Wed, 19 May 2021 in Linhas Críticas
Do presencial ao remoto emergencial: trânsitos da educação infantil na pandemia
Resumo
Este artigo tem como objetivo lançar um olhar para o trânsito da escola de educação infantil para o modo remoto emergencial em função da pandemia de Covid-19. Partindo da compreensão de que esta condição não pode ser considerada educação infantil em sua integralidade, analisaram-se os usos de recursos tecnológicos e as estratégias adotadas por escolas a partir de discussão teórica e entrevistas com gestoras. A solução circunstancial remota buscou garantir a manutenção de vínculos afetivos e da escola como projeto, além de conexões com a cultura e o conhecimento. A análise revelou possibilidades e limites da relação com as tecnologias e iluminou aspectos das relações entre escola e famílias.
Main Text
Introdução
Em 2020, o Brasil foi atravessado pela pandemia. As escolas se viram desamparadas pela ausência de diretrizes e políticas públicas nacionais orientadas pela prerrogativa da Educação como direito e atentas aos direitos das crianças e às demandas dos profissionais da educação. Assim, foram obrigadas a tomar decisões isoladas, respondendo cada uma a seu contexto.
Os desafios decorrentes do momento pandêmico fizeram emergir com maior vigor problemáticas existentes na educação brasileira, como a desigualdade entre o sistema educacional público e o privado, os impactos da falta da merenda escolar, a ausência de políticas públicas para democratização do acesso à internet, a desatualização na formação docente em relação ao uso das tecnologias educacionais, entre outras questões. “Sem escolas abertas a educação da infância que defendemos, e que é fundamentalmente pautada na coletividade, nas interações entre os seres humanos está em suspensão ou em formas alteradas” (Macedo, 2020, p. 1406).
De modo geral, o impedimento da presença no espaço físico da escola trouxe urgência na busca por opções para a continuidade da prática educativa, o que levou à inserção abrupta de soluções maquínicas na realidade de docentes, discentes e famílias. Em um curto espaço de tempo, o presencial foi totalmente substituído pela distância e o virtual mostrou-se como uma das soluções possíveis, o que ressignificou os processos de interação, ensino, aprendizagem e atendimento, e em alguns casos, os inviabilizou.
Este artigo busca analisar o trânsito das escolas de educação infantil presenciais para o universo digital, processo que marcou o período de adaptação das escolas às recomendações de isolamento social em função da pandemia de Covid-19.
Entendemos que a questão do trânsito do presencial ao remoto por meio do uso de tecnologias se insere em um problema maior de pesquisa, que diz respeito à reflexão das relações entre a Educação e as tecnologias. O papel desempenhado neste contexto pelos recursos tecnológicos pode ter apresentado novos elementos para o pensamento sobre os entrecruzamentos entre Educação e Cibercultura.
Entende-se que, na medida em que conformam um fenômeno cultural, as tecnologias adentram os espaços educativos como instrumentos, ambiências e conteúdos que compõem determinados repertórios e situações, que – por sua vez – demandam habilidades e competências específicas.
Em contextos apressados, a integração das tecnologias aos espaços educativos pode se dar de forma instrumental, conduzida por uma crença de que a mera presença dos aparatos pode melhorar a qualidade da educação. Esta adesão parece se dar social e culturalmente de forma “natural” (sem problematização crítica); e dispositivista (a partir da ideia de que apenas o acesso aos recursos tecnológicos pode mudar a educação e causar efeitos – sempre positivos). Já em contextos mais reflexivos, esta integração pode se dar de forma crítica, orientada por objetivos pedagógicos e interessada em promover a cidadania digital.
Este foi o pano de fundo desta pesquisa. Nos empenhamos na escuta de seis gestoras de escolas públicas e privadas do Estado de São Paulo durante o segundo semestre de 2020. Abordamos especialmente a etapa pré-escola, direcionada a crianças de 4 e 5 anos. Buscamos observar as estratégias e os recursos tecnológicos adotados pelas escolas nesse período. Com este olhar, procuramos caracterizar o ensino remoto emergencial: solução circunstancial da qual se lançou mão para garantir a manutenção da escola como projeto, com a promoção dos vínculos afetivos e a aproximação com a cultura e o conhecimento.
Ao olhar para o ensino remoto emergencial, outros pontos de atenção se apresentaram, como a valorização do papel da escola de educação infantil para a socialização na infância e a relação das crianças pequenas com as tecnologias.
Percurso metodológico
No intuito de desenhar um cenário do trânsito das escolas de educação infantil do modo presencial para o remoto, as entrevistas com as gestoras escolares se deram por videoconferência (usando as plataformas Google Meet ou Jitsi), tiveram duração de aproximadamente uma hora, foram gravadas e posteriormente transcritas. Elas aconteceram entre 23 de outubro e 19 de novembro de 2020 (tendo o olhar voltado para o período remoto de março a outubro) e foram guiadas por um roteiro semiestruturado comum (sem perguntas fechadas, mas com blocos temáticos desenvolvidos de maneira distinta de acordo com o desenrolar de cada conversa). O roteiro abordou o contexto das escolas antes da pandemia, as fases do trânsito, os usos feitos dos recursos tecnológicos e que avaliação a gestão fazia do período em questão.
O critério de seleção das entrevistadas derivou do objetivo de entender como o segmento da educação infantil transitou para o modelo remoto. Partindo da premissa de que a equipe de gestão está diretamente envolvida nas escolhas pedagógicas e organizacionais da instituição, buscamos os relatos de diretoras e coordenadoras pedagógicas. A escolha das entrevistadas se deu a partir das redes profissionais das pesquisadoras, que são agentes circulantes (Prazeres, 2013) dos campos da Educação, das Tecnologias e da Comunicação. Buscou-se diversidade de vozes – escolas públicas e privadas da capital e do interior paulista –, o que proporcionou a composição de um mosaico de expoentes significativos, tratados como amostra qualitativa (Martino, 2018). Neles, buscamos exemplos inspiracionais para iluminar a nossa reflexão.
Considera-se que – ainda que representem um contexto específico e um recorte limitado – as experiências observadas a partir dessas entrevistas podem dar pistas importantes para a questão mais ampla que move nossas pesquisas: a compreensão dos caminhos possíveis de inter-relações entre os campos da Educação e das Tecnologias nas configurações que marcam a formação das crianças para e com o universo da cibercultura.
O contexto da pandemia, o isolamento do espaço físico da escola e a urgência na adoção de ferramentas tecnológicas podem ter conformado um cenário capaz de explicitar elementos importantes desta paisagem mais ampla, relacionada aos entrecruzamentos entre esses campos.
Para efeito de preservação das identidades das entrevistadas, a partir deste ponto do estudo, nomearemos as escolas de acordo com a classificação da tabela a seguir, na qual detalhamos as características de cada uma delas[1].
O ensino remoto emergencial
No estado de São Paulo, desde o decreto governamental nº 64.862, de 13 de março de 2020 (São Paulo, 2020), as escolas permaneceram fechadas ou sem atividades regulares presenciais até setembro de 2020[2]. A necessidade do isolamento social implicou o desenvolvimento de estratégias para colocar de pé o ensino remoto emergencial. Ele foi regulamentado pela lei n° 14.040/2020 que “[…] estabelece normas educacionais a serem adotadas, em caráter excepcional, durante o estado de calamidade pública […]” (Brasil, 2020a) para todo o ensino básico. Em dezembro do mesmo ano, um parecer do Conselho Nacional de Educação (CNE), homologado pelo Ministério da Educação MEC (Brasil, 2020b) explicita as diretrizes de implementação da lei. Embora regulamentado, o ensino remoto emergencial não compreende as especificidades da educação infantil. Para Campos e Durli (2021, p. 235), “A aprendizagem das crianças está vinculada à compreensão do significado social das relações, dos objetos e da natureza. O valor social e educativo dessa etapa […] tem nas relações e interações, portanto nas mediações diretas, a sua essência”.
Para efeitos deste estudo, entende-se que a noção de ensino remoto emergencial está em processo de construção e é fruto da condição determinada pela pandemia. Trata-se da ligação que se constituiu entre os sujeitos da educação nesse período, com relações não presenciais, estabelecidas a partir de espaços distintos (casa – escola), mediadas pelos recursos digitais e realizadas em temporalidades específicas de cada contexto escolar.
Apesar de ter sido – no senso comum – confundido com a Educação à Distância (EaD) ou com o homeschooling, o ensino remoto emergencial é uma condição e não uma modalidade da educação. A EaD é uma modalidade comumente oferecida no Ensino Superior, que prevê uma estrutura de plataformas, objetos digitais de aprendizagem, um desenho instrucional e experiências de aprendizagem específicas. Portanto, o que se entende como ensino remoto emergencial não é sinônimo de EaD, modalidade inviável e ilegal para a Educação Infantil.
Outra diferenciação importante é quanto ao homeschooling, ensino domiciliar ou doméstico, proposto por grupos que creem que a família e a religião devem ser as instâncias educadoras de uma sociedade. Defende-se a educação em ambiente doméstico para evitar o contato dos filhos com ideias outras (Wolff, 2020).
Entendendo a educação infantil como a primeira etapa da educação básica que tem como finalidade o desenvolvimento integral da criança de até cinco anos (Brasil, 1996), Anjos e Francisco ajudam a compreender que:
No entanto, ponderam que o uso de recursos tecnológicos em condição de ensino remoto emergencial se apresentou como solução momentânea para os efeitos do distanciamento do espaço físico da escola e entre os agentes do processo educativo.
Nesse artigo, a noção de ensino remoto emergencial é a que apoia a reflexão feita a partir de entrevistas com as gestoras escolares. Nossa hipótese é a de que as escolas optaram por uma solução circunstancial buscando garantir – por meio da adoção de tecnologias, conteúdos e linguagens digitais – a manutenção da instituição escolar como projeto, por meio da promoção dos vínculos de afeto no período marcado pelo afastamento do espaço físico da escola.
Inspiradas em discussão teórica a respeito da cibercultura e da cidadania digital, elencamos as fases que se apresentaram nesse trânsito da escola do presencial para o remoto emergencial, buscando mapear os pontos de reflexão que emergem das relações entre escola, educadoras, famílias e educandos.
Cibercultura e cidadania digital
O campo de reflexão sobre as relações entre educação e tecnologias é marcado por um embate que costuma colocar em oposição a adesão “automática, apressada e dispositivista” de recursos tecnológicos e a adesão “consciente, devagar e cidadã” das tecnologias compreendidas em sua complexidade, como sistema cultural (Prazeres, 2013).
Outra disputa que assistimos na relação entre as tecnologias e as crianças ocorre entre os entusiastas acríticos das tecnologias e o pânico moral. Entendemos que um olhar para a cultura e que coloque a criança no foco (e não apenas as tecnologias) contribua para sairmos dessa falsa dicotomia.
Partimos da premissa de que a cibercultura é uma cultura de época (Lemos, 2004) e, portanto, todos os indivíduos vivem em uma sociedade imersa na cultura digital. Ou seja: estando ou não em uma escola que possua laboratórios de informática, dispositivos móveis, conexão com a internet – estamos todos envolvidos nesse sistema cultural que prescreve determinados valores e práticas para a educação e para outros campos sociais.
Se os meios digitais são esses sistemas culturais históricos com conotações econômicas e políticas, o currículo – enquanto construção social que se desenvolve na interação entre a escola, a vida cotidiana, o conhecimento e a cultura – deve espelhar este entendimento, para formar cidadãos capazes de estar neste mundo e produzir conhecimento com e partir dele. Vale lembrar que “Quando falamos do currículo na Educação Infantil, falamos de uma complexa trama sócio-cultural, ideológica, política, administrativa, econômica e pedagógica” (Sousa, 2012, p. 96).
O currículo deve, portanto, incorporar as tecnologias enquanto ferramentas, mas as entender e acolher enquanto ambientes e repertórios do século XXI; e buscar refletir sobre as tecnologias como potenciais para a expressão criativa, a produção, a exploração, a descoberta, o diálogo, a participação em redes colaborativas, a reflexão sobre aspectos da vida social, política e cultural em sociedade, o pensamento crítico e a participação cidadã.
Muitos desafios se apresentam nesse sentido; e o chão da escola é o locus onde essas questões se manifestam. Ao propor a ação pedagógica, “é preciso avaliar a ação do "currículo oculto". O que por ele se aprende pode estar bem fora das intenções ou objetivos do educador, por melhores que sejam eles” (Sousa, 2012, p. 101), como conceitos, atitudes, valores e ideologias.
As tecnologias, nesse sentido, devem ser integradas ao currículo e ao cotidiano da escola na perspectiva de potencializar as reflexões, práticas e experimentações, incorporando às dinâmicas de ensino e aprendizagem suas potencialidades. Mas, pensando nos termos de Buzato (2010), ao mesclar online . offline, o isolamento social e as interações mediadas por tecnologias podem ter acrescentado novos elementos nesta discussão.
Urgências, apropriações e usos: as fases do trânsito
A partir dos diálogos com as gestoras, identificamos pelo menos duas grandes fases do trânsito da escola do modo presencial ao remoto: a primeira marcada pela urgência, em que as tecnologias foram utilizadas de forma relativamente “automática”; e a segunda fase, em que – após alguma possibilidade de adaptação e ajuste e em função de algum diálogo com a comunidade – foi possível experimentar outros recursos e outros usos para a interação com as famílias e as crianças.
Essas fases foram vivenciadas de modos diferentes em cada escola, em função das condições de cada uma e das adaptações possíveis a cada novidade apresentada pela conjuntura ao longo do ano.
Na Escola 1, em um primeiro momento (meses março e abril), os professores gravavam vídeos curtos com seus próprios celulares e a Direção encaminhava esses materiais para as famílias pelo aplicativo de mensagens WhatsApp. Depois da sugestão de um familiar, os vídeos começaram a ser postados no canal da escola na plataforma de compartilhamento de vídeos Youtube. O link era enviado para o grupo de WhatsApp de cada turma. No segundo momento (meses de maio a julho), eram promovidos encontros virtuais, uma vez por semana, com duração variável com a ferramenta de videoconferência ZOOM. Os encontros aconteciam com a presença das crianças, das professoras e eventualmente contavam com a participação de um professor especialista. O terceiro momento (a partir de agosto) foi caracterizado por visitas individuais à escola, mediante agendamento. O quarto momento (a partir de outubro) foi marcado pela reabertura para atividades de acolhimento. As atividades remotas foram mantidas, mas a escola passou a receber parte dos alunos em regime de meio período.
Na Escola 2, em março, houve duas semanas de pesquisas e encontros experimentais com as crianças pelo ZOOM. Em abril, a escola antecipou as férias e, nesse período, a gestão estudou estratégias e possibilidades para a retomada das atividades remotamente. Um segundo momento foi marcado pela adoção da suíte de aplicativos para escritório Microsoft Office, o Office 365, pacote que permitiu que as atividades remotas fossem oferecidas pela plataforma de videoconferência Microsoft Teams. A escola elaborou uma agenda de encontros semanais (com toda classe, com meio grupo e individuais). Os materiais (adquiridos pelas famílias no começo do ano a partir de listas elaboradas pela escola) foram para casa (em sistema de delivery, as famílias puderam buscar na escola). Um terceiro momento começou em julho, quando foram constituídas “comissões de continuidade do ano escolar”. As comissões eram mistas, compostas por funcionários, famílias e alunos do ensino fundamental II. O objetivo era construir juntos um processo de retomada das atividades presenciais. O quarto momento, a partir de setembro, se deu quando a escola reabriu para atividades presenciais.
Na Escola 3, o primeiro momento foi dedicado a compreender o contexto e os desafios apresentados e para fazer um contato inicial com as famílias. Em seguida, a escola entrou em recesso e a gestão fez um mapeamento da comunidade e das condições de acompanhamento das atividades. Depois, a escola precisou fazer adaptações para conseguir chegar a todos os alunos e firmou parcerias para viabilizar os atendimentos.
Na Escola 4, assim que a pandemia foi formalizada e as autoridades recomendaram o isolamento social, houve um período de adaptação. Em abril, foi oficializado o recesso dos alunos e dos professores e a equipe de gestão (diretora e coordenadora) teve um período para trabalhar nos próximos passos. De maio a julho, a escola realizou um levantamento com as famílias sobre o acesso à internet. Compraram um celular e os professores criaram grupos de WhatsApp agrupando as famílias por turma. O envio de atividades para as famílias com acesso à internet era diário. Para as que não tinham conexão (20% dos alunos), as atividades eram enviadas em folhas impressas e entregues junto com o kit merenda. No segundo semestre, as atividades continuaram as mesmas, mas a participação das famílias reduziu consideravelmente, fato que a coordenadora pedagógica atribui à volta dos pais ao trabalho presencial.
Na Escola 5, o recesso foi de 23 de março a 13 de abril. Nesse período, a SME enviou às famílias uma cartilha chamada “Trilhas de aprendizagem”, sem o conhecimento da escola. Um segundo momento começou em abril, quando – sem instrução por parte da Secretaria –, as gestoras deram início a um processo de pesquisa independente em diálogo com coordenadoras pedagógicas de diversas escolas (pelo WhatsApp). A Escola usava as redes sociais para falar com as famílias, mas sem uma proposta pedagógica orientadora.
Um terceiro momento começou em maio, quando a equipe fez um planejamento e divulgou atividades pela rede social Facebook, que – segundo a gestora – já era uma plataforma consolidada na escola. Em paralelo, a SME divulgou o uso do ambiente virtual de aprendizagem, Google Sala de Aula (GSA), para a Rede em um quarto momento (de maio a outubro).
Na Escola 6, o primeiro momento pode ser considerado de antecipação. Quinze dias antes de as autoridades recomendarem o isolamento social e as aulas presenciais serem interrompidas, já havia pistas de que a pandemia chegaria ao Brasil e afetaria a Educação: “Planejamos antes. Fizemos vídeos explicando que estaríamos em casa e que mandaríamos propostas” (Diretora de educação infantil, Escola 6).
Em um segundo momento, já remotamente, a escola usou o aplicativo para celular (que já existia antes da pandemia) para enviar três propostas de atividades por dia para as famílias. A projeção era que as orientações tomassem 1,5 hora por dia e que as crianças realizassem as indicações com ajuda de um adulto. Também foi enviada para as famílias uma sacola “bolsa ateliê” com materiais e propostas de usos. Nesse mesmo momento, a escola se deparou com a falta de familiaridade dos professores com as tecnologias. As atividades assíncronas tinham uma particularidade: requerem familiaridade, um adulto presente e são um “canal só de ida”, segundo a diretora. A participação das crianças era “flutuante”. Então, em um terceiro momento, a escola criou o e-mail “Dias em casa” e passou a realizar reuniões frequentes com as famílias. Foram, ao todo, 29 reuniões em um semestre. Em maio, a escola migrou para o GSA e deu início a encontros ao vivo (ou síncronos).
Em um outro momento, a Escola 6 começou a usar a ferramenta de videoconferência Google Meet, e ZOOM, aumentando a oferta de encontros síncronos para três por semana. Em setembro, passaram a ser quatro encontros síncronos por semana. Em outubro, a escola reabriu para atividades de acolhimento. Manteve-se o regime remoto para projetos, com algumas crianças com participação irregular e outras mais assíduas. No contraturno, a escola passou a oferecer oficinas. “Não estamos no híbrido. Estamos no meio do caminho. Temos o remoto e o remoto conversa com o que estamos fazendo presencialmente. Para o próximo ano, o desafio é pensar no híbrido possível” (Diretora de educação infantil, Escola 6).
Correndo todos os riscos de uma síntese que busca dar conta de um todo tão complexo e envolvendo tantos fatores, a Figura 1 busca apresentar o movimento geral das escolas entre as fases. Observa-se que nem todas as escolas passaram por todas as etapas das fases ou passaram pelo caminho de forma linear. Por isso, as setas indicam que o caminho tem duplo sentido. Isso quer dizer que (1) nem todas as escolas seguem o mesmo caminho; (2) o caminho tem “mão dupla” (e, portanto, as fases não são “etapas” – como se para “avançar” para uma fosse preciso “cumprir” a outra); e (3) a mesma escola pode ter feito um movimento “para frente e para trás” em “avanços” e recuos (sem que essas palavras tenham qualquer significado de progresso/evolução e retrocesso/involução). As setas sinalizam que a marcha nem sempre é linear e que entre diversas possibilidades de movimento, cada escola manifesta componentes que fazem sentido no seu próprio contexto.
Na Figura 1, é possível perceber que em um primeiro momento, a escola (aqui, de forma genérica) precisava se fazer presente de forma ágil e lançou mão de ferramentas tecnológicas conhecidas e à disposição como estratégia de manutenção dos compromissos assumidos com as famílias e dos vínculos afetivos. Em um segundo momento, a escola entrou em uma espiral de reflexão, planejamento, escuta e experimentação, a partir da oportunidade de diálogo com a comunidade e da experimentação de soluções, de forma que foi possível focar também no desenvolvimento das crianças.
Na segunda fase, as ações da escola parecem estar mais conectadas com o projeto de educação em questão e com a necessidade de ir além do vínculo. Parece possível afirmar que: (1) a adesão às tecnologias na segunda fase ocorre de forma mais consciente; e (2) a comunicação com a comunidade foi o fator de transição entre as duas fases (sinalizado na Figura 1 como um ponto entre a reta da Fase 1 e a espiral da fase 2).
Vale reforçar que – ainda que em alguns contextos tenha sido possível escutar a comunidade e desenvolver um trabalho focado na cultura e nas interações – o ensino remoto emergencial não pode ser considerado como Educação Infantil. Nosso olhar aqui recai sobre os usos de recursos tecnológicos como soluções momentâneas para os efeitos do distanciamento do espaço físico da escola e entre os agentes do processo educativo. Nesse sentido, acredita-se que o olhar para a relação com as tecnologias ajudou a desvelar possibilidades e limites do processo educativo empenhado no período de distanciamento e também trouxe à tona questões anteriores a ele, mas que a condição remota potencializou ou permitiu ver.
Inspiradas em Jenkins (2008), as fases do processo dão conta de que o acesso é condição básica para as transformações acontecerem. A cada transição entre "fases", existe um processo de apropriação: forma de uso das ferramentas de acordo com cada contexto e com cada condição (de grupos e indivíduos). A participação é o momento em que acontecem as interações. Essas interações reverberam no processo, alterando-o, gerando um potencial de colaboração para que ele se altere. Daí, acontecem as experimentações: testagens a partir dessas contribuições de sujeitos envolvidos no processo (no caso das escolas, a comunidade formada por alunos/as e familiares). A partir das experimentações, as transformações podem acontecer. E um novo ciclo pode se iniciar, quando a participação se dá novamente. O processo é contínuo.
Na Figura 1, é preciso considerar que: (1) essas duas fases são uma macro síntese do processo e a segunda fase é notadamente marcada por diferentes momentos (ou curvas); (2) cada escola vivenciou esses momentos de forma diferente e em temporalidades específicas; e (3) à primeira vista, essas temporalidades parecem estar conectadas a marcadores sociais que caracterizam os contextos de cada escola.
Por exemplo, foi possível observar que quanto mais condições de acesso existiam previamente para as famílias e os funcionários de determinada escola, transitou-se mais facilmente da primeira para a segunda fase; e, dentro da fase, entre os momentos. Já as escolas que estão inseridas em comunidades que enfrentam mais barreiras de acesso, o tempo de transição foi maior. Em algumas delas, não se chegou à curva da experimentação e da transformação, quando acontecem as inovações baseadas em criatividade. Outras poderiam ter vivido transformações, mas foram obrigadas a utilizar plataformas que não condiziam com condições de acesso das famílias.
Educação infantil e interação remota: objetivos, entraves e possíveis soluções
Cada escola dessa pesquisa representa um recorte específico de características geográficas, sociais, políticas etc. No entanto, o fato de serem todas instituições de educação infantil promove uma similaridade importante entre elas. As entrevistadas relataram que a pandemia de Covid-19 revelou o olhar que grande parte das famílias têm para a pré-escola. Um olhar de incompreensão, menosprezo e desimportância. Nas palavras das gestoras:
Segundo Vilela e Trindade (2020), a educação infantil passou a figurar com mais força na cena política brasileira após a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) (Brasil, 1996) regulamentá-la como primeira etapa da educação básica. É recente o entendimento da importância da educação escolar para a primeira infância. As legislações que reconhecem a obrigatoriedade deste segmento, tendo a oferta como dever do Estado (LDB) e as que induzem a sua universalização (Plano Nacional de Educação [PNE]) (Brasil, 2014) não completaram 30 anos. De acordo com os relatos das entrevistadas, no momento em que as propostas escolares adentram a casa das crianças, as famílias passam a ter maior contato com o projeto da escola de seus filhos. Seguindo as Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Infantil (DCNEI), Resolução nº 5 (Brasil, 2009), as escolas desse segmento têm como eixos estruturantes das práticas pedagógicas as interações e a brincadeira. Segundo a coordenadora pedagógica da Escola 4, o desafio maior “[…] é esse de mostrar para os pais a importância desse brincar e da interação para as crianças”. A gestora da Escola 3 reitera:
Nesse sentido, as gestoras relataram que investiram na continuidade de seus projetos educacionais e buscaram manter as interações e brincadeiras com as crianças, como afirma a diretora geral da Escola 1: “Manter o vínculo, brincar, saber um pouco como eles estão, eles se olharem, eles poderem contar uma coisa para o outro, para a gente. O que vale é esse momento da interação”. Os principais objetivos que miraram ao adotar estratégias de educação remota para dar continuidade às práticas escolares foram a manutenção do vínculo e do compromisso que a escola tem com as famílias, “não deixando ninguém para trás, pensando no direito das crianças” (Coordenadora pedagógica, Escola 3).
No contexto do uso das tecnologias, esses objetivos mostraram-se desafiadores para as escolas de educação infantil:
Essa percepção não é isolada. Muitas se sentiram perdidas no começo. No caso das três escolas públicas, os relatos são de desamparo. “Inicialmente, estávamos perdidos como todos. Sinto que eu não tive apoio. Fomos buscando sozinhas o que dava pra fazer com os recursos que tínhamos” (Coordenadora pedagógica, Escola 4). As Escolas Municipais de Educação Infantil (EMEIs) precisaram empenhar mais recursos para garantir que famílias e crianças não ficassem pelo caminho. Grande parte das famílias dessas escolas não tinha acesso à internet em suas casas e/ou possuíam apenas um celular para dividir entre as atividades dos filhos e o uso profissional e pessoal dos pais e responsáveis. Na Escola 5, a gestão realizou uma pesquisa interna com as famílias, que revelou que 40% do alunado tinha pouco ou nenhum acesso à internet. Dessa forma, era necessário que os recursos adotados para a interação remota fossem compatíveis ao pacote de dados dos celulares. O Facebook, rede social de uso gratuito em parte dos planos de telefonia, foi adotado para envio das propostas. A gestora conta que no momento em que passaram a utilizar o GSA, por ordem da SME, o retorno das famílias sobre as propostas caiu para quase zero. Ela atribui essa queda ao fato de o pacote de dados das famílias não suportar esse aplicativo/site.
Nesse mesmo sentido, as escolas 3 e 4 utilizaram o WhatsApp para enviar as propostas e interagir com crianças e famílias. Porém, mesmo sendo um aplicativo gratuito em alguns planos, isso não garante a comunicação, como relata a Coordenadora Pedagógica da Escola 3, “Vimos que a maioria não mandava registro porque a internet não carregava os vídeos e as fotos. Deixamos a internet da escola disponível para as famílias. Elas podiam ir na escola usar o wifi para mandar os registros”.
Nas escolas particulares o cenário é outro. Como o acesso à internet e a dispositivos eletrônicos não é uma questão premente, é possível avançar no debate, buscando recursos que melhor sustentem o projeto da escola e o currículo. O coordenador da Escola 2 diz que por serem uma escola socioconstrutivista e valorizarem as interações, apostaram nos encontros virtuais pelo ZOOM. Bem como a Diretora de educação infantil da Escola 6, que adotou o ZOOM, o GSA, o Padlet e outros recursos, afirmando: “As ferramentas garantiram que nosso objetivo fosse alcançado”.
As gestoras relatam que professores e professoras tiveram alguma dificuldade para utilizar essas ferramentas novas, como ZOOM e GSA, dada à falta de familiaridade com as tecnologias e à ausência de tempo formativo. Além disso, o desprovimento de dispositivos de qualidade, como notebooks, celulares com boas câmeras e internet, dificultou o trabalho dos docentes. Uma coordenadora relata os desafios enfrentados e como lidou com o cuidado com seus professores:
Apesar dos desafios, as gestoras falam de uma parceria e empenho dos docentes na realização da interação remota. Não diferente foi a relação com as famílias: um dos maiores desafios que acabou se tornando uma conquista.
A aproximação escola-família, forçada pela pandemia, revelou a imagem negativa que muitos pais faziam da educação infantil, o que permitiu que as escolas investissem na formação das famílias para a compreensão dos processos pedagógicos escolares. “Que bom que a gente percebeu que essa parceria com a família é fundamental na educação infantil. Acho que temos que continuar nesse caminho” (Coordenadora Pedagógica, Escola 4). A Coordenadora Pedagógica da Escola 5 conta que no começo eram questionadas sobre onde estariam as lições e as “folhas com letra e números” para serem impressas e, aos poucos e com muito investimento de docentes e gestão, a concepção foi mudando.
A partir dos relatos das gestoras escolares sobre seus objetivos na interação remota, a relação com professores e famílias e a escolha de ferramentas, fica evidente a busca pela garantia do projeto escolar em tempos de pandemia.
Considerações finais
Esse artigo é um exercício de “pensar em voz alta”. Ele atende ao desafio de realizar uma reflexão sobre um objeto que é um acontecimento em curso. No momento em que concluímos essa escrita, a pandemia ainda é uma realidade em São Paulo e no Brasil. Acredita-se que esse registro tem importância enquanto contribuição para a compreensão das relações analisadas e como documentação que nutre a memória do período em questão.
Exploramos a noção de ensino remoto emergencial enquanto condição determinada pela pandemia, que se constituiu entre os sujeitos da educação nesse período, com relações não presenciais, estabelecidas a partir de espaços distintos (casa - escola), mediadas pelos recursos digitais e realizadas em temporalidades específicas, dependendo de cada contexto escolar.
Partindo da compreensão de que essa condição não pode ser considerada educação infantil (e tampouco pode ser confundida com a modalidade EaD ou com o homeschooling), lançamos um olhar para os usos de recursos tecnológicos que se apresentaram como solução momentânea para os efeitos do distanciamento do espaço físico da escola e entre os agentes do processo educativo. Por meio de reflexão teórica sobre as relações entre educação e tecnologias e escuta às gestoras de escolas que compuseram um mosaico de exemplos significativos, percebemos que foi comum a busca por garantir, a partir da adoção de tecnologias, conteúdos e linguagens digitais: (1) a manutenção da escola como projeto; (2) a conservação dos vínculos afetivos; (3) a sustentação de compromissos estabelecidos com as famílias e a comunidade escolar; e (4) a continuidade da produção do conhecimento no período marcado pelo afastamento do espaço físico da escola.
Foram identificadas pelo menos duas grandes fases do trânsito da escola do modo presencial ao remoto: a primeira marcada pela urgência, em que as tecnologias foram utilizadas de forma relativamente “automática”; e a segunda, em que – após alguma possibilidade de adaptação e ajuste e em função de algum diálogo com a comunidade – foi possível experimentar recursos para a interação com as famílias e as crianças. Nesse sentido, as escolas parecem mesclar as duas possibilidades de adesão às tecnologias que marcam o debate sobre as relações entres os campos da Educação e das tecnologias: em um momento, o processo parece ter se dado de forma mais rápida e dispositivista e – em outro momento – de forma mais consciente e pensando nos contextos e no currículo. A reflexão crítica a partir da conjuntura e a comunicação com a comunidade (para checar as condições de trabalho dos professores e as condições de acesso e expectativas de processo das famílias) parecem ter sido fatores que demarcam as diferenças entre as duas fases.
A partir dessa constatação, buscamos mapear as sínteses e os pontos de reflexão que despontam das relações entre escola, educadores, famílias e educandos. Acredita-se que o olhar para a relação com as tecnologias proporcionou o desvelamento de possibilidades e limites do trabalho realizado nesse período, mas também trouxe à tona questões centrais para a educação infantil, que a condição remota potencializou ou permitiu enxergar.
Como ponto sensível, vale destacar a impressão de que o contexto da pandemia revelou o olhar que grande parte das famílias têm para a pré-escola: um olhar de incompreensão, menosprezo, que demonstra que elas ainda não compreendem seu papel político, social e pedagógico, na primeira etapa da Educação Básica e na socialização das crianças.
Também foi possível perceber as diferenças relacionadas à questão do acesso em função dos marcadores sociais: ela ganha contornos diferentes em escolas privadas ou públicas. Quando nas escolas privadas o problema parecia estar no uso dos recursos mais adequados, nas escolas públicas, a questão era que nem todas as famílias possuíam acesso à rede e boa parte das atividades precisou ser entregue (junto com os kits merenda) para as famílias em suas residências.
Do ponto de vista da gestão, enquanto entre escolas privadas existe a narrativa de que algumas tiveram condição de antecipação ao cenário da pandemia, entre as públicas, narra-se o desamparo e o descompasso em relação ao sistema de educação representado pela Rede de ensino à qual as escolas respondem gerencialmente. Mesmo que se desfrute de alguma autonomia, na escola privada a ação é do estabelecimento, enquanto na escola pública a ação abrange a Rede de ensino.
Em relação aos professores, existe em comum a ideia de parceria e de que eles “não mediram esforços” para a realização do projeto; mas também em comum a questão das dificuldades com o manejo dos recursos digitais e com a disponibilidade de acesso. As escolas relatam processos de formação e escuta dos profissionais da educação.
A relação com as famílias também é marcada por diferenças nas públicas e nas privadas. Entre as públicas, é comum a narrativa de que as famílias pediam propostas assíncronas, pois era possível fazer em horários alternativos e compartilhar dispositivos. Entre as escolas privadas, emerge a ideia de que as famílias solicitavam mais propostas síncronas (ao vivo), o que permite deduzir que havia um desejo de que a escola “funcionasse” por um determinado período e com um determinado horário. O fato de demandarem atividades que não requeressem ajuda de adultos também pode sugerir que essas famílias precisavam que a escola “mantivesse as crianças ocupadas” e com autonomia por um determinado período.
Talvez seja cedo para depreender desse arrazoado um desfecho argumentativo. No entanto, acreditamos que as configurações aqui sistematizadas podem contribuir para a produção de novas e necessárias reflexões acerca das relações entre a educação e as tecnologias.
Resumo
Main Text
Introdução
Percurso metodológico
O ensino remoto emergencial
Cibercultura e cidadania digital
Urgências, apropriações e usos: as fases do trânsito
Educação infantil e interação remota: objetivos, entraves e possíveis soluções
Considerações finais