfrentarem a força violenta do Estado.
Os relatos dos/as ocupas demonstram que houve violência da polícia nas imediações das escolas, mas que contaram com a colaboração de apoiadores para entrarem no colégio.
Os estudantes resistiram e permaneceram nas escolas enquanto a decisão do governo por meio da Secretaria de Educação e as OSs não fossem concluídas. No dia 15 de fevereiro de 2016, os envelopes com as propostas das instituições inicialmente qualificadas para participarem do consorcio foram abertos. Entretanto, nenhuma das 11 instituições possuía os requisitos exigidos pelo edital de chamamento. Em seguida “no dia 16 de fevereiro, o MP-GO, o MP Federal e o MP de Constas junto ao TCE, expediram recomendações conjunta para que a Seduce determinasse a suspensão do edital até que fossem modificados itens considerados inconstitucionais” (Ministério Público do Estado de Goiás, 2016).
A partir desses acontecimentos, as/os ocupas também foram percebendo o resultado positivo de suas ações e como, em algumas escolas, já se passavam mais de 60 dias de ocupações, iniciaram as discussões sobre o processo de desocupação. Os motivos para desocuparem as escolas foram vários. Dentre a pressão da secretaria como também, parte de alunos e pais que viam ameaçado o início das atividades do ano letivo de 2016. Embora relatem movimentos diferentes em cada escola, foi uma decisão do coletivo.
Podemos entender que com essas ações coletivas, as/os estudantes e parte dos familiares que as/os apoiavam, se sentiram participantes e pertencentes às escolas. Viram-se na condição de sujeitos de direitos e com capacidade de se tornarem protagonistas de lutas em defesa da escola pública. Seus relatos são de que participaram coletivamente contra o processo de transferência da gestão pública para as OSs. Com isso, viram seus esforços serem contemplados, pela ação civil pública proposta pelo Ministério Público do Estado de Goiás (2016), suspendendo o Edital de Chamamento Público, que buscava selecionar as OSs para assumir a gestão compartilhada das escolas públicas da rede estadual.
Formação e socialização política
Entendemos por socialização política, o processo de cristalização e transmissão de ideias, crenças, atitudes comportamentais em relação às múltiplas manifestações de poder (Neundorf & Smets, 2017). Nessa mesma linha concordamos com Dayrell (2003), por considerar que os contornos específicos da juventude se relacionam ao conjunto de experiências vividas em diferentes contextos pelos próprios jovens, e a importância de se privilegiar a realidade dos indivíduos por meio da análise da formação de opinião, atitudes e comportamentos, incluindo “conhecimentos, crenças, sentimentos e compromissos com valores políticos e com a realidade política” (Rennó, 1998, p. 71).
Assim, a incorporação de preferências, de referência que o jovem vivencia e vivenciou não foi somente durante o engajamento como, por exemplo, nas ocupações das escolas, mas na sua vida política prévia seja no cotidiano familiar, no círculo de amigos e ambiente escolar. Posto isso, para análise das entrevistas neste tópico, utilizamos como referência, o indicador do conceito de competência cívica estruturado por Zorzi (2016), a partir da das seguintes categorias de dados: família e repertório político / escola, socialização política e confiança institucional.
No cenário analítico que considera os papéis das agências de socialização na transmissão intergeracional de orientações e perspectivas políticas, na troca de referências sociais entre agentes em interação, ainda é essencial, embora não exclusiva, elencar a família como presença relevante nos processos de socialização política das crianças e jovens (Castro, 2009). Das sete entrevistas realizadas, metade dos jovens sinalizou a influência direta de um ou mais membros da família. Como exemplo, Pizarro (Goiânia, 26/06/2020) comenta que o irmão foi seu maior incentivador para participar de coletivos. Outros jovens reconhecem a influência e incentivo ininterrupto da família ao engajamento.
No caso de Micaela (Goiânia, 17/06/2020), a situação era inversa, uma vez que existia forte receio dos pais com a sua integridade física: “Eles tinham medo de eu me machucar [...] Depois de um tempo, minha família viu que a gente estava do lado certo, mas minha mãe tinha muito medo e sempre falava para eu não ir”. Já a situação de Pedro (Goiânia, 09/09/2019) é curiosa, porque o vetor de influência foi no sentido do relato anterior: o interesse de sua mãe por questões políticas cresceu à medida que ela reconhecia a importância da militância do filho que compôs este coletivo de mobilização em favor da defesa da escola pública.
Na última década a participação dos jovens brasileiros em grupo religioso que se reúne para ações assistenciais e políticas vem sendo maior do que em outras associações e entidades (Brasil, 2013). Dois estudantes responderam que a forte convicção religiosa dos pais foi justamente o obstáculo para qualquer possibilidade de o debate político preencher o ambiente doméstico; por outro lado, três estudantes relataram que o acesso a informações e quadros de sensibilização cognitiva para a prática de engajamento social nasceram das atividades empreendidas dentro dos círculos religiosos, especialmente por meio das atividades filantrópicas em coletivos de discussão temática e confraternização.
Se a família e, em menor escala de influência as igrejas, não operam como agências decisivas na correia de transmissão da socialização política para todos os jovens entrevistados, a escola figura nas respostas obtidas como uma instituição unânime na linha de influência do processo de subjetivação da política.
Durante as ocupações, as escolas públicas foram verdadeiros laboratórios de experiências e socialização política. Groppo et al. (2017) afirmam que os espaços ocupados eram espaços intensos de formação política, rompendo com formatos tradicionais de socialização, já que os próprios jovens ali ocupados lapidavam sua prática política dentro do contexto singular de experimentação da ocupação.
O reconhecimento destas potencialidades emancipadoras da escola pelas/os estudantes não fica circunscrito apenas ao raio das articulações políticas durante as ocupações. Em suas narrativas, foi possível observar que elementos como a atmosfera de demandas próprias de uma escola pública geralmente negligenciada por governos, o incentivo dos professores, a convivência com os colegas e a participação em projetos/agremiações estudantis aparecem como importantes durante toda sua trajetória escolar. Hilda (Goiânia, 09/09/2019) acredita que a sua formação como cidadã tem relação também com o fato de ela ter estudado em escola pública, e se deparou com a necessidade de “despertar a autonomia e sensibilidade para questões além daquelas de caráter pessoal”.
Para os jovens, que pela primeira vez estudam na rede pública, fica evidente o sentimento de pertencimento a escola, que acarretava invariavelmente na incorporação também dos dilemas e problemas ali vividos, sensibilizando-os com questões políticas diariamente debatidas pelos docentes.
Este cenário de oportunidades estruturais de fomento ao engajamento por parte da escola aparece de maneira semelhante em diagnóstico sobre a socialização política entre jovens estudantes nas ocupações de escolas no Rio Grande do Sul (Groppo & Silva, 2020). Para eles, o início do engajamento da maioria das/os jovens ocupas deu-se em razão da sensação de pertencimento ao ethos escolar, mediante a constatação de problemas de infraestrutura, do parcelamento salarial dos docentes e da influência dos laços sociais de amizade com colegas e exemplos de liderança.
De acordo com Schmidt (2000, p. 69), o conhecimento político das/os jovens nas últimas décadas invariavelmente está associado à escola, por ser a única entre as agências de socialização “que se ocupa explicitamente da transmissão intencional de atitudes políticas”. Na legislação brasileira é possível visualizar com nitidez este papel a ser exercido pela educação. A Constituição Federal (Brasil, 1988) dispõe, em seu artigo 205, sobre sua finalidade para o desenvolvimento da pessoa, da sociedade e seu preparo para o exercício da cidadania. E neste cenário de reforço das prerrogativas do amadurecimento político, o professor aparece nas entrevistas como agente central. Em todos os relatos, os professores são apontados como peças-chave na miscelânea de incentivos à criticidade e/ou na obliteração de projeções de moratórias restritivas à participação. Cunha (2019) identificou o mesmo padrão de reconhecimento de influência sobre os sentidos atribuídos pelos jovens secundaristas aos processos de ocupação de escolas em Goiás.
Micaela (Goiânia, 17/06/2020) lembra de seus “professores mais progressistas” pedindo para que os alunos procurassem compreender os motivos de estarem em uma greve geral em 2012[3]. Sua inserção no cotidiano do movimento grevista lhe estimulou a escrever até um “diário de greve”. Três jovens entrevistadas/os afirmaram que o estímulo por parte dos professores à emancipação crítica e participação não ocorria apenas em situações específicas, como no caso de uma greve ou mesmo da ocupação, mas existia como componente dialógico do processo de ensino-aprendizagem. As aulas em si eram espaços de formação cidadã, principalmente aquelas do campo das Ciências Humanas.
Antes de ingressarem como militantes políticos dentro das ocupações, a maioria dos jovens entrevistados já possuía alguma vivência dentro das práticas de participação comunitária e engajamento político. Seja em projetos sociais realizados pela Igreja (Jósimo) ou como membro da Pastoral da Juventude do Meio Popular (Pizarro), em projetos transversais dentro da escola (Hilda), presença em congressos e encontros estudantis (Micaela), no grêmio estudantil (Aurora) ou na militância organizada dentro da União da Juventude e Rebelião (Nazária). Mas suas narrativas revelam o engajamento na ocupação como um processo quase que ritualístico de vivência da importância do gerenciamento do repertório de ação social autopromovida por eles mesmos, jovens, frente à identificação nítida do real antagonista naquele momento, o Estado de Goiás e suas políticas de incentivo à militarização das escolas e terceirização da gestão. Todo esse processo influenciou na experiência política e social acumulada pelos e pelas jovens após a experiência das ocupações, como veremos a seguir.
Experiências e subjetivação política
Neste último ponto buscamos entender as experiências e subjetivações políticas das e dos ocupas, tendo como chave de leitura a ideia de melancolia política (Oliveira, 2015) e, a crítica às instituições (Morais, 2016) promovidas pelas juventudes, bem como, os fundamentos e valores incorporados na formação dos jovens e a perspectiva de sociedade nutrida por meio da experiência política de participação nas ocupações.
As ocupações de 2015 e 2016 caracterizaram outro modelo de fazer política, distante das formas tradicionais presentes nas instituições clássicas, como partidos e sindicatos. Mesmo assim, notamos uma presença significativa de duas forças políticas: de um lado, movimentos ligados ao campo autonomista, incluindo defensores do anarquismo e da autogestão; de outro, grupos comunistas, principalmente vinculados à UJR – União da Juventude e Rebelião, grupo juvenil ligado ao antigo PCR – Partido Comunista Revolucionário, hoje legalizado com o nome de UP – Unidade Popular. Identificamos também a presença de jovens vinculadas/os ao PT – Partido dos trabalhadores, PSOL – Partido Socialismo e Liberdade e JCA – Juventude Comunista Avançando, sendo que em alguns casos houve alterações e constâncias de posições políticas das pessoas entrevistadas entre o período das ocupações e das entrevistas, mantendo-se o posicionamento no campo de esquerda, conforme apresentamos no quadro abaixo.
A apatia política aparece quando questionados em quem votaram nas eleições presidenciais de 2018. Os jovens afirmaram o descontentamento com as possibilidades apresentadas e responderam que votaram no que consideravam o “menos ruim” ou o “mais progressista possível”.
Assim, de forma as vezes “envergonhada” ou “tímida”, quase todas/as as/os entrevistadas/os declararam que votaram no PSOL ou PT no primeiro turno das eleições presidenciais de 2018, e no PT, no segundo, conforme quadro abaixo:
Para as/os ocupas a experiência das ocupações impactou profundamente a influências políticas e sociais, bem como a sua visão de mundo. Primeiro, na própria concepção da escola enquanto espaço de formação e socialização, segundo na concepção da política e do fazer política, de valorizar a escola e os professores. Aurora (Goiânia, 18 e 19/06/2020) relata que “[...] descobri(u) como fazer uma luta política na prática”, e “[...] trouxe(ram) muita formação pessoal também por causa dos debates que eram feitos lá dentro sobre educação, sobre educação pública, sobre a conjuntura”, de forma coletiva. Na opinião de um dos entrevistados, seus parceiros de ocupação:
Embora os jovens expressem o caráter árduo e perigoso das ocupações, manifestaram o entendimento de que era “[...] preciso lutar contra esse avanço neoliberal que promete acabar com direitos sociais e promete amassar a gente politicamente e mais, exterminar a gente depois” (Pedro, Goiânia, 09/09/2019), se referindo a violência policial em muitas escolas ocupadas em Goiânia, principalmente nas da periferia, afora as ameaças e, após a ocupação, perseguição e discriminação (Mello, 2017).
O movimento dos alunos mostrou que estavam em descompasso com a política do Estado em transferir a gestão das escolas para as OSs e na crítica à militarização. O uso da força policial revela a falta de diálogo e debate com os principais sujeitos envolvidos, como os alunos, professores e os pais. Mesmo nessa situação de repressão, sentiram que colaboraram com a construção de sua personalidade e, com isso, fortaleceram a consciência de que se privatizar a gestão da escola, pode ser a chave para a privatização da mesma, retirando o direito de acesso, principalmente dos mais pobres à educação pública.
A experiência dos jovens em ocupar a escola, também influencia na própria formação educacional e opção profissional (Corrochano & Abramo, 2016), pois na medida em que tiveram maior contato com estudantes universitários, permitiu que conhecessem as possibilidades de curso superior, de universidade, as estratégias de entrar numa graduação, sendo que a maioria das/os entrevistadas/os optou pelas ciências humanas: direito, serviço social, história, ciências sociais, por exemplo.
Por fim, as palavras que definem o que a ocupação representou para suas vidas são: construtivo, resistência, luta, experiência, emancipação, marca e sonho. Esses termos retratam bem o que relataram em suas entrevistas e expressam a perspectiva de distanciamento das instituições tradicionais da sociedade, como partidos e sindicatos, mas que vislumbram outros modos de fazer política para além do partido ou a partir de partidos marginalizados no próprio sistema democrático brasileiro.
Entendemos que a melancolia política Oliveira (2015), é parte integrante da identidade política dessa juventude que ocupou as escolas em Goiânia. Pois ela é antes de um conceito, um sentimento presente nas posições assumidas pelas/os jovens entrevistadas/os. Significa um estado de tristeza e desencanto geral com a situação do país e pode ser caracterizada pelo alheamento, apatia, descrença, descrédito e pessimismo para com o mundo. Assim, essa militância foi “dominada pela descrença, desânimo e tristeza diante da política” (Oliveira, 2015, p. 85) e isso era reverberado na crítica aos partidos estabelecidos e na prática de novas formas cotidianas, democráticas e libertárias de fazer política.
Apesar da vitória pontual das ocupações no que concerne ao recuo do Governo estadual com relação às OSs, as entrevistas foram realizadas após a eleição de Jair Bolsonaro (sem partido) e expressam, assim como Oliveira identificou em seus sujeitos de pesquisa, um “sentimento de fracasso e impotência perante um contexto histórico específico” (Oliveira, 2015, p. 86). Entretanto, nossos jovens conhecem bem sua realidade: “Não há alienação política, entendem o mecanismo e a importância da política em suas vidas” (Oliveira, 2015, p. 88), e estão comprometidos com a defesa da escola pública e a transformação da sociedade.
Considerações finais
O conjunto das ocupações secundaristas em Goiânia foi analisado como movimento social, porém com práticas organizativas e concepções políticas diferentes das permeadas pelas instituições clássicas. Elas trouxeram, por exemplo, a radicalização da democracia, com a horizontalidade de todas as decisões e a tentativa de desburocratização das ações por meio da tática da ação direta.
Os dados analisados revelam que houve criação de vínculos sociais fortes, tornaram as e os ocupas mais experientes e conscientes; e fortalece a tese de que as ocupações contribuíram para a formação política e menos para a perspectiva de engajamento permanente nas instituições clássicas da militância; e também o caráter autogestionário das ocupações.
As ocupações nas escolas revelaram no caso de Goiás, a ideia de que o Estado é uma grande empresa e que por isso é necessário transferir a gestão da escola pública para a iniciativa privada, as OSs, nas quais um grupo de gestores privados tomariam as melhores decisões para a escola, ou para a Política Militar, com a militarização de escolas públicas. As/os ocupas foram veementemente contrários a esse projeto e, ao fazerem isso, tornaram visível outros caminhos para a defesa da gestão democrática e a proposição de outro modelo de formação humana e de escola, em maior conexão com as lutas coletivas que combatem as exclusões da sociedade capitalista e de suas políticas neoliberais.
Resumo
Main Text
Introdução
Panorama das ocupações em Goiânia
Formação e socialização política
Experiências e subjetivação política
Considerações finais